quinta-feira, 27 de fevereiro de 2003

Solidões inúteis

Há homens e mulheres que não aguentam conviver. Apaixonam-se, às vezes casam ou se juntam, mas logo se sentem sufocados. Alegam que falta liberdade, privacidade, silêncio. Algo, que não é apenas a variedade da vida sexual, estaria sendo impedido pelo parceiro (ou pela parceira).

Outros conseguem conviver durante anos ou para sempre, mas com a sensação constante de que estão sendo limitados, constrangidos. Ou seja, com a idéia ressentida de que, se o consorte não estivesse junto, a vida vingaria como nunca.

Essa atitude, entre lamento e reivindicação, é quase sempre presente quando um dos parceiros tem (ou imagina ter) uma vocação artística.

O diabo é que isso acontece hoje com frequência crescente. Não me estranha: numa cultura que valoriza o indivíduo, espera-se de cada um que se faça ouvir e reconhecer pelo que tem de mais singular. Um dos grandes imperativos da época diz que é preciso expressar-se. E acreditamos automaticamente que, se pudéssemos procurar fundo nas nossas tripas, encontraríamos pérolas.

Eu sou advogada, mas, lá no fundo, sou poeta ou romancista. Eu sou engenheiro, mas, lá no fundo, sou viajante como Amyr Klink. Eu sou bancário, mas, no fundo, sou músico e cantor. Eu sou médica, mas, no fundo, sou dançarina. O vínculo social tenta nos definir, mas a criatividade nos resgatará.

Valorizamos o indivíduo em suas expressões mais singulares. Portanto as relações sociais nos parecem sempre suspeitas: será que elas não ameaçam a expressão de nossa subjetividade, única e original? É apesar dos outros, imaginamos, que é possível ser "nós mesmos" e produzir algo de valor.

Muitos acabam pensando que, se eles não seguem sua vocação, é por causa do parceiro ou do casal. "Não posso deixar de trabalhar e, à noite, quando volto para casa, não dá. Precisaria de solidão para tocar, escrever, pensar, treinar. Estou cansado, as crianças pedem atenção e não há como não conversar." Em suma, as necessidades da vida em família seriam responsáveis por nossas falências expressivas.

Às vezes, o parceiro que se considera inibido pelo casal impõe uma condição: "Quero tempo, quero um espaço que seja só meu". E o outro (ou outra), generosamente, aceita e encoraja: "Claro, vamos alugar um pequeno escritório para você tocar, escrever, pensar e ficar tranquilo (tranquila) à noite e nos fins de semana. Ou, então, vamos usar a poupança, e você fica um ano sem trabalhar, mas não aqui; na casa de praia dos tios, lá, sem ninguém".

Surpresa e mistério: quando a reivindicação é satisfeita, em regra, ocorre um imprevisto. Na maioria dos casos, o sujeito, aliviado dos deveres da conjugalidade e das responsabilidades sociais, sozinho no lugar e com o tempo que pediu a Deus, livre e desembaraçado, não faz nada. Salvo, talvez, lamentar a época em que, para dedicar-se a sua paixão, ele roubava horas ao sono, aos filhos e às obrigações familiares do fim de semana.

O tempo e o espaço reservados transformam-se na caricatura do pior vácuo da adolescência: televisão, chat de computador, navegações a esmo na internet, infindáveis jogos de paciência. Em suma, uma preguiça que beira e anuncia a depressão.

"Agora que poderia, não sei o que acontece, não saio da cama." Resumindo: achava que o outro me impedia de realizar meus sonhos. Mas, uma vez livre de sua presença, constato que, sem ele (ou ela), mal consigo me mexer, perco a vontade. Descubro assim que: 1) o outro não era minha distração, mas talvez fosse minha motivação, 2) o tempo e o espaço que eu exigia, longe dele ou dela, eram, de fato, tempo e espaço para não fazer nada.

Em suma, quando um parceiro pede para ficar sozinho e, assim, dar livre curso a suas veias criativas, expressivas ou meditativas, seu pedido, embora sincero, alveja quase sempre um ócio avacalhado. Na maioria dos casos, o outro que queremos eliminar não é o carrasco de nossas aspirações, mas o penoso lembrete dessas aspirações. Como assim?

É simples e banal. Um casal serve (também) para isto: o outro é encarregado de encarnar nossas próprias exigências, sobretudo as mais frustrantes. Por exemplo, José se queixa da obsessão de Maria com a ordem nos armários. Qual importância? Só dá briga porque José, de fato, adora ordem e sonha com fileiras perfeitas de meias, cuecas, sapatos e camisas, mas sua vontade morre na praia. Maria torna-se assim a representante do desejo frustrado de José, ou seja, o lembrete de um encargo (fazer ordem nos armários) que é o próprio desejo dele, mas que ele não consegue cumprir -irritante, não é? O mesmo mecanismo vale para obrigações maiores e mais cansativas: se Maria ama e, portanto, idealiza um pouco José, ela certamente quer que ele siga seus anseios artísticos.

Consequência: quando José procura a solidão "para perseguir melhor sua vocação", muitas vezes, ele não tenta evitar a diversão do barulho das crianças, do papo e da transa compulsória com Maria. Ao contrário, ele pode estar fugindo de um amor que é incômodo porque lhe lembra seu próprio desejo.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2003

Pacifistas e guerreadores

Segunda -feira dia 17, em Nova York, neva sem parar: a cidade está quase deserta. Nas avenidas, circula, de vez em quando, um esquiador.

Os nova-iorquinos, na semana passada, fizeram estoque de água, de enlatados e de fitas adesivas para fechar hermeticamente portas e janelas. Preparavam-se para ataques químicos e biológicos. Hoje, há uma sensação de trégua, como se fôssemos protegidos e isolados, cada um em sua casa, por uma embalagem de algodão.

Melhor assim, pois, nos bares e ao redor das mesas, não é fácil encontrar alguém com quem conversar sobre a complexidade do momento. Os interlocutores deslizam no pacifismo radical ou na belicosidade entusiasta. E eu não me identifico com nenhuma das duas posições. Aliás, suspeito que elas tenham algo em comum.

À vista das faixas e dos cartazes, os 250 mil manifestantes que, no sábado passado, encheram as ruas da cidade eram, em sua maioria, pacifistas radicais: opostos não só a esta guerra agora mas a qualquer guerra. Invocavam um argumento moral que parece decisivo: a vida é o valor supremo, não arriscaremos nem ameaçaremos vidas por conflito nenhum. É simpático. Certo, leva a algumas contradições insolúveis. Então não era para intervir em Kosovo? E tivemos razão ao não levantar um dedo em Ruanda? Mas isso é o de menos.

Um problema maior é que o pacifismo radical talvez seja um apêndice da ética narcisista das últimas décadas, segundo a qual é moral o que contribui ao bem-estar. Assim como a vida certa é a saudável, as escolhas políticas justas devem ser as que preservam a vida, a começar pela nossa.
Tradicionalmente, os valores morais se situam acima de nosso interesse e de nossa vontade de sobreviver. Claro, ninguém é de ferro: na Roma antiga, diante dos leões do Coliseu, provavelmente eu renegaria Deus e veneraria o imperador. Mas admitiria que não agi de maneira exemplar. Não tentaria me justificar afirmando que preservar a vida é moralmente mais importante do que professar minha fé.

No começo dos anos 80, a União Soviética parecia ameaçar uma espécie de coice do cavalo moribundo. Os EUA decidiram instalar baterias de mísseis de médio alcance na Europa. Os governos locais deixaram que os americanos pagassem essa última prestação da Guerra Fria. Houve manifestações pacifistas na Europa inteira. O slogan era: "Melhor vermelho do que morto". Leia-se: a vida é mais importante que as "baboseiras" políticas.

Alguns amigos tchecoslovacos, exilados em Paris, contemplavam as passeatas estupefatos. Teriam preferido que os manifestantes gritassem: "Queremos ser vermelhos, que a URSS nos invada". Contra isso eles saberiam lutar; afinal, já tinham lutado contra os tanques soviéticos no fim da Primavera de Praga. Mas eles não conseguiam entender estes filhos do privilégio (democrático e econômico) que, simplesmente, decretavam que não colocariam suas vidas em perigo por nenhuma causa.

Ironicamente, os pacifistas, que gostariam de mitigar as inimizades, são o protótipo do que os terroristas desprezam em nossa cultura. Os homens-bomba sentem-se seguros de encarnar uma moral antiocidental e anti-capitalista justamente porque não são guiados pela moral do bem-estar e da preservação da vida. Para eles, o suicídio confirma a moralidade de sua causa: sou moral porque me sacrifico (inversamente, quem não quer se sacrificar é exemplo de imoralidade).

Opostos aos pacifistas radicais, há os guerreadores, convencidos de que a intervenção no Iraque levará as luzes ao mundo muçulmano. Uma vez suprimido o tirano Saddam Hussein, os outros cairão por contaminação, as maternidades produzirão Montesquieus e Jeffersons em série, e logo surgirão parlamentos e partidos políticos laicos. Essa mesma visão animava os europeus na hora de deixar suas colônias. Receavam que as novas elites fossem progressistas demais. Ninguém previa que os povos "liberados" fossem escolher o fundamentalismo.

Pacifistas e guerreadores são filhos de um mesmo sonho desvairado da razão ocidental. Para os guerreadores, não há diferenças culturais que possam resistir ao poder e à sedução das luzes, as quais, mesmo impostas com as armas, conquistarão os espíritos pelo mundo afora. E os pacifistas acreditam que encontraram um valor racionalmente universal por ser biológico: a vida. Ao redor disso, imaginam que produzirão a unidade de todos. Para ambos, em suma, a pretensa universalidade da razão deve garantir a paz futura entre os homens.

Os dois grupos alegam em seu favor uma faculdade subjetiva: a razão. Não estranha, portanto, que cada grupo entenda a posição do outro como um desatino subjetivo. Para os guerreadores, os pacifistas são apenas covardes. Para os pacifistas, os guerreadores são apenas cobiçosos. Ou seja, ninguém pode querer guerra para promover um sistema de governo: é apetite de lucro disfarçado. Reciprocamente, ninguém pode querer paz a não ser para proteger seu conforto e sua pele.

Resultado: nenhum diálogo, apenas o clamor dos gritos, hoje abrandado pela neve.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2003

Casamentos sem sexo

Observei o encontro entre quatro homens de meia-idade que tinham cursado a mesma universidade e não se viam desde então. Eles lembravam nostalgicamente as bebedeiras, as conversas jogadas fora, a vida de estudante.

Alguém evocou os pôsteres que decoravam as paredes dos quartos: as páginas centrais da "Playboy" e uma gigantesca imagem pornográfica que ainda estava na memória de todos. De repente, um dos quatro perguntou para os outros: "E daí, há quanto tempo vocês não se masturbam?". Desencadeou-se uma crise de riso que quase jogou os quatro no chão.

Quis entender a hilaridade e fui colocando perguntas. Aprendi que eles eram todos casados, pais orgulhosos, maridos amorosos e quase CASTOS. Foi uma surpresa para todos eles, pois cada um achava que, nesse departamento, seu caso fosse único: de fato, a vida sexual do mais ativo consistia numa transa mensal, os outros não tocavam nos corpos de suas companheiras havia meses e, num dos casos, havia anos.

Gostavam de suas parceiras, não sonhavam com aventuras ou amantes, mas o desejo sexual se fora. Quando? Depois do nascimento dos filhos? Numa crise do escritório que multiplicou a carga de trabalho? Durante uma longa permanência dos sogros no quarto de hóspedes? Sei lá. Aos próprios ouvidos deles, as explicações indicavam apenas ocasiões, valiam como desculpas.
A descoberta os deixou envergonhados. Nossa cultura aceita com facilidade que as mulheres não estejam a fim. Uma dor de cabeça, uma indisposição (quem sabe, anunciando a menstruação) ou mesmo uma recrudescência de pudor condizem com a feminilidade.

Para os homens, é o contrário: não estar a fim é uma falha da virilidade. Eles preferem, eventualmente, camuflar sua pouca disposição com esporros e exasperação. Se a companheira estiver indisposta, em vez de insistir amorosamente, é a ocasião de indignar-se e afastar-se, evitando assim encarar sua própria ausência de desejo.

Já foi uma figura clássica de casal: a mulher procura ostensivamente duas aspirinas na hora de ir para a cama, enquanto o marido se irrita e encontra, em sua irritação, uma desculpa para virar as costas e apagar a luz.

Hoje, aparece uma figura um pouco diferente. Cada vez mais, escuto mulheres que se queixam abertamente do pouco interesse de seus parceiros pelas "brincadeiras". Parece que elas se cansaram de inventar mal-estares para fornecer álibis a seus companheiros. A famosa dor de cabeça estaria se tornando masculina?

Certo, muitos homens continuam contando vantagens para os amigos da esquina, deixam pairar subentendidos nas conversas sociais, compartilham comentários salazes quando cruzam com um decote generoso ou com uma saia curta e lançam olhares oblíquos e marotos ao passar por uma sex shop. Mas esses sinais aparentes de virilidade servem para levantar poeira e esconder pudicamente o desinteresse que os aflige.

Não sou o único a verificar essa recente "preguiça" dos homens. Por exemplo, num livro recente ("The Sex-Starved Marriage", o casamento faminto de sexo), Michele Weiner Davis, terapeuta de casais americana, faz constatações parecidas, embora administre conselhos um pouco primários, desde o Viagra até passar mais tempo juntos, fazer o parceiro sentir-se importante etc. Se quisesse procurar na vida dos casais os fatores que abalam o desejo masculino, eu começaria pela infantilização: as férias em Orlando, os domingos no parque aquático e as graças de nenê em lugar de conversa (o pichuchu ainda gosta da pichachá?).

Mas a novidade é um desinteresse sexual que se situa aquém dos percalços da vida de casal. Voltemos à conversa de bar dos quatro ex-colegas de faculdade. Eles riam, perturbados, porque a pergunta sobre a masturbação juvenil lhes revelava o fato seguinte: havia tempos, eles não pensavam mais em sexo.

Ora, únicos entre os mamíferos, nós não transamos graças a estímulos simples do tipo: a fêmea está no cio e fecunda, portanto chegou a hora do desejo. Nada disso: nossa excitação depende de representações, idéias, fantasias. E as fantasias não surgem naturalmente; elas pedem um trabalho psíquico, uma dedicação, um esforço.

Talvez falte lazer para isso, mas é também possível que os homens se sintam dispensados dessa antiga tarefa por viverem, hoje, num bazar de fantasias sexuais prêt-à-porter. A cultura de massa já é nossa enciclopédia das condutas desejáveis: nela encontramos os modelos para amar, odiar, ter sucesso ou fracassar, ser heróico ou modesto. Por que não recorrer a ela para nossas necessidades sexuais?

Caricaturando apenas, a vida sexual consistiria, nesse caso, em ir para um motel cada sábado às 17h e lá, antes do "quid", procurar inspiração no vídeo pornô do dia. Certamente economizaríamos assim o tempo (exorbitante) exigido pela elaboração e manutenção de fantasias sexuais próprias. Por que não?

Há apenas um problema: liberados do dever de fantasiar durante a semana, começaríamos a achar estranho e pesado o dever do sábado. Ir para o motel por quê? Só de pensar, já dá uma dor de cabeça...

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2003

Deus é brasileiro

Domingo assisti a "Deus É Brasileiro", de Cacá Diegues. Na porta do cinema, por telefone, um amigo tentava me dissuadir de entrar, por princípio. Seu preconceito contra filmes brasileiros deve ser parecido com o sentimento que, na minha adolescência, em Milão, me fazia detestar o cinema italiano, sobretudo as comédias. A maioria dos filmes me apresentava uma imagem da Itália que não tinha nada a ver com minha vida e meus problemas de jovem de classe média urbana. E essa imagem me cobria de uma espécie de vergonha. Parecia-me que a cultura nacional transformava nossos atrasos em risadas e em falsa glória. Um pouco como se resistíssemos à modernização recorrendo ao grotesco de nossa miséria e apresentando-o ao mundo para que achasse graça.

Em suma, entendo o preconceito do meu amigo, mas espero que, graças a esta coluna, ele veja o filme de Cacá Diegues. Eis a história: Deus procura um santo para quem ele possa entregar as rédeas durante suas férias. Ele viaja por Pernambuco, Alagoas e Tocantins com a ajuda de um jovem borracheiro endividado e de uma moça que quer ir embora para São Paulo. Homenagem aos atores: Antônio Fagundes voltará à minha memória a cada vez que, no futuro, me endereçar a Deus, Wagner Moura tem uma carga de simpatia despachada, e Paloma Duarte é o próprio enigma feminino, entre a amorosa, a santa e a possível prostituta.

À vista do resumo, meu amigo resistirá, pretextando que não quer descobrir o Brasil num passeio pelo Nordeste. Acrescentará que tem pouca simpatia pelo ufanismo: não tolera a junção da idéia de que Deus seria brasileiro com imagens de pobreza. Deve recear a mesma coisa que eu detestava no cinema italiano da época: a transformação da miséria num pitoresco exótico que definiria o país.

Mas o filme de Cacá Diegues não é nada disso. Saí do cinema comovido e alegre, não por ter descoberto sei lá qual Brasil, mas por ter encontrado o deus certo: vi o filme como uma obra de teologia (claro, sem as aporrinhações do gênero).

O Deus brasileiro é narcisista, capaz de ternura, irascível e, sobretudo, perdido e impotente diante da complexidade do mundo. Anota num caderno as coisas tortas que ele gostaria de endireitar, mas é óbvio que são apenas detalhes: o emaranhado de dor, santidade, feiúra e bondade não deixa espaço para uma reforma total. Aliás, talvez esse emaranhado constitua, em sua complexidade, a graça do mundo.

Aparece assim uma divindade para os dias de hoje, o Deus do qual precisamos, não como recurso, mas como modelo. Pois, embora seja cheio de si, ele encarna uma qualidade da razão que está fazendo falta: a humildade.

Nos últimos tempos, somos agredidos pelas prepotências assertivas. Os debates nacionais e internacionais tornaram-se vulgares pela simplificação, que é efeito da soberba.

Exemplifico. Ouço os que dizem que o programa Fome Zero resolverá os problemas da miséria no país e no mundo, como se não fosse um gesto generoso entre outros. Também ouço os que, nos desacertos do programa e em seu valor de propaganda, encontram o argumento decisivo contra o espírito do novo governo. Ouço os que levantam o punho declarando que Lula mudará a estrutura social e econômica do país. Ouço também os que apontam para a alta dos juros e declaram que não mudará nada. Ouço os pacifistas que acreditam cegamente no poder da razão diplomática e não pegariam as armas contra monstro nenhum. Ouço também os que pedem guerra para resolver logo um conflito que, de qualquer forma, nos espreita. Ouço os que são convencidos a agir só por razões sublimes e acusam Bush de agir por interesse. Também ouço os que acreditam que os EUA sejam o porta-estandarte do Iluminismo. E não há diálogo.

Ora, quem não tem um conhecido que vocifera sua opinião antes de saber qual é o tema da conversa? Podemos generosamente reconhecer que o tal conhecido é frágil a ponto de gritar para convencer-se de que ele existe.

Mas admitimos dificilmente que esse conhecido é nossa caricatura. Opinar sem escutar nem os interlocutores nem a complexidade do mundo é esporte de massa. Narcisistas, cronicamente dependentes do olhar dos outros, somos todos frágeis. E escondemos nossa fragilidade atrás de convicções cortantes. Somos as vítimas perfeitas das sondagens de opinião: você é contra ou a favor? A resposta certa seria, quase sempre, "Não sei". Mas pouco importa a questão em pauta, a urgência é afirmar que somos alguma coisa: pertencemos aos "contra" ou aos "a favor".

Talvez o Deus de Cacá Diegues tenha descido à Terra para lembrar à gente que ele mesmo não entende quase nada de como anda o mundo e, sobretudo, não faz milagres. Nisso ele é como a gente. Mas, à diferença de nós, consegue ser narcisista e inseguro a ponto de pagar quem o elogia, sem por isso se consolar com certezas fictícias. Nisso ele merece ser Deus.

PS: Falando em milagres, houve, na segunda-feira, a entrevista de Paul Singer na Folha. Se todos conseguíssemos adotar seu estilo, o mundo seria um bocado melhor.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2003

Eclipse da razão política

Em outubro passado, foi publicado nos EUA "The Emerging Democratic Majority" (a maioria democrata emergente), de J. Judis, R. Teixeira e R. A. Teixeira.

Os autores prometem que, a curto prazo, os EUA serão um país progressista: nas próximas décadas, o Partido Democrata governará incontestado. Para chegar a essa conclusão, eles recortaram o país em "ideópoles", grupos definidos pelas idéias que neles prevalecem. Logo, mostram que os grupos em que dominam as idéias próprias aos eleitores democratas crescem demograficamente mais que as "ideópoles" republicanas. Por exemplo, cresce a população hispânica, aumentam as mulheres que trabalham, assim como cresce o número de cidadãos que passam por uma universidade. E esses grupos tendem a pensar como democratas. Rapidamente, eles constituirão uma maioria esmagadora.

Gosto da previsão, mas as idéias que supostamente definem os eleitores como democratas me inspiram um vago mal-estar. Identifico-me com muitas delas, compartilho-as, acho-as importantes, mas elas não definem exatamente uma escolha política.

Para explicar minha perplexidade, recorro a uma história que foi evocada várias vezes no debate ao redor do livro. Em 1996, a campanha pela reeleição de Bill Clinton se serviu de uma sondagem peculiar. Para saber como os eleitores votariam, eram colocadas cinco perguntas: 1) Você pensa que a homossexualidade seja moralmente errada? 2) Você faz uso pessoal de pornografia? 3) Você consideraria com desprezo alguém que tivesse uma relação extraconjugal? 4) Você acredita que o sexo antes do casamento seja moralmente errado? 5) A religião é importante na sua vida? Quem respondia "não" a todas as perguntas, exceto a segunda, era um eleitor de Clinton. Quem respondia "sim" a todas e "não" à segunda era um eleitor de Bob Dole.

As respostas eram um indicador de voto mais confiável do que a posição econômica e social do eleitor. Conclusão possível: o que domina a vida política americana, hoje, não seriam nem as diferenças de posses e lucros nem os projetos contrapostos de organização política, mas as opções morais.

Cuidado: não se trata de uma anomalia dos eleitores americanos. Estamos um pouco no mesmo barco. Por exemplo, eu sou favorável à liberalização do aborto; no mínimo, não quero que a prática seja acessível apenas a quem pode pagar por baixo da mesa. Ora, se pudesse escolher entre um partido progressista que não se preocupasse com isso e um partido centrista que defendesse a liberalização, em quem votaria? Situação parecida para um católico progressista: se seu partido de esquerda preferido promovesse a liberalização, ele, oposto ao aborto, talvez votasse com os conservadores.

Se essa não for uma aposta significativa para você, substitua a liberalização do aborto por qualquer coisa que seja central na sua vida privada: o acesso à pornografia, a existência de bares gay ou de clubes de swing, a prática de suas fantasias sexuais preferidas etc. E veja se isso não seria, para você, uma razão de decidir seu voto.

Em suma, Judis, os Teixeiras e os conselheiros de Clinton se serviram de um fato cultural que é, hoje, comum: nossas escolhas políticas dependem bastante de opções morais na esfera da vida privada. Votamos e militamos por motivações, em grande parte, íntimas e subjetivas: a generosidade, a vontade de gozar do jeito que gostamos e por aí vai.

Durante as últimas quatro décadas, essa mudança apareceu como uma conquista. E foi mesmo. Desde os anos 60, as escolhas da vida privada invadiram os debates de política pública; não é mais possível fazer política sem levar em conta as exigências da intimidade. Aliás, pode-se argumentar que o último grande projeto político (o socialista) dançou porque, onde se realizou, não quis escutar essas exigências.

Sem nenhuma ironia, eu consideraria politicamente progressista um governo que transformasse o Ibirapuera numa cópia (melhorada) do Bois de Boulogne, com cantos reservados para os prazeres noturnos ao ar livre de cada gosto. Mas seria estranho que essa consideração resumisse minha orientação política. Cadê as idéias sobre, sei lá, a organização do trabalho, a propriedade, as decisões coletivas, as responsabilidades e as recompensas sociais?

O que aconteceu com nossa capacidade de inventar projetos propriamente políticos?

A resposta habitual é, de fato, uma constatação do triunfo do liberalismo: o modelo dominante funciona, não há outro projeto. Portanto, vamos aprimorá-lo com enfeites de sentimentos e tripas.

Poderia concordar. Mas sobra uma dúvida: talvez a explosão das exigências subjetivas seja responsável por nossa crescente incapacidade de pensar propostas propriamente políticas.

Talvez ela nos obrigue a conceber a coletividade só a partir do indivíduo. Talvez, em suma, o triunfo contemporâneo da subjetividade tenha produzido um eclipse da razão política.
P.S.: Michel Foucault dizia que os discursos da liberação certamente libertam, mas também renovam (e aprimoram) a máquina do poder.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2003

Nostalgia dos tubarões

No último número da revista "Science" (vol. 299, nº 5.605), Julia K. Baum e outros pesquisadores da Universidade Dalhousie (Nova Escócia, Canadá) apresentam uma pesquisa sobre "Colapso e Conservação das Populações de Tubarões no Atlântico Noroeste".

Entre 1986 e 2000, os tubarões, da Terra Nova a Recife, declinaram brutalmente. Os números são diferentes segundo as espécies, mas, com raras exceções, sempre significativos. O tubarão-martelo quase sumiu (diminuição de 89%), e o tubarão-branco (comedor de banhistas e protagonista do filme "Tubarão") perdeu 79% de seus efetivos.

Chegou-se a esses resultados acompanhando as variações no número de tubarões capturados acidentalmente pelos pescadores de atum e de peixe-espada. Nesse tipo de pesca, as linhas carregam centenas de iscas que qualquer peixe morde com apetite. Ora, essas linhas trazem de volta cada vez menos tubarões.

O próprio caráter não seletivo da pesca deve ser responsável pelo declínio dos tubarões. A isso se adiciona, hoje, a captura intencional: nos EUA, a pesca do tubarão é regulamentada, mas os pescadores europeus trabalham livremente, encorajados pela popularidade da carne de tubarão nos restaurantes da Europa.

Os pesquisadores manifestam sua preocupação. Afinal, os tubarões levam de 12 a 18 anos para atingir a maturidade reprodutiva, e as fêmeas, no decorrer de sua vida, criam, no máximo, dois tubarõezinhos. Será difícil inverter a tendência, mesmo com fortes políticas de proteção.

O tom preocupado do artigo desperta uma certa vontade de zombar. Afinal, danem-se os tubarões. Se querem sobreviver, é fácil: tornem-se vegetarianos. Evitarão as iscas e, assim, pararão de encher (ou morder) o saco da gente. Os pesquisadores canadenses, consternados, nos lembrariam que o fenômeno compromete o equilíbrio ecológico. Sem tubarões, seremos invadidos pelas focas, que ninguém comeria mais, e, na pança de tantas focas, sumiriam as sardinhas. Ora, sem sardinhas, como almoçar no porto de Lisboa? Pois bem, responderão os zombadores, que volte a moda dos casacos de pele, reabra-se a caça aos "bebês" de foca e, pronto, as sardinhas estarão salvas.

O declínio dos tubarões produzirá uma certa alegria entre banhistas e surfistas. Embora os ataques sejam raros, não duvido que, logo em janeiro, muitos achem ótimo que haja menos bichos dentuços nadando no fundo do mar. Comentarão que, para preocupar-se com o declínio dos tubarões, só os canadenses mesmo, que não entram na água do mar nem no verão.

Mas estou também convencido de que, entre os próprios surfistas que expõem assiduamente suas pernas apetitosas aos tubarões, muitos vão se manifestar contra a pesca industrial e seus estragos nas fileiras dos predadores do Atlântico.

É uma contradição constante. Acreditamos em nossa capacidade de transformar o mundo. Mas essa fé convive sempre com a nostalgia do cosmo imutável, ordenado pela bondade divina ou pela sabedoria da própria natureza.

Ora, os dinossauros não sumiram por culpa nossa, e uma enorme parte da evolução se fez em nossa ausência. Além disso, as formigas, ao construir colônias de formigueiros, não se preocupam com o plano da natureza. Idem para os castores quando constroem seus diques. Sem falar nos tubarões, que não se preocupam nem um pouco com a extinção dos surfistas e dos turistas em nossas praias. Ou seja, em princípio, as espécies "normais" modificam o hábitat e tentam impor suas necessidades sem grandes tormentos de consciência.

Essa era também a posição dos homens até, mais ou menos, dois séculos atrás. Paradoxalmente, a modernidade levou ao paroxismo a vontade de adaptar o mundo ao nosso capricho e, ao mesmo tempo, as lágrimas (de crocodilo) que choram os encantos perdidos de um mundo preservado. A história se acelerou, mas foram inventados os museus, a preservação dos monumentos históricos e os parques naturais. Com novas armas e armadilhas, exterminamos os lobos que ameaçavam nossos rebanhos; logo, criamos lobos em cativeiro e tentamos reintroduzi-los em nossas montanhas. O Ocidente colonizou (ou pós-colonizou) quase o mundo inteiro e agora lamenta a variedade perdida das culturas. Só falta recriar e reintroduzir os sioux nas planícies do oeste americano e os tupis-guaranis na mata atlântica.

Admiro o heroísmo preservacionista, mas desconfio um pouco dele. Há o sublime sacrifício: em nome da ordem cósmica, amo os tubarões, embora me mordam. Há a aparente abnegação: queria que o mundo não fosse sujo pela minha própria presença.

E há, atrás desses nobres sentimentos, um extremo narcisismo. Pois a abnegação afirma que somos completamente diferentes das outras espécies: seríamos os únicos que podem colocar o bem do ecossistema acima de nossos interesses imediatos.

Alguém responderá: nada disso, cuidamos da ordem do mundo apenas para garantir nossa sobrevivência. Pois é, lobos e tubarões agem diferente: não estão preocupados com sua morte a ponto de querer se consolar planejando a eternidade do planeta.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2003

A guerra que vem

Não sei se a segunda guerra do Iraque acontecerá ou não. Soldados, aviões e navios saem para o Oriente Médio, e fala-se, aqui nos EUA, na possibilidade de instituir o alistamento obrigatório.

Embora o entusiasmo da população vacile um pouco, a oposição à guerra é fraca. O clima dominante é: "Pouco importa o que dirão os inspetores da ONU, agora é tarde para recuar. Depois pegaremos a Coréia do Norte".

Claro, os regimes do Iraque e da Coréia do Norte são odiosos. Mas duvido que o governo americano queira transformar os EUA em polícia do iluminismo político. Duvido ainda mais que essa seja a vontade do americano médio.

Claro, o petróleo iraquiano é uma isca apetitosa, mas a invasão produziria, no Oriente Médio, uma onda de ódio mais nociva do que a perda do dito petróleo. Além disso, os americanos achariam imoral, hoje, uma guerra justificada só por interesses econômicos.

No ideário americano, a democracia requer duas condições indissociáveis: autonomia e possibilidades ilimitadas de consumo. Só há democracia se vivemos num supermercado constantemente abastecido por uma infinidade de produtos e no qual circulamos, mercadorias entre as mercadorias, arriscadamente livres, vendendo nosso serviço ao melhor preço.

O anseio libertário repudia invasões e intromissões. Mas a necessidade de acesso infinito a bens de consumo pode exigir intervenções para que seja mantida a abundância, que é uma condição do ideal democrático. Ora, a penúria não é a situação do dia; o preço da gasolina continua igual.
Então por que a pouca resistência aos preparativos? Por que a guerra é popular?

A modernidade, no começo, era avara de identidades de grupo: a proposta era que cada um fosse simplesmente ele mesmo. A religião, o vilarejo, a classe social, em princípio, não contavam mais: você é mão-de-obra errante e vale por seu sucesso no supermercado da vida. Nessa nova imensidade, a referência nacional oferecia conforto.

Como se definiam as nações? Pela guerra. Quando sabemos quem odiamos e quem nos quer mal, pertencemos enfim a um grupo. As guerras nos fizeram franceses, ingleses, italianos etc., numa época em que as identificações coletivas perdiam sentido.

Queremos ser apenas membros da mesma espécie humana, e tanto faz que sejamos católicos ou muçulmanos, brancos ou morenos. Mas sentimos a nostalgia de um círculo mais restrito do que a humanidade. Para constituí-lo, nada melhor do que definir nosso grupo por seus inimigos.

Depois da Segunda Guerra Mundial e da catástrofe dos impérios coloniais, as nações começaram a definir-se por outros meios. Ainda existem coletividades reunidas pela guerra; a Bósnia e a Sérvia são exemplos recentes, e talvez o Iraque ou a Coréia do Norte sejam outros. Mas são fenômenos periféricos. As nações européias, em poucas décadas, perderam sua inspiração armipotente e encaminharam-se para uma identidade supranacional e pacífica. A União Soviética juntou a vocação guerreira às suas aspirações ideológicas; quando estas desmoronaram, sobrou uma Rússia decidida, aparentemente, a reinventar-se como nação animada por outra aspiração que não a guerra. A Austrália e o Canadá, há tempo, sustentam-se pelo projeto infinito de conquistar sua própria fronteira interna: o deserto ou o grande norte.

Das grandes nações modernas, só os EUA continuam sendo, propriamente, uma nação fascinada com sua própria belicosidade. Não é uma intenção expansionista, mas um traço identificador: ser americano é comprar brigas armadas, assim como ser brasileiro é desconfiar do Estado ou ser malandro.

Uma série de contingências históricas explicam essa particularidade: os EUA nasceram de uma revolução e se aperfeiçoaram numa série ininterrupta de conflitos. Em 1945, na hora em que derrotas ou vitórias demasiado custosas levavam outras nações a esquecer suas vocações combativas, os EUA festejaram uma vitória militar que coincidia com o triunfo mundial da liberdade.

Em suma, nos EUA, o apelo à guerra estimula diretamente um traço crucial do espírito nacional. Desculpe a irreverência: é como tocar axé num boteco de Salvador, todo mundo começa a se mexer.

É difícil que os americanos mudem, pois constatam que sua belicosidade alimenta os sonhos do mundo inteiro. Nas salas de cinema, a cultura guerreira dos EUA seduz as mesmas platéias que, eventualmente, descem às ruas protestando contra o militarismo "ianque". Os EUA são amados e odiados (ou seja, invejados) por serem a nação militar que muitos deixaram de ser e que outros querem e não conseguem constituir. Renunciar a definir-se pelo poder militar seria, para eles, abdicar de sua própria força de sedução.

Uma mudança na identidade americana talvez acontecesse se a nação se diluísse, um dia, num conjunto supranacional, como foi o caso dos países europeus. Ora, a Alca é apenas um acordo comercial. Mas talvez estivesse na hora de enxergar, entre as linhas das contas alfandegárias, a possibilidade de um sonho político. Afinal, a União Européia começou assim.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2003

Made in Brazil

O economista Alfredo Behrens, de São Paulo, planeja uma interessante pesquisa sobre "a competitividade das exportações de tecnologia e o medo de concorrer". Ele constata que várias empresas brasileiras concebem softwares valiosos, mas, na hora de exportar, encontram resistências que não são só de ordem econômica ou administrativa.

Existem, no Brasil, muitas razões que dificultam a exportação. Na segunda metade do século 20, o protecionismo comercial foi acompanhado pelo fim da imigração. Prevaleceu o modelo patrimonialista da riqueza. Ou seja, ganhou a idéia do bolo que seria melhor dividir entre poucos, e foi derrotada a idéia de que a riqueza é o fruto do trabalho de cérebros e braços (idéia que orientou a política de imigração aberta do Canadá, dos EUA e da Austrália). Consequência: em média, explica Behrens, no Brasil dos anos 40, era preciso conhecer apenas 30 pessoas para que uma fosse um estrangeiro; "já na última década do milênio, era necessário conhecer 200 pessoas antes de esbarrar em um estrangeiro residente no Brasil". Também, coletivamente, os brasileiros telefonam para o exterior menos que outros povos cujo Produto Interno Bruto é igual ou inferior ao do Brasil. Lidar com o estrangeiro é, no Brasil, uma prática pouco familiar.

No caso da alta tecnologia, parece haver mais um problema: quase "uma sensação de inferioridade quanto ao trabalho intelectual". Às vezes, os brasileiros desistiriam ou fracassariam, apesar da qualidade de sua produção, por serem atrapalhados pela sensação de que os produtos da inteligência não são coisa de brasileiro.

Questão de baixa auto-estima, dirão alguns, culpando-se. Questão de imagem, dirão outros, responsabilizando a caricatura exótica do Brasil, na qual o país é ótimo para matérias-primas, biquínis e parangolés, mas certamente não para tecnologia.

Na verdade, não há diferença entre a auto-estima e a imagem que os outros têm de nós. O que encontramos no espelho é o que os outros apreciam ou desprezam em nós. Isso vale para cada sujeito, assim como para as identidades coletivas.

Portanto, para melhorar a pretensa auto-estima, não adianta sobrepor ao espelho um retrato mais avantajado. Podemos, a longo prazo, tentar modificar nossas relações com os outros e influenciar assim seus olhares. Mas, antes disso, é urgente aceitar a imagem que é a nossa e descobrir ou desenvolver seus charmes possíveis.

A missão da Apex (Agência de Promoção de Exportações) é promover as exportações e a imagem do Brasil. A equipe da Apex acaba de publicar um pequeno livro ("A Primeira Exportação a Gente Nunca Esquece", ed. Qualitymark) em que um capítulo é dedicado à necessidade de propor uma imagem do país que motive os compradores de produtos brasileiros e que não iniba os brasileiros vendedores. Aprende-se que, no ano passado, a pedido do Ministério do Desenvolvimento, a agência McCann Erickson fez um "levantamento de como as pessoas, especialmente os importadores e empresários (estrangeiros), "percebem" o Brasil". Foi efetuada uma pesquisa nos dez países prioritários para as exportações brasileiras. As respostas foram cinco "S": soccer (futebol), sound (música), sand (praia), sexiness (sensualidade) e sun (sol, trópicos).

Muitos devem achar esse resultado previsível e desanimador. Prefeririam que o Brasil fosse conhecido pela precisão alemã (a Engesa seria a BMW do futuro) ou pelo requinte culinário francês (nas delicatessens do mundo, o feijão tropeiro enlatado seria substituído pelo "foie gras" mineiro).

Entendo, mas discordo. Já disse que a arte de melhorar a auto-estima, ou seja, de modificar a opinião que os outros têm da gente não passa por uma mudança radical e veleidosa. Como se verifica em qualquer psicoterapia, não adianta recusar nossas caretas. Mesmo que elas nos pareçam grotescas, é melhor aceitá-las, assumi-las, examiná-las com carinho e enxergar nelas as razões possíveis de um apreço. Ou seja, em vez de querer ser outro, é mais interessante inventar o que podemos fazer com o que somos.

Nos anos 80, viajei à Itália para apresentar minha mulher, brasileira, à minha família. Ao conhecê-la, meu irmão, que não sabia nada do Brasil e procurava algo cativante para dizer, comentou: "Ah, o Brasil! Aqui em Milão está cheio de travestis brasileiros competindo com as prostitutas". Minha mulher, gaúcha e afiada, não deixou por menos e respondeu: "Se vêm aqui, é que há freguesia; os milaneses devem gostar". Ou seja, os travestis eram, para meu irmão, a imagem do Brasil; então, que sua complexa sensualidade e suas vidas corajosas valessem não como fonte de vergonha, mas pelo desejo suscitado (que sempre se esconde atrás do escárnio).

Na semana passada, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, propôs que os brasileiros reconhecidos internacionalmente, por exemplo os jogadores de futebol e as modelos, promovessem o país e seus produtos. Alguns podem torcer o nariz, mas, sem ironia, o ministro está certo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2003

Comilanças, bebedeiras e outros excessos

A comida tradicional das festas de Natal não é arrebatadora: o peru assado é quase sempre seco, e o presunto, por caramelizado que seja, continua sendo um presunto. Apesar disso, no dia seguinte, ressoa uma litania: comi demais, extrapolei, a partir de amanhã meus nomes são esteira e regime.

Alguns festejam duas vezes: na véspera é o jantar da família e, no dia de Natal, é o almoço na casa dos sogros ou dos pais. A 12 horas de distância, encaram os mesmos pratos; a repetição deveria sugerir moderação. Nada disso, os excessos se repetem.

Para quem sofre de distúrbios alimentares, é um momento trágico. Uma bulimia que parecia curada pode despertar na camaradagem da mesa: "Todos comiam, eu também comi até não poder mais. Depois, fui para o banheiro e forcei o vômito. Voltei para a mesa, comi de novo... fazia anos que isso não me acontecia".

Às vezes, a mesa é puxada por um irmão ou um primo comilões que lideram o abarrotamento. Outras vezes, é a solicitude de uma mãe para quem o apetite dos comensais é a prova certeira do amor.

Mas os casos que me interessam hoje são aqueles em que nenhum comensal, quando senta na mesa, quer comer demais. Ninguém é um glutão, e nenhuma mãe abusiva enche os pratos. Apesar disso, todos acabam amaldiçoando seus próprios excessos e sonhando com a mágica do bicarbonato.

Histórias parecidas acontecerão de novo no fim do ano. Apesar de a bebida ser eventualmente péssima, muitos beberão mais do que queriam e começarão o ano praguejando contra a noite anterior.

Em suma, regularmente escuto sujeitos que se perguntam por quais forças misteriosas foram possuídos naquela infausta mesa em que ninguém queria comer e beber tanto. A cada vez, lembro-me das experiências que David Myers, um psicólogo social americano, realizou no final dos anos 70. Myers quis entender os mecanismos pelos quais pequenos grupos de pessoas chegam a decisões e condutas comuns.

Ele descobriu o seguinte. Quando, num pequeno grupo, existem opiniões diferentes, o grupo pode, é claro, quebrar. Você quer comer carne, eu sou vegetariano e Fulano está de jejum: desistiremos de almoçar juntos, cada um volte para sua casa. Mas, se o grupo não quebrar, se conseguir estabelecer um projeto comum, é bem provável que um acordo seja encontrado ao redor de uma posição MAIS extrema do que a posição de qualquer membro do grupo.
Ou seja, você quer comer uma picanha inteira, eu quero comer uma fatia transparente de lombinho, ele mal aguenta o cheiro da comida, e acabaremos todos comendo um boi inteiro. A tendência é que a unanimidade se faça graças a uma escolha radical que nem existia antes de o grupo concordar.

Para quem acredita no poder da razão discursiva para resolver conflitos, as pesquisas de Myers são uma pedra no sapato (ou no estômago).

Elas se aplicam a casos menos engraçados do que comilanças e bebedeiras. Imagine (é só um exemplo) três jovens que, de noite, passeiam pelas ruas de Brasília. Eles encontram um índio que dorme debaixo de um abrigo de ônibus. Um dos jovens acha que é melhor deixar o homem tranquilo e seguir em frente, outro acharia graça em dar um susto no índio gritando no seu ouvido de repente e o terceiro gostaria de dar-lhe uma ducha com um balde de água gelada. Seria razoável que os três negociassem uma espécie de média, ao redor da posição do segundo, não é? Pois é, as experiências de Myers mostram que eles tenderão a concordar em dar um banho não de água gelada, mas de gasolina, e em tocar fogo no homem. Como é possível? Por que o grupo não é um lugar de debate racional ou razoável?

Em qualquer grupo, grande ou pequeno, a coesão e, portanto, a sensação de pertencer ao conjunto são as coisas mais gratificantes para os membros. No caso, uma escolha extrema oferece uma grande consistência de grupo. Encontraremos nossa unidade por sermos os empanturrados, os doentes de amanhã de manhã ou, mais radicalmente, os cúmplices de um assassinato.

Além disso, num grupo pequeno, a corrida para a liderança é, por assim dizer, inflacionária. Imaginemos "A", "B" e "C" querendo festejar. "A" propõe que se coma peixe e carne; se "B" concordar, "C" não vai contentar-se com a posição de terceiro aderente. Ele proporá que se coma peixe, carne e ovos fritos. "A", para manter a liderança, aceitará com entusiasmo, mas agregará a salada de batatas. Como "B" resistiria à tentação de propor um antepasto? Não é uma discussão: é um pôquer em que todos seguem aumentando as apostas até a catástrofe final, gastrodigestiva ou outra.

A idéia de que agiríamos como sujeitos racionais está em baixa. Em 2002, um psicólogo, Daniel Kahneman, ganhou o Prêmio Nobel de Economia por mostrar que nosso comportamento econômico não é racional.

Também, fora as comilanças, há suficientes mortos e feridos pelo mundo afora para lembrar que os mecanismos de nossa vida de grupo são imperiosos, exigentes e pouco razoáveis.
Para o Ano Novo, talvez seja prudente contar menos com a razão e mais com a boa vontade dos indivíduos.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2002

Natal com John Rawls



Um exercício filosófico para manter o espírito natalino.
Depois de um século de enfrentamentos, nas ruas, nos matagais e dentro de cada cabeça, ficamos numa espécie de empate entre o sonho socialista e o sonho liberal.

Se nos dermos o tempo de pensar, chegaremos provavelmente a estas constatações: não sabemos renunciar aos anseios da liberdade individual, mas recusamos as desigualdades excessivas de poderes e haveres. Essas desigualdades, de fato, constrangem a liberdade de todos, o que constitui uma boa razão para combatê-las. Mas como aboli-las sem comprometer a liberdade quase absoluta que queremos preservar para todos?

Ainda existem liberais segundo os quais qualquer um tem direito a tudo que puder arrancar de seu semelhante. Acham que a aspiração igualitária nos torna reféns das exigências dos outros, ameaçando nossa liberdade. Também ainda existem socialistas que vêem na liberdade individual uma traição dos ideais comunitários, que, para eles, deveriam ser os únicos. Mas trata-se de minorias.

Grosso modo, concordamos. Todos, ou quase, queremos o melhor dos dois sonhos, liberal e socialista, sem concessões: justiça e liberdade.

A discórdia começa na hora de decidir quais regras realizariam uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa. John Rawls é o filósofo dessa hora. Morreu quase um mês atrás, deixando um vazio discreto, como acontece quando vão embora os melhores, ou seja, os que falam em voz baixa e nos pedem o esforço de pensar.

Sua obra mais importante, "Teoria da Justiça", foi publicada em 1971. Talvez um dia, alguém, procurando datar períodos no século 20, escolha essa data para marcar o fim da modernidade e o começo da pós-modernidade. Pois o livro é um último esforço da razão moderna para resolver o conflito entre seus dois maiores sonhos.

Rawls acredita que seja possível estabelecer regras universais para uma sociedade justa e livre. Como? Recorrendo a uma experiência racional que nos levaria a conclusões unânimes em matéria de justiça.

Imagine-se num limbo, antes de nascer, ou seja, antes de saber quais prêmios ou quais desgraças lhe serão atribuídos pela loteria da vida. Você não sabe se nascerá miserável ou rico, na Somália ou em Beverley Hills, rebento de uma família uspiana ou analfabeta. Cuidado: não basta imaginar-se (fantasia de Woody Allen) como espermatozóide na espera preocupada da ejaculação paterna, nem como óvulo materno antes da invasão. Na loteria da vida, é preciso incluir o patrimônio genético. Você também não sabe se será homem ou mulher, branco ou negro, alto ou baixo e, sobretudo, não sabe se terá fragilidades genéticas para malformações e deficiências. Ou se terá ou não predisposições para algum talento.

Claro que essa "posição original" não existe. Mas somos todos capazes de viajar, por um instante, até esse lugar fictício. De lá, poderíamos escrever, de um comum acordo, as regras de uma sociedade justa.

À primeira vista, o apelo à "posição original" se parece com a empatia, ou seja, com a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de sentir suas dores. A diferença é que Rawls não propõe um sentimento acidental e caritativo, mas uma experiência universal da razão, que orientaria nossas decisões políticas e morais. Nisso, a "Teoria da Justiça" poderia ser o último grande texto moderno.

A pós-modernidade não acredita na universalidade da razão. E, por exemplo, critica Rawls da maneira seguinte: a experiência da "posição original" é possível só para nossa cultura. Nós acreditamos que nossa família seja a espécie humana. Podemos, portanto, nos imaginar em qualquer lugar na loteria da vida. Mas essa é apenas a crença da tribo ocidental moderna.

Outras culturas acreditam que os vizinhos, os pobres ou as outras raças sejam bichos diferentes. Elas escutariam a proposta de Rawls com a indiferença que seria a nossa se ele nos convidasse a imaginar que poderíamos nascer bactéria, inseto ou truta. Conclusão: a pretensa universalidade da razão justa seria uma crença histórica e culturalmente limitada.

Essa crítica procede, mas é sem consequência. Pois nossa cultura nos constitui: seus pressupostos (por exemplo, a convicção de sermos todos membros da mesma família humana) têm para nós valor universal, são partes integrantes de nossa razão.

Mas há uma outra crítica, que a prática da psicanálise leva a formular. Não estou certo de que, na "posição original", por não conhecer os resultados da loteria da vida, todos escolheríamos regras justas. Suspeito que muitos prefeririam planejar uma sociedade iníqua e correr o risco de tirar um número ruim, à condição de preservar ao menos uma pequena chance de ganhar e, portanto, de gozar de privilégios inauditos.

Não sei o que Rawls responderia. Lamento que encontrá-lo não seja mais possível. Não tanto para solucionar a questão, mas porque sua voz é uma das mais decentes desse último meio século.

Feliz Natal (um pouco atrasado) a todos, sobretudo aos que gostam de pensar e de falar em voz baixa.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

A estrela na lapela

Quarta-feira da semana passada, em São Paulo. Tomo meu café contemplando a imagem de capa da Folha: o aperto de mão entre o presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e George W. Bush, presidente dos Estados Unidos.

Uma assimetria: Bush traz, na lapela, uma bandeira dos EUA, e Lula arvora a estrela vermelha do PT. Toca o telefone, e começa uma ciranda de comentários que duram o dia inteiro. "Elegemos o presidente do Brasil ou o do PT?" "O que é, voltou o Komintern?"

Na quinta-feira, aparecem as fotografias do encontro com Vicente Fox, presidente do México: na lapela de Lula, nenhum distintivo. Parece que Lula vestiu a estrela especificamente para o encontro com Bush.

Imagino que ele tenha usado o distintivo para declarar sua fidelidade às aspirações e ao percurso que o levaram até o encontro no Salão Oval da Casa Branca. Lembrete: serei cordial, engolirei os sapos necessários, mas não renegarei a estrela que representa meu sonho de um mundo solidário e generoso. Ora, do lado americano, como foi recebido o gesto?

As vicissitudes da estrela vermelha tornam seu valor simbólico problemático. A estrela no chapéu de um chinês durante a longa marcha era o símbolo de uma grande esperança. Décadas depois, em Pequim, a mesma estrela no chapéu de um policial ou de um burocrata era o símbolo do terror. Soviéticos, chineses, castristas, coreanos do norte e vietnamitas do norte fizeram do bem comum sonhado por todos um pretexto para moer os indivíduos, e, repetidamente, a estrela vermelha virou emblema da repressão. Mas pouco importa: na Casa Branca, certamente, ninguém confundiu o presidente do Brasil, democraticamente eleito, com um burocrata chinês.

No entanto o uso do distintivo deve ter sido entendido como uma provocação e, portanto, como uma fraqueza: em suma, como uma molecagem. Pense no que acontece quando um adolescente insiste em usar seu piercing no nariz logo no dia em que veste terno e gravata para enfrentar uma entrevista de seleção. O jovem acha que ele está, assim, reivindicando sua autonomia: preciso de emprego e você me intimida, mas, cuidado, não pense que deixarei de usar meu piercing, viu? O detalhe incôngruo é, de fato, a prova de sua fragilidade. Pela necessidade de conclamar sua independência na hora de apresentar-se e de pedir, ele revela que está se sentindo ameaçado por sua própria inferioridade. Em boa psicologia de recursos humanos, é por isso que o dito jovem não conseguiria o estágio ou o emprego. Ele sairia esbravejando: fui discriminado por causa de meus anseios de liberdade! Na verdade, seu piercing revelou não um excesso de independência (essa seria uma qualidade prezada), mas uma falta de segurança.

E o americano médio? Quem se interessa por política internacional (uma minoria, sem dúvida) sabe que o presidente eleito do Brasil pertence a um partido de esquerda. Mas a foto do encontro com Bush mal apareceu na imprensa. Segunda-feira de manhã, em Nova York, pergunto a Marshall Blonsky (professor de semiologia na Tisch School of the Arts e autor de "American Mythologies") como reagiria, a seu ver, o americano médio se os jornais tivessem mostrado em primeira página a foto colorida que nós vimos no Brasil, com a estrela vermelha na lapela de Lula.

Responde: "Ficariam exasperados. Pensariam: esse cara está procurando nas ruínas sinistras do passado uma maneira para mostrar a língua a Bush e à gente. Nós estamos em guerra, ele vem pedir crédito e abana com as mãos ao lado das orelhas cantarolando: olhem para a minha estreeela... nana nanana. É tudo o que tem para nos dizer?".

Mas há uma boa chance, acrescenta Blonsky, de que, para os mais jovens, a estrela vermelha evoque sobretudo uma propaganda da Heineken, a cerveja da estrela. De fato, se o retrato do Che pode estar em cada quarto de estudante e embelezar um famoso biquíni apresentado por Gisele Bündchen, por que a lapela de um presidente não seria alugada como espaço para a promoção de logomarcas?

Difícil não ouvir, no cinismo divertido de Blonsky, um fundo de ressentimento. Decididamente, não é o melhor momento para fazer molecagens com os americanos.

Segunda-feira à tarde, por volta das 15h, passam na minha rua, em Manhattan, as coortes dos estudantes que saem da Park West High School, uma escola pública. Enquanto me dirijo a um bar para terminar de escrever esta coluna, cruzo com um adolescente negro que veste o tradicional casaco preto de náilon da North Face, um moletom com capuz cinza e um gorro de lã com, bem no meio da testa, uma estrela vermelha. Para verificar a previsão de Blonsky, aponto para a estrela e comento: "Cool" (legal). Martin F., 17, pára, e conversamos no frio. Mostro-lhe a capa da Folha de quarta-feira. Quando enxerga a estrela, exclama: "Cooool" (leeegal). Imagina que Lula seja um cara da Rússia. Faço-lhe notar que os russos não têm mais nada a ver com as estrelas vermelhas. "Como não? São as lojas dos russos que vendem essas estrelas em qualquer canto do Brooklyn."

quinta-feira, 12 de dezembro de 2002

Vida divertida ou vida interessante?

Uma reportagem do "New York Times" (3 de dezembro) descrevia uma nova moda nos colégios americanos, graças à qual o ensino de ciência está se tornando curiosamente popular.

Nos EUA, os requisitos mínimos para o diploma secundário são bastante livres. Há tempos, para quem não gosta de estudar química, física ou biologia, existem matérias alternativas, como a "ciência da terra" ou a ecologia. Agora é a vez da "ciência forense", idealizadíssima pelos seriados televisivos, pelo cinema e pelos romances policiais. Assim, em vez de estudar leis e fórmulas, os alunos aprendem como determinar a hora da morte considerando o estado de um cadáver (aulas práticas no necrotério). Familiarizam-se com o microscópio examinando pêlos de possíveis estupradores encontrados no corpo da vítima. Entendem o que são o esperma ou o sangue investigando uma hipotética cena do crime.

Nas escolas em que os cursos são oferecidos, os jovens são entusiastas. Por que bancar o estraga-prazeres?

O fato é que a reportagem me deixou um mal-estar. Fiquei com a impressão de que a química, a física e a biologia estivessem desistindo de ter qualquer apelo próprio. As formas estabelecidas da diversão (sobretudo a televisão e o cinema) decidiriam como e o que podemos aprender. Filosofia, história e inglês (português, no nosso caso) seriam vítimas do mesmo processo.

Lembrei-me de conversas recentes com um jovem estudante universitário que (com grande angústia dele e dos pais) quer largar os estudos ao menos temporariamente. Ele queixava-se de que todos os cursos seriam chatos. "Como assim, chatos?", perguntei. "Não são divertidos", respondeu. Estranhei: quem disse que um curso deve divertir?

Existem ao menos duas antíteses de chato: interessante ou divertido. E elas não se equivalem. O divertido nos afasta e nos distrai. O interessante nos envolve e nos engaja. Enquanto os alunos olham para um passarinho que os diverte, posso lhes enfiar uma colherada de ciência na boca. Mas preferiria interessá-los na própria ciência.

Cuidado: não defendo o valor do trabalho duro. Aliás, suspeito que o ideal do "homo faber" seja uma versão laica do moto monacal "reza e labora". E, se não tiver para quem rezar, contente-se em laborar. Deve ter sido promovido, no começo do capitalismo, pelo dono de uma tecelagem inglesa que queria justificar a "nobreza" da semana de 80 horas e do trabalho infantil.

Mas fui adolescente nos anos 60, a década do triunfo da intimidade e da idéia de que a verdade que importa é sempre subjetiva. Consequência: para mim (como para muitos de minha geração), o mundo é sempre interessante com a condição de que a gente se engaje nele. É alienado quem, vítima de poderes escusos ou de fraquezas morais, foge desse engajamento.

A partir dos anos 90, encontro adolescentes para quem o mundo parece tolerável apenas se puderem distrair-se dele. E os vizinhos são frequentáveis à condição de não se comprometer com eles. O que era alienação nos anos 60 tornou-se escolha de vida nos 90.

O próprio uso das drogas mudou. Nos anos 60, a maconha e os alucinógenos eram concebidos como auxílios para descer "mais fundo" no autoconhecimento ou numa pretensa comunhão mística com o mundo. Imaginávamos que drogar-se fosse uma viagem iniciática, interior ou para a Índia. O ecstasy dos anos 90, ao contrário, promete um paroxismo de distração. Serve para clube e música tecno: não fale nada e sacuda-se forte.

Ora, criticar os jovens é quase sempre uma hipocrisia. Pois, em regra, o que eles "aprontam" é apenas a realização de um desejo dos pais. Melhor, eles realizam o que conseguem entender ou imaginar das aspirações inconscientes dos adultos.

Portanto, se a escolha da distração é deles, o desejo de distração deve ser um pouco nosso. Posso achar surpreendente que meu jovem interlocutor exija cursos divertidos. Mas devo reconhecer que ele vive num mundo em que há pedagogos que acham certo vestir-se de Sherlock Holmes para ensinar química. Em suma, foram os adultos que, do ideal da vida interessada e engajada, passaram para o ideal da vida divertida. Os jovens perceberam.

Na sala de espera de meu dentista, folheio a "Caras". Entendo que muitos gostem de contemplar os ricos e famosos em suas mansões e festas. Os cínicos dizem que é saudável: a inveja estimularia a mobilidade social. Não vou discutir agora. Mas constato e lamento que, inelutavelmente, os retratados sejam deformados por um sorriso idiota. A imagem da felicidade proposta se confunde com um ricto que não é justificado pelas circunstâncias, mas vale como uma declaração: olhem para nós, estamos alhures, esquecidos do mundo e de nós mesmos, nos divertindo.

Em 1938, Huizinga publicou "Homo Ludens", o homem que joga, para mostrar que o jogar é uma dimensão essencial da atividade humana. Estranha premonição, ele previa que, no futuro, uma cultura da puerilidade impediria adultos e crianças de continuar jogando do único jeito interessante, ou seja, com seriedade.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2002

Na passarela de Miss Mundo, lá vamos nós

A Nigéria é um país dividido entre cristãos modernizadores e muçulmanos que têm pouca simpatia pelos charmes da modernidade ocidental. Os dois grupos se odeiam.

Em 2001, a nigeriana Agbani Darego, estudante de computação, foi eleita Miss Mundo, graças à elegância de seu porte e às suas qualidades intelectuais. Com isso, a Nigéria ganhou o direito de hospedar o concurso. O governo nigeriano (o atual presidente é cristão) decidiu promover o evento de 2002 para mostrar ao mundo que a Nigéria se moderniza. A comunidade muçulmana não gostou. Primeiro, várias candidatas protestaram contra a aplicação da lei islâmica na Nigéria e pediram que fosse abolida a pena de apedrejamento para mulheres acusadas de adultério.

Também a data escolhida (7 de dezembro, no começo do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos) pareceu uma provocação. Enfim, como aceitar uma competição baseada em qualidades que o Islã mais conservador não preza nas mulheres, como a sedução, a independência e a formação intelectual e profissional?

Gota que fez transbordar o vaso, uma jovem jornalista nigeriana (de novo, uma mulher, mas onde já se viu?), ao comentar a chegada das moças, na semana retrasada, perguntou: "O que o profeta Muhammad pensaria do concurso?", e brincou: "Quem sabe ele escolhesse uma mulher entre as jovens pretendentes".


Blasfêmia! As autoridades religiosas do Estado de Zamfara decretaram uma "fatwa" contra a jovem, que já está em fuga pelo mundo, alvo designado de assassinato por qualquer fiel muçulmano que goste da idéia. E a rua pegou fogo. Balanço: mais de 215 mortos, 1.100 feridos, 22 igrejas e oito mesquitas destruídas.

O páreo mudou-se para a Inglaterra. Aqui, surpresa, as concorrentes foram acolhidas por outros protestos. Germaine Greer, feminista veterana, fez eco às autoridades islâmicas de Zamfara, declarando que era horrível que o concurso ocorresse em Londres.

Mesmo sem aventurar-se em críticas ideológicas, é fácil zombar de Miss Mundo: os concursos de beleza parecem puras futilidades. Os organizadores deveriam ter desistido na hora do primeiro bofetão na rua, não é?

O problema é que, pensando bem, não estou tão certo da futilidade do concurso de Miss Mundo. Há traços e manifestações de nossa cultura que podem nos incutir uma espécie de vergonha. Com isso, não reconhecemos que são parte integrante e necessária de nossa maneira de ser.
Um exemplo. A liberdade de expressão é crucial na nossa cultura: acreditamos no indivíduo como valor, portanto defendemos a liberdade de cada um se expressar livremente.

Essa atitude é fácil quando se trata de proteger uma revista militante ou mesmo (espero) o colunista de um diário. Mas hesitamos quando se trata de defender palavras e imagens que não têm, aparentemente, funções nobres ou superiores. Pelo jornal da CUT desceremos nas ruas e enfrentaremos polícia a cavalo e bombas de gás lacrimogêneo. Será que faríamos o mesmo pelos anúncios eróticos da "Private" ou pelos cinemas pornográficos do centro? Na hora de proteger a expressão das fantasias eróticas, achamos que essa é nossa parte acessória, envergonhada. No melhor dos casos, nós a defendemos só para evitar que a repressão estabeleça um precedente do tipo: amanhã será a vez da Folha. Dificilmente reconhecemos que a liberdade das fantasias eróticas é um traço irrenunciável de nosso jeito de ser.

Ora, nossa subjetividade não é possível sem a liberdade de fantasiar sexualmente. Montesquieu, Locke e Rousseau não existem sem Sade. Cultuamos a liberdade política e prezamos a autonomia também porque nossa fantasia erótica se arrisca a enlouquecer, imaginando e desejando coisas impossíveis ou proibidas. É com a liberdade de fantasiar que nasce a culpa moderna: paramos de ser culpados por não respeitar proibições e normas e passamos a sentir culpa sobretudo por deixar de perseguir o que desejamos.

Outro exemplo, mais próximo de Miss Mundo. A sedução é a modalidade geral de se afirmar e de se relacionar em nossa cultura. Mas dificilmente reconhecemos nela um traço decisivo de nossa subjetividade. Querer seduzir não é o triunfo das aparências e da futilidade? Por que defender concursos que parecem premiar a sedução?

Ora, a sedução generalizada, que nos envergonha um pouco, é o corolário da revolução que aboliu os privilégios do berço. Se cada um deve valer por si só (não pelo lugar ou pelos pais de quem nasceu), então, nosso valor é decidido pelo olhar dos outros, ou seja, por nossa capacidade de seduzi-los.

Resumo: se nos orgulhamos da liberdade de expressão, devemos defender também os cinemas do centro. Se nos orgulhamos do fim dos privilégios na organização social, devemos defender a sedução que organiza nossas relações sociais.

Em suma, podemos não gostar, mas não podemos renunciar aos "sex shops" e aos clubes de swing. Como não podemos renunciar ao desfile de Carnaval, ao concurso de Miss Mundo ou à semana da moda de São Paulo. Pois os cantos escuros do sexo e as passarelas da sedução não são as escórias, mas os caminhos de nossa liberdade.

quinta-feira, 28 de novembro de 2002

Simulando a vida

Na "New York Times Magazine" de domingo passado, David Brooks (o autor de "Bubos no Paraíso") comentava o lançamento da versão on-line dos "Sims".
Os "Sims" (os simulados) é um jogo para computador que existe desde 2000 e que se tornou extremamente popular. Nada a ver com os cenários de combate de "Quake" ou "DukeNukem". Nada a ver com o mundo heróico e fantástico de "Final Fantasy". Nos "Sims", os jogadores circulam num habitat parecido com o mundo da classe média (sobretudo suburbana) e são convidados a simular a banalidade da vida.

Você volta do trabalho, prepara o jantar, vai ao shopping, ocupa-se das crianças, chama o encanador, lava os pratos, briga com seu ex, tenta encontrar alguém interessante para sair, paga as contas etc. Quando tudo isso acaba, senta-se ao computador e faz tudo de novo, na tela, simulando. Qual é a graça?

Eu imaginava, inicialmente, que a graça consistiria em compensar as frustrações do cotidiano. Os jogadores poderiam se inventar mais bonitos e mais bem-sucedidos. Aproveitariam a simulação para ludibriar seus superiores e pensar, enfim, no seu prazer. A dita simulação seria, em suma, uma transformação radical.

Mas a razão do sucesso dos "Sims" não foi essa. Frequentei um pouco os sites de discussão para jogadores dos "Sims". Descobri o seguinte: quem joga na esperança de se tornar Indiana Jones ou Lara Croft cansa rapidamente. A maioria dos jogadores assíduos parece inventar máscaras, mundos e dificuldades iguais às de sua vida real.

Até agora, essas eram apenas impressões, pois, como saber o que cada um faz, jogando sozinho com o programa, na intimidade de seu disco rígido? A partir de dezembro, a coisa mudará. Pagando uma pequena mensalidade, os jogadores internautas poderão conviver e interagir no mesmo mundo simulado.

Nos últimos meses, mais de 35 mil pessoas jogaram os "Sims" nesse mundo virtual comum, com o intento de testar o sistema (inicialmente previsto para 1 milhão de jogadores). David Brooks teve acesso a esse teste e confirma: o barato dos "Sims" consiste em duplicar as tribulações do cotidiano, não em escapar para outra vida. Estranho? Nem tanto.

Somos todos Madame Bovary. Ou seja, podemos viver na mediocridade, mas sonhamos com grandes paixões: meu trabalho é chato, meu parceiro não transa direito e fala pior ainda, mas leio Bárbara Cartland e assisto a "Titanic". No entanto, à diferença de Madame Bovary, nós somos leitores de "Madame Bovary", o livro. Ou seja, fugimos, como ela, enveredando em sonhos extremos de amor e de aventura, mas nem toda a ficção, para nós, é evasão ou compensação. Às vezes, gostamos de sonhar com a vida que temos e queremos histórias que mostrem a banalidade medíocre de nossos dias, histórias, por exemplo, que contem a vida de Madame Bovary. Por quê?

Pelas mesmas razões pelas quais se escrevem diários: para que a vida de cada dia tenha a dignidade de uma história contada. Os diários provam que a vida deve valer, ao menos, a tinta necessária para contá-la. Os "Sims" têm a mesma função: se volto para casa e simulo meu dia na tela, é uma maneira de afirmar que minha vida merece ser contada ou simulada. Quem sabe o jogo no universo paralelo dos "Sims" reavive, em nossa cultura, o carinho pela vida como ela é.

Há um outro interesse dos "Sims". Em sua versão on-line, o jogo será um laboratório. Psicólogos e sociólogos terão acesso a um universo construído por milhões de pessoas que, interagindo, inventam uma vida em comum. É uma extraordinária ocasião de descobrir e medir modelos culturais, ideais sociais, tendências etc.

Um exemplo, desde já. David Brooks relata que, durante o teste do sistema, Will Wright (inventor dos "Sims") foi impressionado pelos esforços que muitos jogadores consagravam à tarefa de encontrar amigos que quisessem compartilhar casa ou apartamento (isso no mundo virtual dos "Sims"). Parecia que eles estavam mais preocupados em constituir um grupo de faixas com quem dividir o aluguel do que em procurar uma alma gêmea com quem viver a dois.
A observação de Will Wright me fez pensar num adolescente com quem tenho conversado um pouco nestes dias. Durante o colégio, ele não teve sorte em amor e conheceu só prazeres solitários. Chegado à universidade, eis que ele gostou de uma moça que gostou dele. Passaram um ano juntos, felizes. De repente, ele quer sair da relação porque, declara, tem nostalgia "do grupo dos amigos".

Há razões singulares para essa vacilação, mas a observação de Will Wright aponta para uma explicação cultural imprescindível.

Para a geração que chega hoje à idade adulta, o ideal de uma vida que valha a pena não é dramático e intenso, não é, por exemplo, uma paixão amorosa. Ao contrário, a vida sonhada é leve (ou leviana?) como uma sucessão de piadas entre amigos. Seu modelo não é mais a novela, brasileira ou mexicana que seja, mas o seriado: justamente, "Seinfeld" ou "Friends", em que não há amores, só amigos engraçados que vivem juntos e se divertem. Como se divertem...

quinta-feira, 21 de novembro de 2002

Edifício Master

Estréia amanhã, no Brasil, "Edifício Master", documentário de Eduardo Coutinho, o autor de "Santo Forte" e "Babilônia 2000".

O Master é um prédio de Copacabana, a uma quadra da praia. São 276 conjugados (23 por andar), em que vivem mais ou menos 500 pessoas (donos ou inquilinos). O aluguel de um apartamento é por volta de R$ 350, com despesas de condomínio de R$ 135.
Coutinho e sua equipe ficaram no prédio por um mês, filmando entrevistas. Na montagem final, aparecem os depoimentos de 37 moradores.

Antes de assistir ao filme, ao anoitecer, contemple o tabuleiro das janelas acesas na fachada de um grande prédio. A luz trêmula dos televisores parece sugerir uma banalidade comum. Alguém dirá: são vidas massificadas (sempre subentendendo: à diferença da minha, não é?). Mas as sombras que se movimentam atrás das cortinas falam de existências concretas: quem são nossos vizinhos?

Fique mais um pouco na frente do prédio e considere o paradoxo da modernidade urbana: uma extrema proximidade física, vidas que se tecem a poucos metros umas das outras, atrás de uma parede ou de um piso, mas que mal se cruzam. De maneira inédita na história e na variedade das culturas, nós acreditamos que todos são nossos irmãos ou semelhantes. Mas não conseguimos bem explicar por quê e no quê. Os prédios em que moramos são aldeias paradoxais: compartilhamos cheiros, barulhos, gritos, sem por isso saber o que define a nossa tribo; ou seja, sem saber o que temos em comum ou mesmo sem admitir que tenhamos algo em comum. Até porque, em geral, preferimos curtir a ilusão de nossa unicidade absoluta.

Qual é o comum denominador de humanidade que reconhecemos em nossos vizinhos e semelhantes? Como essa humanidade comum se concilia com a presunção de nossa unicidade? O filme de Coutinho responde. Graças a ele, descobrimos que nossos vizinhos não são exóticos; ao contrário, são banais, mas, apesar disso, suas vidas são tão únicas quanto as nossas.
Em suma, somos todos membros da mesma tribo moderna justamente por isso: porque somos todos únicos. No edifício Master, nos sentiríamos em casa, não apesar da diversidade das escolhas e dos destinos, mas por causa dessa diversidade.

Vera viveu no Master a vida toda, mas teve uma existência cigana, porque passou por 28 apartamentos diferentes: sem deixar o edifício, viu suicídios, assassinatos, mortes, cafetinas e prostitutas. Esther, que foi costureira "da alta sociedade", começou um dia a tirar retratos e ficou encantada consigo mesma. Renata fugiu da mãe que a forçou a abortar e, agora, ela tem um namorado nos EUA. Nadir tem oito netos, toca e canta. Carlos e Maria Regina se amam, mas ele tem mania de olhar para outras mulheres, e ela quis se jogar pela janela. Três jovens querem ser músicos. Oswaldo e Geicy são felizes: encontraram-se pelos classificados, começaram a morar juntos três dias depois e são um casal há 13 anos. Daniela, que viveu em Nova Orleans, EUA, luta contra seu medo de encarar a vida escrevendo poesias em inglês e pintando: ela mostra um quadro intitulado "A Floresta de meu Desespero". Roberto, camelô e aposentado, ainda chora a morte de seus pais. Alessandra sustenta a si mesma e a sua filha fazendo programas: é tão bonita e corajosa que, depois do filme, aposto que receberá propostas de casamento pelo correio. Jasson compôs e canta samba. Fernando José foi ator em mais de 30 novelas e 62 filmes. Cristina foi exilada no Master, junto com o filhinho, pelo pai de classe média alta, revoltado pela gravidez precoce da filha. Maria Pia, espanhola e doméstica, já visitou duas vezes a Europa. Suze foi dançarina e cantora no Japão. Paulo Mata jogou futebol no México, na França, nos EUA e na Venezuela, foi treinador na Arábia Saudita e no Sudão e agora compõe e canta. Eugênia é poeta. E por aí vai.
O Master é um edifício de pequena classe média. Seus moradores são, socialmente, de pequena classe média, mas eles não têm nada de médio e nada de pequeno: são todos heróis. Pela arte de Coutinho, suas vidas, milagrosamente, revelam uma grandiosidade épica.

Henrique emigrou para os EUA com 17 anos. Vive de sua aposentadoria americana, sozinho e modestamente. O que ele conseguiu já deu para os filhos, que residem todos nos EUA.

Recentemente, caiu e teve um derrame. Recuperado, canta para nós "My Way" de Sinatra, com entusiasmo e braço erguido. Ao escutá-lo e vê-lo cantar naquele pequeno conjugado de Copacabana, longe de qualquer estereótipo do sucesso, poderíamos perguntar: mas qual é seu triunfo, qual o seu orgulho? A letra da música de Sinatra responde: Henrique canta e se comove porque viveu "do jeito que quis". Orgulha-se e celebra a grandeza de ter vivido e de viver. Só isso, mas não conheço postura mais digna.

P.S. Uma sugestão: se você gostar do filme de Coutinho, ou seja, se você achar graça e grandeza nos heróis do apartamento ao lado e do andar de cima, leia ou volte a ler o livro de Georges Perec, "A Vida - Modo de Usar".

quinta-feira, 14 de novembro de 2002

Suzane: pano de fundo

É sábado . Parece que, na cidade, só se fala da confissão de Suzane von Richthofen. Com o namorado e o irmão dele, ela levou a cabo o assassinato de seus pais, que se opunham ao namoro. Calma, não é necessário trancar os quartos; filhos e filhas não nos matarão nesta noite. Mas muitos pais se perguntam: a casa dos Richthofen era muito diferente da nossa?

À noite, vou ao shopping Frei Caneca, para assistir a "Madame Satã", e João, motorista do táxi Abreu que me leva, comenta sobre Suzane: "Matar os pais por causa do namorado é safadeza mesmo". Parece-lhe intolerável que a cumplicidade com namorados e amigos prevaleça sobre a aliança entre pais e filhos. Concordo, mas receio que a coisa não seja uma novidade.

Enquanto espero a hora do filme, erram pelos corredores do shopping vários grupos de adolescentes. São coesos, cada grupo tem um "look" próprio: um corte de cabelo, uma maneira de vestir as calças, um jeito de andar. Passam três meninos de oito ou nove anos, todos com um brinco na orelha direita. São graciosos, mas o que estão fazendo de noite, num shopping, sozinhos?

É uma banalidade: cada vez mais, na vida dos jovens, na escolha de suas condutas e na invenção de sua identidade íntima, os companheiros contam mais do que os pais. O pai de Suzane não gostou disso, reagiu e morreu coberto de razão, pois ficou demonstrado que as companhias de Suzane eram, bem como ele pensava, péssimas.

Em 1998, o livro de Judith Rich Harris "Diga-me com Quem Anda..." provocou um pequeno tumulto no mundo da psicologia. Rich Harris declarava que os jovens não são (mais) o efeito dos cuidados que receberam na sua primeira infância. Pouco importa que, com suas crianças, você seja carinhoso ou estupidamente ausente: de qualquer forma, a influência do grupo de amigos decidirá quem serão seus filhos. Os jovens se formam em relações horizontais, entre companheiros e iguais. As relações verticais, hierárquicas (com os pais e outros adultos dotados de autoridade), contam cada vez menos.

Não é de estranhar. A personalidade moderna vive numa permanente consulta ao olhar dos outros: existo porque os companheiros de meu grupo, os meus semelhantes, me aprovam e me tratam como um membro do bando. Devo quem eu sou a eles, não à bênção de alguém acima de mim. A cumplicidade e o mimetismo nas parceiradas são mais importantes do que os imperativos da autoridade.

Parêntese: essa mudança não se deu contra ou apesar dos adultos. Os pais de hoje preferem ser bem-vistos e amados por seus filhos a ser respeitados e obedecidos. Em suma, a subjetividade dos pais também mudou com a modernidade, e a família torna-se, aos poucos, uma parceria horizontal.

Ora, ser mais membro de seu grupo do que filho de seus pais acarreta algumas consequências, que constituem o pano de fundo do crime de Suzane & cia. Para quem prefere o grupo à hierarquia familiar, o que vem dos pais não tem valor simbólico. As interdições aparecem como a expressão de uma autoridade que se justifica só na violência; a reação, se acontecer, será também violenta. Da mesma forma, o que se espera que os pais transmitam não são princípios ou exemplos, apenas bens materiais: a herança é só grana.

Outra consequência é a urgência. As relações verticais ensinavam a pacientar: um dia, você subirá na hierarquia, será adulto e tomará nosso lugar. Mas, para quem vive de relações horizontais, não há nenhuma razão para esperar. Quem estiver me atrasando que saia do caminho.

A droga, além de reforçar a cumplicidade do grupo (à diferença dos babacas, nós sabemos o que é bom), satisfaz e encoraja a urgência do querer. Não espere, o futuro sonhado já está aqui, ao alcance da mão, tome.

Depois de assistir a "Madame Satã", na falta da Lapa carioca dos anos 30, vou a pé até a Boca do Lixo, para prolongar o prazer do filme. Numa lanchonete na esquina da Augusta com a Dona Antônia de Queiroz, participo de outra conversa sobre a confissão de Suzane. Uma figura saída do filme de Karim Ainouz exclama: "Coisa de louco, logo num bairro bom". Aparentemente, segundo ele, o crime contradiz a geografia da moralidade. Apesar de todas as revelações de Freud, a casa de família de classe média e de bairro bom continua aparecendo como o lugar do bem. E a Lapa ou a Boca do Lixo, como seus opostos.

Mas há crimes -quase sempre às escondidas, mas desta vez às claras- que nos lembram qual é o preço do bem-estar moderno, que é próprio das casas dos bairros bons. No caso, o preço é uma subjetividade sem mandato, que, para descobrir a que veio, só sabe entregar-se ao conformismo dos pequenos grupos e exigir satisfações imediatas.

Mais um detalhe: muitos acharam que, no enterro dos pais, Suzane fingiu seu choro e que seu pranto seria a prova de seu cinismo. Mas uma subjetividade sem mandato não precisa fingir. Basta-lhe conformar-se ao grupo, conquistá-lo. Na parceria dos enlutados, ao redor da fossa, a órfã inconsolável era uma identidade ideal. E Suzane, aposto, chorou de verdade.

quinta-feira, 7 de novembro de 2002

Balanços do boom dos anos 90

Sob o título comum "A Guerra de Classe", o "New York Times" acaba de publicar dois balanços opostos da última década e do boom econômico que está implodindo.

Paul Krugman, economista e colunista, assina o primeiro texto, publicado em 20 de outubro. Ele considera que os anos 90, por mais que tenham sido agradáveis e festivos, foram o momento conclusivo de uma transformação desastrosa para a sociedade americana. Krugman constata que, nos últimos 30 anos, o poder aquisitivo do americano médio aumentou apenas 10%. No mesmo período, o salário médio dos cem dirigentes mais generosamente remunerados evoluiu de maneira diferente. Em 1970, ele era 39 vezes o salário médio do trabalhador; em 2000, os dirigentes ganhavam mais de mil vezes o que ganhava um trabalhador.

A partir dos anos 70 e com uma aceleração brutal na última década, a economia americana produziu uma concentração de renda e um nível de desigualdade que lembram a época do capitalismo selvagem. Estamos de volta aos tempos do Grande Gatsby. No começo do século, os Vanderbilts, Morgans etc. construíam mansões que eram verdadeiros museus da extravagância. Hoje, celebram-se arquitetos especializados em construir casas de 2.000 a 6.000 metros quadrados. Qual é a diferença?

Ora, observa Krugman, entre 1930 e 1970, houve um interregno em que a América foi um país de classe média, relativamente igualitário e, sobretudo, animado por questões morais, e não só pela sede de lucros. Esse universo, no qual Krugman cresceu, surgiu após a Depressão de 1929, quando o presidente Roosevelt inspirou um pacto nacional que instituiu novas normas de justiça social na consciência americana. Essas normas resistiram por mais de três décadas. A América foi, durante esse tempo, um país nada idílico, ainda racista, capaz de todos os bigotismos, mas também constantemente preocupado com a iniquidade. Aquelas décadas foram a matriz das lutas pelos direitos civis e da contracultura dos anos 60.

Quer reconstruir esse percurso? Para evocar a América absurdamente desigual do começo do século 20, leia ou veja "O Grande Gatsby" ou "A Idade da Inocência". Logo, assista a "Wall Street" (1987) e a "American Psycho" (1991), que (deixando de lado os excessos homicidas do segundo) fornecem exemplos da personalidade ideal dos anos 90. Enfim, para ter uma imagem das melhores décadas americanas entre 1930 e os anos 70, veja ou leia "O Sol É para Todos" (romance de Harper Lee e filme de Robert Mulligan, com Gregory Peck, três Oscars em 1962).

Também acaba de ser reeditado em livro de bolso outro romance famoso: "The Man in the Grey Flannel Suit" (O Homem com o Terno de Flanela Cinzenta), de Sloan Wilson, que foi um best-seller em 1955 e deu lugar a um filme, também com Gregory Peck. É a história dos tormentos de um homem que, para conseguir um salário melhor, preenche uma função que ele mesmo não aprova e que, em suas palavras, consiste em sugerir às pessoas que comprem e consumam "até que possam explodir de felicidade".

Compare os escrúpulos do herói com o cinismo de Michael Douglas no papel de Gordon Gekko, o protagonista de "Wall Street" que promovia a moral dos anos 90, declarando: "A cobiça é uma coisa boa".

Em suma, a verdadeira crise não foi o estouro da bolha na Bolsa. A crise que importa foi moral e aconteceu enquanto se festejavam sucessos e lucros: na ganância que tomou conta de todos, a sociedade perdeu seu rumo.

O outro texto da série (publicado em 27 de outubro e menos interessante) é de Michael Lewis, escritor e ex-investidor. Lewis, simplesmente, defende os anos 90: a década trouxe transformações tecnológicas que ainda darão frutos graúdos e, sobretudo para ele, a década valeu por ser uma expressão de nossa natureza. A cobiça não é nem boa nem ruim, ela nos define.
Inevitavelmente, o leitor dos dois textos fica com uma pergunta. Será que o liberalismo só sabe promover uma ética pela qual o bem coincide com o ganho? Ou, então, o interregno caro a Krugman não foi apenas uma irregularidade, e a América, com o Ocidente liberal, poderiam viver de outros valores que não a cobiça?

A questão parece primária e abstrata, mas ela é central, hoje, no espírito dos americanos. E talvez explique por que muitos encaram sem hesitação a perspectiva de uma guerra cuja necessidade estratégica não está muito clara.

Os escândalos Enron, Tyco, Worldcom etc. revelaram a face obscena da festa dos anos 90 e a debilidade moral que espreita a vontade de lucro. A guerra, ao contrário, é apresentada, entendida e vivida não como um conflito de interesses materiais, mas como uma luta entre culturas inconciliáveis. Ela aparece, portanto, como demonstração de que a América, apesar da cobiça dos anos 90, ainda tem valores para promover e defender. A guerra, em suma, é aceita porque parece ser um comportamento moral, uma maneira de se reabilitar depois dos excessos materialistas dos anos 90: quem luta e arrisca a vida para defender sua cultura não pode ser igual a Gordon Gekko.

quinta-feira, 31 de outubro de 2002

As origens humildes do novo presidente

Nos últimos dias, li ou escutei não sei quantas vezes que Luiz Inácio Lula da Silva é um ex-metalúrgico, um ex-operário e um ex-retirante pernambucano.

Dependendo das circunstâncias, essas expressões têm sentidos diversos: simpatia, admiração, condescendência paternalista, suficiência, desprezo. Seja como for, o lembrete manifesta, no mínimo, o seguinte: é uma surpresa absoluta que um homem dessa extração tenha chegado à Presidência. A origem humilde de Lula tornou-se uma notícia: para alguns, um espanto; para outros, um valor e a promessa de um futuro diferente.

A surpresa não deveria ser tamanha. Afinal, funciona, há um certo tempo, um quadro democrático formal. E, contrariamente à opinião frequentemente recebida, o Brasil é um país com acelerada mobilidade social. Por que um operário não chegaria à suprema magistratura do país?

O verdadeiro mistério é o estranhamento de todos, inclusive do novo presidente, que se comove com a lembrança de suas origens. Em suma, é óbvio que chegar à Presidência saindo de um berço humilde constitui um mérito extraordinário, mas a surpresa que todos manifestam ressoa como algo mais do que o reconhecimento da façanha de Lula. O caminho percorrido pelo novo presidente surpreende não apenas como uma espetacular ascensão social mas como se representasse uma transgressão da ordem das castas. Fala-se de Lula metalúrgico e retirante como, numa sociedade tradicional, poderia ser celebrada (ou execrada) a chegada de um pária ao poder.

Quando Bill Clinton foi eleito presidente dos Estados Unidos, houve, na imprensa americana, artigos lembrando suas origens pobres e desastradas (o pai que morreu antes de ele nascer, as dificuldades e a coragem da mãe para criá-lo, o padrasto alcoólatra e abusador). Era claro que ele não pertencia nem de longe ao clube do "establishment" americano. Isso era uma surpresa desagradável para alguns e agradável para outros, mas não foi nunca uma manchete, embora o fato fosse pouco banal (a mobilidade social nos EUA de hoje não é maior do que a brasileira). Não houve títulos anunciando: "Filho adotivo de alcoólatra abusador chega à Presidência". Para que, nos Estados Unidos, a imprensa e a rua fossem levadas a lembrar constantemente as origens de um presidente, ele deveria ser negro ou mulher. Aí, sim, seria repetidamente conclamado que foram eleitos, enfim, o primeiro negro ou a primeira mulher presidentes.

Com Lula acontece isto: suas origens sociais são evocadas não para lembrar uma diferença que, no Brasil moderno, é difícil, mas possível, percorrer. Elas parecem ser evocadas para lembrar um fosso que, normalmente, é proibido atravessar.

Apesar do verniz de modernidade e da efetiva mobilidade, as diferenças sociais, no Brasil, são vividas como diferenças essenciais, mais parecidas com distâncias qualitativas (raciais e racistas, por exemplo) do que com as disparidades econômicas que, na modernidade, deveriam ser a forma principal, se não única, de diferença social.

Lula, numa outra democracia, seria apresentado como um líder sindical e político que foi eleito presidente. No Brasil, ele é apresentado como operário e retirante: sua chegada à Presidência constitui um alvoroço, porque "operário" e "retirante" parecem designar espécies distintas. É como se Spartacus, o escravo, se tornasse imperador em Roma.

Nesse quadro, como entender o apoio que as elites mais conservadoras deram à candidatura de Lula? Nesta eleição, houve uma grande novidade: quebrou-se a aliança, que durava desde o fim da ditadura, entre as forças da modernização social-democrata e as forças ligadas à manutenção das formas mais arcaicas do poder.

Durante séculos, as elites antigas e escravocratas inventaram e aperfeiçoaram um erotismo do poder especificamente nacional, feito de condescendência e posse dos corpos, de brutalidade e paternalismo. Protegendo seu gozo, elas receavam e receiam tanto a insurreição dos explorados quanto a modernidade que transforma os escravos em trabalhadores e, aos poucos, promove uma sociedade de classes médias.

Parece que, depois de oito anos de FHC, essas elites tradicionais acharam que, para o estilo de domínio que elas preferem, a social-democracia talvez fosse mais ameaçadora do que a reivindicação e a rebelião popular. Afinal, devem ter pensado, a revolta dos escravos a gente conhece, ela faz parte da ordinária administração: sempre pode ser reprimida (ao estilo de Canudos) ou enrolada na condescendência, quem sabe em nome de um nacionalismo pretensamente comum. Elas apostaram, ao que parece, que o povo revoltado seria um aliado, temporariamente, contra a modernidade e, com isso, lhes prolongaria a sobrevida.

É certo que elas não encontrarão em Lula a complacência esperada. Outra coisa também é certa: para que o mundo inventado e curtido pelas elites tradicionais mude, será bom que reconvirjam as forças dos que desejam que isso aconteça -forças que, nestas eleições, se separaram.

quinta-feira, 24 de outubro de 2002

Conversas sobre eleições e cidadania

Domingo , num restaurante da Nona Avenida, em Nova York, conversei sobre as eleições com L.R., 30, músico, brasileiro. Ele chegou aos EUA em 1993 e tem, hoje, dupla nacionalidade.

L.R. não votou no primeiro turno e não votará no segundo. Não foi por falta de ter retirado seu título de eleitor no consulado. Nada disso: ele não votou e não votará porque não se reconhece o direito de votar: "Não me parece justo. Faria uma escolha da qual não encararia as consequências. Voto em Fulano, o país vai à m..., e eu, aqui, tranquilo. Além disso, não sei se a gente ainda é verdadeiramente cidadão quando não entra com uma cota. Claro que sou brasileiro, mas pago meus impostos aqui, não no Brasil. Quem não paga imposto não é plenamente cidadão".

É óbvio que L. não pretende excluir do voto quem não tem renda para declarar. Sua idéia é a seguinte: contribuir, de alguma forma, na invenção do país é a condição para opinar sobre seu rumo. No caso, pagar os impostos é a contribuição mínima esperada de quem ganha mais do que o necessário.

Ao contrário de um absenteísta, L.R. não vota porque leva o voto a sério. Para estabelecer a legitimidade das urnas, não lhe basta que a escolha do eleitor seja secreta e livre. Ele propõe que, para votar, seja obrigatório pertencer concretamente à comunidade. Por que alguém se pronunciaria sobre o futuro de nossa comunidade, se ele não está disposto a dar sua contribuição para esse futuro? É o espírito do discurso de posse de J.F. Kennedy, em 1961: "Não pergunte o que o país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo o país".

Que ele tenha razão ou não, L.R. tem toda a minha simpatia. Mas, depois de escutar suas reflexões, voltei para casa preocupado. Pensava numa outra conversa, três dias antes, em São Paulo, com um comerciante dos Jardins, que é uma presença amigável perto de minha casa.
O comerciante queixava-se de que, nos 20 anos durante os quais conseguiu manter sua loja, ele não se tornou rico: ainda batalha no fim do mês e culpa o governo por isso. Está na hora de mudar: quem sabe um governo completamente outro permita, enfim, que ele prospere como acha que merece. O poder central é o culpado por ele não ter alcançado seus sonhos, e o poder central também é a solução.

No começo, há um ato de fé num sistema de recompensas de tipo divino: trabalhei 20 anos e mereço, pouco importa considerar se escolhi o produto certo ou se soube competir com a concorrência. No fim, outro ato de fé: a esperança é depositada no governo, como se ele fosse não apenas o representante de nossas vontades mas uma entidade divina, operando por milagres.
É a herança do Brasil colônia: o governo não somos nós, não emana de nós e não nos representa.

É Lisboa, que não se confunde nem um pouco com nossa comunidade. Lisboa, Brasília ou Washington são responsáveis por nossos males. Roubam de nós e, portanto, na hora da dificuldade, têm o dever de nos ajudar. Nós não lhes devemos nada: são elas que nos devem. Outra herança do sonho colonial: se alguém não prospera, a culpa é do governo. No paraíso terrestre, se as plantas deixam de crescer, não é por falta de adubo ou pelo pouco cuidado dos homens: é sempre por maldade de uma divindade invejosa. Quem sabe uma nova divindade seja mais indulgente conosco?

Durante a conversa, uma amiga entrou na loja e o papo continuou, animado, entre a amiga, serrista, e o comerciante, lulista pelas razões mencionadas. A amiga entrara na loja para escolher um presente. Comprou e, receosa de que o presenteado não gostasse, pediu a nota fiscal, para que, eventualmente, a mercadoria pudesse ser trocada. O comerciante (brincando, mas, como se diz em música, "non troppo") declarou: "Nota fiscal, com este governo que está aí, eu não dou. Talvez se o PT ganhar".

De novo, nosso arcaísmo. A revolução burguesa ainda não trouxe seus melhores frutos: muitos, não necessariamente entre os mais pobres, têm (temos) com o governo central, seja qual for, uma relação não de cidadãos, mas de súditos. A experiência de pagar impostos confunde-se com aquela dos vassalos, quando pagavam tributos ao senhor ou com a dos colonos, obrigados a enriquecer a potência colonial que os despachou para a nova terra.

Nesse espírito, sonegar é glória, quase um ato de resistência. Presumimos, com desconfiança historicamente justificada, que os governantes estejam sempre contra nós: por definição, representantes de um poder estrangeiro. Trocar de governo, por consequência, não significa querer uma mudança da sociedade e de nós mesmos: é mais como chamar, sei lá, a Inglaterra para que nos tire a França das costas para que possamos, portanto, seguir cuidando de nossos negócios e interesses particulares.

Se os eleitores de domingo forem, em sua maioria, como o comerciante dos Jardins, tão parecido com todos nós, Deus proteja o próximo governo. Se forem como L.R., não precisaremos de proteção divina. O diabo é que logo L.R. não votou.

quinta-feira, 17 de outubro de 2002

Seis razões para votar em Enéas

Enéas Carneiro foi eleito deputado federal por São Paulo com quase 1,6 milhão de votos. Para entender melhor o porquê de seu sucesso, consultei vários eleitores que votaram nele. As respostas que ouvi foram de seis tipos.

1) "Enéas vai encher o saco deles, lá em Brasília." Entende-se: Enéas não é um político. Vai para Brasília como ia para Washington o mr. Smith do filme de Frank Capra ("Mr. Smith Goes to Washington", traduzido misteriosamente para "A Mulher Faz o Homem"). Cidadão comum honesto e idealista como Smith, Enéas enfrentará o sistema político corrupto.

Sonhamos com uma democracia em que os bairros e as vilas escolheriam um de seus membros, que aceitaria o mandato a contragosto, por dever cívico. Nesse sonho, nossos representantes se dedicariam à política temporariamente e por necessidades específicas (um projeto, uma missão). Desconfiamos da política como carreira ou como ambição, e Enéas é o porta-voz de nosso desgosto com os políticos profissionais.

2) "Ele não tem o rabo preso" e "ele não tem papas na língua". Enéas grita e ataca: sua fúria não poupará suscetibilidades. Ele ousará bater em qualquer um, doa a quem doer. É homem adamantino, inteiro, que não aceita negociatas nem alianças duvidosas. Só tem compromisso com a causa fundamental: a da nação.

Nisso ele não é apenas diferente dos políticos tradicionais. Ele representa também o contrário da inevitável covardia de nossos compromissos cotidianos. Votando nele, resgatamos os sapos que engolimos a cada dia. "Não posso mandar meu chefe ou meu tio à p.q.p.? Voto no Enéas. Ele é minha coragem."

3) "Enéas não tenta ser bonito." Ele é o oposto do galã. Aprendemos, eventualmente, que ele pinta a barba, mas pouco importa: ele está acima das frescuras. Nenhum Duda Mendonça apara seus pêlos.

Votando nele, compensamos nossa frustração com as inevitáveis imperfeições de nossa própria imagem. O voto é uma declaração contra o culto das aparências, que sempre enganam. "Detesto o meu próprio "look'? Voto no Enéas, o candidato para quem o "look" não importa. De repente, a imperfeição do meu semblante prova que, como Enéas, eu não engano ninguém: somos autênticos."

4) "Enéas é inteligente." Ninguém conhece bem as idéias de Enéas. Só se constata que ele está indignado. Ora, a indignação é a forma mais barata de inteligência: ela substitui a complexidade pela irritação dos humores. Ao mesmo tempo, sabe-se que Enéas é cardiologista. Dedução: se ele é doutor e tem esporros no lugar das idéias, isso prova que os esporros (os meus, por exemplo) podem ser inteligentes.

Em suma, a indignação é validada como uma maneira de pensar a realidade. É uma receita tradicional da oratória política: o bom orador tem credibilidade suficiente para oferecer esporros em vez de idéias e, assim, convencer seus ouvintes de que, quando eles estrilam, pensam.

5) "Com Enéas não tem conversa." Salvo loucuras um tanto suicidas, a margem de manobra de quem assumirá o poder depois destas eleições será pequena. O contexto internacional e o momento limitam nossas esperanças.

Enéas cura essa impotência: ele nos sugere que tudo o que acontece é efeito de inimigos identificáveis que conspiram contra a gente. O contexto e o momento escondem um complô. Portanto a complexidade do mundo é uma desculpa com a qual não queremos papo: ela não freará a nossa ação.

6) "Ele vai denunciar sem piedade." Enéas não tem medo de designar seus (nossos) inimigos. Seu espírito não é intimidado por empatias espontâneas que sempre sugerem clemência. Ou seja, na hora de acusar invasores e traidores, ele não vacilará, porque não reconhece em si nenhum dos vícios dos culpados. Se pode jogar facilmente a primeira pedra, é porque deve estar sem pecado.
Identificados com Enéas, podemos acreditar que nossos inimigos, por exemplo os corruptos que vendem a nação, sejam radicalmente diferentes de nós. Não teremos medo de apontar o dedo, porque estaremos sem manchas. O sonegador despejará sua raiva sobre a malversação empreendida pelos poderosos, esquecendo o que ele tem em comum com eles. O usureiro bradará contra os juros abusivos dos bancos. O aproveitador, o pequeno corruptor, o fura-fila, o comerciante que não imprime nota fiscal poderão fazer-se paladinos da legalidade.

Enéas redime nossa capacidade de acusar e condenar. Nas suas palavras, o acusado torna-se absolutamente outro, e podemos, por um instante, desconhecer a nós mesmos, ou seja, desconhecer o que há em nós que nos acomuna com os culpados. É um descanso: a acusação feita aos outros nos exime da tarefa de transformar a nós mesmos.

Conclusão: com Enéas, os ideais nos animam, a pureza nos sustenta, somos sinceros porque não somos bonitos, e nossa raiva é inteligente. Também, com Enéas, não cairemos no conto do vigário da complexidade do mundo, mas iremos direto para a garganta do mal. E poderemos desconhecer que somos, todos e sempre, um pouco parecidos com nossos inimigos. Que é que pode haver de melhor?