quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Clichês de vida e de morte



O soldado do tráfico quer ser um enlatado cultural, um produto de massa desejado


NA SEMANA passada, na zona norte do Rio de Janeiro, durante um conflito entre os traficantes do morro dos Macacos, na Vila Isabel, e os do morro de São João, em Engenho Novo, um helicóptero da Polícia Civil foi derrubado a tiros. Enquanto a guerra entre as facções do tráfico continua, a polícia tenta encontrar os responsáveis e, quem sabe, "reconquistar" esses e outros morros cariocas. Essa conjuntura produziu, ao longo da semana, numerosas mortes e algumas imagens assombrosas.

A mais comentada, Brasil afora, foi uma fotografia de Marcelo Sayão/Efe: ela mostra um corpo torturado e baleado, que foi achado, na terça-feira, dentro de um carrinho de supermercado, nas proximidades do morro dos Macacos.

Na foto, ao redor do carrinho, há nove adolescentes, meninos e meninas; um deles, vestido a caráter, carrega um skate; dois usam chapéus de beisebol; só um veste uma camiseta sem logotipos e marcas, branca; alguns esticam o pescoço para examinar o cadáver (ocultado parcialmente por um saco de lixo).

No mesmo dia ou nos dias seguintes, não sei mais, esbarrei em outra fotografia, cujo tema era mais usual e de cujo autor, infelizmente, não me lembro. Nela, um soldado do tráfico está em cima da laje de uma casa que é situada, provavelmente, nas alturas do morro.

A cena é fotografada de baixo, como se fosse vista por alguém que está tentando subir -por exemplo, um invasor, seja ele policial ou traficante de outra quadrilha. Com o rosto escondido pela camiseta revirada e transformada em capuz (mas quem inventou esse hábito, os jogadores de futebol ou os criminosos?), o soldado do tráfico ergue sua metralhadora mais como uma bandeira do que como uma arma. Bandeira de quê? Do tráfico de drogas ou de sua vontade (satisfeita?) de ter um acesso fácil à festa do consumo?

No fundo, tanto faz. A droga é apenas mais um objeto que resume e carrega consigo as falsas promessas de todos os outros objetos: "Consuma-me e fique bacana e feliz".

Tanto faz, também, porque duvido que, lá em cima do morro, o soldado do tráfico se preocupe com as cores e a significação de sua bandeira; ele não está defendendo ou promovendo a causa de seus valores ou de seus interesses, ele está apenas encenando (propositalmente, para o fotógrafo, para os amigos e para nós) um gesto que faz parte da retórica trivial da resistência ou da revolta, tipo "no passarán" ou lutaremos "até o último homem".

Em outras palavras, o soldado do tráfico está se identificando com as representações do heroísmo assim como elas são vendidas pela produção cultural de massa (sobretudo de segunda categoria): o que ele quer é, antes de mais nada, encarnar um clichê. Por isso mesmo, aliás, ele é patético, no duplo sentido da palavra: sinistro (porque quem age para sair bem na foto é capaz de qualquer pose -ou seja, de qualquer selvageria que capture o olhar do outro) e tocante (pela miséria de seu destino).

Falando em destino miserável, pareceu-me entender, de repente, por que o cadáver no carrinho do supermercado é o futuro do soldadinho que se exibe no alto do morro. Há, entre as duas imagens, uma implicação lógica. Claro, quem vive na bravata, geralmente, coloca sua vida em risco, mas, no caso, não é só disso que se trata.

O soldado do morro pratica uma bravata sem valores, ideais ou interesses definidos para defender. Sem dúvida, ele tem aspirações de consumo, está a fim de um tênis legal, de um chapéu de marca e de todo o bagulho de que ele precisar, mas seria ingênuo pensar que ele arrisca a vida por essas "commodities" -que, afinal, ele poderia conseguir de outro jeito, a um custo menor.

Se ele arrisca a vida é para nos mostrar, do alto do morro, sua metralhadora erguida, na esperança de causar forte impressão: junto com nosso medo, ele quer suscitar nossa admiração, quem sabe nossa inveja. Por isso, antes de ambicionar TER as coisas que estão nas prateleiras das lojas, ele ambiciona SER um enlatado cultural, um produto de massa supostamente desejado por todos. E é normal que um produto de massa, mais cedo mais tarde, acabe num carrinho de supermercado.

Talvez seja este o sentido da curiosidade manifestada pelos jovens reunidos ao redor do morto desovado em baixo do morro dos Macacos: "Que produto mais estranho é esse? Será que é maneiro? Será que é "da hora'?".

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Charmes do celibato



Deixar saudade e fazer falta é menos arriscado e mais prazeroso do que estar presente dia a dia


ALGUMAS SEMANAS atrás, uma leitora, Lucila Almeida, comentou minha coluna sobre "Casamentos Possíveis" observando que, paradoxalmente, o artigo a levara a "refletir sobre aquelas pessoas que não casam porque não conseguiram ou porque optaram por uma vida mais descompromissada". "Essas pessoas", acrescentava a leitora, "são cruelmente cobradas pela sociedade por não terem seguido o comportamento padrão".

Seguia um pedido: que eu escrevesse um pouco sobre os "que saem da curva", "por não casarem ou por não ter escolhido a profissão que dá mais dinheiro ou ainda por ter optado não ter filhos -enfim, por uma série de atitudes que não são consideradas padrão pela sociedade". Por que eles parecem ser cobrados? E qual é a parte de inveja na cobrança?

Passei o último fim de semana no Rio Grande do Sul, numa celebração dos 20 anos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, da qual fui um dos fundadores (desde a metade dos anos 80, quando cheguei ao Brasil, até 1994, a capital gaúcha foi o lugar onde escolhi morar). Bom, senti saudade, mas o que mais importa aqui é que fui comovido pelas marcas da saudade que deixei nos outros. No avião que me levava de volta a São Paulo, essa experiência produziu em mim algumas reflexões que se aplicam, em parte, ao celibato. Mas vamos com calma.

Certamente, casar-se ou juntar-se (com ou sem filhos) é um padrão, e quem "sai da curva" recebe uma cobrança dos próximos e da sociedade em geral. O fascismo italiano, por exemplo, desejoso de braços para ampliar e fortalecer a nação, instituiu um imposto sobre o celibato: "Não quer se casar? Paga multa". Alguns dirão que é natural que seja assim: o casamento serve ao interesse da espécie; para que ela continue existindo, é necessário que a gente se reproduza ou, no mínimo, adote formas de divisão do trabalho que facilitam a sobrevivência: desde "Vamos dividir o aluguel?" até "Você cuida do fogo enquanto eu luto contra o urso que insiste em querer recuperar a caverna na qual a gente se instalou".

O problema, claro, é que, às vezes, o urso mais perigoso é o outro com quem decidimos coabitar. Deve ser por isso que o celibato é, ao mesmo tempo, estigmatizado como um desvio ("E sua filha, coitadinha, encontrou alguém, enfim?") e idealizado, invejado ("Você não casou? Sorte sua, fique firme e livre.").

Diante dessa ambivalência, quem persiste no celibato vive sentimentos desagradáveis. Ele pode se sentir em falta com a família, a sociedade ou a espécie e pode também envergonhar-se por ser objeto de inveja enquanto, na realidade, sua vida não lhe parece invejável: às vezes, onde os outros enxergam liberdade, ele enxerga apenas sua incapacidade de encontrar alguém com quem compartilhar a vida e o medo de ficar sozinho para sempre.

Mas deixemos de lado as dificuldades de achar um par e a chatice de lidar com as cobranças sociais. E examinemos as razões pelas quais alguém, homem ou mulher, persiste no celibato.

Há a explicação tradicional: quem não casa se mantém fiel à sua família de origem -a menina, fiel ao pai; o menino, fiel à mãe. Ela vale em muitos casos, e note-se que é uma via de mão-dupla: frequentemente, é o desejo dos pais que mantém um filho ou uma filha no celibato, como companhia ou, quem sabe, como enfermeiros para a velhice dos genitores.

Outra explicação me foi dada por um amigo, anos atrás. Como ele não parava de descasar e casar-se com mulheres diferentes ou, mais de uma vez, com a mesma, ele me disse, para se justificar: "Não sou sádico". Como assim? Pois bem, ele achava que recusar o casamento ao outro de quem gostamos (e que gosta de nós) só pode ser uma maneira de torturá-lo com uma privação: "Amo você, mas há algo que nunca lhe darei".

Enfim, as emoções da viagem a Porto Alegre me sugeriram uma terceira explicação, que não é universal, mas é a que prefiro. Há homens e mulheres que podem persistir no celibato porque deixar saudade e fazer falta é prazeroso e certamente menos arriscado do que estar lá a cada dia. Eles pensam: "Melhor ser o parceiro com quem o outro lamenta não se ter casado do que ser o parceiro com quem ele lastima ter se juntado".

De fato, nos instantâneos que imortalizam encontros breves que parecem prometer futuros radiosos (e irrealizados), a gente é sempre mais bonito e sorridente do que nos longos reality shows das convivências conjugais.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O prazer da vingança



O desejo frustrado de se vingar é uma poderosa matriz narrativa para os nossos devaneios


PODE SER que, ao longo da vida, você nunca tenha sido ofendido. Mas, para a imensa maioria dos humanos, não é assim. Quando crianças, esbarramos em adultos que parecem quase sádicos, na sua incapacidade de nos escutarem e entenderem; logo depois, encontramos os "bullies" da turma do fundão da sala de aula, da praia ou da rua. E assim continua.

A vida de cada um escolhe as encruzilhadas em que sofremos mil violências morais ou físicas, grandes ou pequenas. Com elas, em regra, não ganhamos nada, a não ser que a gente acredite numa justiça divina após nossa morte: quem sofre aqui na Terra será recompensado nos céus. Também podemos nos consolar com a ideia de uma "grandeza" moral que nos seria própria, pela "generosidade" com a qual aguentamos as ofensas, esquecendo-as ou mesmo oferecendo gentilmente o outro lado do rosto.

Mas resta uma dúvida (que compartilho com Nietzsche, "Genealogia da Moral", Companhia das Letras): nossa moral aparentemente generosa e a esperança de que Deus, um dia, recompense os ofendidos e puna os ofensores talvez sejam uma grande invenção coletiva, criada, justamente, para que as vítimas sejam confortadas e possam perdoar não tanto aos agressores, mas a elas mesmas, ou seja, perdoar a "covardia" da qual elas acabam se acusando, num eterno lamento por elas não terem revidado na hora.

Disse antes que, com as violências que sofremos, não ganhamos nada. Mas não é bem assim: o lamento de não ter revidado é uma das grandes fontes da ficção. Pense bem: inúmeras vezes, dias e mesmo meses a fio, depois de ter sido insultado, machucado, assaltado, empurrado real ou simbolicamente, você ficou imaginando e aprimorando, em seus detalhes, desfechos diferentes, nos quais você, na hora da ofensa, teria imediatamente resgatado sua honra e punido o agressor, deixando-o tão inerte e silencioso quanto você mesmo ainda lamenta ter ficado. Em suma, o desejo frustrado de se vingar é uma poderosa matriz narrativa, sobretudo nos devaneios privados, em nosso cinema de bolso, que fica escondido por ele ser pouco conforme com os ditados da moral dominante.

Quentin Tarantino, com "Bastardos Inglórios" (que acaba de estrear e é um de seus melhores filmes), leva esse cinema de bolso para as salas: é uma verdadeira festa de vingança, uma fantasmagoria cuja violência é alegre e libertadora.

A história contada não cola direito com os fatos da Segunda Guerra Mundial? Você acha curioso que um bando de soldados dos EUA, infiltrados na França ocupada pelos nazistas, aja como índios apaches saídos de um bangue-bangue, recolhendo os escalpos dos que conseguem matar? Ou se surpreende com o fato de que eles marquem com uma suástica na testa os poucos que eles decidem poupar?

Pois é, reconheçamos a Tarantino a mesma liberdade que nós nos permitimos em nossos devaneios de vingança.

Para o que serve essa liberdade de imaginar? Talvez as ficções e, em particular, o cinema (de bolso ou de sala) tenham algum poder de alterar a história, fazendo justiça, por exemplo. Não digo isso apenas porque, em "Bastardos Inglórios", a vingança final acontece graças a uma sala de cinema. E, é claro, sei que os devaneios, em geral, não se realizam mas também sei que eles nunca são vãos, simplesmente porque são o alimento de nosso desejo.

Um outro filme, lindíssimo, conta com uma distribuição limitada e talvez não chegue às salas do Brasil inteiro (no caso, anote o título e espere o DVD): "Deixa Ela Entrar", de Tomas Alfredson. É um filme sueco, que é apresentado como uma história de terror, e é verdade que há um vampiro no filme. Mas o meu prazer de espectador foi outro...

Acho que já contei: quando era criança, eu tinha uma pequena orquestra imaginária, que levava sempre comigo. Ela me servia para combater o tédio, sobretudo quando acompanhava meus pais em intermináveis visitas a museus. Passei bom momentos com a minha orquestra, mas confesso que teria adorado ter também outros amigos imaginários, mais eficientes na hora dos apuros. Uma vampira que gostasse de mim teria sido perfeita. Já imaginou? Alguém que saísse das sombras e arrancasse os pescoços, as cabeças e os braços dos idiotas que me azucrinavam a vida?
Pois é, "Deixa Ela Entrar" é a história de um menino que tem (ou inventa?) a amiga imaginária da qual ele precisa, para se vingar. De uma amiga assim, todos precisamos.

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Razão, crença e dúvida



Onde se manifesta a razão? Na arrogância de certezas absolutas ou na capacidade de duvidar?


MEU PRIMEIRO contato com a história que segue foi em junho passado, no blog de Richard Dawkins (www.richarddawkins.net, site que se autodenomina "um oásis de pensamento claro"). Dawkins é o evolucionista britânico que se tornou apóstolo do racionalismo ateu e cético, escrevendo, entre outros livros, o best-seller mundial "Deus - Um Delírio" (Companhia das Letras, 2007).

Mas eis a história. Em 2002, na Austrália, o casal Sam, de origem indiana, perdeu a filha, Gloria, de nove meses.

A menina, a partir do quarto mês, apresentou sintomas de eczema infantil, que é uma condição alérgica que afeta mais de 10% dos bebês e, geralmente, acalma-se ou some aos seis anos ou na adolescência. As causas do eczema infantil não são bem conhecidas; a medicina administra a condição da melhor maneira possível, esperando que passe. O problema é que o eczema (pele seca com prurido) dá uma vontade de se coçar à qual as crianças não resistem, e a pele, ferida, abre-se para qualquer infecção. Foi o que aconteceu com Gloria, que morreu de septicemia.

Não foi falta de sorte: o pai de Gloria é homeopata e, em total acordo com a mulher, medicou a menina só com remédios homeopáticos (insuficientes na condição da menina). Isso até o fim, quando ela definhava pelas infecções internas e externas. Gloria foi levada a um hospital três dias antes de morrer: as bactérias já estavam destruindo suas córneas, e os médicos só puderam lhe administrar morfina para aliviar seu sofrimento.

Os pais de Gloria foram presos, acusados de homicídio por negligência e, no fim de setembro, condenados pela Justiça australiana: o pai, a oito anos de prisão, a mãe, a cinco anos e quatro meses. Segundo o juiz, Peter Johnson, ambos os pais "faltaram gravemente com suas obrigações diante da filha": o marido pela "arrogância" de sua preferência pela homeopatia e a mulher pela excessiva "deferência" às decisões do marido.

Os termos da decisão de Johnson são admiráveis. A obediência -ao marido, no caso-, seja qual for seu fundamento cultural, nunca é desculpa; ela pode ser, ao contrário, o próprio crime. E, sobretudo, o marido é condenado não por recorrer à homeopatia, mas pela "arrogância" que lhe permitiu perseverar em sua crença e em sua decisão diante do calvário pelo qual passava a menina.

A sentença de Peter Johnson é, para mim, um modelo de racionalidade, porque estigmatiza a certeza independentemente do objeto de crença. Ou seja, o juiz não discute o bem fundado da autoridade do marido e, ainda menos, os méritos respectivos da homeopatia e da medicina alopática. Tampouco ele quer limitar a liberdade de opinião, garantida pela Constituição; a sentença penaliza apenas, por assim dizer, a rigidez.

Se me coloco no lugar dos pais de Gloria, não consigo imaginar uma crença, por mais que ela possa ser crucial para mim, que resista à visão do corpinho de minha filha transformado numa ferida aberta e purulenta.

Antes disso, eu (embora confiando, a princípio, na medicina alopática) já teria convocado não só os homeopatas (o que, aliás, seria uma banalidade, visto que a homeopatia é uma especialidade médica reconhecida) mas também todos os xamãs, feiticeiros e curandeiros que me parecessem minimamente confiáveis. E, é claro, embora agnóstico, eu rezaria, sem nenhuma vergonha e sem o sentimento de trair minhas "convicções", pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo que minha razão não alcança.

Se fosse testemunha de Jeová, e minha filha precisasse de uma transfusão (que a religião proíbe), abriria imediatamente uma exceção. Mesma coisa se fosse cientologista, e minha filha precisasse de ajuda psiquiátrica. Sou volúvel e irracional? O fato é que tenho poucas crenças (provavelmente, nenhuma absoluta), e acontece que, para mim, a razão é uma prática concreta, específica: um jeito de pesar e decidir em cada momento da vida.

O surpreendente é que, ao ler os comentários dos leitores no blog de Dawkins, os "racionalistas" parecem tão "rígidos" quanto o pai de Gloria. "A razão" (que eles confundem com uma visão aproximativa do estado atual da arte médica) é, para eles, um objeto de fé, uma crença pela qual facilmente condenariam os "infiéis" à fogueira.

Com o juiz Johnson, pergunto: onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas ou na capacidade de duvidar?

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Raças e cotas



As cotas só afirmam as diferenças com as quais sonham os racistas? Ou podem mudar algo?


PERTENCEMOS A uma única espécie: a espécie humana.

Quanto a isso não há dúvida, visto que procriamos alegremente sem que as diferenças étnicas ou raciais atrapalhem o bom funcionamento sexual e reprodutivo. Mas só 250 anos atrás, na América do Norte e na França, foi proclamado o princípio de que, por pertencermos à mesma espécie, temos todos os mesmos direitos, independentemente de etnia, cultura, religião, gênero, berço e cor (da pele, do cabelo ou dos olhos).

Desde então, tal princípio vem se afirmando, aos trancos e, sobretudo, aos barrancos, por várias razões.

1) Há etnias e culturas que não topam aquela ideia proclamada 250 anos atrás.

2) Não conseguimos decidir se nossa igualdade de direito deve implicar ou não uma igualdade de fato. Depois de algumas tentativas desastradas, parece que concluímos que o importante é que todos tenhamos ao menos oportunidades parecidas no começo da vida. Estamos longe disso.

3) Mesmo acreditando na unidade da espécie e na igualdade dos direitos, adoramos pertencer a uma turma e continuamos enxergando um mundo dividido em nações, etnias, raças, classes, torcidas etc. Claro, prezamos nossa singularidade e, por isso, queremos ser contados um a um, como indivíduos, cada um diferente e único dentro da espécie comum. Mas também gostamos de privilégios, e os privilégios são mais "agradáveis" quando são negados a um grupo de excluídos: sala VIP só tem "graça" se os outros esperam no saguão do aeroporto. Em suma, no mínimo, a vontade de sermos singulares nos induz a criar grupos de discriminados, "diferentes" de nós.

4) As vítimas dessa discriminação, na hora de invocar o princípio da igualdade de todos para obterem os mesmos direitos dos demais, são obrigadas a se constituírem como grupo. Sem isso, sua reivindicação não teria chance alguma: o protesto de um negro discriminado será sem efeito se não existir algum "movimento negro".

Em tese, os grupos de vítimas da discriminação deveriam ser fundados em "identidades de defesa", ou seja, identidades que surgem provisoriamente, de maneira reativa. Por exemplo, "os negros" existem como grupo, aos olhos dos racistas, para serem discriminados; ora, a luta contra essa discriminação exige uma identidade positiva, de modo que os negros possam existir como grupo na hora de se opor à sua discriminação. No caso, eles afirmarão e valorizarão uma improvável ascendência racial comum. Problema: ao defender-se, eles darão crédito à mesma diferença inventada pelos racistas a fim de discriminá-los.

O perigo é que essas identidades, adotadas para lutar contra a discriminação e permitir, enfim, uma sociedade de indivíduos iguais, acabem consolidando as próprias diferenças que tratam de abolir. Por exemplo, uma política de cotas reservadas a negros e pardos (na universidade, no emprego público e mesmo no setor privado) é uma maneira de se opor à discriminação, mas, para funcionar, ela exige que a gente acredite nas diferenças raciais e as estabeleça como parte da identidade do cidadão -que é exatamente a situação com a qual o racismo sonha desde sempre.

Esse argumento é crucial no livro de Demétrio Magnoli, "Uma Gota de Sangue" (ed. Contexto), que é, ao mesmo tempo, uma excelente história e apresentação do racismo no mundo moderno e uma crítica das políticas de cotas por elas necessariamente confirmarem a existência de diferenças raciais que não têm realidade biológica e cujo fundamento histórico é o próprio racismo.

Isso, logo no Brasil, onde a mistura das cores deixaria esperar um enterro mais rápido da categoria de raça.

Compartilho com Magnoli o sonho de uma sociedade em que a cor da pele seja indiferente. Mas minha avaliação das políticas de cotas é "matizada". Quando cheguei nos EUA, em 94, eu pensava como Magnoli, ou seja, previa que o sistema de cotas, instituído para "compensar" os efeitos da discriminação, dividiria o país, levando-o de volta para o século 19. Não foi o que aconteceu. Aos poucos, a presença de cidadãos de todas as cores na maioria das corporações (da polícia urbana ao corpo docente das universidades) se transformou num duplo valor compartilhado por todos ou quase: um valor estético (a diversidade é bonita) e um valor produtivo (a diversidade é funcional).

Até que um dia pareceu lógico, num país cujo sul inteiro foi racista e segregado, que um negro pudesse ser presidente.

ccalligari@uol.com.br