quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Dormindo com inimigos?



A paixão de Lindemberg era um argumento para que atiradores de elite apertassem o gatilho

COMO MUITOS pelo Brasil afora, assisti ao extenuante drama de Eloá Pimentel, 15, seqüestrada durante cem horas e, no fim, morta pelo ex-namorado, Lindemberg Alves Fernandes, 22, em Santo André, São Paulo.

Como muitos, achei absurda a decisão das autoridades, durante as negociações, de mandar de volta para o cativeiro a amiga de Eloá, Nayara -que por sorte se salvou, embora baleada no rosto. E descobri, consternado, que o Grupo de Ações Táticas Especiais não dispõe de microcâmeras que funcionem nem de escadas que alcancem uma janela do segundo andar.

Fora isso, uma frase cativou minha atenção. No sábado passado, Ana Cristina Pimentel, a mãe de Eloá, declarou a Britto Jr. (TV Record) que "a polícia teve muito tempo para matar" Lindemberg e que os policiais deveriam ter atirado nele muito antes do desfecho.

Lembrei-me de que alguém da PM -talvez o próprio coronel Félix (não consegui reencontrar a reportagem)- afirmara que os atiradores de elite tiveram várias ocasiões para matar o seqüestrador, mas a ordem de atirar não foi dada por se tratar de um seqüestro motivado por razões, digamos assim, não torpes.

Nada de assalto, extorsão etc. Lindemberg e Eloá tinham sido namorados, e era na exaltação de uma paixão amorosa (por doentia que fosse) que Lindemberg estava cometendo aquela loucura e ameaçando acabar com Eloá e, depois disso, matar-se.

Aparentemente, a PM pensou que os sentimentos de Lindemberg tornassem menos provável que ele passasse das ameaças aos atos.

Curiosamente, eu pensava exatamente o contrário: a paixão de Lindemberg por Eloá me parecia aumentar as possibilidades de um desfecho fatal e constituir um argumento para que os atiradores de elite apertassem o gatilho. Por quê?

Não sei se existem estatísticas comparando o desenlace dos seqüestros perpetrados por razões torpes ao dos que são motivados pelos malogros do amor (separações não aceitas, ciúmes, despeito da rejeição e por aí vai).

Mas imagine, por um instante, que Lindemberg fosse um assaltante qualquer: por acaso, ele entrou no apartamento dos Pimentel para roubar e aí ficou, com duas reféns, encurralado pela polícia. Sem dúvida, ele ameaçaria matar as adolescentes para negociar uma chance de fuga. No entanto, quando os policiais arrombassem a porta, sua maior preocupação seria a de salvar a pele; ele poderia instintivamente reagir atirando nos invasores (e seria crivado de balas) ou abrigar-se atrás de uma das adolescentes, usando-a como escudo numa última tentativa de defesa. Mas por que mataria as reféns? Para ser morto a tiros na hora? Ou, se não fosse morto, para aumentar o número de anos que passaria na cadeia?

Claro, as ações de um criminoso acuado não são necessariamente racionais. No paroxismo dos breves segundos da invasão, um seqüestrador qualquer poderia atirar em suas reféns, por exemplo, para se vingar da "traição" dos negociadores que, certamente, prometeram-lhe salvação e liberdade. Mas é apenas uma possibilidade, enquanto Lindemberg, como ele havia dito explicitamente à mãe de Eloá, viera com o propósito de "fazer uma besteira": matar Eloá e matar-se (quem sabe, um jeito de ficar com sua amada para sempre). Para ele, a urgência, na hora da invasão, seria (e foi mesmo) a de levar a cabo sua tarefa. Faltou-lhe apenas a coragem (ou o tempo) de se dar um tiro.

Em suma, paradoxo: justamente porque o seqüestro não tinha razões "torpes", os atiradores da PM deveriam ter sido liberados para atirar.

A exposição midiática do caso fez que o pai de Eloá, Everaldo Pereira dos Santos, fosse reconhecido pela polícia de Alagoas como um foragido, suspeito de vários crimes, entre os quais o de ter matado a ex-mulher, em 1992. Por intermédio de seu advogado, Santos declarou: "Jamais cometeria um crime bárbaro contra uma mulher que tanto amei". Faz sentido, não? E a PM paulistana pensou parecido: Lindemberg não mataria Eloá, que ele tanto amava.

A verdadeira paixão amorosa não é exatamente um "bom sentimento". O apaixonado acredita no objeto de amor (que, de fato, ele inventa) assim como, nos transtornos mais graves, um indivíduo acredita em suas alucinações. Com uma diferença: contrariamente ao alucinado, o apaixonado não consegue renunciar a uma visão que é para ele, às vezes, a prova única e indiscutível de que ele não está só no mundo e de que a vida e a morte fazem sentido.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A sexualidade de quem governa



As fantasias que sustentam o desejo nos definem mais do que o gênero do parceiro

SERÁ QUE que a vida sexual de quem se candidata a governar é relevante para os eleitores? Há duas "escolas" de pensamento: a francesa e a dos EUA.

Para os franceses, em princípio, a vida amorosa e sexual dos governantes não tem relação com as qualidades morais que importam na vida pública. Portanto, é raro que, no debate político, apareçam "detalhes" privados (amantes, filhos fora do casamento etc.).

Nos EUA, ao contrário, a intimidade de governantes e candidatos é vasculhada. Talvez os norte-americanos sejam simplesmente mais moralistas do que os franceses. Ou talvez eles acreditem que uma vida privada libertina (ou não conforme a regra) prometa uma condução desregrada da coisa pública. Algo assim: quem não resiste à paixão (nem para compor o cartão-postal da campanha) colocará sua "tara" acima de seu dever.

É um enigma: os norte-americanos prezam a liberdade de cada um viver como ele bem entende, mas pedem que quem governa seja um exemplo de conformismo. E, em regra, o conformismo de quem governa (sobretudo se for só aparente) transforma-se em exigência de conformidade para todos.

O Brasil é outro enigma: a relevância política da vida amorosa e sexual dos governantes parece mínima, como se o público e o privado fossem domínios claramente distintos. Por outro lado, a esfera pública é brutalmente parasitada pelos interesses privados (corrupção, clientelismo).
Seja como for, nessa história, o que mais me impressiona é a ingenuidade com a qual é composto o "perfil" sexual e amoroso de candidatos e governantes. Nas campanhas eleitorais dos EUA, por exemplo, os candidatos levam consigo mulher e filhos; supõe-se que essa exibição valha como um atestado de "normalidade", enquanto, no máximo, ela indica qual é orientação sexual do candidato (e olhe lá) e qual sua aptidão para multiplicar-se.

Ora, se nossa vida sexual e amorosa diz algo sobre quem somos, não é graças à nossa orientação ou à nossa capacidade de procriar. Do lado amoroso, seria mais significativo considerar qual é o respeito pela singularidade do parceiro, qual a virulência da idealização ou do ciúme, qual a parte de narcisismo etc. Do lado sexual, muito mais que o gênero do parceiro escolhido (ou exibido), o que define um indivíduo são as fantasias (implícitas ou explícitas, realizadas ou não) que sustentam seu desejo.

Ou seja, se quisesse conhecer a vida sexual e amorosa de um candidato, precisaria saber não tanto quem ele ama, mas qual é seu jeito de amar, e não tanto com quem, mas COMO ele "transa" - ou seja, o que o excita, quais pensamentos, quais situações, quais palavras. Também me perguntaria se o candidato tem mesmo uma vida sexual (com que freqüência e intensidade) e se ele aceita sua própria sexualidade ou a vive com nojo ou asco.

Tudo isso, caso eu quisesse saber um mínimo sobre a vida amorosa e sexual de um candidato. Mas será que isso me seria útil na hora de votar? E de que forma?

Michel Foucault talvez seja o pensador que melhor desmascarou e contestou os mecanismos do poder moderno (isso, apesar de sua histórica burrada ao avaliar positivamente o regime dos aiatolás no Irã). Como ele mesmo revelava, sua sexualidade se alimentava em fantasias e práticas sadomasoquistas. Pergunta: sua perspicácia e seu engajamento libertários se deram apesar de suas fantasias sexuais ou por causa delas? Não sei.

A pergunta não é urgente: infelizmente, no estado atual de nossa sociedade, é improvável que candidatos e candidatas a cargos de governo falem publicamente do que importa em sua vida sexual e amorosa.

Fico apenas com esta idéia: em geral, um governante que aceita e vive suas próprias fantasias é, para mim, preferível a outro que as reprime, pois a falta de indulgência consigo mesmo promete rigidez hipócrita para com os outros. Também, o exercício da sexualidade introduz em todas as fantasias uma descontinuidade: a "brincadeira" termina quando acaba a relação sexual. Voltando ao exemplo de Foucault, quem goza sexualmente com os apetrechos do sadomasoquismo dificilmente consegue não achar risível a face sisuda do poder.

Mais um ponto: salvo ilegalidade, em matéria de sexo, minha regra geral é que só o interessado tem o direito de falar. A voz de um terceiro sempre ressoa como uma denúncia que faz apelo ao preconceito -ou seja, certamente não ao que tem de melhor em nós.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Marta com McCain

McCain e Marta, para desacreditar o candidato oposto, contam com nossos preconceitos

AS CAMPANHAS ELEITORAIS são facilmente sórdidas.

Claro, os candidatos mentem inchando seus feitos, omitindo suas inércias, atribuindo-se realizações que são de outros ou dos predecessores. Mas isso dá para agüentar, é quase normal.

Muito mais humilhante (para a gente) é quando as campanhas fazem apelo ao que há de pior em nós, ou seja, quando, na tentativa de desacreditar o candidato adversário, elas apostam em nossos preconceitos. Nesse caso, as campanhas supõem (com razão) que estejamos sempre prontos a transformar tal candidato em cabide de sentimentos e desejos que são nossos, mas dos quais nos envergonhamos.

Funciona assim. Digamos que eu sou ávido e venal e não gosto disso; prefiro me imaginar desinteressado e generoso. Como tirar vantagem dessa minha contradição?

O jeito ideal de me manipular não é denunciar um candidato porque ele se mostrou, em tal ocasião, interesseiro e cobiçoso. O método direto é o menos eficiente: ele permite, afinal, que a gente se interesse pelos fatos, verifique, concorde ou discorde.

A melhor maneira de manipular passa por dois tempos: 1) evocar um fato do qual são silenciadas a causa e as circunstâncias, 2) levantar uma pergunta quanto mais genérica possível, de modo que o ouvinte projete suas próprias tendências envergonhadas no candidato atacado e ele, o ouvinte, seja, assim, o único responsável pela calúnia.

Um exemplo? 1) Os judeus são quase todos comerciantes, 2) pergunta genérica: o que eles "realmente" querem da gente? A propaganda anti-semita nazista acrescentava, para quem fosse burro mesmo, desenhos de garras aduncas surgindo da sarjeta, mas não era necessário. Detalhe silenciado: os judeus eram comerciantes porque, por exemplo, não lhes era permitido comprar terra ou exercer profissão liberal que atendesse à população em geral.

Na fase dois da manipulação (a pergunta), é crucial que algo nos sugira que houve a intenção de esconder uma falha, que deve ser revelada. Em "O que eles "realmente" querem da gente?", o advérbio instala em nós a suspeita de que estávamos sendo enganados. Agora, o véu será levantado. O problema é que, como nada foi dito explicitamente, será levantado não por uma denúncia, mas pela atribuição ao acusado de qualquer uma das tendências que mais receamos em nós mesmos.

Esse método básico de manipulação aparece de maneira idêntica na última fase da campanha presidencial dos EUA e no início do segundo turno das eleições para a Prefeitura de São Paulo.

A campanha de John McCain 1) encarregou a candidata a vice de evocar fatos "sugestivos" sem explicitar as circunstâncias (por exemplo, Barack Obama encontrou o ex-ativista e terrorista William Ayers -de fato, Ayers era tudo isso nos anos 1960, mas hoje é professor de pedagogia na Universidade de Chicago e se ocupa de programas sociais educativos); 2) logo, perguntou: "Quem é o "verdadeiro" Obama?".

A campanha de Marta Suplicy apenas inverteu a ordem; criou um comercial que começa com "Você sabe "mesmo" quem é o Kassab?" e termina com a pergunta: "Sabe se ele é casado? Tem filhos?".

É óbvio que as prisões do país estão cheias de indivíduos casados e com filhos (o estado civil não é garantia de nada). A pergunta só serve para que o eleitor médio pense em Kassab como diferente dele: "Não é casado? Então, tem uma vida diferente da minha". Essa pensada dá força à interrogação inicial: "Você sabe "mesmo" quem é o Kassab?". Não, não sei, visto que ele é diferente de mim. O que ele está me escondendo?

A Folha de 13 de outubro relata o seguinte: a reportagem "perguntou a Marta se a propaganda não era contraditória com a sua biografia" (Marta Suplicy foi uma campeã do direito à privacidade). E Marta respondeu: "O que você está insinuando?". Mais uma manipulação: "Ninguém disse nada, o comercial só pergunta, é você que procura pêlo no ovo".

As perguntas das campanhas de Marta e de McCain talvez funcionem com eleitores desavisados: eles imaginarão que Kassab e Obama sejam os perigosos porta-vozes de tendências obscuras que eles (os ditos eleitores) receiam, antes de mais nada, dentro deles mesmos.

Mas, para a maioria, menos desavisada do que parece, essas perguntas assinalam que as campanhas de Marta e de McCain estão dispostas a uma boa dose de indignidade moral para se manterem em vida.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Pensamentos eleitorais



Temos uma relação doente com a verdade: oscilamos entre o ceticismo e a paixão

NA NOITE das eleições, os comitês dos vitoriosos oferecem festas. Por sorte dos próprios candidatos, essas festas acontecem depois de a gente ter votado. Por que "por sorte"? Porque deve haver vários eleitores que, como eu, à vista do triunfalismo dos partidários exultantes, sentem vontade de votar por outro candidato.

Não ficou claro? Explico. Na noite de domingo passado, na primeira festa que a TV nos mostrou, eis que um grupo de mulheres possuídas pulavam e gritavam "Ganhou! Ganhou! Ganhou!". Agüentei. Logo, alguém enfiou a cara na câmara e afirmou: "Deus está conosco". Por que não diretamente em alemão, "Gott mit uns", como estava escrito na fivela dos cintos dos soldados da Wehrmacht na Segunda Guerra Mundial? Deve ser um ranço religioso, mas, para mim, a frase "legal" é: "Que Deus esteja com vocês".

Enfim, haja paciência. Mudei de canal. Mas o episódio me ajudou a pensar. Em geral prefiro as pessoas que têm o bom gosto de serem humildes e pensativas sobretudo na vitória. Mas não é só isso.

Parece que, cada vez mais, o que faz a diferença entre os candidatos não são suas propostas (freqüentemente próximas), mas sua figura e seu "caráter". Pois bem, se esse for o critério, o melhor candidato, para mim, será aquele que NÃO parece estar absolutamente convencido de ser a melhor escolha. Inversamente, o pior é aquele que se acha insubstituível, superior aos outros. Não devo ser o único que pensa assim.

No primeiro debate entre os candidatos nas eleições presidenciais dos EUA, quando John McCain reiterou que ele é "o cara" (aquele que tem caráter, fibra e experiência para ser presidente), logo naquela altura, despencou unanimemente a aprovação dos espectadores reunidos num grupo de foco pela CNN. Ou seja, ninguém agüenta.

Na mesma linha, entendo que, nas eleições municipais brasileiras, os candidatos a vereador disponham de um fragmento muito curto do horário eleitoral. Mas o resultado é obsceno: a maioria só consegue lançar um apelo abstrato e patético -"Votem em mim, gostem de mim, confiem em mim" (mas por quê?)- e exibir o traço grotesco que os tornaria únicos, extraordinários (a barba de Bin Laden ou de Enéas, o cabelo máquina dois de Obama etc.).
Talvez essas vinhetas sejam a parte mais engraçada do horário eleitoral, mas é um riso que pode tornar risível o processo inteiro.

Voltemos ao meu candidato ideal, aquele que não estaria certo de ser o melhor nem o único. Alguém perguntará: então, por que razão ele se candidataria?

Essa questão surge porque temos uma relação doente com a verdade: oscilamos entre um ceticismo quase cínico (cada um tem a sua verdade, portanto todas as verdades se valem) e uma paixão missionária (nós temos a única verdade; os outros, que pensam diferente, devem ser corrigidos, para o próprio bem deles). Ou seja, a verdade é uma só (a nossa) ou, então, não tem verdade alguma.

É mais uma versão da patologia narcisista básica: eu sou o único, o eleito, ou, então, não sou ninguém. Assim como é difícil conseguir viver sendo "apenas" um entre outros, também é difícil considerar que a nossa verdade é uma entre outras, mas não por isso deixa de ser uma verdade. O diálogo, aliás, não é possível nem entre os cínicos nem entre os enfatuados -só é possível entre os que conseguem acreditar numa verdade que conviva com outras. Exemplo.

Nos EUA, desde 1973, o aborto, como decisão autônoma da mulher, é permitido sob a condição de que o feto não seja viável fora do corpo da mãe. Entende-se: o feto viável fora do ventre materno é um cidadão, e o aborto passa a ser um assassinato.

Ora, consideremos os candidatos à vice-presidência dos EUA. Tanto Sarah Palin (republicana) quanto Joe Biden (democrata) são cristãos. Para ambos, a vida começa no momento da concepção; para ambos, o embrião fecundado já é um sujeito e tem alma.

Palin afirma que ela tentaria reverter a lei atual, autorizando os Estados a proibirem o aborto. Biden afirma que, apesar de sua convicção, a lei atual lhe parece ser um compromisso aceitável, numa sociedade em que convivem pessoas que pensam como ele e outras que pensam diferente. Moral da história, graças a Biden. Acreditar na verdade do que a gente pensa não implica querer impor nossas idéias a todos com ze- lo missionário. E aceitar que haja mais de uma verdade não significa ser cínico.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Aritmética da crise



Um responsável pela crise: o pensamento positivo, triunfante na cultura americana

EM 1994 , nos EUA, os juros dos empréstimos bancários eram baixos. Em Nova York, os Jones, um casal de professores, decidiram comprar um apartamento que valia US$ 300 mil. Graças a uma herança, eles dispunham de um aporte inicial de US$ 100 mil e conseguiram um empréstimo hipotecário de US$ 200 mil a juros fixos; a mensalidade, que pagariam por 30 anos, era compatível com seus salários.


Em 1996, o apartamento dos Jones, comprado por US$ 300 mil, já estava valendo US$ 450 mil, e os bancos competiam para refinanciá-lo. Os Jones contrataram novo empréstimo hipotecário de US$ 350 mil; com isso, pagaram o saldo da hipoteca anterior (quase US$ 200 mil) e ficaram com US$ 150 mil líquidos, para eles.


A bolsa não parava de subir, e os Jones investiram seus 150 mil (sobre os quais pagavam juros de 6%) em fundos de ações (com retorno médio de 16% ao ano). Nada mal.


Dois anos mais tarde, o apartamento valia US$ 600 mil. Os Jones pediram a seu banco uma linha de crédito garantida por uma segunda hipoteca sobre o imóvel: mais US$ 150 mil, que eles investiram nos mesmos fundos de ações.


Nessa altura, além do apartamento (que valia 600 mil, mas com duas hipotecas, de 350 e 150 mil), os Jones possuíam um capital investido de US$ 300 mil. Sucesso, hein?


Preocupados em não perder o trem da alegria, convencidos de que não há bem-estar sem crescimento contínuo e entusiastas da internet, os Jones venderam seus fundos e passaram a negociar ações diretamente numa corretora on-line, com bons resultados: naqueles anos, era difícil errar. Preferiam as ações de empresas das novas tecnologias, que prometiam lucros rápidos. Seus investimentos serviam como garantia para eles alavancarem dinheiro para mais investimentos, o que multiplicava o retorno (e também os riscos, mas os Jones se sentiam confiantes: só conheciam céus azuis -longo período de juros baixos, aumento vertiginoso do preço dos imóveis e subida contínua das bolsas).


Em março de 2000, no desastre das ações de tecnologia, alavancados além da conta, os Jones tiveram que vender na pior baixa. Perderam metade de seu capital. Mas, nesta altura, seu imóvel valia US$ 800 mil; eles ampliaram a linha de crédito e voltaram para a bolsa com toda força.


No 11 de Setembro de 2001, novo desastre. Os Jones ficaram com quase nada. Sobrava-lhes seu imóvel. Problema: entre 2000 e 2001, pela queda nas bolsas, US$ 4 trilhões sumiram das contas dos americanos; o preço dos imóveis estava fadado a baixar. No fim de 2007, o apartamento dos Jones, hipotecado por US$ 500 mil, valia US$ 450 mil. Entregar a casa para o banco credor se tornava um bom negócio. Essa é a história de uma hipoteca de primeira linha. A das hipotecas de segunda linha ("subprime") é mais simples.


Nos anos 90, os Smiths não tinham renda para pagar as mensalidades de um empréstimo. Para que os menos solventes aproveitassem a "festa" imobiliária, os bancos inventaram um tipo de empréstimo com juros bem altos, mas que seriam cobrados só a partir do terceiro ano. Ou seja, antes de dois anos, os Smiths venderiam seu imóvel (cujo valor teria aumentado de, digamos, 30%), reembolsariam o empréstimo do banco e ficariam com o tal 30%, um pequeno patrimônio. Tudo certo -à condição que o preço dos imóveis não parasse de subir.


Durante esse tempo, os bancos, assim como seus clientes, também apostaram no eterno "boom" dos imóveis e transformaram os débitos hipotecários dos Jones e dos Smiths em títulos negociáveis, lastro para alavancar mais dinheiro etc.


O que foi? Cobiça dos Jones e dos Smiths? Ganância de executivos preocupados só com seu bônus de Natal? Uma grande jornalista americana, Barbara Ehrenreich, no "New York Times" de 23 de setembro, aponta para um responsável menos óbvio: o pensamento positivo, triunfante na cultura americana das últimas décadas.


Para Ehrenreich, o problema é que, há anos, "tropas de pastores de superigrejas e um fluxo infinito de best-sellers de auto-ajuda" juram que, para conseguir o que a gente quer, é suficiente "acreditar firme": deseje ardentemente o objeto de sua ambição, e eis que o mundo e Deus responderão a seu pedido.


As estantes das livrarias de aeroporto mandam cada viajante (sobretudo se for um executivo) ser loucamente otimista e confiante. Em seus sites, os conferencistas motivacionais ainda listam orgulhosamente, entre seus clientes importantes, Lehman Brothers e Merril Lynch...