domingo, 25 de maio de 1997

A vida boa e o país-paraíso

Para alegria da casa-grande, brasileiros são felizes porque se contentam com pouco

Que os deuses das ciências sociais estejam conosco! A invocação é necessária antes de interpretar uma pesquisa sem dados comparativos. Ou seja, sem os resultados de uma pesquisa igual produzida em outras culturas, ou em outras épocas. Na falta de comparações, resta tentar entender as tendências de olho na realidade do Brasil, presumindo que os deuses respondam e nos protejam.

Há quinze dias esteve em São Paulo _para participar do encontro São Paulo sem Medo_ Jack Maple, eficientíssimo braço direito do ex-chefe da polícia de New York, Bratton, de 1993 a 1996, a época que viu o começo de uma drástica redução da violência criminosa naquela cidade.
Conversando uma noite, Maple me disse que ele conseguia viver só a duas velocidades: ou a máxima, ou, então, em estaca zero. Seu prazer é a pesca de alto-mar. Isolado a 50 ou 60 milhas da costa, num dia calmo de sol, Maple parece muito diferente do comissário que, às 3h da madrugada, inspecionava os distritos de Nova York.

Somos todos Jack Maple. Todos, brasileiros ou não, somos seres de transição, divididos entre um sonho de paz e, por outro lado, a velocidade da corrida que chamamos de sucesso, seja ele feito de abundância de bens que demonstram nosso status, de poder ou notoriedade. Citadinos, sonhamos com Alphaville. Alphavillinos, ficamos desesperados pela drástica ausência de Joyce Pascowitch em nossas noites.

Mais radicalmente, ficamos a cavalo entre dois desejos. O desejo de um mundo em que _com a benção da providência divina, irresistível dispensadora de destinos_ saberíamos aceitar nossa condição e, dentro de seus limites, construir alguma felicidade; e, por outro lado, o desejo de um mundo indefinido, no qual nossa condição poderia ser mudada e melhorada e em que, para isso, poderíamos contar só com nossos esforços, sem esperar o bingo da graça divina. Em suma, praticamos duas representações opostas da felicidade: a vida boa e o sucesso.

A vida boa, em princípio, é o ideal de felicidade das sociedades tradicionais e era o ideal da nossa antes da modernidade (embora, como dissemos, continue conosco). Para a vida boa, é necessário satisfazer o essencial e cultivar a arte de fazer uma festa tranquila, com pouca coisa. A técnica da vida boa é simples e antiga (a filosofia helenística era mestre nela): precisa saber se satisfazer não só realizando nossos desejos, mas também, e sobretudo, conseguindo desejar um pouco menos.

O ideal de sucesso, ao contrário, é um sonho moderno e, a rigor, não tanto uma representação da felicidade quanto o direito (e a obrigação) de correr atrás. Para a modernidade, o que conta é a procura que motiva a mobilidade social: ser insatisfeito é ser moderno. A felicidade como condição estável, do ponto de vista moderno, sobra para os primitivos.

Entre esses dois sonhos _um desejo infinito de sucesso que nos empurra e a tranquilidade da vida boa_ oscilamos, como entre cidade e subúrbio, vida ativa e aposentadoria etc. Um herói recente conseguiu conciliar os dois: Forrest Gump. O rei dos camarões _acionista da Apple Computers achando que é um negócio de fruta_ consegue o impossível: encontra o sucesso sem deixar a simplicidade da vida boa. Mas quem topa ser como ele?

Pois bem. Os brasileiros (65%), perguntados se eles se consideram pessoas felizes, respondem que sim. Como é possível? É que eles entenderam bem a pergunta, que concerne às pessoas, e responderam de olho no ideal mais privado de felicidade: o ideal da vida boa.

Os itens mais importantes para a felicidade não são os esperados índices do sucesso moderno, mas fé religiosa, casa própria e saúde, ou plano de saúde. Ou seja, o básico para gozar de prazeres discretos, com a condição de não querer demais. Atualizando: um golzinho, um parceiro e um violão... Os itens mais incertos (e modernos), que deixariam a felicidade eternamente em perspectiva (o próprio ''sucesso'', por exemplo), acabam como lanterninha. ''Se divertir'' leva apenas 7%. Com razão, pois a vida boa implica um universo circunscrito, enquanto a diversão sugere ameaçadoras ampliações do horizonte. Em suma, os brasileiros são felizes porque _declaram_ sabem, segundo o preceito antigo, ser felizes com pouco.

Uma confirmação dessa interpretação da resposta está com a pequena, mas significativa, porcentagem de pessoas acima de 65 anos (75%) que respondem: sim, somos felizes. A felicidade da aposentadoria _a época da vida em que o sonho de sucesso conta menos_ é uma felicidade de vida boa.

Não só a maioria dos brasileiros se considera felizes, mas também eles consideram que o Brasil é o país onde mais há pessoas felizes. Essas duas respostas são redundantes. Pode parecer contraditória a resposta à pergunta: ''Você acredita que os brasileiro são felizes?'', em que só 23% respondem sim. Mas a contradição é só aparente. Surpreendentemente, os entrevistados parecem fazer a diferença correta entre as pessoas e o grupo social: ''os brasileiros'' não são a mesma coisa que ''as pessoas'', no Brasil. Como corpo político, como coletividade _organizada em uma sociedade moderna e, portanto, tomada pelo jogo da mobilidade social_, os brasileiros se consideram infelizes.

Com toda razão e pertinência, pois são obrigados a jogar o jogo da modernidade como farsa, lutando contra a obstinada sobrevivência de regras tradicionais escravocratas. Jogam uma paródia de mobilidade social e corrida ao sucesso sobre um tabuleiro em que as diferenças entre as casas ainda são, em grande parte, qualitativas.

A pesquisa, então, parece confirmar a leitura do país cara a Roberto Da Matta. Dois universos caminham juntos no Brasil (embora não de mão dadas): uma comunidade tradicional que sobrevive a um país liberal pretensamente avançado. A pesquisa acrescenta que os brasileiros saberiam fazer a diferença: como coletividade, ''os brasileiros'' são infelizes, mas, no Brasil, ''as pessoas'' seriam felizes.

Da Matta concluiria _feliz_ que os restos do Brasil arcaico fazem nossa identidade e nossa felicidade de vida boa, enquanto a modernidade azucrina nossa existência. Eu, muito menos otimista, entendo assim: os restos arcaicos são só formas antigas de domínio, jeitinhos execráveis que barram o acesso a uma modernidade democrática em que as diferenças sociais não seriam mais qualidades quase naturais.

Tomados na contradição entre um modo de produção aparentemente moderno e laços sociais e políticos que tornam impossível o sonho de sucesso (incentivo indispensável deste modo de produção), os brasileiros se retraem. De necessidade eles fazem virtude, e concentram sua felicidade na vida privada. Os salários são defasados (só 34% satisfeitos)? Resta compensar com o prazer do trabalho (65% satisfeitos). Sobretudo, é preciso criar um culto da felicidade doméstica: extraordinários 70% se declaram felizes com sua vida sexual, 43% dão nota dez ao desempenho sexual de seu parceiro, 76% são felizes com o casamento.

Contra a insatisfação política e social (37% infelizes e 40% mais ou menos felizes com relação à política desenvolvida em dezembro passado) reage-se com o culto de uma vida sem demasiadas pretensões e, portanto, boa.

Em suma, se a felicidade é entendida como vida boa, se a música popular canta a arte de sorrir se contentando com pouco, em vez de cantar corridas loucas pelas auto-estradas da vida, talvez não seja por alguma romântica especificidade cultural, mas pelo estado das rodovias no país. Será verdade que os brasileiros praticam esta sabedoria de pantufas? Ou suas respostas são só o fruto de uma imagem feliz de si mesmos que continuam querendo apresentar ao mundo?

De qualquer forma, o resultado não me faz feliz. A alegria (fingida ou não) na senzala sempre encorajou a festa na casa-grande. Não tenho carinho de sobra para o cartão postal de um Brasil-paraíso, em que o ''povo'' fica sorrindo e as elites contam tranquilas com a tolerância (e a inércia) de quem seria feliz com casa própria na vila, fé religiosa e plano de saúde. Eu teria sido mais feliz encontrando na pesquisa menos sorrisos, mais raiva e mais vontade de abrir portas e janelas da casa própria para construir espaços novos de vida em que o fazer dê sentido a nossas vidas, mais ou menos felizes.