quinta-feira, 26 de maio de 2005

Os casamentos e as separações dos famosos

Numa noite da semana retrasada, na platéia de um teatro paulistano, uma amiga reconheceu um ator global que acaba de se separar e comentou: "Por que será que o pessoal do "showbiz" se casa tanto e se separa tanto?".

Não sei se o pessoal do "showbiz" se casa e se separa mais do que a gente, mas essa é, no mínimo, a nossa impressão.

Na revista "Época" desta semana, por ocasião da separação-relâmpago de Ronaldo e Daniella Cicarelli, Débora Rubin faz uma reflexão análoga sobre os famosos. Ela propõe "Casório vapt-vupt", uma pequena seleção (poderia ser bem mais extensa) que vai de Adriane Galisteu e Roberto Justus (oito meses de casamento) a Patrícia de Sabrit e Fábio Jr. (quatro meses). Lideram o ranking Britney Spears e Jason Alexander, com dois dias, batendo Carmen Electra e Dennis Rodman, com dez dias.

É possível que a impressão de minha amiga e de Rubin seja um efeito da notoriedade das pessoas envolvidas. Estranharíamos a quantidade de amores breves entre os famosos apenas porque somos informados de seus casamentos e separações. Há pessoas desconhecidas pelo público que também se casam, se separam depois de poucos dias e voltam a casar-se com determinação, mas só os parentes e os amigos acabam sabendo (e, eventualmente, se perguntando se não seria oportuno pedir os presentes de volta).

Seja como for, por alguma razão, as separações rápidas (acompanhadas de uma fé inabalável no casamento) são o que esperamos dos famosos.

Nos filmes de ação mais populares, os heróis não podem parar de acreditar na causa e devem ser gravemente feridos, embora, é claro, nunca mortos. Ou seja, eles não fazem concessões, levam chumbo e se endireitam a cada vez como um joão-bobo.

Da mesma forma, os famosos apaixonados devem ir direto para o casamento (fé na causa e na vitória final), não fazer concessões (se algo não dá certo, saem logo, sem negociar) e repetir (de novo, fé na causa e na vitória). Em suma, os famosos são nossos heróis da vida amorosa.
Sempre há alguém para insinuar que esse "heroísmo" amoroso seja, de fato, uma pose, uma estratégia para se manter no noticiário.

Por exemplo, fala-se, nestes dias, da nova paixão entre Tom Cruise e Katie Holmes. Suspeita-se que se trate de um golpe publicitário, visto que cada um deles, "por coincidência", está promovendo um novo filme. O "New York Times" consagrou um artigo ao dilema: é um amor de lançamento ou de verdade? Paixão ou cinismo? A coisa é mais complexa.

Tratando-se de atores, é bom lembrar que os espectadores não são os únicos a confundir o palco com a vida. Em seu "Paradoxo sobre o Comediante" (1773), Diderot propunha que, para encenar uma emoção, o ator mantivesse seu sangue frio, que pensasse e treinasse em vez de sentir.

Pouco mais de um século depois, Stanislavski (seguido por Tchecov) pensava exatamente o contrário, ou seja, que o ator deveria sentir, e não pensar. Entre essas sugestões opostas, duas mudanças. A primeira, preconizada pelo próprio Diderot, é que o teatro se aproximou da vida. A segunda, que ficou clara nos últimos 50 anos, é que a vida se transformou em teatro. O "showbiz" não é mais o "bussiness" só dos atores, mas é uma modalidade geral do funcionamento social: hoje, ser famoso é uma ocupação e uma competência em si.

Até pouco tempo atrás, os assessores de imprensa de Hollywood dirigiam a vida privada dos atores, inventando e fomentando amores que merecessem uma manchete. Talvez os assessores contassem, cinicamente, com a capacidade dos atores de fingir à la Diderot, mas, para os atores, a encenação pedida era sua vida real, sentida na pele à la Stanislavski.

O suicídio de Marilyn Monroe, em 1962, produziu uma onda mundial de comoção. Por quê? Marilyn não era uma grandíssima atriz; era apenas uma moça frágil que corria de casamento em casamento, atrás de um amor que ninguém (marinheiro, estrela do beisebol ou grande dramaturgo) conseguia lhe dar. Quem entendeu melhor foi Andy Warhol: Marilyn se tornou um ícone porque sua necessidade desesperada e insaciável de ser amada encarnava o anseio de uma época em que cada um quer ser, por ao menos 15 minutos, amado e reconhecido por todos, ou seja, famoso.

Os famosos são objetos de fascinação (ou de repulsa, dá na mesma) por serem a caricatura fiel do traço dominante de nossa subjetividade.

Somos todos frágeis e perigosamente suspensos à aprovação de nossos semelhantes. Os mais frágeis são os que mais procuram o olhar satisfeito dos outros, os que mais precisam dele: os famosos, ameaçados de anulação pela suspeita de que os outros não gostem deles ou, pior, os esqueçam.

Por isso talvez os famosos sejam casamenteiros: não podem parar de acreditar num amor perfeito, num amor em que eles seriam o objeto que faz o outro plenamente feliz.

Por isso talvez eles sejam também "separamenteiros": a fé na existência de um amor à altura de sua necessidade vital não tolera os desacertos. Para os outros, eles querem ser tudo. Ou, então, nada.

quinta-feira, 19 de maio de 2005

Segurança e liberdade

Algum tempo atrás, participei de uma reunião do condomínio do prédio onde moro, em São Paulo.

O edifício nunca foi objeto de assaltos, embora já tenha sido teatro de histórias policiais. Uma vez, a PF instalou dois agentes num apartamento para montar uma armadilha e prender traficantes, mas nada que colocasse em perigo a tranqüilidade dos moradores.

Na entrada, há um serviço de portaria 24 horas, que controla o acesso, "filtrando" os visitantes, mas sem rigor excessivo: há moradores que querem ser avisados, outros preferem que a pizza suba direto.

Durante a reunião, um condômino lembrou os recentes arrastões em prédios residenciais paulistanos e perguntou se estávamos satisfeitos com as condições de nossa segurança. A questão, legítima, desencadeou uma sessão de "brainstorming", cada um tentando imaginar o sistema que nos protegeria melhor. Chegou-se a uma proposta radical: os visitantes apresentariam sua identidade e seriam fotografados digitalmente. Teríamos um registro de quem entra e sai, com evidente efeito dissuasivo. Só faltava um detector de metais para que nos equiparássemos com um prédio da administração pública nova-iorquina depois dos atentados de 2001.

Com a ajuda do bom senso, nada disso acontecerá. Fica daquela reunião que todos nós, com entusiasmo, cogitamos maneiras de limitar nossa liberdade para garantir nossa tranqüilidade.

Os condomínios funcionam como democracias regidas por um contrato social: indivíduos com direitos iguais se impõem normas para cuidar do bem comum. Presume-se que as normas auto-impostas sejam limitadas ao estritamente necessário para que a convivência se torne possível, ou seja, trata-se de criar as condições para a segurança, a administração, a ordem pública etc. sem sacrificar a liberdade dos indivíduos, ou melhor, sacrificando o mínimo possível de liberdade.

Ora, desde o primeiro contrato social moderno (o pacto dos peregrinos que fundaram os EUA, em 1620), a tendência parece ser outra. Estamos quase sempre dispostos a trocar liberdade por uma promessa de segurança, mútua assistência e ordem. É o segredo de todos os fascismos: basta sacudir um espantalho (a miséria, os judeus, os ciganos que roubam nenês, os comunistas que os comem etc.) para que os cidadãos queiram ou, no mínimo, aceitem se submeter a mais normas do que é preciso.

Há situações em que as vantagens públicas prometidas valem a troca. Em caso de guerra e ameaça de bombardeio, é proibido ligar a luz elétrica sem fechar as cortinas. Óbvio, não é?
Mas, com freqüência, vendemos nossa liberdade barato. Na reunião de condomínio, por exemplo, levou um tempo para que nos déssemos conta de que nosso sistema de segurança produziria um registro permanente de todas as pessoas que nos visitam.

Alguém dirá: qual é o problema para um cidadão que respeita as leis? Pois é, o sigilo é um elemento decisivo da liberdade. Ser livre é também poder agir, nos limites impostos pela lei, sem que os outros saibam.

Nos EUA, depois de 2001, foi proposta uma norma que forçaria as bibliotecas públicas a guardar (e a entregar às autoridades) a lista dos livros emprestados a cada leitor. Dessa forma, a polícia poderia saber quais cidadãos lêem tratados que explicam como fabricar bombas caseiras. Útil, não é?

Resta saber se essa vantagem investigativa vale ou não a liberdade (assim perdida) de ler o que quero sem que ninguém saiba.

Os indivíduos tendem a se vigiar, a se policiar e a se reprimir muito além do necessário. A banalidade neurótica consiste em matar formigas com rolo compressor. Para respeitar o corpo materno, em vez de esquecer a mãe e se interessar pelos outros e pelas outras da vida, alguém não se permite transar com parceiro nenhum. Um sujeito, para não competir com o pai, deve fracassar totalmente. Outro, para não se sentir ameaçado pela desordem do mundo, é obrigado a desperdiçar seu tempo de trabalho alinhando os papéis em cima de sua mesa. Quase sempre, no conflito psíquico, a voz da repressão fala mais alto.

A vida social não escapa a essa regra. Na hora de legislar, o que nos comanda não são apenas as exigências da vida comunitária, mas é, aparentemente, uma verdadeira ojeriza à liberdade. Talvez este seja o maior drama da modernidade: conquistamos a liberdade de não corresponder ao destino que nos seria reservado por nosso berço, mas a diversidade dos caminhos abertos nos entrega à angústia. A possibilidade de escolher ameaça o sentimento de nossa identidade: quem sou eu, se ninguém me dita meu desejo?

Por isso, talvez, muitos cheguem aos consultórios de terapeutas e psicanalistas com o projeto explícito de "descobrir" seu desejo, como se sua ambição fosse apenas reconhecer a "sina" de sua vida para conformar-se com ela. O terapeuta, em geral, espera que o paciente se autorize a inventar a vida, apesar de sua "sina" e contra ela.

Da mesma forma, na vida política, quando alguém propõe uma norma, antes que se discuta para saber se ela é justa ou errada, seria bom perguntar: será que ela é mesmo absolutamente necessária para a convivência social?

quinta-feira, 12 de maio de 2005

"Calcinha no Varal"

Acabo de ler "Calcinha no Varal", de Sabina Anzuategui (Companhia das Letras). É um breve romance que conta, na primeira pessoa, uma temporada da vida e dos amores de uma jovem mulher. Se você tem interesse e carinho pela tragicomédia cotidiana de nossa vida amorosa e sexual, não deixe de ler.

As histórias de amor são o repertório (literário ou filmado) graças ao qual, bem ou mal, aprendemos a amar. Os amores narrados se tornam exemplos, numa "ciência do amor", que ninguém tem e que todos almejamos.

É difícil contar uma história de amor sem que ela seja parasitada por alguma intenção de contribuir à constituição dessa "ciência" impossível. A tentação pedagógica implícita contribui, aliás, a tornar intragável uma boa maioria das histórias de amor que nos são contadas em livros e filmes.

Mesmo entre as histórias de que gostamos e que "tragamos", muitas apostam obviamente na nossa fome de dicas para sermos felizes no amor: elas nos seduzem prometendo as delícias de paixões ditosas (futuras e nunca descritas: depois do que foi contado, "eles viveram felizes para sempre") ou então nos fazem a moral ("viu o que acontece se você ama desse jeito?"). Resultado: podemos gostar dessas histórias, mas elas não nos ajudam na difícil (talvez impossível) tarefa de amar um outro ou uma outra.

Só as melhores histórias (entre as quais a que conta Anzuategui) conseguem nos oferecer fragmentos de uma sabedoria do amor. Roland Barthes lembrou um dia que saber e sabor têm uma etimologia comum: o saber que nos ajuda a viver não é uma doutrina, é aquele que nos permite reconhecer e saborear os gostos, mesmo que sejam amargos, às vezes. De qualquer forma, na vida, como na cozinha, o pecado capital é o insosso.

As histórias que nos ensinam a degustar a experiência (e que, no caso, nos ensinam um pouco a amar) são aquelas que não nos iludem, mas conhecem e respeitam a dificuldade atrapalhada dos sentimentos e dos desejos.

Um parágrafo que está quase na abertura de "Calcinha no Varal" mereceria ser citado por inteiro. Fala Juliana, a protagonista: "... até hoje não sei como evitar um mecanismo cruel que faz com que os caras que trato mal me adorem, mas, quando gosto de algum, de repente fico carente e ele pára de gostar de mim. (...) começo a ver, em cada gesto que ele faz, que está me deixando (...). Por algum tempo até faço que não vi. Tento me convencer de que ele está preocupado com outra coisa, que sou carente, que invento coisas. Depois às vezes compro umas roupas, me arrumo, porque dizem, e parece verdade, que a mulher sempre decide: enquanto ela quer, ela segura o homem do lado dela. Só que chega um dia (...) que a gente cansa. Cansa de estar sempre pensando em tudo, controlando tudo pra que aquele homem não vá embora". Imagino dificilmente uma mulher que não se descubra nessas considerações de Juliana.

A sabedoria (o sabor) da escrita de Anzuategui não é só introspectiva. Outro exemplo, na minúcia da esgrima entre homem e mulher: Juliana se queixa a Fabrício de que ela se sente submissa e de que não gosta disso. Fabrício, cheio de boas intenções e da burrice masculina: "Já te falei várias vezes pra você não fazer o café, de manhã. Se você quiser, eu faço o café". Juliana: "Eu gosto de fazer o café. Podia fazer uma piscina de café. Não é isso. Me dá raiva porque tudo o que eu penso em fazer, penso antes em você". Quem sabe algum homem se toque.

Mas o que me mais me impressionou em "Calcinha no Varal" é que, mesmo quando a situação é escabrosa ou tensa de doer, a narração e os diálogos são pudicos, contidos. A amor que nos é apresentado é vivido numa economia de palavras e de gestos que é uma forma extrema de respeito.

"Eu estava com Fabrício na cama, ele gozou primeiro e eu não quis continuar. Ficamos deitados, ele em cima de mim, eu de olho aberto, e de repente comecei a chorar. Não pensei que ia chorar. Mas, quando vi, as lágrimas estavam escorrendo dos meus olhos. Ele estava quase dormindo, eu não queria que percebesse. Em algum tempo as lágrimas secaram. Perguntei se ele não se incomodava de continuar mesmo depois de ter gozado. Ele disse que não se incomodava, que gostava." É só: nenhuma recriminação, nenhuma explosão, apenas a rara capacidade (em ambos os personagens) de deixar o outro viver seu momento de pena, de insatisfação ou de vergonha.
Em suma, o amor de Juliana não promete a felicidade, mas evita (e quem sabe nos encoraje a evitar) a maior praga dos relacionamentos amorosos: a incontinência verbal. Nisso, "Calcinha no Varal" poderia servir de "educação sentimental".

Mais uma observação sobre o estilo: Sabina Anzuategui consegue, do começo ao fim, manter a simplicidade sem, por isso, cair no clichê. É uma empreitada difícil em qualquer tipo de escrita, mas, tratando-se de uma história de amores e desamores, o êxito é quase milagroso.

Enfim, não sei bem (e não sei se alguém sabe) o que define uma escrita feminina, mas o fato é que, provavelmente, só uma mulher é capaz de descrever a crueza dos desejos e da carne sem perder a leveza, o pudor e a ternura.

quinta-feira, 5 de maio de 2005

Um circo de rins, fígados e informações confidenciais

Estreou sábado, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, "Um Circo de Rins e Fígados", peça que Gerald Thomas escreveu especialmente para Marco Nanini (em cartaz até o fim de junho).

Na abertura da peça, Nanini recebe um monte de caixas que contêm documentos secretos e pedaços de corpo (rins, fígados e -aprendemos mais tarde- destroços de sua musa inspiradora). Tudo isso foi enviado por João Paradeiro, que planeja instalar uma maqueta de Brasília no meio da sala de Nanini. Com isso, talvez seja possível os caminhos pelos quais o governo nacional sempre dá errado.

Gerald Thomas foi muito próximo de Samuel Beckett, que numerosas histórias literárias insistem em definir como o mestre do teatro do absurdo. Nunca entendi o porquê desse apelido. Tome "Esperando Godot", a peça mais conhecida de Beckett: qualquer um que tenha freqüentado uma roda de padaria sabe que a peça (seus diálogos e sua história de espera não se sabe de quê) é absolutamente realista.

O mesmo vale para o "Circo", de Gerald Thomas. À primeira vista, talvez você ache fantasioso ou estranho o começo que acabo de descrever. Mas eu me senti imediatamente em casa, pois recebo, a cada dia, exatamente os mesmos pacotes que chegam à casa de Nanini.

Pedaços de corpo? Escrevo no domingo; acordei tranqüilo, abri a porta com o café na mão e eis que a Folha me entregou os corpos torturados dos guerrilheiros do Araguaia, 1.500 esqueletos de iraquianos exterminados por Sadam Hussein e nove turistas feridos ou mutilados no Egito.

Sábado, para variar, eu tinha recebido o e-mail de uma amiga antropóloga que participa de uma investigação internacional sobre comércio de órgãos para transplante. Quer mais?

Quanto aos documentos, Nanini tem sorte. João Paradeiro lhe manda apenas as provas do envolvimento americano no golpe de 64. Eu costumo receber, ao mesmo tempo, documentos segundo os quais as provas desse envolvimento foram divulgadas e fabricadas não por João Paradeiro, mas pela KGB, o que, obviamente, confunde meus pensamentos.

Tudo bem, você dirá, mas e os destroços da musa? Por que o corpo da musa que nos inspira (na peça, a maravilhosa Fabiana Guglielmetti) chegaria aos pedaços pelo correio? Georges Bataille (citado na peça) nos lembraria que o erotismo e o horror são companheiros. Mas podemos ser mais específicos. Na modernidade, o poder não é mais um atributo de nascença; não é preciso ser marquês para tornar-se presidente. Com isso, a distribuição do poder pára de ser um dado da natureza e se torna um vasto campo de fantasias. Passamos a sonhar com o poder como sonhamos com conquistas amorosas, e os sonhos se confundem: o poder se torna erótico e o erotismo é invadido por devaneios de domínio e de crueldades sofridas ou infligidas. As fantasias sexuais do protagonista da peça (não as explicitarei para preservar o suspense) são a expressão lógica de nossa confusão de poder com sexo.

Acréscimo de segunda-feira: alguém me diz, com espanto e vergonha, que as descrições de tortura do jornal de domingo produziram nele uma estranha excitação. Pois é, o amor é aos pedaços.

Quanto à maqueta de Brasília para entender o que deu errado, todos recebemos propostas análogas a cada dia. E a maqueta cresce quando descobrimos que as coisas começaram a dar errado muito antes de Brasília...

Em suma, desde o início, a peça de Gerald Thomas é realista demais. Dica para as histórias literárias: Gerald Thomas é um dramaturgo do teatro da lucidez.

Agora, esse retrato do desamparo moderno poderia ser triunfalista, no estilo "somos os últimos arautos de um mundo melhor", ou lamuriante, no estilo "somos os últimos representantes de uma espécie extinta".

Ora, Gerald Thomas escolhe nos fazer rir. É possível que a alegria e o riso sejam jeitos de transformar o mundo tão eficazes quanto a indignação e, às vezes, menos hipócritas do que ela. Exemplo: "Se fosse hoje, eu pegaria em armas e seguiria o Che pelas cordilheiras alpinas atrás de Emmentaler, Gruyère, Appenzeller ou qualquer outro queijo suíço".

O cômico está no texto e, obviamente, na arte de um ator portentoso. Mas a função de Nanini na peça não é só a de dar prova de seu imenso talento. Gerald Thomas escreveu para um protagonista que é um ator porque o homem moderno é um ator. A vulnerabilidade narcisista do ator é a nossa. Além de recebermos a cada dia pacotes de João Paradeiro, somos todos atores. Como diz o texto, nossa "existência inteira é validada, ou não, através do aplauso ou do amor de uma platéia", sempre.

No final da peça, é tocado um arranjo de samba do hino nacional (feito por Ivo Meirelles) e Nanini veste a bandeira. O texto da peça diz que o Brasil é um problema sem solução, mas que é (console-se) um problema maravilhoso. O momento é comovedor porque o Brasil se torna assim o símbolo de uma época feita de problemas sem solução. Talvez essa seja a única razão tolerável e legítima para qualquer patriotismo.

Acréscimo de terça-feira: a peça cresce na lembrança, e ainda agora me surpreendo rindo sozinho, pensando em Nanini e no "nosso" circo.