domingo, 13 de fevereiro de 1994

Crônicas americanas - 4

A contabilidade das culpas e de suas compensações está se tornando o regulador do espaço social

Dois anos atrás, Fukuyama ("O Fim da História e o Último Homem") anunciou o fim da história: não sobrariam mais contradições verdadeiras. Todo mundo deu sorrisos irônicos. É curioso que não achemos a mesma graça no último livro de Galbraith ("A Era da Incerteza"). Pois Galbraith confirma Fukuyama, constatando que terminaram os conflitos de valores e só resta cuidar dos ajustes quantitativos de um bem-estar ainda mal distribuído. Literalmente: a História estaria acabando em pizza.

O neoliberalismo não inventou nenhuma sociedade milagrosa, sem domínio e opressão. Mas é verdade que os sujeitos da modernidade ocidental parecem vivenciar as contradições sociais como meramente quantitativas. Queremos distribuir melhor bens e rendas. Com certeza, não esquecemos os direitos e a cidadania, mas tendemos a pensar que eles seguirão as batatas. O que não é falso em si (pois é difícil ser cidadão sem nada no prato), mas não é suficiente.

Batatas para todos não garantem cidadania para todos. Dir-se-á: as batatas urgem, a cidadania pode esperar. Justamente esta prioridade não é só fruto de uma urgência. Ela reflete o estado de nosso individualismo: evita-se todo recurso a ideais (suspeitos, por serem sempre herdados), fundando nossa razão em um valor concreto, indiscutível e cuja evidência não devemos a ninguém. Esse valor é a fisiologia dos corpos com suas necessidades reais (as batatas).

Fukuyama e Galbraith podem assim ter razão. No mundo que eles entrevêem, a felicidade pública depende da satisfação das necessidades de todos. De fato, na ausência de valores que orientem os atos, a comunidade dos países desenvolvidos distribui pílulas, cobertores e comida: impossível decidir onde está a razão e intervir. Só arriscamos a vida para garantir subsistência.

Quando os Sarajevos da atualidade nos confrontam com dimensões simbólicas de conflito, ficamos desamparados. Parecemos ter esquecido que, em qualquer cultura diferente de nosso individualismo moderno, se mata por fés e idéias. O horror que isso nos inspira é proporcional à nossa fraqueza, pois não sabemos sequer contrapor nossos valores a estas fés assassinas: quais, com efeito? Só nos sobra o bem-estar. A grande novidade do direito internacional é o direito da ingerência por ajuda humanitária (cf. Bettati e Koushner, "Le Devoir d'Ingérence", Paris, 1987). Não se pode dizer melhor: o humano se reduz ao humanitário desde que a significação se resuma à sobrevivência. Não estamos com ninguém, contra ninguém, só trazemos a sopa.

Na mesma linha, a felicidade privada parece depender da modificação mecânica ou química do real do corpo (do culturismo à engenharia genética, às drogas, oficiais ou não –não escutem a sua consciência, mas ao Prozac, cf. P. Kramer, "Listening to Prozac - can a drug make us 'better than well?' ", Viking 1993, apologia ético-política de uma pílula).

Sintoma de nossa busca de fundamentos subjetivos tão reais quanto as batatas: as terapias que interrogam as significações que um sujeito dá a sua vida perdem espaço para as ditas terapias de memória assistida, onde se trata de atribuir a infelicidade de cada um a eventos traumáticos presumidos reais, reconstruídos. O próprio trabalho da memória não é pedido ao sujeito, mas, por assim dizer, a seu corpo: volta-se à hipnose e mesmo ao uso do soro da verdade (cf. "Newsweek International", do último 13 de dezembro).

Estas novas terapias, aliás, desembocam em uma ação jurídica contra o pretenso responsável pelo trauma reconstituído (geralmente o adulto estuprador). A lembrança não é procurada para a nova significação que ela poderia dar à vida do sujeito. Ao contrário, ela é inventada para que sua indenização decretada pelo tribunal restabeleça um "justo" equilíbrio. Compensação real e indenização valem justiça.

A troca social se resume assim em uma contabilidade de perdas e danos reais. A sociedade institui mecanismos adequados a este regime de contabilidade entre indivíduos e grupos. Por exemplo, o sistema de quotas nas empresas norte-americanas, que devem respeitar, na composição de seus empregados, as percentagens etno-culturais da população; ou a escolha da "affirmative action", sobre tudo nas universidades. Segundo a "affirmative action", o fato de pertencer a uma minoria (racial ou sexual) é um critério positivo de seleção.

Assim, a contabilidade das culpas e de suas compensações torna-se princípio regulador do espaço social (para os efeitos paradoxais do uso de tal princípio, veja-se o livro de S. Carter –ele mesmo um negro "'beneficiado": "Reflections of an Affirmative Action Baby", Basic Books, EUA).
O legalismo da sociedade norte-americana contemporânea tem também esta explicação: ele confirma que as relações sociais não são mais conflitos de significações ou um diálogo de valores, mas uma rede de danos e indenizações concretas, reais.

Em um artigo notável ("Multiculturalism's Silent Partner", "Harper's", agosto de 1993), D. Reef observa que o multiculturalismo e o separatismo sociais são um epifenômeno de expansão do sistema capitalista. Só podemos concordar: pois a contabilidade de danos e indenizações entre grupos particulares talvez seja a vida política normal de uma sociedade individualista realizada, onde a saúde física e a posse de bens seriam os valores supremos.

O leitor brasileiro poderia achar essas preocupações um pouco afastadas de seu cotidiano. Porém, elas são, aqui no Brasil, ainda mais atuais que nos EUA. Os conflitos entre os particularismos e os valores da comunidade aparecem menos aqui, mas isso não se deve a algum milagroso vigor destes valores. Ao contrário, talvez seja porque a coisa pública, em nossa história, nunca foi um valor (a nação como objeto de saque por interesses particulares). Assim, uma política progressista acuada a se consagrar a combater a corrupção é uma outra forma do triunfo da contabilidade de perdas e danos sobre a possibilidade de inventar e confrontar significações para nossa vida social.

Por necessário que seja, o acento sobre as privações dos deserdados participa também de uma redução do político ao humanitário: a urgência da fome toma o lugar de um projeto social que desistiu de pensar uma transformação radical das relações sociais, o problema dos sem-terra toma o lugar de um projeto social que desistiu de pensar uma reforma agrária...
Decididamente, o Brasil parece avançar na contabilidade pós-moderna sem ter se beneficiado de um pouco de modernidade. Vai para a pizzaria sem ter tido tempo de brigar.