quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

Filme do cão

No inverno de 1994, na Universidade de Nova York, um painel de intelectuais franceses debatia os "malefícios" da internet. Alain Finkielkraut (que, apesar do que segue, é autor de livros respeitáveis) descreveu a net como um pesadelo totalitário. Um estudante lhe fez observar o óbvio: a net é tudo salvo uma estrutura totalitária centralizada. Finkielkraut respondeu que, de fato, ele desconhecia o funcionamento da net e nunca tinha estado on-line na vida. Levantando com brio sua caneta tinteiro, acrescentou que nem sabia se servir de um computador.

Uma minoria achou graça. A maioria foi embora. Meu vizinho de cadeira, ao levantar-se, disse a um amigo: "Não vou passar a noite escutando este babaca".

Concordo: quem fala do que não conhece com a intenção de ser levado a sério é um babaca. E quem fica para escutá-lo é duplamente babaca.

Ora, o diretor e autor do script de "Dogville", Lars von Trier, dinamarquês, declarou que seu filme é uma crítica dos Estados Unidos, onde, acrescentou orgulhosamente, ele nunca esteve. Numa entrevista ao "Guardian" de 15/ 5/2003, ele explicou que não precisa conhecer o país para criticá-lo e repreendê-lo, pois, afirmou expressa e literalmente, os EUA já são uma parte muito relevante de sua consciência, e isso pode bastar.

Lendo a entrevista, embora essa última afirmação me deixasse perplexo, pensei apenas que Von Trier era mais um babaca. Quando o filme estreasse, eu pouparia meus R$ 14.

Mas, recentemente, lembrei-me do seguinte: no inverno de 2002, um amigo, que vivia em Williamsburg (Brooklyn, Nova York), hospedou Lars von Trier em seu apartamento. Além disso, o mesmo amigo jura de pés juntos que o diretor dinamarquês passou meses em Los Angeles entre 1996 e 1997.

De repente, o filme me interessou: queria entender por que Von Trier sentiria a necessidade de nos contar abobrinhas.

Claro, há um oportunismo de marqueteiro: vocês, que, pelo mundo afora, não conhecem os EUA e estão indignados com a atual política norte-americana, bebam à fonte de meus preconceitos. Numa época de vivo antiamericanismo, a atitude garante ingressos.

Mas deve haver outras razões, além da bilheteria, para que Von Trier proponha "Dogville" como uma crítica aos EUA, e, ao mesmo tempo, ao custo de uma mentira (por pequena que seja), insista em declarar que sua crítica é o preconceito de quem não conhece.

A história do filme é a seguinte: nos anos 20, chega a um minúsculo vilarejo norte-americano uma moça perseguida por gângsteres. O vilarejo aceita protegê-la, mas, aos poucos, passa a escravizá-la perversamente.

O filme é pretensioso, o cenário e os diálogos gritando: "Sou o novo Godard, olhem como sou brilhante". Apesar dos esforços admiráveis dos atores, a complexidade das personagens é escassa.

Se o filme fosse uma meditação geral sobre a perversidade humana, ele seria só cínico. E o cinismo é o disfarce mais barato para simular inteligência: "revelar" que os homens são todos ruins é (quase sempre) apenas uma maneira de proclamar que a gente não é burro.
Se o filme quisesse apresentar os efeitos do ódio pelo diferente numa pequena comunidade isolada (e americana), seria inevitável pensar em "Deliverance" ("Amargo Pesadelo"), de John Boorman, 1972, que é incomparavelmente melhor.

De qualquer forma, a história evoca não os EUA dos anos 20, mas a época sombria em que, pela Europa invadida e ocupada, muitos judeus perseguidos pagaram caro a "generosidade" de quem os escondia.

O fim do filme (que não revelarei) é, aliás, estranhamente filoamericano e nos deixa com uma mensagem contraditória: os habitantes de Dogville (que seriam americanos) são horríveis, mas ainda bem que, de vez quando, os americanos chegam para acabar com Dogville. Esse paradoxo se explica se tentamos entender a origem do preconceito de Von Trier.

A Dinamarca foi ocupada pelos nazistas em 1940, em poucas horas; rei e governo se resignaram. A nação resgatou sua honra a partir de 1942, quando começou uma resistência heróica que, por exemplo, em 1943, garantiu a fuga de 7.000 judeus para a Suécia livre. Mas, antes disso, há uma página de história menos gloriosa. Cito uma fonte pouco suspeita, a história da Dinamarca contada pelo equivalente dinamarquês do Itamaraty: "Na ocasião da ofensiva alemã contra a União Soviética em 22 de junho de 1941, os alemães exigiram que os dirigentes comunistas dinamarqueses fossem internados, o que foi feito com um zelo que ultrapassava largamente as exigências alemãs".

Acontece que os pais de Von Trier eram comunistas militantes. Não sei como eles e seus camaradas viveram essa época. Mas duvido que tenha sido um momento feliz. Será que houve comunidades dinamarquesas que abusaram de seus comunistas escondidos como o vilarejo de Dogville abusa de Nicole Kidman, se não pior?

O mecanismo é banal: pelo preconceito, atribuo ao outro alguns traços meus ou de minha história que prefiro ignorar. Apontar a podridão alhures é mais simples que lidar com minhas tripas malcheirosas. E, no reino da Dinamarca, aconteceu algo podre que talvez Von Trier prefira silenciar.

Por isto, o filme, apesar de medíocre e desonesto, é interessante: porque é um exemplo esclarecedor de como nasce e funciona um preconceito.

O título, "Dogville", significa cidade do cão, e, de fato, há um cachorro na história. Mas, considerando que o filme fala das dificuldades de Von Trier com sua própria história e que Dogma é o nome do grupo que o diretor fundou, "Dogmaville" teria sido um título mais apropriado.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

São Paulo 450 anos



Durante as Olimpíadas de 2000, eu estava em Sydney, Austrália.

Na noite do encerramento dos jogos, junto com alguns outros milhares de humanos, eu contribuía para abarrotar a península onde surge o esplêndido edifício da Ópera de Sydney. Todos contemplávamos uma festa de fogos de artifício.

Bem ao meu lado, um jovem casal se abraçava. No auge dos fogos, o rapaz apertou forte a moça e lhe disse, feliz: "And we live here", "E nós moramos aqui".

Gostaria que nestes dias, em São Paulo, houvesse ao menos um casal para viver um momento parecido, para sentir-se feliz de viver aqui. Talvez aconteça amanhã, na inauguração das fontes do parque Ibirapuera. Ou no sábado, quando Caetano cantará "Sampa" na esquina da Ipiranga com a São João. Ou, então, na avenida 23 de maio, domingo, durante a Parada São Paulo 450 anos.

Claro, Sydney compete na divisão do Rio de Janeiro, de Veneza, Roma, Paris, Londres, Nova York e por aí vai: é uma cidade excepcionalmente bonita. E, sobretudo, a frase do moço australiano devia expressar também a satisfação de viver numa cidade amiga, de andar por ruas animadas noite adentro, mas nunca ameaçadoras, de sentir-se amparado por uma comunidade que protege e assiste seus membros nas horas difíceis.

Não vamos perder ânimo. Afinal, não se sabe se primeiro vem o ovo ou a galinha. É certo que o orgulho e a alegria de viver numa cidade são o efeito dos direitos concretos que ela garante a seus cidadãos. Mas vale também o inverso: esse orgulho e essa alegria talvez sejam requisitos para que a cidade se transforme a ponto de merecer esses sentimentos.

Pensando, então, num casal paulistano que pudesse viver o mesmo momento encantado do casal de Sydney, sonhei com algumas festividades que não estão no programa.

1) Poderíamos ter proposto um concurso de poesia para poemas de, no máximo, três linhas (espécie de haicais japoneses), inspirados por São Paulo. Aliás, dois concursos: um para poetas publicados e outro aberto a quem quisesse concorrer. Uma comissão escolheria, sei lá, cem poemas. As agências de publicidade e seus clientes teriam sido contatados e, quem sabe, aceitassem que os outdoors da cidade, grandes e pequenos, fossem substituídos progressivamente por um fundo branco com, em destaque, o texto de um poema, sem o nome do autor. Para que ninguém ficasse triste, apareceria, em letras menores, o anunciante: cortesia do Banco Fulano. No meu devaneio, durante um mês no mínimo, TODOS os outdoors da cidade seriam poemas.

Haveria versos incompreensíveis, outros que provocariam o riso. Os analfabetos pediriam que alguém lhes dissesse o que está escrito. Mas, mesmo zombando, durante um mês, os paulistanos seriam todos leitores de poesia.

2) Não faltarão, nesses dias e durante o ano, exposições e concertos comemorativos. Mas teria gostado que os artistas e músicos paulistas tivessem sido comissionados para que pintassem, concebessem ou compusessem pensando na cidade. À força de respeitar o subjetivismo de nossa época e o mito da inspiração, esquecemos que, no passado, alguns dos melhores momentos da produção artística (a começar pela Renascença) foram efeito de encomendas. Nas praças da cidade, aconteceriam concertos públicos das obras (de jazz, música clássica, samba e MPB) compostas nesta ocasião. Quanto às obras de artes plásticas comissionadas, seriam exibidas numa mostra permanente, o ano todo, na Oca e nas salas da Bienal do Ibirapuera. Como já aconteceu, as escolas visitariam de manhã, e o acesso seria gratuito nos domingos.

3) Dois anos atrás, pois leva tempo, poderíamos ter pedido a Zé Celso e ao Teatro Oficina que, com a ajuda dos melhores historiadores paulistas, escrevessem e montassem uma peça sobre a história de São Paulo. Não uma peça para os espectadores que frequentam os teatros, mas um espetáculo em praça pública, no vale do Anhangabaú, na praça da Sé, embaixo do Minhocão com os espectadores em cima etc. A peça seria produzida num lugar diferente a cada semana, animando a cidade inteira com sua própria história, por truculenta que tenha sido.

As outras companhias paulistas de teatro, também comissionadas, encenariam peças sobre a vida em São Paulo, pelas ruas da cidade. O mesmo poderia acontecer com o balé e a dança moderna.

4) Falando em dança, tenho mais um sonho. Houve o baile do Réveillon na Paulista, que foi ótimo, e haverá outros. O problema dessas reuniões é que elas não juntam as diferentes camadas de nossa sociedade. Com o pretexto (justificado) da insegurança, a classe média não se aventura.

Ora, em Paris, eu gostava de frequentar os bailes do 14 de Julho, a festa nacional francesa. Havia bailes noite adentro nas casernas dos bombeiros e da gendarmaria. Essas veneráveis instituições ganhavam um dinheiro vendendo refrigerantes e cerveja, e todas as classes dançavam juntas numa segurança absoluta. Os bombeiros e policiais (homens e mulheres) que não estivessem de plantão dançavam com os cidadãos. Não seria mal se começássemos a perceber as forças da ordem não como inimigos ou como jagunços que nos protegem, mas como pessoas que nem a gente, a quem é delegada a função essencial de tornar nossas ruas acolhedoras e nossa vida mais pacífica. Adoraria valsar com uma PM em uniforme de gala na caserna da Rota da avenida Tiradentes. Depois disso, vindo do aeroporto, o edifício pararia de me parecer sinistro. E nós moraríamos aqui.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2004

Quedas livres



A experiência sempre foi um valor. "Civilizados" ou "primitivos", antigos ou modernos, parece-nos óbvio prestigiar a quilometragem rodada e escutar quem já percorreu os caminhos pelos quais enveredamos.

No entanto, nos últimos 300 anos, em nossa cultura, a experiência adquiriu uma importância inédita. É fácil entender por quê: a herança do passado não nos define mais. Para dizer quem eu sou, não contarei a ilustre história do burgo em que nasci nem as façanhas de meus pais. Ao contrário, espera-se que eu conte como fui embora do berço e o que aconteceu depois. Ou seja, é à força de experiências que devo me construir.

A forma inicial e fundamental do romance (que é uma das grandes invenções modernas) é, justamente, o "romance de formação", a história de como um protagonista cresce de experiência em experiência. Os primeiros exemplos (maravilhosos) talvez sejam "Tom Jones", de Fielding (1749), e "Tristram Shandy", de Sterne (1759-67). O protótipo ainda é o "Wilhelm Meister" de Goethe (1795). Mas a forma atravessa o século 19 e chega até o gosto atual pelas autobiografias, que são uma versão hodierna do romance de formação. Um dia desses, escreverei uma, sério.

A idéia de que somos definidos por nossas experiências é uma garantia de liberdade. Graças a ela, nos tornamos inventores de nós mesmos: nosso valor depende do que ousamos fazer. Mas a liberdade tem alguns custos.

Primeiro, se a experiência é o critério da excelência do sujeito, a relação entre gerações se torna complicada: não é mais suficiente ser idoso para aparecer como um ancião sábio. É legítimo perguntar, antes de obedecer: "Papai, o que você fez durante a guerra?".

Um segundo problema é que a experiência é um valor abstrato: qualquer aventura pode valorizar o sujeito. Por exemplo, na aurora da modernidade, uma vez estabelecido que todos éramos definidos por nossos feitos, os românticos saíram pelo mundo afora dando um jeito para morrer quer fosse de tuberculose, o sublime mal do século (como Keats em Roma), quer fosse afogados, recusando socorro e desafiando os elementos (como Shelley na baía de Lérici), quer fosse numa guerra com a qual o sujeito não tinha nada a ver (como Byron lutando contra os turcos em Missolonghi, embora, azar dele, tenha morrido de febre e não de espada).

Outro exemplo. Quando era adolescente, seduzia-me qualquer experiência que fosse diferente da dos adultos ao redor de mim. "Fulano passou um ano na prisão", Fulano deve ser do caramba. "Sicrano injeta heroína", Sicrano é o máximo. Uma gíria confirma essa atitude: "ser da pesada" significa, ao mesmo tempo, topar qualquer parada e, como assinala o "Aurélio", impor respeito.
A modernidade nos deixa, em suma, numa grande perplexidade ética. Se a experiência, por sua variedade e intensidade, forma o sujeito e lhe dá valor, quem dirá qual é a experiência moralmente boa? Os anciões que se dizem sábios só porque são idosos? Claro que não. As normas estabelecidas? Ainda menos. Sobra idealizar, com a ajuda de Hollywood, os Fulanos e Sicranos mencionados acima.

Acontece, aliás, com a experiência, a mesma coisa que aconteceu com o livre mercado de homens e mercadorias. Ambos soltaram as amarras das origens e do passado, mas criaram outras. A idéia de valorizar a experiência devia ser um salva-todos: cada um sairia de seu esconderijo e iria pelo mundo, senhor de si. Mas a experiência produziu novas hierarquias: o sábio antigo foi substituído pelo sabido. "Você não tem densidade interior porque não esteve meses no meio do mar como um Amyr Klink." Por que não "Você não sabe da vida porque nunca matou ninguém"?
Ora, acabo de ler, de um fôlego, "Queda Livre", de Otavio Frias Filho (Companhia das Letras). O livro é composto de sete ensaios ou reportagens "de risco", nos quais o autor relata e comenta uma série de experiências às quais ele se submeteu.

Passo sobre o grande prazer da leitura e o interesse da informação transmitida. O que me importa aqui é que as reportagens-ensaios de "Queda Livre" propõem uma solução exemplar para a nossa perplexidade moral diante da valorização abstrata da experiência. Eis como.

No relato de Otavio, cada vivência é narrada a partir de uma falha do protagonista: o medo do avião e das alturas para o pára-quedista; a inquietação com a malária e com os efeitos do tóxico para quem experimenta o Santo Daime na sede do culto, na Amazônia; a fobia dos espaços fechados para o submarinista; a ânsia e o receio do ridículo para o ator improvisado; o silêncio divino e as bolhas no pé para o peregrino de Santiago de Compostela; o pudor e a dor da rejeição para o amante ocasional no universo do suingue; enfim, a tentação do suicídio para o samaritano que, durante um ano, no Centro de Valorização da Vida, recebe os apelos telefônicos dos desesperados.

O leitor, mesmo que não compartilhe as vivências narradas, se reconhece sempre no medo, no pudor e na ironia do protagonista que sabe rir de si mesmo. As experiências adquirem, assim, um valor propriamente moral não por serem "de risco", mas porque seu relato, longe de dividir o mundo entre adeptos e ignaros, revela sobretudo a humanidade do protagonista. E, nessa humanidade, damos de cara com a nossa. Pois nem todos pulamos de pára-quedas, mas todos vamos pela vida, de experiência em experiência, com o coração na mão, em queda livre.

É a mesma atitude que faz a extraordinária qualidade (literária e moral) de "Tom Jones" e "Tristram Shandy": a "formação" do protagonista vale como auxílio para a nossa porque, lendo, reconhecemo-nos humanos nas mesmas tragicômicas falhas.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

Os feridos das festas

No dia 1º de janeiro, os prontos-socorros recebem sempre alguma vítima dos fogos de artifício do Réveillon.

Retomando o trabalho depois dos feriados, os psicoterapeutas e os psicanalistas também costumam atender os feridos da estação. São as vítimas de rojões tão explosivos quanto os outros: os encontros de família das festas de fim de ano.

Existe uma explicação básica para essa patologia: o Natal, em particular, idealiza a reunião de família a tal ponto que uma decepção é dificilmente evitável.

Desta vez, no meu consultório, compareceram, no mesmo dia, três adultos (entre 40 e 65 anos) acidentados no encontro com os pais idosos. Talvez, quando filhos e filhas já encaminhados na vida se sentam à mesa natalina com seus pais, uma eventual insatisfação seja mais provável e aguda, pois todos esperam viver um momento perfeito, que constitua uma lembrança, uma última foto feliz.

Seja como for, fiquei com as reflexões que seguem.

É raríssimo que os pais não transmitam nada a seus filhos. Mesmo quando um filho ou uma filha acreditam que inventaram sua vida a partir do zero, sem amparo e sem nenhuma herança material ou simbólica, descobre-se que existiu um legado. Pode ser, aparentemente, pouca coisa: um exemplo de coragem ou de humildade diante de adversidades e sofrimentos, uma palavra que manifestou uma ambição frustrada e deixada para os filhos e as filhas cumprirem.

Ora, quando paira no ar a sensação de que os pais não permanecerão para sempre na Terra, é frequente que o encontro de Natal seja assombrado pela tentação de fechar o balanço dessa transmissão (isso vale sobretudo se o Natal for a ocasião rara, anual, por exemplo, de uma reunião de toda a família). Como na famosa parábola, os pais idosos querem verificar se os filhos fizeram bom uso da herança. É uma contabilidade silenciosa, implícita em pequenas expressões de aprovação ou reprovação, mas facilmente explosiva.

Os pais querem consolar-se com a constatação de que imprimiram uma marca nos filhos e confirmar que foram indispensáveis. Mas é comum que seu legado seja ambíguo. Por exemplo, a herança que um pai destina a seus filhos é uma pequena loja que ele consolidou ao longo de 50 anos de esforços, mas, na verdade, seu sonho era mandar o negócio para o beleléu e sair velejando pelo mundo. A contragosto, a filha ficou com o comércio de família, convencida de satisfazer o desejo paterno, mas, no jantar natalino, constata que o preferido é o irmão, o qual leva uma vida de surfista pelas praias australianas. Quem ficou com a verdadeira herança? Quem é o conforto do pai no fim do dia? Difícil dizer.

Além disso, os filhos têm uma relação incerta com o legado que recebem. Receiam que, reconhecendo sua dívida, eles sacrificariam sua autonomia, ou melhor, comprometeriam a imagem de si mesmos (autônomos) que eles gostam de projetar nas telas de seu cinema de bolso.
Tudo isso não passa de ordinária administração. A pequena série de acidentados deste começo de ano trouxe algo mais. Nas cenas que me foram relatadas, todas emocional ou fisicamente violentas, manifestava-se uma espécie de rancor dos pais. O estranho é que em nenhum dos casos dava para dizer que os filhos não tivessem aceitado e hasteado a tocha de seus genitores, de uma maneira ou de outra. A raiva manifestada pelos pais parecia abstrata, sem objeto, e culminava regularmente com a promessa de "deserdar" filhas ou filhos. As ameaças não seriam levadas à frente; de qualquer forma, nada poderia abolir o legado simbólico. Também era óbvio que essas intenções dos pais, furibundas e pouco justificadas, durariam apenas um dia.

Mesmo assim, elas eram reveladoras: pareciam ser o modelo do comportamento de Deus com Jó, na Bíblia (para não falar da loucura do rei Lear de Shakespeare). Um belo dia, por provocação satânica, Deus suspeitou que Jó fosse devoto só pelos benefícios que o Criador lhe outorgava. E lhe tirou tudo. Claro, a desculpa era que convinha verificar a sinceridade da fé e da piedade de Jó.
Mas suspeito que, no caso dos pais idosos, não se trate de verificar se os filhos repudiados continuariam amando seus genitores. Há, na fantasia de deserdar no fim da vida, um verdadeiro ciúme de quem sobreviverá. A dificuldade de lidar com a hora dos adeus pode nos entregar a uma espécie de ódio por aqueles que ficarão mais um tempo. A ponto, aliás, de esquecer que eles são a única e tênue garantia de alguma permanência nossa.

Esse sentimento pouco nobre existe sempre nos pais e, pudicamente esquecido, é uma das causas de muitos desentendimentos entre gerações. No ocaso da vida, ele se torna mais furioso.
Os filhos, em geral, são menos pacientes que Jó. Descobrem-se odiados, e só lhes sobra desejar que os pais saiam mesmo de cena e os deixem viver em paz. Assim, tristemente, ao redor da mesa natalina, cada geração, por um instante, pode desejar a morte da outra. É paradoxal, pois cada geração deve à outra sua vida: os pais devem aos filhos sua possível continuidade no mundo, e os filhos devem aos pais, bem ou mal, o que eles são.

Nas próprias palavras de um dos feridos das festas, a verdadeira punição imposta pela ameaça ciumenta dos pais não é o repúdio, mas a reação de ódio que ele provoca nos filhos. Pois essa reação os priva de uma última chance de amar seus pais.

Moral da história: para sermos pais, importa aceitar que somos mortais.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2004

Adeus, ano velho

Quando era moleque, em Milão, nos anos 50 e ainda no começo dos anos 60, era perigoso passear pelas ruas perto da meia-noite do dia 31 de dezembro. É que, apesar de repetidas exortações e ameaças de polícia e bombeiros, permanecia em vigor um antigo costume: na hora da passagem do ano, jogava-se louça pela janela.

Não era de todo raro, portanto, que chovessem pratos e sopeiras. As pessoas guardavam, durante o ano, os restos de serviços incompletos, as terrinas rachadas e as vasilhas lascadas, para que se espatifassem festivamente na calçada na noite de são Silvestre.

Era um jeito de declarar que a gente fazia tábula rasa, recomeçava do zero. Nada de muito original nisso; em quase todas as culturas, existiram e existem festividades da passagem de ano que celebram a esperança de um início radical.

Originalmente, aliás, as festas romanas das Saturnalia e Bacanalia (antepassadas do Carnaval) aconteciam nesta época: eram festas de inversão (ou seja, o mestre se fazia de escravo e o escravo podia se fazer de mestre) e manifestavam uma espécie de volta à confusão inicial, a partir da qual tudo seria de novo possível. Em 336 de nossa era, a cristandade decidiu colocar a celebração do Natal na mesma época do ano, para que a chegada do Messias valesse como o símbolo definitivo da renovação da vida.

Mas a celebração moderna, a nossa, tem um sentido, ou melhor, um alcance um pouco diferente do da antiga.

O melhor guia, nessa matéria, é a pequena obra-prima de Mircea Eliade, "O Mito do Eterno Retorno", livro escrito logo depois da Segunda Guerra Mundial (versão recente em português pelas Edições 70), uma leitura perfeita para o começo do ano.

Eliade opõe a modernidade às sociedades tradicionais. Nestas, a experiência do tempo é feita de ciclos que se repetem, e os acontecimentos têm sentido porque aparecem como variantes de mitos conhecidos por todos. A guerra, a doença, a morte, as separações e as perdas são tão explicáveis quanto as estações do ano. O homem tradicional carece de futuro, não se define por seus projetos, mas, em compensação, pode, de vez em quando, jogar alegremente seu passado pela janela, pois não é o passado, mas a repetição que dá sentido à sua vida.

Nós, modernos, ao contrário, acreditamos na mudança, na novidade, na história. Vivemos o tempo como teatro de uma liberdade potencialmente infinita. Não acreditamos em ciclos inelutáveis, mas num progresso que deveríamos aos nossos próprios atos.

Essa suposta liberdade encontra (ao menos) dois limites.

Primeiro, obviamente, existem os outros. Escreve Eliade: "A liberdade de fazer a história, privilégio conclamado do homem moderno, é um engano para quase toda a espécie humana. Os homens, de fato, são livres para escolher entre duas posições: opor-se à história que é feita por uma pequena minoria (e, nesse caso, exercer a liberdade de optar entre o suicídio e a deportação) ou então refugiar-se numa existência subuma na ou na fuga". Embora os horrores da Segunda Guerra Mundial se projetem sobre as páginas de Eliade, há de se convir que seu texto não está muito longe de nossa realidade.

Mas o que mais nos interessa aqui é o outro problema da pretensa liberdade moderna. A história não é apenas o resultado de nossas ações; em grande parte, ela "se faz sozinha, como resultado das sementes lançadas pelos atos do passado".

O passado assombra nossa liberdade; é sempre ele que coloca limites aos sonhos futuros. O tempo, para nós, não é uma repetição que recomeça periodicamente como um ciclo, mas uma linha, um percurso. Sua continuidade acarreta uma consequência: avançamos carregando o peso do que já foi. Viver é construir um passado que decide nossos futuros possíveis.

Preferiríamos esquecer. E não é só no fim de ano que acreditamos poder jogar a louça velha pela janela. O adolescente imagina que, saindo de casa, começará uma vida nova, sem as imposições de sua antiga existência de filho ou de filha. O adulto imagina que, separando-se do parceiro ou da parceira, criará novas relações, diferentes, prazerosas e respeitosas do outro. Muitos imaginam que, ao se mudarem para uma cidade distante ou para outro país onde ninguém os conheça, se reinventarão completamente, aproveitando toda a sua sabedoria acumulada. O lema é : "Desta vez, será diferente".

Horácio, que talvez seja o mais moderno dos poetas romanos, já dizia que "os que atravessam o mar mudam de céu, não de alma". Seu verso vale para qualquer mudança.

A fé ilusória nos novos começos, atributo da modernidade, alimentou (e ainda alimenta) cada tipo de sonho, desde as utopias sociais do século 19 até o mito do "self-made man".

Na aurora do século 20, a psicanálise, estraga-prazeres, veio lembrar que viajamos sempre com mais malas do que é preciso e que não adianta jogá-las pela janela. Para diminuir o excesso de peso, melhor abri-las, repertoriar o conteúdo e decidir o que fazer com ele.

Na passagem de ano, em suma, a dificuldade está em lidar com os restos do ano que acaba (e dos que o antecederam). Por desgastados e puídos que sejam, não são tirados de nossas costas pela simples defenestração.

A todos os que querem mudança, desejo um "adeus, ano velho" feliz e eficaz.