quinta-feira, 25 de julho de 2013

O papa no Rio


 
Aeroporto do Galeão, domingo de manhã. O pouso do avião que trazia meu enteado estava previsto para as 8h30, mas aconteceu com uma hora de atraso --e, sobretudo, ele só recuperou a mala e saiu da alfândega ao meio-dia.
O aeroporto do Rio parecia uma praça de Roma num filme de Fellini: monges, freiras e padres por todos os lados, conversando numa Babel de línguas. Uma tropa de jovens argentinos, de camiseta azul e branco e com uma cruz no peito (ou nas costas?), cantava em coro alguma música, que eu não reconheci, mas de que Deus devia gostar à beça.
Outro grupo, na área de espera, misturava cantoria com batucada. Alguém rabugento poderia pensar: e se eu não estivesse a fim de ouvir?
Um pensamento idêntico me ocorreu à tarde, enquanto caminhava pela praia de São Conrado. Um carro passou por mim. Na verdade, não um carro, mas um som poderoso, veiculado por uma sucata dos anos 1980 e tocando rap-funk.
Os três jovens no veículo faziam um esforço considerável para parecer mal-encarados (seu jeito de "esquentar" as minas e intimidar os passeantes). Será que os jovens cantando no aeroporto, comparados com a gangue do carro, eram "angelicais"? Não, os dois grupos eram igualmente belicosos e desagradáveis; ambos queriam me obrigar a tocar a vida ao som da trilha deles.
Domingo, houve um arrastão por peregrinos na praia de Ipanema (foto na capa da Folha de segunda). Se eu estivesse na areia, tomando sol com caipirinha, teria detestado; talvez achasse melhor um arrastão tradicional, de celulares e carteiras.
Com isso, fiquei feliz, na segunda, ao saber que, no largo do Machado, bem onde peregrinos da Jornada Mundial da Juventude católica esperavam seu transporte, um grupo de mulheres dançava exibindo os seios. Os jovens peregrinos vaiaram.
Lembrei-me de que, nos meus anos de faculdade, em Genebra, um amigo, que morava perto de Plain palais, tinha adotado uma resposta sistemática aos missionários mórmons e testemunhas de Jeová que batiam à sua porta com frequência: ele sempre abria a porta completamente nu. E, se estivesse com a namorada, fazia questão que os dois abrissem a porta juntos. Provocação por provocação, acho a de meu amigo e das mulheres do largo do Machado mais engraçada.
Você acha essas atitudes infantis e um pouco primárias? Tudo bem, vamos falar de coisas primárias. O kit recebido pelos peregrinos inclui um "Manual de Bioética", de 75 páginas, produzido originalmente na França pela fundação Lejeune.
Como mostrou a reportagem de Fabio Brisolla na Folha de segunda, esse livrinho de "ética" é imperdível (confunde aborto com contracepção, propõe juízos de valor como verdades "científicas" etc.).
Para ter uma ideia da qualidade dos argumentos, na hora de atacar a reprodução assistida (pág. 35), o livrinho lembra que, em 2004, só na França, "havia cerca de 120 mil embriões congelados": essa frase é acompanhada pela imagem de um menino que treme de frio... Campanha do Agasalho para os embriões?
A edição brasileira contém um acréscimo sobre "A Teoria do Gênero", que eu mesmo não sei o que é. Também não sei decidir se o tal capítulo foi escrito mais com má-fé ou com ignorância --talvez com uma combinação das duas.
Na pág. 73, por exemplo, lemos: "Os adeptos da teoria do gênero [?] pretendem que, por um simples ato de vontade, poderíamos alterar a realidade do que somos, escolhendo a nossa identidade sexual: 'Eu não sou o corpo que tenho'." Mamma mia! Só para começar: descobrir-se um dia em desacordo com seu próprio corpo (que não tem nada a ver com "escolher" a identidade sexual) é uma experiência dramática e dolorosa, que merece, no mínimo, respeito.
O autor do livrinho me fez pensar no professor de religião de meu último ano de colégio, que, para contestar a teoria darwinista, declarou que ele daria um soco em quem lhe sugerisse que a mãe ou a avó dele eram macacas. A classe riu, e ele deve ter pensado que sua grosseria nos conquistara. Erro: naquele dia, a classe inteira se tornou darwinista.
Bom, para celebrar a vinda de papa Francisco, também li algo melhor, "Sobre o Céu e a Terra" (Paralela), diálogo entre dois líderes religiosos de Buenos Aires, papa Francisco (à época do diálogo ainda cardeal Bergoglio) e o rabino Skorka.

Ainda comentarei esse livro, mas, primeiro, preciso de um tempo para esquecer minha irritação com o paternalismo, que enfia um livrinho meio infame na goela dos peregrinos e reserva sua cara mais civilizada aos que sabem ler.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

O partido da aventura



 
Nos anos 1970, na Itália, "il partito dell'avventura" era o golpismo que queria desestabilizar a democracia. De que forma? Insuflando os peitos da classe média com inquietudes e medos abstratos. Uma indignação generalizada (sem alvos muito específicos e circunscritos) e a sensação de insegurança (produzida pelo terror) levariam o povo a recusar o sistema no seu conjunto: a rua exigiria a renúncia do governo, o fechamento do Parlamento e o fim de partidos e sindicatos.
Se esses pedidos se impusessem, temíamos que a porta se abrisse para "aventuras" políticas imprevisíveis e (argumentávamos, baseando-nos na história recente) totalitárias: nostalgias fascistas ou sonhos stalinistas.
No retrospecto, estranho a facilidade com a qual parecíamos menosprezar a perspectiva da "aventura". Certo, as indignações generalizadas geram um futuro incerto, que ninguém sabe no que dará e que talvez dê em algo perigoso. Mas é curioso que a aventura, com sua promessa de mudanças radicais, não nos seduzisse nem um pouco.
Seja como for, estamos, hoje, num momento bom para o partido da aventura. Imagine uma pesquisa nacional que colocasse, em qualquer ordem, por exemplo, as perguntas que seguem.
Primeiro, sobre o Legislativo. Você quer que os nossos representantes parem de usar os aviões da FAB como táxi aéreo? Quer que eles possam ser eleitos só por um mandato? Quer que eles tenham um regime de INSS igual ao de todo mundo? Quer que eles sejam obrigados a recorrer exclusivamente aos serviços públicos de educação e saúde (pela qualidade dos quais, afinal, eles são responsáveis)? Você quer que eles não possam decidir os aumentos de seus próprios salários e mordomias? Enfim, você aceitaria que o Parlamento fosse fechado, e que novas eleições fossem convocadas, em que nenhum representante atual pudesse ser candidato?
Logo, o Executivo. Você acha que os ministérios existem como objetos de barganha política mais do que por necessidade de governo? Quer que o governo corte pela metade seus 39 ministérios? Você gostaria que o governo renunciasse e alguém de reputação ilibada, sem disposição para compromissos e negociatas, tomasse as rédeas do poder?
Não inventei nenhuma dessas perguntas. Cada uma delas está (com muitas outras) em vários e-mails que recebi nas últimas semanas. Talvez uma pesquisa desse tipo seja por si só uma "aventura" perigosa: se a resposta majoritária fosse positiva, a desmoralização da classe política inteira seria brutal.
Não tenho nenhuma simpatia pela ideia de uma figura salvadora providencial --Collor foi eleito com essa imagem, e olhe no que deu.
Por outro lado, desconfio de qualquer ordem estabelecida que tente se manter e se legitimar chantageando-nos com o espantalho de um futuro incerto: aceite a gente e as coisas assim como estão ou prepare-se para o risco da "aventura", ou seja, "depois de nós, o dilúvio". Dizem que sem partidos e sem Parlamento não há democracia; será? Apenas 240 anos atrás, quando a revolução americana inventou a república moderna, o mundo inteiro dizia que sem rei não haveria governo possível.
Numa entrevista publicada na Folha de segunda (8), um sociólogo italiano, Paolo Gerbaudo, citando Gramsci, falou dos "sintomas mórbidos" que aparecem no "interregnum", "quando um sistema de poder está em colapso, mas seu sucessor ainda não se formou". São "fenômenos estranhos, criaturas monstruosas e difíceis de serem decifradas. Hoje, as criaturas estranhas são esses movimentos populares". Um exemplo dessas criaturas? Depois da Primeira Guerra Mundial, as massas italianas e alemãs que se lançaram na "aventura" do fascismo, do nazismo e da Segunda Guerra.
Note-se que nem todos os sintomas mórbidos levam a um desfecho sinistro. Ao longo da história, houve "aventuras" que acabaram bem. Mas entendo o olhar atônito do governo e do Parlamento, pois a questão é saber para quem a aventura em curso acabará bem.
Pode ser que, aos poucos, as manifestações populares se acalmem. Mas talvez algo irreversível tenha acontecido: uma desconfiança, que existia há tempos (se não desde a origem do país), agora se tornou exasperação. E a exasperação é quase sempre um prelúdio. Ao quê? Seria sábio ter medo?

Uma coisa é certa: a responsabilidade pela eventual "aventura" de hoje não é das massas exasperadas, é de quem as encurralou até a exasperação.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Desacato



Em 2010, quando quis marcar o dia da inspeção veicular do meu carro, já não havia mais horários. A primeira data disponível era depois do fim do prazo de minha placa.
A inspeção descobriu que meu escape estava furado. Naquele dia, a caminho do mecânico que trocaria o tubo, meu carro passou por um radar e foi multado por circular sem certificação ambiental. Isso, eu descobri quando a multa chegou.
Tudo bem, não riam de mim, é que morei muito tempo na Europa e nos EUA, mas eis o que eu fiz: escrevi uma bonita carta ao DSV, Departamento de Operação do Sistema Viário, incluindo cópia dos documentos que atestavam 1) minha passagem pela inspeção na manhã do dia da multa, 2) o resultado da inspeção, 3) minha passagem pelo mecânico no mesmo dia, 4) a inspeção final.
Expliquei que eu tinha sido multado no trajeto entre a inspeção e o mecânico que consertaria o defeito encontrado e pedi que o departamento reconsiderasse a multa.
Talvez eu merecesse a multa de qualquer forma (pelo atraso inicial), mas a questão é: você recebeu resposta? Eu, nem sequer um sinal de que alguém tinha recebido minha correspondência.
O tempo passou. Neste ano, 2013, uma vez o IPVA pago, o licenciamento demorava a chegar. Um despachante descobriu que a multa de 2010, com juros e correção monetária, tinha reaparecido e impedia que meu carro fosse licenciado.
O despachante "nunca riu tanto" quanto ao escutar a história de minha carta etc. --coisa de gringo mesmo, essa de acreditar que, naquele endereço indicado nas notificações, alguém se daria à pena de ler e responder a um cidadão.
Essa história me custou algum dinheiro, mas não fui pessoalmente nem à inspeção nem ao Detran. É minha desobediência civil de privilegiado: pago, mas não deixo o Estado abusar do que tenho de mais precioso, meu tempo.
Para o Estado, em geral, o tempo do brasileiro não vale nada, e essa desvalorização do tempo do cidadão talvez seja mais injuriosa do que as eventuais falhas nos serviços. Nos serviços, podem faltar recursos (somos pobres), mas o descaso com o tempo do cidadão é só desprezo.
O mesmo desprezo aparece no fato de que a administração brasileira carece de mecanismos para proteger o cidadão contra os abusos do poder. Nos Estados democráticos, proteger o indivíduo é uma das grandes preocupações dos legisladores.
Nos Estados totalitários (modernos e antigos) ou nos Estados de origem colonial acontece o contrário: o legislador protege a administração (o partido único, a "coletividade", o império, a corte de Lisboa, tanto faz) contra o reles súdito.
Um leitor, Bárbaro, comentando a coluna da semana passada, assinala que os brasileiros não são vítimas só de descaso, "mas de intimidação mesmo, como atestam aqueles famigerados cartazes em qualquer repartição pública alertando o pobre cidadão que o desacato a funcionário público no exercício de seu trabalho é crime" (pena de seis meses a dois anos de detenção ou multa).
Talvez a reforma em curso do Código Penal acabe com o crime de desacato, que é uma pura coação do Estado contra o cidadão. Enquanto isso não acontece, proponho que, nas repartições públicas, ao lado do cartaz do desacato, seja pendurado outro, que lembre as punições para o funcionário e para o próprio Estado quando eles desacatam o cidadão que eles deveriam servir.
É uma boa ocasião, aliás, para sugerir que o termo "funcionário público" seja substituído por "servidor público". O que importa não é preencher bem uma função num governo ou numa administração: os torturadores eram ótimos funcionários da ditadura; o que importa é cumprir honradamente a tarefa de servir os cidadãos.
A ausência de canais pelos quais seja realmente possível se queixar (junto com a ideia intimidante de que a queixa pode ser entendida como desacato) são provas da necessidade de uma reforma política profunda, que mude a relação do Estado com o cidadão.
Esta é uma coisa que qualquer psicanalista e psicoterapeuta constatam e que vale no consultório e fora dele: escutar não é apenas uma condição para saber o que curar e como, escutar é tão importante quanto curar. Um governo que não escuta não terá legitimidade, mesmo que consiga curar alguns ou todos os males.

Justamente, o silêncio do DSV fez com que eu gostasse de ver, alguns dias atrás, as vidraças do Detran quebradas pelas pedras dos manifestantes.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Qual baderna?

Em agosto de 1792, Maria Antonieta devia achar que os que se juntavam na frente das Tuileries eram baderneiros ignorantes. 

 Em dezembro de 1773, o governador inglês da província de Massachusetts devia pensar a mesma coisa dos "filhos da liberdade", que se disfarçavam de índios, subiam nos navios, jogavam o chá no mar e não queriam pagar os impostos.

 Na época, Samuel Adams explicou que, mesmo se esses homens fossem apenas vândalos descontrolados, eles seriam, de fato, os defensores dos direitos básicos do povo das colônias. A maioria dos paulistanos (e, suponho, dos brasileiros) pensa como Samuel Adams e deseja que as manifestações continuem, por uma razão que está muito além da tarifa dos ônibus: a relação do poder público com os cidadãos do Brasil é, sistematicamente, há muito tempo, de descaso e desrespeito, se não de abuso.

 A escola e a saúde públicas são o destino resignado dos desfavorecidos. A insegurança se tornou uma condição existencial, tanto no espaço público quanto dentro da própria casa de cada um. O atraso da Justiça garante impunidades iníquas. Claro, nossa arrecadação per capita é menos de um terço da dos EUA, por exemplo. Ou seja, talvez tenhamos os serviços públicos que podemos nos permitir.

Convenhamos, seria mais fácil aceitar essa triste realidade 1) se a corrupção não fosse endêmica e capilar, especialmente na administração pública, 2) se os governantes baixassem o tom ufanista de nossos supostos progressos e sucessos, 3) se a administração pública não fosse cronicamente abusiva e desrespeitosa dos cidadãos e de seus direitos.

Além disso, o dinheiro no Brasil compra uma cidadania VIP, na qual não só escola, saúde e segurança são serviços particulares, mas a própria relação com a administração pública é filtrada por um exército de facilitadores e despachantes. A sensação de injustiça é exacerbada pela constatação de que muitos representantes procuram ser eleitos para ganhar acesso à dita cidadania VIP.

Por isso, hoje, circulam aos borbotões, na internet, propostas de reforma política em que, por exemplo, 1) os membros do Legislativo e do Executivo seriam obrigados a recorrer, para eles mesmos e para seus filhos, aos serviços da educação e da saúde públicas, 2) os congressistas não teriam nenhum regime privilegiado de aposentadoria, 3) os congressistas não poderiam votar o aumento de seus próprios salários etc.

 Para piorar, os representantes parecem se preocupar pouco com os compromissos de seu mandato e muito com sua própria permanência nos privilégios do poder. Por isso, por exemplo, eles compõem alianças que desrespeitam e humilham seus próprios eleitores. Nesse contexto espantoso, é patética a indignação com os "baderneiros" e mesmo com a margem de delinquentes comuns que se agregaram às manifestações.

 O poder, quando não é efeito de graça divina, vem dos próprios cidadãos e é condicional: só posso reconhecer e respeitar a autoridade que me reconhece e me respeita. Uma autoridade que me desrespeita merece uma violência equivalente à que ela exerce contra mim. Além disso, é bom não perder o senso das proporções. "Olhe, olhe!", grita um repórter, enquanto a tela mostra alguém que foge de uma loja saqueada levando algo no ombro.

Tudo bem, estou olhando e não estou gostando, mas minha indignação é mais antiga e por saques muito maiores. Outro repórter pensa nos coitados que perderão o avião, em Cumbica, por causa dos manifestantes que bloqueiam o acesso ao aeroporto. Mas o verdadeiro desrespeito é o de nunca ter construído uma linha de trem entre São Paulo e o maior aeroporto do país.

 O ministro Antonio Patriota se declarou indignado com o vandalismo contra o Palácio do Itamaraty. Com um pouco de humor negro, eu poderia suspeitar que os apedrejadores talvez tenham precisado um dia dos serviços de um consulado no exterior. Mas, deixemos.

Apenas pergunto: se esses forem vândalos, então o que são, por exemplo, os latifundiários desmatadores da Amazônia? Enfim, à presidenta Dilma gostaria de dizer: não acredito que os "baderneiros" das últimas semanas tenham envergonhado o Brasil --nem mesmo quando alguns depredaram o patrimônio público.

Presidenta, você sabe isto mais e melhor do que muitos de nós: o que envergonha o Brasil é uma outra baderna, bem mais violenta, que dura há 500 anos e que gostaríamos que parasse.

sábado, 22 de junho de 2013

Sonhos de calor humano

Na sexta-feira passada, estreou o último filme de Richard Linklater, "Antes da Meia-Noite", que eu estava aguardando. Mas, enquanto as ruas pegam fogo, é difícil escrever sobre o amor.

As manifestações que se espalharam (e seguem se espalhando) por São Paulo e por outras cidades do país me impressionaram pela rapidez com a qual o protesto, supostamente motivado pelo aumento das passagens de ônibus, tornou-se expressão de outras insatisfações, profundas e cruciais --contra a má qualidade e a má gestão do que é público, contra a insegurança de nossas ruas, contra a corrupção, contra o mistério nacional que resulta em produtos caros e salários baixos, contra os políticos com sua falta de competência e seu excesso de promessas, contra o desperdício da Copa que vem aí, contra a lentidão e a ineficácia da Justiça, que parece que late e nunca morde etc.

Domingo, num café de família, verifiquei, aliás, que as passeatas da semana passada não eram mais (se é que foram no começo) a manifestação de uma geração ou de uma classe social (e ainda menos de um partido).

Todos parecem cansados de uma cantilena ufanista que quase nos adormeceu: o discurso do Brasil que dá certo, que cresce (?), que está no caminho, que resistiu à crise enquanto os outros se deram pior, que acabou com a miséria (?) etc.

Levantando a cabeça atordoada pela propaganda, a gente pergunta: isso aqui é mesmo tudo o que conseguimos ser, como sociedade?

As manifestações da semana são frutos de um descontentamento bem justamente brasileiro. Ao mesmo tempo, elas pertencem a uma voz popular que se expressa, mundo afora, há tempo --e não só desde Seattle, em 1999.

Paradoxalmente, foi assistindo ao filme de Linklater que me pareceu entender por que somos (e não estamos) insatisfeitos com as sociedades nas quais vivemos.

Linklater filmou uma trilogia: no primeiro filme, "Antes do Amanhecer" (1995), Jesse e Céline descem do trem onde se encontraram para passear por Viena, até eles terem que voltar, no dia seguinte, cada um para seu lugar. No segundo, "Antes do Pôr do Sol" (2004), Jesse está promovendo, em Paris, o livro que ele escreveu sobre seu encontro em Viena com Céline; Céline vai ao lançamento, e eles se reencontram.

Em "Antes da Meia-Noite", agora em cartaz, Jesse e Céline se juntaram no fim do filme anterior, tiveram duas filhas e estão de férias na Grécia: o charme das conversas passadas se transformou num pesadelo, em que uma oposição estéril, abstrata e inexplicável parece ser o destino a longo prazo de qualquer conversa de casal.

Ou seja, o amor é o encanto de um encontro, um sonho: quando ele se realiza como convivência, ele pode durar, mas será facilmente cômico e sempre insuficiente.

Ora, essa verdade do amor talvez valha para qualquer projeto de convivência social. A sociedade que nos parece certa, que desejamos, existe na mágica do encontro e do sonho (o momento da manifestação, da militância). Como acontece com o amor, a realização dessa sociedade é sempre insatisfatória --claro, às vezes ela é um pesadelo absoluto e totalitário, outras vezes ela é parecida com aqueles casamentos que continuam porque ninguém acredita que a coisa possa melhorar e porque ninguém está a fim de ficar sozinho.

Ao longo de alguns séculos, o indivíduo se tornou para nós mais importante do que a comunidade. Esse período teve seu ápice no começo da modernidade. Paradoxalmente, logo quando o indivíduo passou a encabeçar nossos valores, a gente começou a idealizar o amor romântico como doação perfeita de cada um ao outro.

Da mesma forma, quando começamos a inventar as regras e as formas de uma sociedade de indivíduos separados e autônomos, logo naquele momento começamos a sonhar com o abraço de comunidades unidas e fraternas.

Ou seja, quanto mais prezamos o indivíduo, tanto mais sonhamos com o amor e o ideal comunitário.

Esse paradoxo nos define. Estamos em conflito permanente entre nossa aspiração individual e nossos sonhos amoroso e comunitário. Em matéria de amor, a consequência parece chata (nunca dá certo).

Mas em matéria de sociedade, sorte nossa: de vez em quando, podemos nos acomodar, mas nunca somos satisfeitos com a sociedade que conseguimos construir.


Melhor assim.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Sex and the city

O extraordinário não é que um casal transe na escadaria, mas que tantos transem só em suas camas

Numa madrugada de inverno dos anos 1960, em Milão, um jovem casal estava num carro estacionado numa praça. Dez minutos foram suficientes para embaçar os vidros e esquentar os corpos.

Dois guardas notaram que o carro subia e descia com movimentos "suspeitos". Eles gritaram "Polícia!" e mandaram abrir. O casal, intimidado, obedeceu, revelando seus corpos nus ainda enroscados. Os guardas atuaram a ambos por atentado ao pudor.

Um ano depois, os jovens foram inocentados: o juiz reconheceu que eles só se mostraram porque os guardas mandaram abrir o carro --ninguém atentara ao pudor de ninguém.

Com amigos e amigas, decidimos zombar da polícia e dos cidadãos bem-pensantes (os quais, em cartas aos jornais, tinham manifestado sua indignação). Era de novo inverno; estacionávamos nossos carros, não de noite em lugares ermos, mas de dia, nas ruas mais frequentadas.

Assim que os vidros estivessem embaçados, era um exagero de sacudidas, de modo que ninguém duvidasse que, lá dentro, a gente fazia a festa. Infelizmente, nenhum guarda nunca bateu nos vidros de nossos carros trêmulos e protestatórios.

Pensei nessa história na sexta passada, quando li a ótima reportagem de Roberto de Oliveira, em "Cotidiano" (Folha, 7 de junho): uma inquilina do edifício Copan, glória de São Paulo, emprestou seus aposentos para um casal de amigos cariocas. Na noite do dia 27, o casal subiu pelo elevador até o último andar e se engajou nas escadas externas. Um segurança viu esse movimento pelas câmeras e foi atrás, até encontrar o casal no ato (sexual, claro).

O síndico do condomínio multou a inquilina (R$ 678) --por escolher "mal" seus amigos?-- e agora esbraveja que se tratou de um atentado ao pudor. Mas ao pudor de quem? Se o segurança (que imagino que seja maior de idade) "foi atrás", é porque estava afim de dar uma espiadinha, suponho"¦

Claro, haverá um carrancudo para perguntar: não podiam ir para seu apartamento e se deitar na cama? Pois é, não, não podiam. Ou melhor, podiam, mas deviam achar que seria muito mais chato do que transar com a vista de São Paulo, o ar frio, a sensação de estar fazendo algo inusitado, a fantasia de serem vistos de alguma janela do Terraço Itália e, enfim, o risco de serem surpreendidos pelo segurança do prédio, como aconteceu.

Somos um pouco diferentes dos outros mamíferos. O cheiro do sexo oposto não é suficiente para nos excitar; precisamos recorrer a fantasias sexuais --sem isso, nada ou pouco acontece. E, se você acha que não recorre a fantasia alguma, isso significa apenas que você não sabe a quais fantasias recorre.

O que é extraordinário não é que um casal transe nas escadas externas do Copan. O extraordinário é que tantas pessoas transem (ou digam que transam) sempre nas suas camas.

Essa é uma opinião excêntrica de psicanalista? Tomemos o caso do risco: dois grupos parecidos atravessam um precipício por pontes diferentes, um passa por uma sólida ponte de alvenaria, e o outro, por uma ponte de cordas. Na chegada do outro lado, quem está mais receptivo para sexo? Pois é, são os da ponte estilo Indiana Jones.

O síndico do Copan declarou inicialmente que o ato era "depreciativo". Que cada um escreva sua lista das coisas que depreciam nossa vida. Na minha lista, há corrupção, violência, insegurança, incompetência, intolerância, estupidez"¦ são as coisas que atentam cada dia ao meu pudor. Um casal transando não está entre as coisas que depreciam meu dia, mas entre as que lhe dão valor.

A vítima do Copan criou uma conta no vakinha.com.br, pedindo ajuda para pagar a multa. Quis contribuir ao pagamento da multa, que me parece injusta. Infelizmente, a conta foi apagada (talvez por causa dos comentários bestas e agressivos que ela recebeu).

O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, tirou do ar uma ação de seu ministério voltada para as prostitutas (e demitiu o responsável pela campanha), porque ele se escandalizou com a frase "Eu sou feliz sendo prostituta", que ele substituiu por "Sem vergonha de usar camisinha" (que ele deve ter complementado mentalmente: "mas com vergonha de ser prostituta"). O ministro poderia ser candidato a síndico do edifício Copan.


Caro ministro Padilha, antes de demitir mais colaboradores competentes, dê uma lida: Gabriela Silva Leite, "Eu Mulher da Vida" (Rosa dos Tempos), "Filha, Mãe, Avó e Puta" (Objetiva) e (um pouco mais complexo) Eliana dos Reis Calligaris, "Prostituição "" O Eterno Feminino" (Escuta).

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Anarquistas, neoliberais e Foucault

Neoliberais e anarquistas têm uma paixão comum: para ambos, a liberdade do indivíduo é o valor supremo

 Por definição, os anarquistas não gostam de pertencer a coletividades, comunidades e grupos. Eles têm em comum uma antipatia (se não um ódio) pelos poderes instituídos, do Estado às igrejas, passando pelas torcidas, os partidos, os clubes etc. Fora esse sentimento comum, eles preferem pensar cada um por conta própria.

Mas, embora haja mil maneiras de ser anarquista, existe uma grande distinção que talvez seja legítima.
Há os anarquistas clássicos, que a esquerda gosta de incluir em suas fileiras. Grosso modo, eles acham que o fim do Estado e de todas as igrejas (por exemplo) criará uma nova sociedade de homens livres e pares. Tradicionalmente, esses anarquistas, por serem alérgicos ao poder dos partidos e dos Estados pretensamente "revolucionários", foram usados e, no fim, massacrados por seus supostos "companheiros" comunistas e socialistas (como aconteceu na guerra da Espanha).

E há os anarquistas que são hoje chamados de anarco-capitalistas, que a direita gosta de incorporar. Os anarco-capitalistas não sonham com uma sociedade radicalmente nova, eles apostam que a economia de mercado seja capaz de se contrapor ao Estado e aos poderes instituídos, de forma a substituí-los e torná-los desnecessários.

O que se ganharia com isso? Os anarco-capitalistas acham que, em matéria de liberdade, ser consumidor é um jeito relativamente pouco custoso de ser cidadão. Isso, sobretudo nas últimas décadas, em que o consumo tende a não ser massificado. Ou seja, a ideia anarco-capitalista é que, se deixássemos o mercado regrar nossa sociedade, nossa vida seria menos controlada e regrada do que ela é agora, pelo Estado e outros poderes.

Pergunta: sem o Estado, quem nos protegeria contra os abusos do mercado? É bom não esquecer que os anarquistas, em tese, se protegem sozinhos: se você não gosta de delegar poder a uma instituição, seja ela qual for, deve estar disposto a fazer polícia e justiça com suas mãos (é por isso, aliás, que o movimento libertário dos EUA sempre será fortemente favorável à livre circulação das armas).

Fato curioso, há uma similitude entre os anarco-capitalistas e os neoliberais. Mas é melhor explicar um pouco, porque (sobretudo se formos "progressistas") nossa visão dos neoliberais é distorcida.
Os liberais clássicos, tipo Adam Smith, querem preservar a liberdade do mercado dentro de qualquer sistema político.

Para os neoliberais de hoje, o mercado poderia (ou deveria) substituir qualquer sistema de governo a ponto de torná-lo desnecessário.

Há duas maneiras de entender essa ideia. Uma consiste em pensar que os neoliberais querem nos entregar de mãos atadas às grandes corporações e à sedução de sua propaganda. A outra consiste em pensar que os neoliberais são extremamente próximos dos anarco-capitalistas: querem que o mercado nos liberte, ou melhor, imaginam que o mercado seja a forma de organização social mínima, a que controla menos a nossa vida.

Para quem se deu a pena de ler Friedrich Hayek (que talvez seja o maior pensador do neoliberalismo --vários livros em português, publicados pelo Instituto Ludwig Von Mises), a resposta que faz mais sentido é a segunda.

Ou seja, há uma séria proximidade entre neoliberais e anarco-capitalistas. Essa proximidade consiste numa paixão comum pela liberdade do indivíduo como valor que não pode nem deve ser alienado em favor de entidade coletiva alguma.

Um sociólogo francês, Geoffroy de Lagasnerie, tenta há tempos defender uma leitura atenta dos autores neoliberais (para ter uma ideia da polêmica, um artigo dele de 2011, no "Le Monde", http://migre.me/eSa0S).

Em 2012, De Lagasnerie publicou um livro crucial sobre Michel Foucault, que acaba de ser traduzido, "A Última Lição de Michel Foucault" (Três Estrelas).

O livro mostra o irrefutável: em seu último seminário ("O Nascimento da Biopolítica", Martins Fontes), Foucault (um ícone da esquerda) leu, apresentou e (pasme) levou a sério os pensadores neoliberais (Hayek, em particular). E não foi uma loucura de última hora. Ao contrário, o interesse de Foucault pelos neoliberais não deveria nos escandalizar.


Aliás, qual seria o escândalo? Aparentemente, a ideia de que, para o bem ou para o mal, o neoliberalismo é também uma grandiosa defesa da diversidade e da liberdade do indivíduo --fato que não podia deixar indiferente o maior pensador anarquista do século 20, Michel Foucault.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Tratamentos e efeitos colaterais


Preferimos enxergar todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar

1) No fim dos anos 60, pensávamos que, no fundo, o louco era um rebelde que sofria da repressão que lhe era imposta e das condições horrorosas da internação psiquiátrica.

Mas o que tornou possível o progressivo fechamento dos manicômios não foi esse entusiasmo; foi a chegada de medicações mais eficientes, pelas quais o louco não precisava ser enclausurado, porque podia ser, não digo curado, mas controlado.

Desde então, os remédios psicotrópicos (ou seja, que modificam o funcionamento da mente) fizeram progressos.

2) A descoberta de que o remédio podia substituir as paredes do asilo repercutiu e contribuiu a inaugurar uma era em que preferimos enxergar quase todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar. Em outras palavras, se os remédios eram formas possíveis de controle social, por que eles não seriam também meios possíveis de autocontrole?

3) A modernidade é sedenta de técnicas de controle de si (dietas, prescrições, treinos, meditações etc.). Há menos controle externo (religioso ou político) sobre nossa vida; aumenta a necessidade de controle que nós mesmos exerceríamos sobre nós. Nessa tarefa, a ajuda de drogas e remédios é bem-vinda --para controlar nossa vida cotidiana, conter a tristeza, as variações de humor, a ansiedade, a preocupação etc.

4) Tendemos a responsabilizar os laboratórios farmacêuticos por essa medicalização crescente da vida. Mas eles apenas se aproveitam de um pedido que é nosso: queremos remédios como formas de controle e poder sobre nós mesmos.

5) Vi o último filme de Soderbergh duas vezes, no último fim de semana. O título original é "Side Effects", efeitos colaterais. Foi traduzido como "Terapia de Risco". Tudo bem --contanto que se entenda que os efeitos colaterais e o risco são tanto para o terapeuta quanto para o paciente.

Sim, o filme denuncia os laboratórios e suas práticas de propaganda. Sim, o filme lembra que a medicação não é nenhum tiro certeiro: sua administração é empírica (tipo: vamos ver o que acontece) e sua eficácia é modesta. Mas, sobretudo, o filme é uma perfeita narrativa da época do higienismo tardio, em que quase tudo é efeito da medicalização da vida. Confira.

6) Uma nota. Alguns psicoterapeutas e psicanalistas se opõem furiosamente à medicação de seus pacientes. Tudo bem, mas a medicalização é hoje uma cultura, um regime, um sistema de controlar e organizar a vida. Os remédios são apenas um dos meios da medicalização; é possível medicalizar a vida adotando práticas "saudáveis" ou frequentando um psicoterapeuta.

7) Nossos mal-estares cotidianos não têm marcadores específicos. Ou seja, não tenho como verificar (com uma análise de sangue, uma endoscopia ou um balanço hormonal) se e quanto alguém está deprimido. Devo me contentar com o que ele me diz.

Eu me formei numa escola de psicanálise em que acreditávamos que fosse possível encontrar, na fala dos pacientes, marcadores clínicos tão seguros quanto o nível de uma proteína no sangue.

Em tese, apostávamos, deveríamos poder diagnosticar um tumor no cérebro sem exames de imagem, porque saberíamos, por exemplo, que tal esquecimento é diferente de um esquecimento histérico, de um começo de Alzheimer, de uma amnésia etc. Mas esse ideal não se realiza (ao menos, não plenamente).

E um bom simulador pode vender qualquer peixe a todos nós, psiquiatras, psicoterapeutas, psicanalistas etc. Ou seja, um sociopata de bom feitio faz gato e sapato não só da lei, da gente também.

8) Se lêssemos as bulas com atenção, não tomaríamos nunca remédio algum. Os laboratórios, para prevenir processos, enumeram qualquer catástrofe.

No fim dos anos 1960, um amigo, J.H., perfeito exemplo de medicalização da vida, procurava seu equilíbrio numa mistura de anfetaminas e barbitúricos. Morreu afogado, de noite. A bula do Nembutal poderia dizer: cuidado, em combinação com simpamina, pode produzir a morte em quem vai surfar sozinho em Big Sur de madrugada.

Na época da medicalização, a lista indefinida (se não infinita) dos efeitos colaterais vale também como lista também indefinida das desculpas. Matou o vizinho, mas não foi intencional; foi porque ele tomava sei lá qual antidepressivo.

9) Assista a "Terapia de Risco" e, na saída do cinema, responda: ao seu ver, o psiquiatra do filme conseguiu ou não cuidar de sua paciente? 

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Abusos e incompetência

Uma vez, fui contaminado pelo transtorno de um paciente.

Aconteceu muitos anos atrás, em Paris. Um jovem era aterrorizado pela possibilidade de ser acusado de um crime com o qual ele não teria nada a ver. Incapaz de provar sua inocência, ele passaria a vida preso ou se escondendo.

Apesar de meus esforços, as fantasias de meu paciente permaneceram frequentes e assustadoras --apenas se tornaram mais ativas.

Ou seja, em vez de se ver mofando numa prisão ou num esconderijo, o jovem passou a imaginar que lutaria para provar sua inocência --como o Dr. Kimble, acusado do assassinato de sua mulher em "O Fugitivo", série televisiva dos anos 1960, que o paciente não conhecia, mas da qual eu me lembrava bem (o filme homônimo, que retomou a história, só chegou em 1993).

O medo de meu paciente encontrou um terreno fértil na minha desconfiança anarquista dos poderes constituídos. Ainda hoje, a ideia de ser a vítima indefesa da Justiça de um Estado não me faz rir.

Por causa disso, custei para assistir ao filme "A Caça", de Thomas Vinterberg. Sabia que era imperdível, mas tentava evitar o mal-estar que me produziria o espetáculo do sofrimento de Lucas, injustamente acusado de abusar sexualmente de uma criança.

Ora, ao longo do filme, ri repetidamente, e não foi "de nervoso". Os outros espectadores devem ter achado que havia um louco na sala. Mas era incontrolável: a incompetência da diretora da escolinha, do psicólogo que vai "ajudá-la" e dos pais eram verídicas, terrificantes e criminosas, mas estúpidas a ponto de ser cômicas.

O filme, aliás, deveria ser matéria de ensino nas faculdades de psicologia e nas escolas de polícia, com o pedido de que os alunos reparem os erros primários de educadores e outros adultos.
Em tese, deveríamos ter aprendido alguma coisa com tragédias jurídicas dos anos 1980 e 1990, em que crianças foram sugestionadas e manipuladas por pais e autoridades a ponto de formular coletivamente fantásticas acusações de abuso.

Houve as crianças "lambendo manteiga de amendoim no sexo da professora", na Wee Care Nursery School, em Nova Jersey, e a "Kombi-motel na escolinha do sexo", na Escola Base, em São Paulo.

Desde então, em alguns lugares do mundo, foi criada uma especialidade acadêmica em interrogatório de menores supostamente abusados. Aconselha-se que o interrogatório seja sempre por uma pessoa só (e filmado usando um espelho falso). Pede-se um teste específico que verifique o entendimento pela criança da relação entre verdade e mentira.

O entrevistador não deveria ter NENHUM conhecimento prévio da acusação. O uso de bonecos para mostrar como foi o abuso é considerado perigosamente lúdico. Enfim, a preferência é para entrevistas rigorosamente estruturadas, com perguntas preestabelecidas e, portanto, menos sugestivas.

Mesmo assim, ainda hoje, muitos textos básicos sobre interrogatório de crianças começam com a observação de que elas são relutantes a falar de abuso sexual. Só depois, e nem sempre, observa-se que, às vezes, as crianças se servem de acusações de abuso como meio de expressão: por exemplo, para assinalar aos adultos que elas podem ser desejáveis ou, justamente, para se vingar de um adulto que não foi seduzido por elas.

Não sei o que acontece, hoje, nas nossas delegacias especializadas, mas, de qualquer forma, nossa cultura é destinada a manipular a denúncia infantil de abuso.

Negamos a sexualidade infantil e idealizamos a inocência (e a "sinceridade") das crianças: só nos resta linchar os supostos abusadores antes que os detalhes dos casos nos revelem que a infância não é aquela terra dos anjos com a qual insistimos em sonhar.

No filme (e na vida real), é proposta aos pais uma lista de sintomas que indicariam que uma criança está sendo exposta a um trauma.

É fácil imaginar os efeitos da lista nos pais, assim como é fácil entender sua inutilidade: a sexualidade não é o efeito de um desenvolvimento interno e autógeno, ela é sempre efeito de traumas.

A menina de "A Caça" não foi abusada pelo homem que ela acusa, mas não lhe faltam traumas com os quais (graças aos quais?) "crescer". Trauma é a própria rejeição por Lucas, que lhe faz inventar que Lucas a deseja. Trauma é a pornografia no iPad dos amigos do irmão. Trauma é o questionamento pela corte de idiotas que a interrogam e sobre quem, manifestamente, ela deve se perguntar: mas o que será que eles realmente querem de mim?

Campos e a homossexualidade


Como reagir ao anúncio que seu filho é gay? Eu optaria pela indiferença --se possível, não fingida

Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia decretou que os psicólogos não devem propor curas para a homossexualidade, visto que a homossexualidade não é um transtorno mental. O deputado João Campos (PSDB-GO) não concorda; ele acha que o CFP não pode "restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional".

O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), paradoxal presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, colocou o projeto de Campos na pauta de ontem (8/5) da dita comissão.

Na última hora, a pedido de Henrique Alves (PMDB-RN), presidente da Câmara, a pauta foi suspensa.

Existe uma longa e sinistra história das terapias que pretendem "curar" os homossexuais, ou seja, "reorientar" ou "converter" sua sexualidade --sinistra, digo, pela violência dos remédios propostos sem fundamento clínico algum (castração, ablação do clitóris, eletroconvulsoterapia etc.).

No Irã de hoje, por exemplo, os homossexuais (que, segundo o governo, não existem) não são perseguidos se eles aceitarem uma cura que consiste na mudança forçada de sexo (engraçadamente, a charia local parece proibir a homossexualidade, mas tolerar o transexualismo).

Vamos ao último capítulo dessa história, no Ocidente. Em 2001, Robert Spitzer, psiquiatra respeitado, juntou, num relatório, 200 casos de "conversão" de indivíduos "altamente motivados" (nenhum dos quais tinha sido paciente dele). O estudo parecia documentar a possibilidade de reorientar alguém sexualmente. Durante uma década, discutiu-se sobre a validade dos dados recolhidos por Spitzer.

Resultado: no ano passado, Spitzer, professor emérito da Universidade Columbia, publicou uma carta aberta na qual ele declara que seu estudo não provava que uma terapia, seja ela qual for, pudesse permitir mudar a orientação sexual de alguém e que não havia como saber se as declarações dos indivíduos entrevistados para o estudo eram confiáveis e não autoenganos ou simplesmente mentiras.

Ele concluía: "Peço desculpas a qualquer pessoa gay que perdeu seu tempo e sua energia passando por algum tipo de terapia de conversão porque acreditou que eu tivesse demonstrado que a terapia de conversão funcionaria".

As terapias de reorientação ou conversão, hoje, são defendidas só por associações ou indivíduos inspirados por uma condenação moral ou religiosa da homossexualidade.

Essa condenação é tão legítima quanto qualquer crença, mas ela não pode oferecer uma "cura" em nome de uma disciplina clínica. Em outras palavras, qualquer um, padre, pastor ou charlatão, pode inventar um exorcismo para desalojar o demônio do corpo dos homossexuais. Mas o médico e o psicólogo não vendem exorcismos.

Em suma, sem a intervenção de Henrique Alves, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara teria desperdiçado seu tempo (e nosso dinheiro). Passemos a outra questão.

Recentemente, o pai da cantora Katy Perry, pastor evangélico, perturbado porque a filha canta uma música sobre beijar outra garota, declarou que Katy é filha do diabo.

A estupidez dos outros é refresco. Mas resta que, para muitos pais, não é fácil decidir como reagir ao anúncio de que seu filho ou sua filha é gay.

Sabemos que mandar o filho ou a filha para uma cura de conversão não é uma boa ideia. Em compensação, alguns pais "modernos", para evitar o ridículo do pai de Katy Perry, são tentados por uma aceitação festiva, eventualmente fingida. Como se situar nesse arco, entre "você é doente" e "que maravilha!"?
Eu optaria por uma espécie de indiferença --se possível, não fingida.

Tanto a aceitação festiva quanto a maldição empurram o jovem para uma reação em que ele dará a sua orientação sexual o valor de uma identidade, como se gritasse "olha, mamãe, sou gay", quer seja para desafiar os pais e o mundo, quer seja para ganhar seu aplauso.

De fato, a orientação sexual de um indivíduo não precisa ser um traço relevante de sua identidade. Em geral, quando ela se estabelece como tal, é de maneira reativa.

No caso da homossexualidade, isso é inevitável por causa da resistência social que a homossexualidade encontra. Se identificar como homossexual é uma maneira de se impor e lutar. E haverá homossexuais "assumidos" e militantes até que não haja mais Campos e Felicianos.

Agora, os heterossexuais assumidos e militantes são tão reativos quanto os homossexuais. Só que, hoje, os heterossexuais não reagem contra nenhuma discriminação; talvez eles estejam reagindo contra a única homossexualidade que os ameaça: a que eles reprimem neles mesmos.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Depois de maio

Por sorte, não perdi "Depois de Maio", de Olivier Assayas. 

 Nas últimas semanas, eu tinha visto o trailer repetidamente, e imaginava que o filme me aborreceria com um amontoado de chavões ideológicos, ou seja, daquelas frases que, em Maio de 1968, estofavam nossos peitos e, hoje, são inertes, quase desprovidas de sentido.


 Ora, tanto na nossa vida quanto na história coletiva do século 20 e 21, Maio de 68 e os anos 1970 foram muito mais do que as convicções e as palavras de ordem da luta política.

Claro, na época, nada nos parecia mais importante do que o sucesso ou o fracasso daquelas convicções. Mas fazer o quê? Foi assim: saímos à rua para fazer uma revolução e acabamos fazendo outras, que não eram previstas, mas talvez fossem melhores do que a que tínhamos planejado.

Não estou falando da revolução nos costumes e na tolerância das diferenças. Falo de outra revolução ainda, que, nos últimos anos, começou a ser contada, indiretamente, nos filmes que tratam de Maio 68.

Os melhores, para mim, eram "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci, e "Amantes Constantes,", de Philippe Garrel. Agora há "Depois de Maio", de Olivier Assayas, que não é apenas o filme sobre Maio que mais me tocou até hoje. É também um dos filmes (sobre Maio ou não) que mais me tocaram nos últimos anos.

Assayas é mais jovem do que eu. Eu tinha 20 anos em 68; ele tinha 13. Mas ambos fomos jovens nos anos 1970 na França; eu estava, por exemplo, nas manifestações de setembro de 70, durante a greve de fome de Alain Geismar.

Há uma pergunta que se colocam quase todos os que viveram "de dentro" Maio 68 e os 1970: o que eu fiz que, assim como eu sou hoje, eu não faria? E ter me transformado, isso é bom ou ruim?

No filme "Depois de Maio", é citado um grande poeta beat dos anos 1950. Em "Gasoline", de Gregory Corso, há um poema ("Tenho 25 Anos"), em que, depois de evocar os poetas que morreram jovens (Shelley, Chatterton, Rimbaud), Corso declara que ele odeia os velhos poetas, "especialmente os que se retratam" e que contam sua juventude sussurrando: "Eu fiz aquilo então, mas isso foi então".

Desses velhos poetas, Corso quer arrancar a língua fora, para que parem de se desculpar.
Será que sou um desses velhos poetas? Vistos de hoje, aqueles dias me parecem uma comédia de erros? E, se não foram, qual foi seu valor?

É que aqueles dias e anos inventaram um novo hedonismo da vida (que talvez já tenha sido perdido, de novo): era um prazer de viver, mas cuidado --levando a vida extremamente a sério. Esse prazer tinha a ver com o quê?

Por exemplo, com uma custosa fidelidade ao desejo da gente, que fosse de ser pintor, militante ou perdido nas drogas.

Ou ainda, com uma extraordinária densidade cultural, uma raiva de ler e estudar, como se colocar as questões certas fosse a condição para viver a vida intensamente.

Em 1970, num seminário de literatura inglesa contemporânea, na Universidade de Genebra, cada estudante foi convidado a apresentar um autor preferido. Escolhi Gregory Corso. No meio da exposição, me empolguei e confesso que atribui a Corso, como se fossem dois versos de um poema dele, as primeiras linhas (memoráveis) de um romance de espionagem de Len Deighton, que eu acabava de ler.
Por sorte minha, ninguém parecia conhecer nem Corso nem Deighton, e não fui desmascarado.

O começo de "An Expensive Place to Die", de Len Deighton ("O Preço da Morte", Nova Fronteira), tinha se tornado meu hino pessoal à vida que se justifica por si só, pela aventura que ela é.

Deighton começa assim: "The birds flew around for nothing but the hell of it" (o sentido é: os pássaros voavam pelo céu pelo puro prazer de voar --mas em inglês é muito melhor).

O filme de Assayas fala do prazer da vida levada a sério em duas sequências magníficas e surpreendentemente longas: a abertura, com os estudantes fugindo de um ataque da polícia, e uma pichação noturna, também com fuga dos estudantes perseguidos pelos vigias.

Nessas cenas, há o fôlego dos estudantes e dos policiais, que correm, há o fôlego do cineasta que consegue manter a sequência, há o fôlego dos espectadores e há, enfim, mais um fôlego, do qual talvez todos precisemos: é o fôlego de se levar a sério, ou seja, por exemplo, de ousar ir às ruas, pelo prazer de declarar o que a gente pensa, desafiando o medo.

domingo, 21 de abril de 2013

Jovens delinquentes


As crianças são más por natureza; às vezes, elas melhoram crescendo, pois a cultura pode civilizá-las 

 Na noite de terça-feira passada (dia 9), em São Paulo, Victor Hugo Deppman, estudante de 19 anos, foi assassinado. As câmeras mostram que ele entregou seu celular, e o assaltante o matou sem razão, com um tiro na cabeça. O criminoso se entregou à polícia declarando que faltavam dois dias para ele completar 18 anos. Com isso, pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), aos 20 anos e 11 meses no máximo, ele voltará a circular. A gente não pode nem deixar anotado o nome do assassino, para mantê-lo afastado de nossas vidas futuras: por ele ser menor, seu anonimato é preservado.

 É assim que protegemos o futuro do criminoso, para que, uma vez regenerado pela mágica de três anos de internação (alguém acredita?), ele possa facilmente reintegrar a sociedade e ser um cidadão exemplar, nosso vizinho. Obviamente, nos últimos dias, multiplicaram-se os pedidos de revisão do próprio ECA. Marcos Augusto Gonçalves (na Folha de segunda) observou que, na boca dos políticos, esses pedidos escondem décadas de descaso em matéria de segurança pública. Concordo. Mas, como não sou político, não vou deixar de discutir, mais uma vez, o estatuto do menor.

 Por exemplo, sou a favor de baixar a maioridade penal, drasticamente, como acontece no Reino Unido, no Canadá, na Austrália, na Índia, nos Estados Unidos etc. --sendo que, na maioria desses lugares, o juiz tem a autonomia para decidir por qual crime um menor de 12 ou dez anos será, eventualmente, julgado como adulto. Hélio Schwartsman (na página 2 da Folha de sexta passada) aconselhou prudência: seria melhor não "legislar sob forte impacto emocional" e, sobretudo agora, confiar apenas nas "considerações racionais". Ele quase me convenceu, mas...

 1) Penso isso há muito tempo.

 2) Se deixássemos de agir sob impacto emocional, nunca nada mudaria. Por exemplo, o conselho de esperar para que as emoções esfriem é o argumento dos fabricantes de armas a cada vez que, nos EUA, um exterminador invade uma escola e o Congresso propõe leis de controle das armas. Os fabricantes de armas querem que esperemos para quê? Pois é, para que a gente se esqueça e se desmobilize.

 3) Conheço só uma consideração racional a favor da maioridade penal aos 18 anos, e ela não é boa: o córtex pré-frontal (zona do cérebro que controla os impulsos) não está totalmente desenvolvido na infância e na adolescência. Tudo bem, se aceitarmos essa consideração, deveríamos aumentar seriamente a maioridade penal, pois o córtex pré-frontal se desenvolve até os 25 anos ou além. Além disso, deveríamos julgar como menores todos os adultos impulsivos, que nunca desenvolveram um córtex pré-frontal "satisfatório".

 4) As outras "considerações racionais" (que deveriam prevalecer sobre o impacto das emoções) são apenas disfarces de emoções especificamente modernas que, à força de serem compartilhadas, se tornaram chavões ideológicos. Três deles são corolários de nossa "infantolatria", ou seja, da paixão narcisista que nos faz venerar crianças e jovens porque, graças a eles, esperamos continuar presentes no mundo depois de nossa morte.

 Primeiro, queremos que as crianças nos apareçam como querubins felizes como nós nunca fomos e nunca seremos. Por isso, preferimos imaginar que os jovens sejam naturalmente bons. Quando eles forem maus, atribuímos a culpa à sociedade e a nós mesmos. Portanto, não podemos puni-los, mas devemos, isso sim, nos punir. Tendo a pensar o contrário: as crianças podem ser simpáticas, mas são más (briguentas, possessivas, invejosas, mentirosas, ingratas etc.); às vezes, elas melhoram crescendo, ou seja, a cultura pode civilizá-las (ou piorá-las, claro).

 Segundo, adoramos acreditar que sempre podemos mudar (para melhor, claro): apostamos que a liberdade do indivíduo permita qualquer reviravolta --até a salvação eterna pelo arrependimento na hora da morte. A possibilidade de os criminosos (ainda mais jovens) se redimirem confirma nossa crença querida.

 Terceiro, acreditamos também na fábula da reciprocidade amorosa: quem ama será amado. Se forem bem tratados e se sentirem amados e respeitados, os jovens se emendarão. É só confiar neles, deixá-los impunes e lhes oferecer castiçais de prata, como o padre que presenteia Jean Valjean. Meus amigos, "Les Misérables" é lindo e comovedor, mas é um romance, ok? Na outra noite, no bairro do Belém, teria sido melhor que aparecesse Javert.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Mulheres infelizes

François Mauriac publicou "Thérèse Desqueyroux" (Cosac Naify) em 1927; o romance foi um sucesso e, provavelmente, valeu ao seu autor o prêmio Nobel.

 A história é levada para o cinema (pela segunda vez) por Claude Miller, com o título, no Brasil, de "Therese D." (para que ninguém se atrapalhe com a pronúncia). Tolstói publicou "Anna Karenina" (Itatiaia) entre 1873 e 77. O romance é levado para o cinema (pela sexta vez) por Joe Wright, com o título original.

Gustave Flaubert publicou "Madame Bovary" (Penguin Companhia e outras editoras) em 1857. O romance foi levado oito vezes para o cinema.
No Rio e em São Paulo, ainda é possível assistir a "Anna Karenina", de Joe Wright, e a "Therese D.", de Claude Miller, no mesmo cinema.

Depois disso, recomendo se enfiar na cama com uma cópia de "Madame Bovary" e ler até o amanhecer. Ou, então, na mesma cama, assistir a um DVD de "Madame Bovary" na versão de Vincente Minnelli (1949 --inesquecível Jennifer Jones perdida em devaneios) ou na de Claude Chabrol (1991).

Receio que a versão de Jean Renoir, de 1933, tenha envelhecido, mas que cada um escolha.
É sábio juntar as três histórias? Em termos; se você for um homem casado, prudência: afinal, trata-se de três mulheres infelizes com o marido, que é provedor, fiel, gentil e insosso.

Para mim, a modernidade poderia (ou deveria) começar, exemplarmente, com essas três histórias de insatisfação feminina, ou seja, com a descoberta de que as mulheres têm sonhos e devaneios que vão além de um marido devoto, de uma família e de uma vida ao abrigo da necessidade --em outras palavras, com a descoberta de que existe um desejo feminino.

Claro, talvez alguns homens prefiram pensar que o desejo feminino seja apenas uma necessidade do capitalismo moderno. As mulheres insatisfeitas seriam as consumidoras deslumbradas, perdidas pelos grandes magazines, das quais a sociedade de consumo precisa. É o que deixa esperar "O Paraíso das Damas", de Emile Zola, de 1882-83, (Estação Liberdade).

Mas o desejo feminino é mais do que isso, e sua aparição implica uma séria crise masculina. No fundo, trata-se de uma descoberta só: as mulheres têm desejos, e os homens não fazem suas companheiras tão felizes quanto eles imaginam ter feito a felicidade de suas mães (repito: IMAGINAM).

Não é por acaso, aliás, que, nos três romances, a maternidade não faz a felicidade das mães. A descoberta do desejo feminino acompanha a descoberta da inadequação e da insuficiência dos homens, como maridos e também como filhos.

Para Anna Karenina e para Emma Bovary, outros homens do que seus maridos se tornam desejáveis. Mas são todos medíocres (Vronsky como Rodolphe, como Léon).
Tanto Anna quanto Emma são julgadas por seus narradores. As duas acabam mal, e talvez essa punição final de mulheres e mães "indignas" tornasse os romances aceitáveis (embora os dois tenham escandalizado seus contemporâneos).

Thérèse é mais moderna. À diferença de Emma, ela é uma verdadeira leitora, não uma vítima de romances melados; por isso mesmo, ela não conhece a raiz de sua insatisfação com a vida que lhe cabe.

Como a gente, Thérèse não sabe o que quer. E ela não sonha propriamente com outro homem: ela é mais profundamente infiel e traidora do marido, pois ela sonha com algo maior do que um amante, ela quer algo que ela não saberia dizer sem citar "Os Frutos da Terra", de Gide, ela quer uma outra intensidade da vida.
SPOILER: pule este breve parágrafo se você não conhece a história. No fim do romance (e do filme), Thérèse não será punida pela infidelidade de seu desejo, ao contrário, ela parece se transformar na nova mulher do século 20, livre e urbana.

Mauriac era cristão e tradicionalista. Em 1935, ele não se aguentou e escreveu a continuação de "Thérèse Desqueyroux", "La Fin de la Nuit" (o fim da noite), em que Thérèse acaba pior do que suas antecessoras, Emma e Anna.

O jovem Sartre defendeu Thérèse, acusando Mauriac de julgar, perseguir e condenar a própria personagem que ele tinha criado, ou seja, de não respeitar a liberdade de Thérèse Desqueyroux, sua adorável criatura. Concordo com Sartre.

Fato curioso, tanto "Anna Karenina" quanto "Therese D." foram maltratados por críticos que respeito. Os dois filmes têm méritos diferentes ("Anna Karenina", em particular, é genial no conceito e na arte), mas talvez eles tenham mesmo um "defeito" comum: contam histórias que não acalentam os ouvidos masculinos.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

As vidas que deixamos de viver


As crianças nunca são medíocres ou preguiçosas, elas só estão desperdiçando seu "incrível potencial"

Quase sempre, quando encontramos alguém que nos encanta, começamos por lhe contar nossa vida e expor nossos projetos -pois é possível que, para um casal, compartilhar planos seja mais importante do que cada um conhecer e entender o passado do outro.

Em suma, a gente se apresenta ao outro como numa entrevista de emprego, dizendo o que fizemos e o que esperamos. Afinal, somos uma mistura da vida vivida com o futuro sonhado, não é?

Acabo de ler o último livro de Adam Phillips, psicanalista inglês que é um dos autores que mais me estimulam a pensar: "Missing out: In Praise of the Unlived Life", (Farrar, Straus and Giroux) (perder: elogio da vida não vivida -"missing out" é perder no sentido em que você chega atrasado na festa e pergunta: perdi alguma coisa?).

Justamente, à história passada e aos sonhos Phillips acrescenta mais um ingrediente que nos define: o conjunto das vidas que deixamos de viver -porque não foi possível, porque alguém nos impediu, porque ficamos com medo, porque escolhemos outro caminho, porque a sorte não quis.

Algumas vidas não vividas são alternativas descartadas pela inércia da nossa história ou porque o desejo da gente é dividido, e escolher implica perder o que não escolhemos.

Outras são acasos que não aconteceram (é possível passar pela vida sem encontrar ninguém ou encontrando muitos, mas todos na hora errada).

Também, mais dolorosamente, as vidas não vividas são caminhos pelos quais não ousamos nos enveredar (na inscrição para o vestibular, na decisão de voltar de um lugar onde teríamos começado outra vida, nos conformismos de cada dia).

Essas vidas não vividas podem nos enriquecer ou nos empobrecer. Elas nos enriquecem quando integram nossa história como tramas alternativas de um romance, incluídas no rodapé da edição crítica.

Melhor ainda, como tramas alternativas às quais o autor renunciou, mas que ele se esqueceu de apagar inteiramente: o herói não vai mais para África no capítulo dois, mas eis que, no capítulo sete, aparece um africano que ele conheceu antes, mas que não se entende de onde vem, a não ser que a gente leia aquela parte do dois que foi abandonada.

Aqui, um conselho: é útil frequentar as vidas não vividas de nossos parceiros (para evitar surpresas desnecessárias, como a chegada de personagens que não fazem parte nem do passado nem dos sonhos do outro, mas das vidas às quais ele achava ter renunciado).

Agora, as vidas não vividas podem sobretudo nos empobrecer, levando-nos a viver num eterno lamento por algo que não nos foi dado, que perdemos ou do qual desistimos. Esse, aliás, é o futuro que estamos preparando para nossas crianças.

Uma das razões pelas quais as vidas não vividas condenarão as crianças de hoje à sensação de desperdício é a popularidade do mito do potencial. Alguém não está se tornando tudo o que esperávamos? Que pena, com o potencial que ele tinha...

De onde vem a ideia de que nossas crianças seriam dotadas de disposições milagrosas e que o maior risco seria o de elas desperdiçarem o que já é seu patrimônio?

O potencial das crianças modernas tem duas propriedades: ele é genérico (ou seja, não é fundado em nenhuma observação específica, é uma espécie de a priori: criança tem grande potencial, em tudo) e ele deve dar seus frutos espontaneamente, sem esforço algum da parte da criança.

Nossos rebentos são dotadíssimos para esporte, desenho, criação, música, ciência, estudo, línguas estrangeiras etc. E, se os resultados escolares forem péssimos, as crianças nunca são preguiçosas, elas só estão desperdiçando seu "incrível potencial". Há uma cumplicidade de todos ao redor dessa ideia.

Os pais querem que as crianças sejam tudo o que eles não conseguiram ser na vida. Pior, eles querem que as crianças cumpram essa missão sem esforços, por milagre (o milagre do "potencial").

 Os professores acham no potencial uma maneira maravilhosa de assinalar que fulano é medíocre sem atrapalhar o sonho dos pais da criança, os quais podem seguir pensando que seu filho leva notas infernais, mas vale a pena insistir (e pagar a escola mais cara) porque ele tem um potencial extraordinário.

Quanto aos filhos, acreditar em seu próprio "potencial" é uma maneira barata para se sentir especial, apesar de resultados pífios. Problema: na hora, inevitável, do fracasso, quem aposta no seu potencial conhece a sensação especialmente dolorosa de ter traído a si mesmo (ou seja, ao seu "potencial").

sexta-feira, 29 de março de 2013

Papa vai, papa vem

Não é muito importante que a igreja se modernize, pois seus fieis já estão se modernizando há tempo 

Quando eu era criança, meu pai deixava que minha avó cuidasse de minha formação religiosa. Ela comungava todos os domingos. Querendo seguir seu ritmo, eu me preparava confessando-me no sábado, no fim da tarde. Mas eis que, na noite de sábado para domingo, um pensamento ou um sonho vagamente impuros, uma irritação, um palavrão me convenciam: eu já tinha perdido a pureza garantida pela absolvição de poucas horas antes.

Conclusão: eu precisava de uma nova confissão antes da missa de domingo. Às vezes, não tinha mais como, e eu renunciava a comungar.

Enquanto isso, eu constatava que minha avó não se confessava nunca -e olhe que, naquela época, ninguém falava em "absolvição geral" ou em "confissão uns aos outros": a única confissão que valia era a pessoal, com um sacerdote.

Tudo bem, minha avó era (ou parecia) idosa e bem-comportada. Mas, mesmo assim, eu não entendia: para mim, sem confissão (recente e por um sacerdote) não havia como acreditar no perdão divino. Criei coragem e perguntei. Ela disse que pecava pouco e, de qualquer forma, tratava do assunto diretamente com Deus. Rezo para que esse deslize herético tenha sido tratado com indulgência quando ela se apresentou no céu.

Seja como for, foi graças a essa avó muito católica que descobri precocemente o charme e alcance profundo da Reforma protestante. Ou seja, apesar da reação do Concílio de Trento com seus decretos disciplinares, seu índice dos livros proibidos e sua reorganização da Inquisição (hoje Congregação para a

Doutrina da Fé, da qual, aliás, Bento 16 foi prefeito antes de ser papa), apesar de tudo isso, o espírito da Reforma protestante ganhou corações e mentes dos católicos -se não de todos, de muitos, a começar por minha avó.

Consequência: tornou-se cada vez mais possível e frequente que alguém se considere católico praticante e decida por si o que é pecado e o que não é, num diálogo privado com Deus, sem desprezar nem a igreja nem o papa, mas sem depender deles.

Conheço numerosos católicos devotos que se casaram, se divorciaram, casaram-se novamente (no civil), não confessam a sacerdote algum o "adultério" no qual eles vivem (segundo a igreja), não se arrependem e comungam, a cada missa, alegremente, considerando-se absolvidos diretamente por Deus.

Às vezes, um pároco conhecido lhes recusa a comunhão; pois bem, mudam de igreja ou, então, esperam para comungar quando viajam e encontram, no exterior ou num lugar remoto do país, uma igreja onde ninguém saiba de sua vida no "pecado".

É fácil encontrar católicos dando provas da mesma liberdade de pensamento em matéria de camisinha e de anticoncepcionais, de homossexualidade e mesmo de aborto.

Por causa desses "novos" católicos (nem tão novos assim, se minha avó estava entre eles), contemplo com um pouco de tédio as especulações mais ou menos esperançosas sobre o rumo que o novo papa imprimirá à igreja. Será que isso ou aquilo vai ser reconhecido ou permitido? E os padres, eles poderão se casar?

Como se já não houvesse padres que, em segredo (de polichinelo) e sem a autorização romana, casam e seguem administrando os sacramentos para sua comunidade, a qual os aceita, satisfeita.

Em suma, para uma parte dos católicos (que é difícil medir, mas que é, no mínimo, uma boa minoria), a pauta dos comentários destes dias é irrelevante. Para esses católicos (que, sem se dar conta, foram conquistados pela modernidade da Reforma), o diálogo íntimo e livre com Deus está acima da opinião do papa, do pároco e da Congregação para a Doutrina da Fé.

Alguns deles acabam se tornando anticlericais: acham que o que importa é a mensagem cristã e o resto (a igreja) não passa de folclore, pompa, glose e vida institucional. Outros continuam gostando do ritual e de "seus" padres, embora considerem que a igreja militante é uma assembleia, não uma falange a mando de seus oficiais.

Se esses católicos forem o futuro do catolicismo (um futuro que já começou), a igreja de amanhã será variada e plural. Haverá católicos condenando o aborto em qualquer situação e haverá outros admitindo o aborto nas situações em que lhes parece justificado aos olhos de Deus. E eles conviverão na mesma igreja.
Ou seja, não é muito importante que a Igreja Católica se modernize. Pois seus fieis já estão se modernizando há tempo, optando pela liberdade de sua consciência, sem deixarem de ser católicos.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Fugir de casa


Hoje, depois de 50 anos, vendo "A Busca", senti o que foi a dor de meus pais quando eu fugi de casa

ANTES DE mencionar "A Busca", de Luciano Moura, eu devo me declarar impedido: por razões anteriores e exteriores ao filme, serei parcial.

Primeiro. Tenho uma tremenda admiração pela roteirista do filme, Elena Soarez -ela criou, com Cao Hamburger, o seriado "Filhos do Carnaval" (HBO), que ainda me força a ficar acordado quando esbarro numa reprise noturna.

Segundo. Desde "Central do Brasil", de Walter Salles, sou especialmente sensível às corridas território brasileiro adentro, atrás de um pai de verdade (eventualmente, marceneiro).

Terceiro e mais importante. Como o jovem Pedro no filme de Moura e com a mesma idade dele, eu fugi de casa.

 Por que Pedro foge? Difícil dizer. Talvez seja por causa da recente separação dos pais. Talvez seja porque o pai (Wagner Moura) não enxerga mais o filho, que está crescendo e tem paixões próprias. Ou talvez seja porque fugir de casa, algum dia, é necessário para todos -e tanto faz que isso aconteça realmente ou de maneira figurada.

Por que eu fugi? Mesma perplexidade: uma namorada distante, a vontade de cruzar fronteiras por minha conta, a ambição de provar que podia sobreviver sem a ajuda de ninguém... As razões que eu enumeraria naquela época e que poderia enumerar hoje não me bastam. Quanto mais me esforço para encontrar uma resposta, menos entendo: eu gostava dos meus pais e do lar no qual crescia com eles.

Ou seja, Pedro não me explicou minha fuga. Em compensação, pela primeira vez depois de 50 anos, num cinema da Gávea, eu senti o que deve ter sido a dor de meus pais, quando eu sumi. No desespero do pai de Pedro correndo atrás do filho, Brasil afora, vi o drama do meu pai. A comoção foi um arrependimento? Não pelo que fiz e que faria de novo, mas, sim, pela dor que causei, embora talvez fosse inevitável.

Lembrei-me claramente de uma manhã muito cedo, em Londres, quando meu pai, cansado, bateu na porta do apartamento que eu dividia com um amigo e do qual ele tinha conseguido o endereço numa penosa investigação entre meus conhecidos, em Milão.

Não houve nenhum abraço especial. Ele pediu que eu voltasse, porque, disse, minha mãe não aguentava minha ausência e a falta de notícias. Ele nem mencionou seu próprio sofrimento. E não perguntou por que eu tinha fugido de casa.

Aceitei voltar para tranquilizar minha mãe. Mas prometi que eu fugiria de novo, assim que pudesse. E foi o que aconteceu: fui para casa e fugi de novo.

Muitos meses depois, quando voltei de vez, tampouco conseguimos falar das razões do que tinha acontecido -talvez porque, no fundo, não houvesse razões, além da banalidade do processo de crescer, de destacar-se dos pais, de encontrar uma voz própria, fora do coro.

Nesse processo, aliás, surgem motivações genéricas suficientemente poderosas para que mal seja necessário procurar "causas" na singularidade dos pais ou dos filhos. Dois exemplos.

1) Os pais nunca nos dão tudo (nem quando são loucos a ponto de querer nos fartar). Mesmo assim, durante um tempo absurdamente longo, o que temos e esperamos vem só deles. Na adolescência, começamos a desejar coisas que eles não conseguiriam nos dar nem se quisessem nos ver eternamente satisfeitos. No entanto, como eles sempre foram responsáveis por nossas satisfações, agora eles nos parecem ser responsáveis por nossas frustrações.

2) Stanley Cavell, um grande filósofo norte-americano, num ensaio de 1987, observou que todos nós sempre resistimos a deixar que os outros nos transformem, e isso acontece, ele propôs, porque temos uma memória viva (e talvez ressentida) de quanto fomos transformados por alguns outros no começo de nossa vida.

Essa intuição de Cavell pressupõe uma mágoa para com os pais pelo próprio peso que eles tiveram na nossa infância -uma mágoa fundamental, só por eles terem criado e moldado a gente.

Obviamente, essa mágoa, que animaria a rebeldia adolescente, é, de fato, mais uma marca dos pais. Pois mesmo os pais mais invasivos nunca deixam de sonhar com a autonomia dos filhos. Hostilizamos os pais e fugimos deles porque ELES mesmos querem nos ver livres e não gostam que se prolongue a influência que eles tiveram e têm sobre nós.

Ironia: quem deseja que fujamos de casa são nossos pais. E fugindo, realizamos um desejo deles.

Claro, o outro desejo deles seria que ficássemos em casa para sempre.

quarta-feira, 13 de março de 2013

O uso reto do corpo


E, para Feliciano, será que a boca foi feita para ser invadida pela língua do outro, no beijo?

Em tese, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) luta para que cada cidadão e cada grupo de cidadãos possam exercer plenamente sua diferença (claro, à condição de que essa diferença não atrapalhe a liberdade dos outros).

Parece lógico que a comissão seja presidida por um espírito libertário. Isso não exclui pastores, padres, imames e moralistas rigorosos, à condição de que, por cultura, experiência de vida e qualidades morais excepcionais, eles saibam colocar a liberdade dos outros antes de suas próprias convicções.

Esse não parece ser o caso do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), pastor evangélico, que acaba de ser eleito presidente da CDHM. Na notável série de suas declarações boçais citadas nestes dias, minhas preferidas são: 1) "Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato."; e 2) "O reto não foi feito para ser penetrado -não sou contra o homossexual, sou contra o ato homossexual."

1) No texto bíblico que eu li, Cam zombou do pai Noé, o qual condenou Cam e sua descendência à servidão. Mais tarde, os defensores da escravatura decidiram que Cam era o antepassado dos africanos e se serviram dessa história para justificar a posse e o comércio de escravos.

Terminar a evocação de um relato bíblico com um "isso é fato" já é ingênuo. Terminar da mesma forma a revisão do relato bíblico proposta pelos defensores da escravatura é para além de ridículo.

Feliciano, formado em teologia, talvez leia a Bíblia no grego da Septuaginta e no hebraico do texto massorético. Eu me viro em grego antigo, mas, por hábito, leio a Bíblia no latim de São Jerônimo ou no inglês do rei James. Será que ele tem acesso a fontes que eu ignoro?

2) Cada deputado recebe uma verba considerável para que possa opinar com conhecimento de causa. Mas Feliciano parece não saber que uma porcentagem substancial de homossexuais não gosta de sexo anal, enquanto, inversamente, o sexo anal faz parte das fantasias e das práticas sexuais de muitos homens e mulheres heterossexuais. Isso, sem entrar no vasto capítulo das penetrações (fantasiadas ou reais, solitárias ou não) com objetos inanimados ou outras partes do corpo.
O deputado Feliciano poderia se corrigir, generalizando: "hétero ou homo, tanto faz: o reto não foi feito para ser penetrado". Eu entenderia melhor.

Mesmo assim, fico curioso. Será que, para o deputado Feliciano, as mãos foram feitas para carícias, solitárias ou não, recíprocas ou não? E como fica a boca? Sem pensar muito longe, será que ela foi feita para ser invadida pela língua do parceiro ou da parceira?

O deputado Feliciano poderia se entrincheirar atrás da ideia de que tudo o que não serve para a reprodução deveria ser banido do sexo. É uma opinião difícil de ser sustentada, pois, justamente, somos os únicos mamíferos cujo desejo sexual não depende nem um pouco da fertilidade da fêmea e, portanto, da reprodução. Mas é uma opinião respeitável e não incompatível com a presidência da CDHM, à condição de ser, para o próprio Feliciano, apenas uma opinião.

Em outras palavras, o deputado Feliciano tem o direito de ser impenetrável, para maior glória divina. Que diga, então, que SEU reto não foi feito para ser penetrado, e ninguém protestará.

Imaginemos que eu faça parte de um culto satânico que só permite atos sexuais que desprezem a finalidade reprodutiva, e isso justamente para contrariar um eventual plano divino. Ou imaginemos que eu pense, simplesmente, que o melhor uso do meu corpo é o prazer e o gozo.

Será que Marco Feliciano, presidente da CDHM, vai defender meus direitos? Se a resposta não for um sim retumbante, a CDHM deve trocar de presidente.

Agora, quem colocou o deputado Feliciano na presidência da CDHM? Seis deputados se retiraram assim que Feliciano foi eleito; entre eles, Domingos Dutra (PT), Luiza Erundina (PSB) e Jean Wyllys (PSOL). Mas, apesar do gesto dos seis, quem entregou a comissão ao PSC e a Feliciano foi a base aliada do governo.

A presidente Dilma disse que, nas eleições, "a gente faz o diabo" -ou seja, qualquer aliança vale para ganhar. De fato, nas eleições, a maioria de nossos políticos supostamente laicos e progressistas não fazem o diabo, fazem o santinho. Para conquistar votos fundamentalistas, beijam anéis e frequentam cultos; no fim, eles recompensam, de alguma forma. Por exemplo, com comissões.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Dilemas e cartilhas


Nada mais pueril do que a certeza moral. A maturidade deveria ser o tempo da incerteza

Na coluna da semana retrasada, "Para que serve a tortura?" (www.migre.me/dwB4Y), propus um dilema moral. Uma criança sequestrada está num lugar onde ela tem ar para pouco tempo. O sequestrador não diz onde está a criança. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?

Entre os muitos leitores que me escreveram, menos de 10% entenderam que eu estaria promovendo o uso da tortura; mesmo esses, em sua maioria, usaram o dilema para pensar (com seus botões) no que eles fariam.

Na semana passada, na Folha, Vladimir Safatle e Marcelo Coelho entenderam que meu dilema favorecia a tortura. No domingo, Hélio Schwartsman tentou colocar alguma ordem nessa cacofonia.

Pena que nem Safatle nem Coelho fizeram o único exercício que um dilema moral pede: o de pensar nos termos que ele propõe. Muito pior: ambos declararam que não gostam de dilemas. Caramba!
Tentando não ser chato para quem não seguiu a controvérsia, aqui vai:

1) Dizer que você é contra a tortura porque ela não funciona é como dizer que a gente não deve assaltar o vizinho porque ele não tem dinheiro no bolso.

2) Duvidar que a tortura funcione é um pouco covarde para com os milhares de sujeitos, mundo afora, que foram forçados a entregar um nome ou a assinar uma confissão e carregam, por isso, cicatrizes mais profundas das que ficaram em seu corpo -sobre isso, leia-se "Exílio e Tortura", de Marcelo e Maren Viñar (ed. Escuta).

3) Para nos induzir a pensar, um dilema moral deve nos empurrar para uma posição diferente da de nossos princípios. Exemplo: o primeiro dilema de Kohlberg é sobre alguém que precisa de remédios para o filho e só pode consegui-los assaltando a farmácia. Esse dilema vale apenas para quem considere que assaltar é errado.

4) Nota: Lawrence Kohlberg é o piagetiano que pesquisou a formação e as estruturas do pensamento moral. Ele inventou e experimentou uma educação moral pela prática dos dilemas (que eu saiba, é o único projeto de educação moral que não se pareça com uma doutrinação). Sugestão: antes de falar de dilemas, ler as obras principais de Lawrence Kohlberg -no mínimo, os "Essays on Moral Development".

5) Um dilema nunca é um modelo para situações parecidas, pois a vida real é sempre mais complexa. Mas o dilema é o formato padrão da experiência moral moderna, na qual o que é justo é decidido não por conformidade a uma regra, mas por nós, incertamente.

6) A infância é a idade tentada pelas cartilhas e pelos catequismos, até porque é a época em que os representantes das certezas mais tentam arregimentar as crianças -nos Balilla, na Hitler-Jugend, na Unión de Jóvenes Comunistas etc. Não tem nada mais pueril do que uma certeza moral. A maturidade é (ou deveria ser) a época da incerteza e dos dilemas.

7) O dilema estimula a moralidade porque nos encoraja a não escolher por respeito a supostos princípios ou por medo de uma punição. Para Kohlberg (e para mim), seja qual for a escolha, escolher pelo foro íntimo é sempre mais moral do que escolher por obediência a uma cartilha.

8) A modernidade se pergunta quem é o homúnculo que pilota nosso foro íntimo. Alguns, de Kant a John Rawls, apostam num homúnculo formal, parecido em todos nós, de maneira que seja garantida a existência de uma cartilha moral universal.

Outros (com os quais me dou melhor) acham que quem escolhe são os indivíduos concretos, em toda sua miséria. Há, aliás, uma certa grandeza humana na desproporção entre o caráter "indigno" do que nos motiva e o caráter eventualmente grandioso e generoso de nossos atos.

Explico: um sujeito concreto não tem os direitos humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso, porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi torturado pelos pais. Etc. Etc.

10) Safatle chamou sua coluna "Questão de Método". Li "Questões de Método", de Sartre, 47 anos atrás. E ainda me lembro da lição: o recurso aos princípios esconde as particularidades concretas.

11) Em qualquer momento histórico, entre os homens de bem, que resistem ao totalitarismo do momento, pode haver homens atormentados por dilemas e também portadores de cartilhas opostas às dos opressores.
Mas, em qualquer momento histórico, entre os opressores e os torturadores, só há portadores de cartilhas.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Yoani e as falsas alternativas


Para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos

Deveríamos recusar todas as alternativas -sempre, por princípio. Imagine que alguém diga "Se você pega o preto, perde o branco, e, se você pega o branco, perde o preto" e insista: "Então, qual será? Preto ou branco?". Quase sempre, eu responderia que existem, no mínimo, 50 tons de cinza e imediatamente devolveria a pergunta: "Por que razão escusa você tenta me acuar a escolher entre preto e branco?".

Somos crédulos, queremos acreditar que, a cada encruzilhada, exista sempre uma saída mais malandra, pela qual nos daremos bem. Em sua maioria, as alternativas nos seduzem e funcionam, justamente, quando elas exaltam nossa falsa fé em soluções que não sejam totalmente perdedoras.

Jacques Lacan, o grande psicanalista francês, para ilustrar nossa "alienação" diante das "escolhas forçadas" (palavras dele), recorria ao exemplo do assaltante que nos mandaria decidir: "A bolsa ou a vida!".

Basta pensar um instante para constatar que a alternativa é furada, visto que, se eu decidir ficar com a bolsa, não vou perder só a vida -vou perder também a bolsa, pois o assaltante não vai deixá-la com meu cadáver.

De maneira tristemente engraçada, a outra possibilidade é igualmente furada no Brasil. Aqui, se escolhermos ficar com a vida e entregarmos a bolsa com docilidade, há uma boa chance que mesmo assim o assaltante nos mate, pegando, com a bolsa, nossa vida também.

Em suma: escolha zero. No exterior, "A bolsa ou a vida!" significa "Passa a bolsa, e ponto". E, no Brasil, considere-se sortudo que não signifique "Passe a bolsa E a vida, E ponto" -como dizem os bandidos, "Você perdeu geral".

O exemplo de "A bolsa ou a vida" sugere (com pertinência) que qualquer um que tente nos impor uma escolha forçada seja provavelmente um bandido, interessado sobretudo em afirmar e consolidar seu poder sobre nós.

A política, na segunda metade do século passado, alimentou-se de uma alternativa desse tipo, uma alternativa bandida e falsa, segundo a qual deveríamos escolher entre, de um lado, as ditas liberdades burguesas (liberdade de opinião, de culto, de ir e vir pelo mundo, de ter nossa privacidade respeitada etc.) e, do outro lado, uma nova justiça social, que acabasse com miséria e fome.

Eu mesmo já pertenci a essa bandidagem. Quando me mostravam que os países ditos socialistas esmagavam as liberdades básicas, eu respondia "E a liberdade de não morrer de fome, hein?". Como se, para se livrar da fome, renunciar às liberdades burguesas fosse o preço necessário e, portanto, aceitável, se não módico.

Isso aconteceu, entre outras coisas, porque não escutei direito ao meu pai. Giustizia e Libertá (justiça e liberdade) era o nome do movimento no qual ele se reconhecia, nos anos 1930. Era um movimento socialista, antifascista e anticomunista, para o qual justiça e liberdade não podiam constituir uma alternativa.

Em geral, quem nos diz que só teremos liberdade sem justiça é um aproveitador econômico e social (quer ser livre de perseguir seus interesses sem ter que se preocupar com os outros). E quem nos diz que só teremos justiça sem liberdade é um aproveitador político (quer que abandonemos nossas liberdades de modo que ele possa se eternizar no poder sem oposição). Essas duas espécies de aproveitadores se valem.

A alternativa "liberdade ou justiça" é tão falsa quanto "a bolsa ou a vida". Em particular, a troca da liberdade pela justiça produziu mundos sem liberdade (isso era previsto) e (isso não era) totalmente injustos, corrompidos por burocracias apenas interessadas em se manter no poder.

Ora, na ocasião da chegada ao Brasil da blogueira cubana Yoani Sánchez, houve pessoas para ressuscitar essa falsa alternativa: como pode ela criticar a falta de liberdade em Cuba, quando o regime acabou com a fome na ilha?

O fato é que, para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos.
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Nota. Muitos leitores debateram comigo por e-mail a coluna da semana passada, "Para que serve a tortura?". Ontem, Marcelo Coelho, em sua coluna nesta página, comentou meu texto e o tema. Anteontem, Vladimir Safatle, na página 2 da Folha, fez a mesma coisa sem citar minha coluna (sei lá por quê). Seja como for, contribuirei ao debate na próxima quinta.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Para que serve a tortura?

A tortura tem, no mínimo, três fins não excludentes: 1) tortura-se pelo prazer enjoativo de quem tortura ou de quem assiste à tortura; 2) tortura-se para que um acusado confesse seu crime; 3) tortura-se para que um acusado revele a existência de um complô, os nomes de seus cúmplices etc.

Será que a tortura consegue tudo isso? 1) Para satisfazer o desejo doentio do torturador, a tortura funciona, sempre. 2) A Igreja Católica, por séculos, torturou pecadores para que admitissem seus pecados e, sobretudo, torturou heréticos para que confessassem suas teologias desviantes.

 Essa tortura era tão violenta quanto a que fora praticada contra cristãos na época das perseguições, mas o desfecho era diferente. Os mártires cristãos eram torturados para eles renunciarem à religião, e, às vezes, se abjurassem, o suplício era suspenso. Os heréticos eram torturados pela Inquisição para confessarem sua heresia, mas, em geral, a "confissão" não evitava uma morte excruciante.

 Será, então, que a tortura funciona para arrancar confissões? Se você for pai, faça a experiência. Seu filho (ou filha) fez uma besteira comprovada, sem sombra de dúvida, mas você não se contenta em aplicar uma punição e quer que a criança confesse. Se ela reconhecer sua culpa, aliás, a confissão valerá como uma atenuante, enquanto que, se ela insistir em negar o que fez, a mentira será infinitamente mais repreensível do que a besteira inicial.

 Sugestão diferente: se você soube que seu filho ou sua filha fez algo que não devia, diga no que foi que errou, deixe pouco espaço de discussão e dê a punição adequada. Depois disso, amigos como antes. Quase sempre, quando uma confissão é exigida, as crianças mentem com obstinação diretamente proporcional à de seu acusador.

Elas fogem assim de uma humilhação radical, em que renunciariam à sua própria subjetividade: desistiriam de ter segredos e aceitariam que a versão do acusador substituísse a versão que elas gostariam de contar como sendo a história delas. Claro, se você insistir, ameaçando a criança com punições cada vez mais requintadas, a criança talvez "confesse", mas a confissão será apenas um ato de desistência, em que mesmo o inocente se dirá culpado do jeito que o acusador pede.

Em suma, a tortura para obter confissões é um desastre. Há uma certa beleza moral nesse fracasso: a tortura seria inútil, não ajudaria a chegar à verdade. Ou seja, existe um justificativa prática, "racional", para aboli-la, além do horror que ela inspira em qualquer um (salvo, obviamente, em torturadores, inquisidores ou deuses vingativos). 3) Infelizmente, esse argumento "racional" só se aplica à tortura que tenta extirpar a confissão do acusado.

Quanto ao uso da tortura para obter informações sobre cúmplices, paradeiros escondidos, complôs etc., vamos ter que encontrar razões puramente morais para bani-la, pois, constatação desagradável, ela funciona. O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os "interrogatórios" brutais do agente Jack Bauer, na série "24 Horas", funcionam.

E, de fato, como lembra "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.

 Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa --se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade.

 Para se declarar contra o uso da tortura no caso deste filme, alguém talvez invoque a moral kantiana e o dever de tratar os homens como fins e não como meios. A esse alguém, proponho um exemplo politicamente mais neutro, parecido com aqueles dilemas morais cuja prática (como descobriu um grande psicólogo, Lawrence Kohlberg) talvez seja a melhor forma de educação moral.

 Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o que?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Saudade de ideias perigosas

 No meio do Carnaval, para decidir meu voto (por correspondência) nas eleições políticas italianas, conversei por telefone com meu irmão, que vive em Milão.

A meu ver, em qualquer ocasião, deveria votar só quem vive na sociedade que será modificada pelo resultado da eleição. Como italiano vivendo no Brasil, eu deveria votar no Brasil, e não na Itália. Seja como for, meu irmão e eu concordamos.

Votaríamos para obter resultados parecidos: 1) resistir ao populismo regionalista da "Lega Nord" (que tem um discurso do tipo: mandemos embora os estrangeiros e voltemos a falar dialeto, tudo dará certo se ficarmos entre nós); 2) resistir ao populismo do Movimento Cinque Stelle, cinco estrelas (seu animador, Beppe Grillo, nos faz pensar na Itália das comédias de Lina Wertmüller --o país do qual fugi); 3) apoiar a centro-esquerda (sem nem pensar que o Partito Democratico seja herdeiro do antigo partido comunista, no qual militei --essa lembrança teria semeado a discórdia entre nós); 4) não reprovar o trabalho de saneamento básico feito pelo primeiro ministro Monti; 5) impedir a volta de Berlusconi. Fato notável, desde os anos 1990, meu irmão e eu conseguimos conversar de política.

A razão é simples: nem eu nem ele defendemos mais grandes ideias. Acabou a época de Marx contra Adam Smith, Gramsci contra Luigi Einaudi etc. Estamos prontos para uma democracia em que não se enfrentam projetos de sociedade, só questões concretas, em referendo: você é a favor ou contra o casamento gay? A eutanásia? A pesquisa com células-tronco? Também nestes dias recebi o e-mail pelo qual Marina Silva convida para um encontro, em Brasília, do qual deve sair um novo "instrumento político" (ninguém quer mais falar em partido, é compreensível).

 As palavras finais do convite vão na direção da política concreta que me permite conversar com meu irmão: "Podemos contribuir para recuperar o espaço da política para a prática do bem comum, do serviço, da afirmação dos direitos e deveres da cidadania. Podemos contribuir para democratizar a democracia". É uma esperança e tanto. E aprovo que a política seja uma arte de pensar o concreto, e não um debate ou conflito de ideias e ideais. Mas não deixo de sentir saudade. Dei-me conta disso ao assistir ao extraordinário "O Amante da Rainha", de Nikolaj Arcel.

Contrariamente a Luiz Felipe Pondé, em sua última coluna, o que me tocou não foi a história de amor, mas a lembrança de uma época em que havia livros proibidos, porque sua leitura ameaçava transformar o mundo. Rousseau não é meu iluminista preferido, mas, para o bem ou o mal, é um dos pilares do pensamento moderno. Em 2009, um bonito exemplar da primeira edição do "Contrat Social" (Amsterdam, 1762) custou quase US$ 50 mil (R$ 100 mil). Logo após sua publicação, em vários lugares da Europa, o mesmo exemplar custava infinitamente menos, mas saía mais caro: guardar o livro na estante de casa podia valer uma estadia na prisão, ou coisa pior. 

Nas partes do mundo que me são familiares (a Europa e as Américas -sobretudo a do Norte), faz apenas algumas décadas (não mais do que isso) que não há livros cuja posse seja comprometedora --algumas décadas que os governos deixaram de se preocupar com a difusão de opiniões "subversivas". Nasci na Europa depois do fim do fascismo e do nazismo. Não vivi na América do Sul durante as ditaduras militares. Por sorte, fui só turista na Espanha franquista e no Portugal salazarista --nunca tive que viver lá. Sorte maior ainda, nunca tive que passar mais de duas ou três semanas do outro lado da Cortina de Ferro ou em países comunistas da Ásia ou da América Central. O mesmo vale para Estados confessionais.

Em conclusão, nunca vivi debaixo de governos que temessem a difusão de ideias a ponto de tentar impedi-la à força. Mesmo assim, desde o começo da modernidade até poucas décadas atrás (até a queda do Muro de Berlim?), os livros eram tratados como armas potencialmente perigosas. Enquanto hoje, no fundo, eles e suas ideias parecem, antes de mais nada, indiferentes.

O que aconteceu? Foucault responderia, provavelmente, que a grande estratégia do poder contemporâneo é a permissividade: se é permitido dizer tudo e qualquer coisa, por que discutir, por que lutar por qualquer ideia? Fale e deixe falar. Não é?