quinta-feira, 20 de fevereiro de 2003

Pacifistas e guerreadores

Segunda -feira dia 17, em Nova York, neva sem parar: a cidade está quase deserta. Nas avenidas, circula, de vez em quando, um esquiador.

Os nova-iorquinos, na semana passada, fizeram estoque de água, de enlatados e de fitas adesivas para fechar hermeticamente portas e janelas. Preparavam-se para ataques químicos e biológicos. Hoje, há uma sensação de trégua, como se fôssemos protegidos e isolados, cada um em sua casa, por uma embalagem de algodão.

Melhor assim, pois, nos bares e ao redor das mesas, não é fácil encontrar alguém com quem conversar sobre a complexidade do momento. Os interlocutores deslizam no pacifismo radical ou na belicosidade entusiasta. E eu não me identifico com nenhuma das duas posições. Aliás, suspeito que elas tenham algo em comum.

À vista das faixas e dos cartazes, os 250 mil manifestantes que, no sábado passado, encheram as ruas da cidade eram, em sua maioria, pacifistas radicais: opostos não só a esta guerra agora mas a qualquer guerra. Invocavam um argumento moral que parece decisivo: a vida é o valor supremo, não arriscaremos nem ameaçaremos vidas por conflito nenhum. É simpático. Certo, leva a algumas contradições insolúveis. Então não era para intervir em Kosovo? E tivemos razão ao não levantar um dedo em Ruanda? Mas isso é o de menos.

Um problema maior é que o pacifismo radical talvez seja um apêndice da ética narcisista das últimas décadas, segundo a qual é moral o que contribui ao bem-estar. Assim como a vida certa é a saudável, as escolhas políticas justas devem ser as que preservam a vida, a começar pela nossa.
Tradicionalmente, os valores morais se situam acima de nosso interesse e de nossa vontade de sobreviver. Claro, ninguém é de ferro: na Roma antiga, diante dos leões do Coliseu, provavelmente eu renegaria Deus e veneraria o imperador. Mas admitiria que não agi de maneira exemplar. Não tentaria me justificar afirmando que preservar a vida é moralmente mais importante do que professar minha fé.

No começo dos anos 80, a União Soviética parecia ameaçar uma espécie de coice do cavalo moribundo. Os EUA decidiram instalar baterias de mísseis de médio alcance na Europa. Os governos locais deixaram que os americanos pagassem essa última prestação da Guerra Fria. Houve manifestações pacifistas na Europa inteira. O slogan era: "Melhor vermelho do que morto". Leia-se: a vida é mais importante que as "baboseiras" políticas.

Alguns amigos tchecoslovacos, exilados em Paris, contemplavam as passeatas estupefatos. Teriam preferido que os manifestantes gritassem: "Queremos ser vermelhos, que a URSS nos invada". Contra isso eles saberiam lutar; afinal, já tinham lutado contra os tanques soviéticos no fim da Primavera de Praga. Mas eles não conseguiam entender estes filhos do privilégio (democrático e econômico) que, simplesmente, decretavam que não colocariam suas vidas em perigo por nenhuma causa.

Ironicamente, os pacifistas, que gostariam de mitigar as inimizades, são o protótipo do que os terroristas desprezam em nossa cultura. Os homens-bomba sentem-se seguros de encarnar uma moral antiocidental e anti-capitalista justamente porque não são guiados pela moral do bem-estar e da preservação da vida. Para eles, o suicídio confirma a moralidade de sua causa: sou moral porque me sacrifico (inversamente, quem não quer se sacrificar é exemplo de imoralidade).

Opostos aos pacifistas radicais, há os guerreadores, convencidos de que a intervenção no Iraque levará as luzes ao mundo muçulmano. Uma vez suprimido o tirano Saddam Hussein, os outros cairão por contaminação, as maternidades produzirão Montesquieus e Jeffersons em série, e logo surgirão parlamentos e partidos políticos laicos. Essa mesma visão animava os europeus na hora de deixar suas colônias. Receavam que as novas elites fossem progressistas demais. Ninguém previa que os povos "liberados" fossem escolher o fundamentalismo.

Pacifistas e guerreadores são filhos de um mesmo sonho desvairado da razão ocidental. Para os guerreadores, não há diferenças culturais que possam resistir ao poder e à sedução das luzes, as quais, mesmo impostas com as armas, conquistarão os espíritos pelo mundo afora. E os pacifistas acreditam que encontraram um valor racionalmente universal por ser biológico: a vida. Ao redor disso, imaginam que produzirão a unidade de todos. Para ambos, em suma, a pretensa universalidade da razão deve garantir a paz futura entre os homens.

Os dois grupos alegam em seu favor uma faculdade subjetiva: a razão. Não estranha, portanto, que cada grupo entenda a posição do outro como um desatino subjetivo. Para os guerreadores, os pacifistas são apenas covardes. Para os pacifistas, os guerreadores são apenas cobiçosos. Ou seja, ninguém pode querer guerra para promover um sistema de governo: é apetite de lucro disfarçado. Reciprocamente, ninguém pode querer paz a não ser para proteger seu conforto e sua pele.

Resultado: nenhum diálogo, apenas o clamor dos gritos, hoje abrandado pela neve.

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