quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Silêncio e barulho das emoções


 Qual é o transtorno? A falta de emoções dos filhos? Ou o excesso das emoções dos pais "baby boomers"? 

 AS ELEIÇÕES esquentam os ânimos. As promessas duvidosas de tal ou tal outro candidato me irritam, assim como as propostas que são perigosas para minha liberdade ou repugnantes para meu sentimento de justiça. 

 Mas o que me indigna mais é a paixão partidária em si, seja qual for seu conteúdo -mesmo quando ela promove ideias com as quais concordo. Tanto faz que eu prefira melhorar o transporte em São Paulo ampliando o metrô ou a rede de ônibus, de qualquer forma, se alguém ficar na esquina pulando e gritando "Serra!" ou "Haddad!", aquilo vai me deixar perplexo (isso, a não ser que ele seja pago para mostrar seu entusiasmo -nesse caso, entendo, sem problema). 

 Na verdade, todas as emoções -da paixão partidária ao espírito torcedor, passando pelo amor, a saudade, o ciúme, o ódio etc.-, aos meus olhos, são quase sempre excessivas: transportes descontrolados ou atuações caricatas. Longe de serem reações adequadas a circunstâncias externas, elas me parecem ser teatralizadas (se não produzidas) por nós mesmos. Teatralizadas por quê? 

 Oscar Wilde disse um dia que as aquarelas de Turner inventaram o pôr do sol -pois, se não fosse pela pintura de Turner, nem pararíamos para contemplar as cores do crepúsculo. Algo análogo poderia valer para emoções e sentimentos. 

 Alguém ama do jeito sofrido do jovem Werther com Charlotte? Ou ele imita a paixão de Werther para convencer aos outros e a si mesmo de que ele ama? Alguém enlouquece de ciúme como Otelo ou ele imita a loucura de Otelo para convencer a si mesmo e aos outros de que ele está com ciúme? 

 Além disso, desde os anos 1960, assistimos a uma valorização das emoções, como se sua livre expressão fosse a marca da autenticidade. 

 Sem suspeitar que talvez estejamos expressando emoções muito além do que realmente sentimos, consideramos a ausência de emoções como um defeito, num arco que vai da frieza (considerada dissimuladora) até verdadeiros transtornos, como atimia (falta de emoções) ou alexitimia (incapacidade de expressar emoções). 

 Sem dúvida, há indivíduos que não sentem, não reconhecem nos outros e não expressam emoções. Eles não se confundem com os psicopatas, que precisam reconhecer perfeitamente as emoções dos outros, para manipulá-los. Quem são, então, os atímicos? 

 Estou assistindo a um extraordinário seriado sueco da BBC Four, "The Bridge" (http://www.bbc.co.uk/programmes/b01gxlxj). A policial da história é um exemplo perfeito de atimia e alexitimia. 

 Ela interroga por telefone um homem que está preso dentro de um carro-armadilha, que vai explodir em dois minutos. O homem, desesperado, não consegue pensar nem responder. Nossa policial não entende: qual é o problema? O fim do homem vai ser imediato, sua vida vai parar sem sofrimento. Para que o desespero? 

 Uma noite, a policial está a fim de sexo. Ela vai para uma boate e troca um olhar com um moço, o qual pergunta se ele pode oferecer um drinque. A policial responde "Não". O moço se afasta. A policial o segue e lhe pergunta por que ele foi embora. "Porque você disse não", responde o homem. E a policial explica que ela não queria um drinque, queria sexo. 

 A atimia (que estaria aumentando) é provavelmente uma falha de comunicação entre os hemisférios do cérebro. Alguns dizem que seria causada por pais frios e distantes, que desejam e encorajam muito a autonomia dos filhos. Subtexto: os pais que prezam os valores da modernidade estariam produzindo crianças alexitímicas. 

 Tendo a pensar o contrário. E constato que há adolescentes que fogem para a aparente "frieza" da alexitimia porque, de fato, eles não aguentam o excesso de emoções teatralizadas pelos pais. 

 Nesse caso, qual é o transtorno? A falta de emoções dos filhos? Ou o excesso das emoções dos pais "baby boomers"? 

 "Alexithymia" é uma música de Anberlin, um grupo de rock que aprecio. As letras dizem : "So very hard to breathe. My mask is growing heavy but I've forgotten who's beneath" (difícil respirar, minha máscara se tornou pesada, mas eu me esqueci de quem é que está debaixo dela). O título sugere que a letra é menos óbvia do que parece. 

 A máscara que pesa e nos sufoca talvez não seja (no estilo 1960) a cara impassível que esconderia nossas emoções reprimidas. As máscaras que pesam e nos sufocam talvez sejam as que vestimos para expressar e teatralizar emoções excessivas e obrigatórias, que todos esperam de nós.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Quanto vale uma virgem?

 Comprando uma hora com a virgem prostituta, alguns sonham juntar, por uma vez, amor e desejo 


 Uma catarinense de 20 anos, Catarina Migliorini, está leiloando sua virgindade. Isso acontece no quadro de um programa da televisão australiana, "Virgins Wanted" (procuram-se virgens), "mezzo" documentário "mezzo" reality show (a Folha de 26 de setembro publicou o depoimento da moça, http://acervo.folha.com.br/fsp/2012/09/26/15). Os lances são dados pela internet; quem ganhar o leilão receberá seu lote durante uma hora, dentro de um avião que sobrevoará o Pacífico.

 O leilão devia terminar na segunda passada, mas foi prorrogado até 25 de outubro. Hoje, a virgindade de Catarina está valendo mais de R$ 500 mil. Concordo com Hélio Schwartsman (na Folha de domingo passado): a questão interessante, nessa história, não é a conduta da moça, mas a extraordinária valorização da virgindade.

 Schwartsman foi procurar respostas em Paul Bloom, um psicólogo evolucionista, que eu não levo muito a sério, mas que acho engraçado (o que já é um ponto a favor).

 Segundo Bloom (e outros evolucionistas, mas não todos -por sorte da disciplina), nossa maneira de pensar (no caso, nosso apreço pela virgindade) é um resto da maneira de pensar de nossos antepassados do Pleistoceno (que é quando o homem apareceu na Terra).

 Não sei como Bloom sabe das ações e dos pensamentos do homem pré-histórico, mas, segundo ele, o homem do Pleistoceno queria sobretudo propagar SEUS genes, não os dos outros; portanto, ele preferia mulheres virgens. Aviso prático ao leitor: cuidado, casar com virgem não garante que a dita virgem engravide só da gente -a vida é longa. Fora isso, o homem do Pleistoceno, segundo Bloom, se preocupava muito com a sobrevivência dele mesmo, de seu clã e de sua espécie. Ou seja, por determinação biológica, ele era parecidíssimo com um ocidental do século 19. Por que será?

 Enfim, meus informantes do Pleistoceno (diferentes dos de Bloom), além de não saberem o que é um gene, tampouco sabem que é transando que se engravida uma mulher. Os poucos com os quais conversei confessaram, aliás, que eles preferiam mulheres que não fossem virgens, pois, percebendo que corticoides e antibióticos levariam tempo para serem inventados, eles estavam com muito medo de esfolar seu membro.

 Bom, trégua de ficção científica e vamos para a experiência concreta.

 A virgindade feminina era um bem apetível no interior da Itália central, quando eu era criança, e o código de honra mandava pendurar na janela o lençol manchado de sangue depois da primeira noite de núpcias. Havia desonra na ideia de que a mulher, tendo amado outro homem, fosse a aliada de um grupo diferente do clã do marido e do dela (traição mais séria do que qualquer brincadeira carnal ou amorosa); e havia desonra na suposição de que o marido não tivesse sido capaz de deflorar sua esposa. O lençol resolvia a questão.

 O código de honra é aquela coisa pela qual é preciso estar disposto a morrer. Ele não é do Pleistoceno, mas é muito mais antigo do que o século 19, onde floresceu a ideia de que os indivíduos, os grupos e mesmo as espécies só querem evitar a extinção e onde parecem viver os homens do Pleistoceno de Paul Bloom.

 Código à parte, a virgem tem uma série de atrativos. 1) Para ela, por mais que sejamos medíocres, seremos inesquecíveis. 2) Diante dela, em tese, seremos sem rivais (doce ilusão e mais um conselho prático: em matéria de amor, melhor rivalizar com um outro real do que com a idealização de outros apenas sonhados). 3) A ignorância sexual da virgem alimenta a ilusão de que podemos lhe ensinar alguma coisa e que, portanto, sabemos algo sobre o sexo.

 Mas os atrativos da virgem empalidecem diante dos atrativos da virgem prostituta -requisitadíssima: há leilões de virgens prostitutas pelas zonas do Brasil inteiro. Por quê?

 Muitos homens vivem divididos entre dois tipos de mulher: a "puta", que eles desejam, mas que não conseguem amar, e a virgem, que eles amam perdidamente, mas que eles não conseguem desejar (ela é linda, pura e intocável, como a mãe).

 A figura da virgem prostituta carrega em si essa contradição: como virgem, ela é parecida com a mãe, intocável e apenas amável, mas, por ser prostituta, ela é desejável e acessível. Comprando uma hora com a virgem prostituta, alguns talvez sonhem juntar, por uma vez, amor e concupiscência; é uma fantasia poderosa: a de conseguir, enfim, reverenciar amorosamente um corpo ilibado, mas sem renunciar a sujá-lo com seu desejo. A esses alguns, boa sorte no leilão!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Eleições e debates


 Quem vota em alguém por um jingle? Pois é, numa campanha, os candidatos não passam de jingles 

 Na quarta da semana passada, assisti ao primeiro debate entre Barack Obama, presidente dos EUA, e Mitt Romney, o republicano que disputa com ele a Presidência.

 A atitude quase deprimida de Obama contrastava com a performance de Romney, que, inesperadamente (para quem o viu anteriormente), parecia confiante, bem-humorado e até capaz de compaixão.

 Não há quem discorde: Romney ganhou o debate. Mas cuidado: isso não significa que ele demonstrou a superioridade de suas propostas. Um debate eleitoral não compara as diferentes soluções aos problemas do país -até porque, nele, para uma maioria na qual me incluo, muito do que os candidatos dizem é imponderável.

 Obama e Romney travaram, no debate, uma guerra de argumentos e números impossíveis de serem verificados. Tanto faz, pois o que é esperado não é que o espectador adote um plano ou uma ideia, mas que ele escolha um candidato.

 Alguns acharam que o debate presidencial dos EUA, por mais chato que fosse, era muito "melhor" do que nossos debates políticos, supostamente dominados por argumentos genéricos e apenas "sedutores". Penso diferente: o debate presidencial dos EUA, por mais aparentemente racional que fosse, era um duelo de charmes e não de argumentos (ainda menos de números).

 O único componente mais ou menos racional da escolha vem da tradição política do eleitor (prefiro Obama porque sou democrata). Mas o que acontece na ausência dessas preferências políticas preestabelecidas? Pergunte aos marqueteiros, que, cá entre nós, não são misteriosos "persuasores ocultos" (como dizia o título de num livro clássico de Vance Packard), mas apenas conhecedores dos diferentes caminhos pelos quais um produto nos seduz.

 Tanto faz que seja o tom, o sorriso confiante, a familiaridade ou, às vezes, seu contrário, a distância: de qualquer forma, nossa preferência será o efeito de retóricas pela quais, em tese, devemos ser conquistados.

 Durante a campanha paulistana, por duas vezes, um caminhão com alto-falantes e bandeiras ao vento se instalou na av. 9 de julho, a duas quadras de meu escritório e, durante horas, não tive como escapar à idiotice de um jingle "O meu prefeito é Fulano...". Pensei: se estivesse nos EUA, poderia folhear um catálogo de rifles de longa distância. E depois, mais seriamente: mas por que fazem isso? Quem vota em alguém por um jingle?

 Pois é, esse segundo pensamento não percebe algo essencial: numa campanha, seja ela paulistana ou norte-americana, todos os candidatos não passam de jingles. Os argumentos numéricos e aparentemente racionais do debate presidencial dos EUA eram pretextos para trejeitos retóricos "à la Tiririca". Desses, se espera que eles nos conquistem -isso, sem nenhuma crítica ao deputado Tiririca, pois, ao contrário, o que estou afirmando é que, no fundo, todas as campanhas são equivalentes à que ele fez.

 Nesse contexto, alguns candidatos pedem que a coisa mude e todos discutam seriamente os problemas e as propostas. O que resulta disso é apenas mais um trejeito, que diz "Olhem para mim, sou sério, e é disso que vocês vão gostar".

 Enquanto essas divagações me distraiam do debate, pensei num título para um livro sobre Obama (copiado de Peter Handke, "O Medo do Goleiro na Hora do Pênalti"): a tristeza do candidato na hora de debate.

 Mais tarde, Obama disse ter sido desconcertado pelas mentiras de Romney (o qual, no debate, mais de uma vez, disse o contrário do que ele e seu partido tinham proposto até então, durante a campanha).

 Imagino que essas mentiras tenham desvendado, aos olhos de Obama, a vaidade do processo. Obama é um racionalista, centrista por ser um defensor quixotesco das virtudes do diálogo, como se não existissem inimigos, apenas mal-entendidos. Parece que, debatendo com Romney, ele sentiu a quanta distância ele estava da racionalidade discursiva. Talvez ele tenha encarado, de repente, a essência inevitavelmente irracional do processo eleitoral democrático. E tenha se perguntado: mas o que estou fazendo aqui?

 Durante minha graduação, na Suíça, fui bolsista pelo boxe. Perdi uma final nacional, em São Galo, porque, no meio da luta, não entendi mais por que eu estava lá e porque eu estava batendo naquele estudante de Berna. Não foi uma reflexão pacifista. Apenas pensei: que palhaçada, eu não preciso disso, vamos acabar logo e voltar para casa. Perdi. Espero que Obama se recupere a tempo.

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

De volta para o passado


Os remorsos são injustos: esquecemos as razões que nos fizeram decidir nas circunstâncias passadas

ADORARIA QUE fosse possível viajar no tempo e voltar para épocas anteriores de minha vida.

Ingenuamente, imagino que, em vários momentos do passado, eu teria me beneficiado de algo que sei só agora. Quem melhor do que eu aos 50 ou 60 anos para aconselhar uma versão mais jovem de mim, a de dez, 20, 30 anos atrás?

Hoje, enfim, meço as consequências de algumas escolhas antigas. Sei (ou imagino) que teria sido melhor me separar logo daquela pessoa e nunca me afastar de outra, que era insubstituível e que eu perdi; sei (ou imagino) que poderia ter evitado riscos inúteis e me exposto a outros dos quais fugi; sei (ou imagino) que deveria ter insistido quando desisti e desistido quando insisti. E, para quem pode viajar no tempo, nunca é tarde para salvar Inês.

Voltar ao passado para nos dar conselhos em momentos cruciais parece ser uma maneira racional de endireitar nossa vida, a única que leve em conta as consequências confirmadas de nossos atos. 

Mas um ditado italiano ("del senno di poi son piene le fosse" -da sabedoria do depois as valas estão cheias) sugere que esse saber das consequências, além de chegar atrasado, talvez seja inútil.

Concordo: as escolhas da gente são quase sempre as melhores, se não as únicas possíveis na hora em que tivemos que decidir. E os remorsos são quase sempre fajutos: quando reavaliamos e censuramos nossas decisões passadas à luz de suas consequências presentes, estamos esquecendo as razões que nos fizeram decidir naquele momento e naquelas circunstâncias. Mesmo assim, a vontade é grande de voltar atrás e alterar o passado.

Quando era mais jovem, depois de qualquer crise (embate, briga, acidente), revivia mil vezes o que acabava de acontecer, corrigindo ou aperfeiçoando imaginariamente minha reação (o que eu "deveria ter feito").
Hoje, mais velho, quando volto a lugares do passado, sempre os encontro assombrados, como se minha história ainda estivesse por lá, suspensa, na espera de uma solução alternativa à que se realizou na época.

Me dei conta disso quando, pela primeira vez, morreu alguém que tinha sido minha companheira. O luto foi violento, igual ao que seria se minha história com ela nunca tivesse acabado.

Como podia ser? Se passaram tantos anos sem eu pensar nela... Por que esta dor agora? Era como se, com a morte dela, acabassem as chances de dar àquela história um desfecho outro, como se só com a morte dela o passado se tornasse realmente passado.

Seja como for, por ser um fã das viagens no tempo, não podia perder "Looper - Assassinos do Futuro", de Rian Johnson, que estreou na sexta passada. No filme, daqui a 30 anos, as viagens no tempo serão possíveis e proibidas. A máfia instalará seus assassinos, os "loopers", no passado (ou seja, numa época mais permissiva); e para esses assassinos ela despachará as pessoas que deseja eliminar, para que sejam mortas.

Um dia, um assassino descobre que o condenado, que ele recebe do futuro, é a versão mais velha dele mesmo. Será que o jovem "looper" vai querer poupar sua própria vida? Não é óbvio: afinal, matar a nós mesmos daqui a 30 anos é parecido com fumar e comer toucinho.

Esse cara, 30 anos mais velho do que eu, será que ainda sou eu? E será que alguém aos 20 ou aos 30 escutaria o que sua versão de 60 anos tentasse lhe dizer? Ou será que, para mim aos 20, eu seria hoje apenas mais um velho chato qualquer? Questão antiga: fora nossa identidade jurídica, que permanece igual, será que, ao longo da vida, somos a mesma pessoa?

Nesse fim de semana, no festival de cinema do Rio, assisti a "Camille Outra Vez", de Noémie Lvovsky, título original "Camille Redouble" (não sei quando o filme será distribuído no Brasil, mas conto com o cinema Reserva Cultural, que, em São Paulo, para quem aprecia cinema francês, é uma dádiva).

No filme, Eric e Camille ficaram juntos a vida toda. Mas Eric acaba de deixar Camille por uma mulher mais jovem (e talvez menos beberrona). No Réveillon, Camille desmaia e acorda aos 16 anos. Ela reencontra seus pais, as amigas da escola e, sobretudo, Eric, pois é bem naquela época que eles se encontraram.

Claro, Camille quer mudar o curso de sua vida (não namorar Eric) para evitar a dor futura da separação. Mas o fato é que muitos amores são como a vida: eles valem a dor que seu desfecho triste nos dará eventualmente um dia.