quinta-feira, 30 de agosto de 2001

Liberdade moral



Alan Wolfe , eminente sociólogo do Boston College, acaba de publicar "Moral Freedom" (Liberdade Moral, Norton & Co.), indagação sobre os sentimentos morais dos americanos.

No ano passado, Wolfe já tinha produzido uma ampla sondagem de opinião sobre esse tema, que foi apresentada no "The New York Times". O novo livro traz uma série de entrevistas efetuadas para aprimorar os resultados da pesquisa inicial. Trata-se de encontros com sujeitos que representam setores extremos e opostos da sociedade americana: Castro (bairro de San Francisco preferido pela comunidade gay), uma base da Força Aérea, a riquíssima Silicon Valley, uma cidade decaída do Estado de Massachusetts e por aí vai.

Entrevistando esses sujeitos anômalos, Wolfe confirma o resultado encontrado originalmente e afirma que, apesar de diferenças radicais de condição social e de idéias, quase todos os americanos praticam a "liberdade moral" moderna. Mas o que é isso?

É claro que as idéias morais de Sue Simpson, mulher homossexual de San Francisco, são diferentes das convicções de Mary Masters, uma cristã renascida do Connecticut. Se elas se encontrassem, detestar-se-iam. Masters condenaria Simpson ao inferno e Simpson acharia a existência de Masters um atraso da civilização. Mas Wolfe mostra que ambas, embora defendendo princípios opostos, praticam a liberdade moral, pois adotam suas posições respectivas por uma escolha consciente e livre, e não pela simples força de regras preestabelecidas e inquestionáveis. As entrevistas revelam que, hoje, mesmo quem defende uma moral normativa valoriza a livre escolha em nome da qual decidiu submeter-se ao rigor da norma.

Em suma, a liberdade moral que, segundo Wolfe, seria dominante nos EUA (se não no mundo ocidental) não tem nada a ver com permissividade. Pratica a liberdade moral quem toma (e quer tomar) suas decisões morais por conta própria. Esse é o caso tanto dos conservadores mais repressivos quanto dos libertinos.

Imaginemos que eu resolva minhas questões morais pela estrita obediência à Bíblia. E que você, ao contrário, em situações análogas, invente livremente critérios para julgar e decidir. Mesmo assim, seremos menos diferentes do que parece: acontece que eu sei e reconheço que a decisão de me submeter à Bíblia foi minha.

Portanto, atrás do livro ao qual me refiro sem parar, o fundamento último de minhas decisões morais sou eu mesmo. Nisso não difiro de você, que inventa seus próprios critérios. Ambos somos praticantes da liberdade moral moderna, pois nossas escolhas éticas são, direta ou indiretamente, o efeito de uma decisão autônoma que ambos prezamos.

Wolfe resume: "Há mesmo uma maioria moral nos EUA. São os sujeitos que querem decidir com sua própria cabeça".

Difícil não concordar com as conclusões de Wolfe. É claro que os sistemas morais tradicionais não conseguem mais se impor sem passar pelo crivo do consentimento dos adeptos. Por exemplo, contra a vontade da Igreja, muitos católicos são favoráveis ao aborto, discutem o fundamento do celibato do clero, acham certo usar camisinha e consideram ridículo o dogma da infalibilidade do pontífice. Para os fiéis modernos, valem os preceitos que eles mesmos aprovam livremente.

Wolfe acredita que a liberdade moral quase não tenha mais adversários hoje. Certo, há fundamentalistas para os quais qualquer livre escolha é uma manifestação satânica. Mas talvez eles sejam apenas restos arcaicos de culturas vencidas.

A verdadeira dificuldade está em nós. Pois a prática da liberdade moral acarreta vários inconvenientes quando comparada com o reinado de uma moral autoritária. Na liberdade moral, por exemplo, é difícil chegar a um consenso e falta uma garantia absoluta de que as decisões sejam corretas. É frequente que cada decisão deixe dúvidas intoleráveis pairando na consciência -quem foi ou conheceu alguém que foi jurado num processo penal conhece esse tormento.

Enfim, a liberdade moral é cansativa, pois requer a cada instante o esforço de inventar critérios para julgar.

Reagimos a essas complicações de duas maneiras. Por um lado, nostalgicamente, interpretamos a liberdade moral, que é nossa originalidade cultural, como uma inconsistência, como uma falha ou mesmo como um sinal de decadência. Lamentamos, em suma, um passado (mítico) regido por códigos de ferro.

Por outro lado, tentamos freneticamente descobrir dentro de nós algo que possa servir de fundamento para as decisões morais. Desde que fomos convidados a decidir autonomamente o que é bom e o que é mau, ou seja, a sermos a origem da moral, exploramos nosso cérebro e nossas tripas buscando um sentimento, um impulso, qualquer coisa que dê legitimidade a nossas decisões.

Procuramos (ou elegemos) uma parte de nós -mais verdadeira- na qual confiar para nossas escolhas morais. A razão? A sociabilidade, que nos faz desejar o bem comum? O instinto de sobrevivência? A vontade de ser feliz?

Qual é, a seu ver, a resposta do dia?

quinta-feira, 23 de agosto de 2001

Um (discutível) conselho para casais

Nos últimos meses, li (ou percorri) meia dúzia de livros de conselhos para casais em crise ou para noivos que queiram construir um casamento feliz.

Os livros de conselhos, em geral, são ótimos compêndios do bom senso. Funcionam, justamente, porque nos dizem coisas que já sabemos. A autoridade que nos aconselha é a sabedoria comum de nossa época.

Saí dessas leituras com a impressão de que, em matéria de casamento, nosso bom senso é animado por boas intenções, mas não deixa de ser a expressão de uma cultura que, fundamentalmente, acredita e aposta pouco nas relações.

Escolho, como exemplo, um conselho que, de formas diferentes, voltava assiduamente nos livros que li. Ele é inspirado por uma sabedoria prática incontestável. Lembro-me de tê-lo eu mesmo oferecido com convicção mais de uma vez.

Diz assim: "Não queira transformar seu parceiro". É a versão íntima de "ame-o ou deixe-o": é preciso gostar do parceiro assim como ele é, com todos os seus defeitos, pois é um erro engajar-se numa relação com o projeto de emendar nosso objeto de amor.

Por quê? Simples: nesse caso, estaríamos amando apenas por confundirmos o parceiro com um ideal saído de nossas fantasias -e estaríamos querendo que ele, coitado, coincidisse com nossas miragens. Uma decepção brutal aguarda quem mantém essa conduta, que transforma as relações amorosas no teatro tragicômico das inadequações de cada cônjuge aos desejos e sonhos do outro.

Portanto diz o conselho: amem-se assim como vocês são, cruzem-se, abracem-se etc., mas, de qualquer forma, aceitem-se. A ambição de transformar o outro pela relação é uma receita para o desastre. Deveríamos circular em nossa vida amorosa como carros nas rodovias: podendo nos cruzar e até andar juntos lado a lado, mas cientes de que as verdadeiras transformações recíprocas só acontecem nos acidentes.

Não há como negar que o conselho parece sábio e bem-vindo. O problema é que ele sugere um pessimismo radical em matéria de relações: preconiza que se relacionar seja uma atividade sem consequência, praticada no absoluto respeito dos indivíduos imutáveis. Juntem-se e permaneçam iguais.

Examinemos de novo o argumento que justifica o conselho. Quando amamos, sempre atribuímos ao outro caraterísticas ideais que nos importam ou nos inspiram. Apaixonamo-nos porque, misteriosamente, vemos no outro qualidades que pegamos emprestadas de nossos sonhos. É inevitável que o equívoco seja desfeito um dia. Por exemplo: "Vi em você a mãe perfeita para nossos futuros filhos, e eis que você só pensa em fazer carreira e trabalhar". Ou então: "Vi em você um amante carinhoso e divertido. Quem é esse cara comatoso na frente do computador ou da TV?". Conclusão do conselho: quem se casa ou se acasala com a intenção de transformar o parceiro compra uma frustração garantida. É preferível evitar decepções e amar o outro pelo que ele é.

Aqui, duas questões. Primeiro: será que existe um amor em que não atribuamos a nosso parceiro alguma qualidade extraordinária que de fato ele não tem? Será que uma relação em que não idealizamos nosso parceiro ainda é uma relação de amor? Em suma, é bem possível que o conselho nos condene a uma vida afetiva um pouco chocha. Paciência.

A segunda questão é mais importante. Pergunto: será que a decepção é o único efeito dos sonhos com os quais embelezamos nossos objetos de amor? Ou seja, será que o amor, em última instância, só nos frustra? Vamos ver.

De novo: quem nos ama vê em nós alguma qualidade ideal que, de fato, não temos. É bem provável que ele se decepcione (muito ou pouco). Tanto faz, pois o que importa é que, de qualquer forma, sua expectativa nos transformará. "Claro, não sou o amante maravilhoso que minha parceira apaixonada imaginava que eu fosse. Sou mesmo comatoso na frente da TV. Mas a expectativa de minha parceira -que me idealiza e que sonha comigo carinhoso e engraçado- é a única coisa que pode me arrancar da poltrona."

Na verdade, mudamos (para melhor ou para pior) sempre graças a algum outro que espera de nós uma mudança. Uma criança cresce, por exemplo, alimentada pela expectativa amorosa dos pais. "Joãozinho é um Mozart", declara a mãe.

Joãozinho abandona a música aos 13 anos: grande decepção. Mas resta que, se aprendeu a tocar um pouco, se a música passou a fazer parte de sua vida e mesmo se ele cresceu confiando em seus outros talentos, tudo isso foi graças ao sonho da mãe que olhava para ele e via Mozart redivivo.

O modelo continua valendo na vida adulta: mudamos graças ao amor de quem nos idealiza e, assim, nos estimula a mudar. O amor é o motor de quase todas as nossas transformações.
Portanto está certo o conselho de não perseguir nossos parceiros com a exigência de que mudem. Engajar-se num amor querendo mudar o outro é um projeto mal-aventurado.

Mas um conselho mais corajoso e menos ditado pelos ideais celibatários de nossa cultura diria assim: esqueça o infausto projeto de mudar o outro, mas ame com o projeto de ser transformado pelo que o outro espera de você.

quinta-feira, 16 de agosto de 2001

Entre as gerações: a guerra dos gozos



Na coluna da semana passada, comentei um sentimento que não é raro nos pais modernos: uma espécie de inveja dos filhos, sobretudo quando eles chegam à adolescência. Somos frequentemente incomodados pelo espetáculo das mordomias que nós mesmos proporcionamos aos nossos rebentos. Passamos o tempo atormentados por um dilema entre lhes proibir ou permitir prazeres. Ou então queremos vê-los felizes, mas lamentamos os sacrifícios que eles nos custam. Tudo isso porque, de alguma forma, gostaríamos de guardar para nós a (pretensa) boa vida que oferecemos a nossos filhos.

Vários leitores me escreveram reconhecendo que essa inveja dos filhos faz parte de sua experiência de pais. Mas alguns acrescentaram, para equilibrar a balança, que também os filhos modernos nem sempre são flores que se cheirem: às vezes, eles olham para os pais de um jeito nada carinhoso. Uma mãe escreveu: "A gente também achava nossos pais meio ultrapassados, mas, no olhar de meus rapazes, vejo o desprezo, uma vontade que eu desça logo do palco".

Em suma, pode ser que os pais modernos invejem seus filhos. Mas os filhos modernos como olham para seus pais? Se fosse com inveja -uma recíproca da inveja dos adultos-, a coisa não seria surpreendente nem dolorosa. É natural que os filhos invejem os pais: conta-se com isso para que eles cresçam. Infelizmente, não se trata de inveja: há mesmo algo diferente e inquietante no olhar que muitos adolescentes modernos destinam aos adultos.

Eles contemplam seus pais com uma espécie de comiseração ou então com vergonha, como se as condutas do pai e da mãe fossem aviltantes até para a prole. Faz parte de uma adolescência moderna assistir com verdadeiro dó ao espetáculo dos pais divertindo-se -dançando ou abraçando-se. Ou então enjoar ao fitar a boca dos pais, enquanto eles saboreiam felizes seus pratos preferidos. Sobretudo os prazeres dos pais, seus jeitos de aproveitar a vida, parecem inspirar asco nos filhos adolescentes.

Uma parte dessa repulsão pode ser explicada como um efeito do bom e velho complexo de Édipo. Por exemplo, o jovem, mostrando sua desaprovação visceral, estaria apenas protestando contra o fato de ele não ser o centro da atenção. Ele acharia que os pais, dançando, são ridículos, porque gostaria de estar, ele, dançando com o pai ou com a mãe (segundo o caso).

Mas essas explicações não bastam. O olhar de muitos adolescentes modernos sobre os prazeres dos pais é radical e abrangente demais para ser apenas uma manifestação de ciúme. Ele pressupõe a convicção de que os prazeres da geração precedente são insípidos e fracassados: os pais não sabem o que é a vida, sua experiência é deficitária, ridícula.

A acusação não é tanto de conformismo, mas de incompetência em gozar a vida. Essa convicção é acompanhada por uma raiva às vezes explícita, um "sai da frente" justificado pela incompetência: "Vocês, pais, não sabem desfrutar a vida direito e, olha que absurdo, ao mesmo tempo, se metem no meu caminho".

É uma atitude que custa caro aos adolescentes modernos. Para justificar e mostrar que têm um jeito próprio e certeiro de gozar da vida, eles são obrigados a renunciar aos prazeres sugeridos e praticados pelos pais. Condenam-se, dessa forma, ao tédio e a um certo desespero, pois não é fácil encontrar maneiras originais de gozar a vida.

Aparece assim frequentemente um quadro familiar quase cômico, em que adolescentes deprimidos, inativos e sarcásticos desprezam adultos que se agitam com entusiasmo, inventando e propondo programas que são, de fato, estereótipos de uma adolescência invejável -que só existe nas propagandas de goma de mascar. Por exemplo, já vi jovens pasmos, atirados na cama, enquanto os pais, a mil, enfiavam capacetes, coletes salva-vidas e caiaques na perua de família.

Por que essa cena é especificamente moderna?

Nas últimas décadas, nossa cultura parece ter aceitado a idéia de que as gerações estariam sempre, "naturalmente", em conflito. Racionalizamos essa chatice com a explicação seguinte: cada nova geração inventaria valores novos -ninguém pára o progresso. Ora, o conflito moderno entre gerações é um conflito de valores só aparentemente. Ao contrário, as gerações se pegam pelos cabelos por elas terem em comum um mesmo valor: o projeto de gozar a vida o quanto mais possível.

Pais e filhos modernos compartilham uma idéia, central em nossa cultura, segundo a qual a vida é um bolo. Importa servir-se direito, comer bastante e, se der, levar um pouco para casa.
Ao redor de um bolo, não há dissidentes, só concorrentes: comensais que se servem mais rapidamente ou mais vezes do que nós, aproveitadores que nos privarão da fatia que poderia sobrar para o café de amanhã etc.

Graças a esse ideal compartilhado, cada geração é, para a outra, uma rival. E cada geração inventa (ou simula, tanto faz) um jeito original de gozar a vida para que sirva de pretexto na hora de empurrar a geração precedente até a porta.

quinta-feira, 9 de agosto de 2001

Recessão para a molecada



Gostamos de imaginar que, se faltasse comida, enganaríamos nossa fome mastigando cadarços -pão, bife e sorvete continuariam aparecendo no prato de nossos filhos. É normal sacrificar-se pelo bem-estar da prole.

Essa é a maneira moderna de amar os filhos: eles são uma espécie de time da prorrogação, encarregado de salvar os jogos que nós não conseguimos ganhar durante o tempo regulamentar de nossas vidas. Portanto vê-los saborear pratos dos quais nós nos privamos é uma consolação: penamos, mas, em compensação, eles, carne de nossa carne, desfrutam cada instante.

Esse estereótipo é confirmado pelos números do consumo juvenil na última década: nas classes médias (e não só nelas), crianças e jovens foram mimados como nunca.
Agora essa década próspera acabou. Nos EUA, as empresas não fazem mais leilões para conquistar funcionários. Ao contrário, fala-se em demissões para conter os custos. A queda da Bolsa acabou com uma fonte de dinheiro fácil.

Nem por isso deveria mudar o estereótipo mencionado acima: só seria preciso que os pais se sacrificassem um pouco mais. Eles poderiam renunciar ao almoço para garantir o celular da menina, suprimir as saídas do sábado para subvencionar a roupa do menino etc. Ou seja, mesmo em clima de austeridade, os rebentos deveriam sofrer por último e sempre menos do que os pais.

Contrariando essa expectativa, um artigo do "Wall Street Journal" de 13 de julho, "A Kid Recession?" (Uma Recessão para as Crianças?), apresentou uma pesquisa segundo a qual, no fim de 2000, os adultos aumentaram (levemente) seus gastos, enquanto o consumo destinado a jovens de 8 a 24 anos de idade diminuiu em um terço. Em 2001, a tendência está confirmada: até agora, os adultos americanos seguem consumindo, mas 12% das crianças tiveram sua mesada cortada de maneira significativa e 16% queixam-se de que recebem menos presentes.
Será um simples efeito da crise? Não acredito.

De regra, as dificuldades financeiras não têm o poder de acalmar a paixão (narcisista) dos pais modernos pelos seus filhos. Todos conhecemos mães que vivem de bicos, mas esbanjam R$ 250 para colocar nos pés do filho um tênis que o moço mal queria, mas que constitui, para a mãe, uma revanche contra a vida. Assim como pais endividados que contratam palhaços e cantores para a festa do aniversário dos seis meses de seu nenê: mesma revanche. Quanto mais os pais se vêem como insatisfeitos, tanto mais eles podem querer compensar suas frustrações pelos filhos. "Não tenho comida? Caviar nos moleques."

Como entender, então, o artigo do "Wall Street Journal"? Pois bem, se a recessão leva os pais a cortar as mesadas e não suas próprias despesas, é provável que a falta de meios seja apenas um pretexto. Quem sabe os pais procurassem há tempos uma desculpa para interromper a festa dos filhos?

Como assim? Não foram eles, os pais, que permitiram e encorajaram a dita festa? Foram, sim. Mas nós, pais contemporâneos, somos atormentados por uma contradição. Adoraríamos que nossos descendentes tivessem tudo o que não tivemos. Ao mesmo tempo, gostaríamos que eles sofressem privações e interdições.

Explicamos essa incoerência da maneira seguinte: amamos nossos filhos e, portanto, somos generosos com eles, mas, para o próprio bem deles, queremos proibir seus prazeres, treiná-los, sei lá, para a "dura" realidade.

Essa explicação é um duplo conto de fadas. Nosso amor não é tão generoso assim: a satisfação dos filhos serve para abrandar nossas frustrações. Do mesmo jeito, uma boa parte de nossa eventual severidade não provém de alguma sabedoria pedagógica, mas de nossa inveja.

Inveja dos filhos? Pois é, antes de discordar indignado, considere esta contradição: frequentemente, quando contemplamos nossos filhos enquanto usufruem as mordomias que lhes proporcionamos, experimentamos um misto de contentamento e de mal-estar. Como se nos irritasse a naturalidade com a qual eles se valem do que nós mesmos lhes oferecemos.

Outra contradição: encaramos qualquer sacrifício para ver nossos filhos felizes e satisfeitos, mas passamos nosso tempo imaginando interdições para policiar seus prazeres. Colocamos uma televisão no quarto de uma criança, mas exigimos que ela a use apenas durante duas horas por dia. Instalamos um computador só para ela, mas queremos limitar e controlar o seu acesso à internet. Oferecemos telefone fixo e celular, mas proibimos comunicações frequentes ou longas demais. E por aí vai.

Gostaríamos, ao mesmo tempo, de dar tudo e de proibir tudo. Por quê? Suspeito que o espetáculo da "felicidade" das crianças -produzido para nosso prazer e consolo- esteja nos enjoando.

Era previsível que isso acontecesse. Mimamos os filhos para contemplar seus prazeres: eles gozando da vida, nós gozaríamos por procuração.

Inevitavelmente essa contemplação tornou-se indigesta. Por que eles e não a gente? Por que promover seus prazeres vicários e não pensar diretamente nos nossos? A maneira moderna de amar os filhos talvez tenha chegado a um impasse.

quinta-feira, 2 de agosto de 2001

Pelas ruas de Gênova, lá vamos nós



Durante os protestos contra o G-8 (grupo que reúne os sete países mais industrializados do mundo mais a Rússia), a imprensa européia entrevistou políticos da esquerda oficial e veteranos de 68. Vários aproveitaram a oportunidade para lamentar, nesses novos manifestantes, a falta de "verdadeiros" projetos de sociedade. "São carentes de propostas políticas, crescerão", disse Mario Capanna, que foi líder do movimento estudantil de Milão em 68. Engraçado: sob a direção de Capanna, o movimento, na época, foi declaradamente stalinista. Se essa for a "proposta política" que falta, melhor que os "carentes" não cresçam mesmo.

Prefiro evitar as nostalgias e reconhecer que aos manifestantes de Gênova não falta nada. Ao contrário, graças à sua diversidade confusa ou mesmo atrapalhada, talvez eles representem, da melhor maneira possível, o estado de espírito de muitos que estão, hoje, social e politicamente insatisfeitos.

De fato, parece-me que poderia manifestar-me com cada um dos componentes dessa massa contestatária. Os grupos diversos e, às vezes, opostos levaram pelas ruas de Gênova diferentes fragmentos de meus humores reformistas ou revoltados.

Olhe só. O resto de minhas esperanças socialistas desfila com a esquerda clássica italiana, em versão social-democrata ou intransigente. Identifico-me com os ecologistas puros e duros (do Greenpeace aos italianos da Legambiente), mais preocupados com o planeta do que com as mazelas dos homens. Posso ter um coração caritativo, animado por paixões missionárias contra a fome e as doenças no mundo (do tipo Christian Aid). E sobra-me uma raiva que deve valer a do movimento anarquista Black Bloc, pedras na mão.

Um leitor poderia observar: "Admito que o ardor político seja, hoje, plural e mesmo confuso. Posso admitir também que essa pluralidade esteja em todos nós. Mas por que se reconhecer num radicalismo destrutivo que parece gratuito?". De fato, quase todos os grupos tentaram se dissociar dos "violentos". Aliás, por esse motivo, falou-se pouco de Carlo Giuliani, o jovem que morreu nos enfrentamentos com a polícia. Não sabemos quase nada de suas idéias ou de sua militância. Até a esquerda prefere esquecer o morto: sem a carteirinha de um partido ou de um movimento e (na foto reproduzida pelo mundo afora) prestes a lançar um extintor no policial que o mataria, Carlo Giuliani parece ser o protótipo da "Internacional da desordem", segundo a expressão do governo italiano. Ou seja, baderneiros enfurecidos sem saber por quê, agitadores abstratos.

De fato, posso não gostar da raiva de Carlo Giuliani e do Black Bloc. Mas ela tem, no mínimo, duas razões de ser.

A primeira é compreensível por qualquer um que já quebrou louça numa cena de família. Os cônjuges jogam pratos e xícaras na parede para resistir à tentação de fazer as pazes. Viram a mesa para que não haja mais um lugar para eles se sentarem juntos. Protegem-se assim contra sua própria vontade de parar a briga e voltar aos prazeres do lar. As pedras que os jovens do Black Bloc jogam contra as lojas obedecem à mesma lógica: são uma barragem defensiva contra a irresistível atração de um mundo do qual, por outro lado, eles não gostam. O quebra-quebra é isto: destruir vitrinas para não desejar a mercadoria exposta, ou melhor, por raiva de ser levado a desejá-la. Queimar carros pelo mesmo motivo.

No semanal italiano "L'Espresso" de 26 de julho, a reportagem de capa sobre Gênova era claramente favorável ao protesto. Mas a mesma edição propunha uma outra matéria, para sonhar e invejar, sobre a costa Smeralda, na Sardenha, refúgio estival dos socialites italianos e internacionais, com foto da vila de Berlusconi, o miliardário magnata de televisão que é hoje premiê italiano.

Pergunta implícita ao leitor: "Você quer que não haja mais Berlusconis ou sonha com uma vila na Sardenha?". Em resposta, o leitor que quisesse um mundo diferente poderia jogar pedras, não tanto para atingir Berlusconi (ou Chirac ou Bush), mas para demolir (em sua própria cabeça) simulacros de vilas numa Sardenha de sonho.

Vamos à segunda razão da raiva do Black Bloc.

Há duas maneiras banais de (tentar) controlar os outros. Uma consiste em afirmar que nós sabemos o que os outros verdadeiramente querem, acima e além de suas declarações ou de seus silêncios. Por exemplo: "Você defende as baleias e a distribuição de arroz na Somália, isso é legal, mas lacunar, portanto vamos completar para você e dizer qual é a sociedade que você realmente deseja". É, no mínimo, irritante.

Mas é a outra tentativa de controle que instiga mais violência. Ela consiste em perguntar: "Afinal, o que você quer exatamente?". Subentendido: "Diga com clareza seu desejo, para que a gente possa controlar direito sua satisfação ou frustração".

Faça a experiência com um adolescente, se quiser exasperá-lo. Com um pouco de sorte, ele acrescentará (com razão) que, para querer, não é necessário saber de antemão o que quer. Basta não gostar da situação e estar decidido a inventar algo diferente.