quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O luxo e o trabalho do artesão



O novíssimo-rico acumula produtos de luxo sem acumular a cultura para apreciá-los

SEBASTIÃO É um adolescente de 13 anos com quem converso com frequência. Gosto dele, e ele tenta gostar de mim, embora, às vezes, eu seja chato.

Por exemplo, recentemente, Sebastião me confessou que ele tinha o sonho de sacudir e explodir um magnum de champanhe -isso quando ele ganhar um Grand Prix de Fórmula 1 ou algo equivalente.

Eu comentei que, nessa ocasião, ele deveria escolher um espumante de terceira -não pelo custo, mas "por respeito". "Respeito pelo quê?", ele perguntou.

Improvisei uma dissertação sobre a "méthode champenoise". Expliquei como, numa região específica da França, as uvas chardonnay e pinot são colhidas, seu mosto é fermentado em tanques e, logo, durante seis anos ou mais, transvasado repetidamente em garrafas, retirando do gargalo, a cada vez, o sedimento e as levuras. Evoquei a vida do viticultor, entre a espera e o cuidado da vinha. Falei da invenção do champanhe, no século 17, por um monge que se chamava Dom Pérignon, e das novidades introduzidas pela senhora Clicquot, no século 19.

Em suma, estraguei a festa imaginária de Sebastião só para lhe lembrar que o líquido que ele se propunha despejar era o resultado do trabalho paciente de artesãos obstinados e orgulhosos de sua arte.

Chatice, não é? Mas tenho uma desculpa. A conversa com Sebastião acontecia em Milão, enquanto: 1) eu estava lendo o novo livro de Richard Sennett, "The Craftsman" (previsto em março pela Record como "O Artífice"), 2) o centro da cidade, onde a gente estava, era tomado por hordas de compradores de moda e design, entre os quais a maioria absoluta era de "emergentes" de sociedades que, hoje, vivem uma rapidíssima mobilidade social (Rússia e China).

Ou seja, eu era circundado por consumidores pouco interessados na qualidade do trabalho embutido nos objetos que eles adquiriam e muito interessados no status que esses objetos e suas marcas podem conferir aos usuários.

Ao mesmo tempo, eu era encantado pelo texto de Sennett -seu comovente elogio da perícia que encontra seu maior prêmio no orgulho da obra benfeita.

Certo, se nem todo trabalho é alienação, é graças à mestria do artesão, ou seja, à alegria de quem exerce sua destreza, mas é também porque, EM TESE, o usuário do produto artesanal reconhece e admira, no objeto manufaturado, a arte de quem o fabricou.

Digo "em tese" porque, de fato, é cada vez menos assim: na extrema insegurança produzida pela rápida mobilidade social ("Será que os outros sabem que eu me enriqueci?"), o novíssimo-rico acumula produtos de luxo (supostamente artesanais) sem ter o tempo de acumular a cultura mínima para apreciá-los. Como assim, que cultura?

Quando eu era criança, o senhor Columbaro era o humilde alfaiate da família: ele sabia recortar os ternos velhos do meu pai para confeccionar calças e casacos para nós e, também, ele conseguia dar uma segunda vida a ternos puídos, reconstituindo-os depois de ter virado o tecido pelo avesso. Pois bem, uma vez, o senhor Columbaro me explicou longamente por que um terno de Seville Road cai solto ao redor do corpo (só para começar: a tela interna não é colada, mas costurada com centenas de pontos).

Comecei assim a enxergar, nos produtos manufaturados, o esforço e a habilidade de quem os fabrica. É possível que, um dia, o preço de um produto artesanal não seja decidido pela excelência do trabalho do artífice, mas seja apenas função do status que sua posse confere (inevitavelmente) numa sociedade em que o consumo aparente define as diferenças sociais.

A partir daquele dia, aos poucos, só sobrarão produtos medíocres, que não dirão nada sobre a perícia do artesão -apenas bradarão o status de seus consumidores.

Os leitores de "Gomorra", de Roberto Saviano (ed. Bertrand Brasil), assim como os espectadores do filme homônimo, sabem que já há porões em que se fabricam, ao mesmo tempo, do mesmo jeito e no mesmo molde, a suposta alta-costura e suas "cópias" destinadas a quem só quer passear com uma marca famosa gravada no peito.

Qual a relevância disso tudo? Pois é, vou parecer catastrofista, mas penso assim: no dia em que formos incapazes de reconhecer e respeitar, no produto, a excelência do artesão, quando não soubermos mais enxergar o trabalho humano nos objetos que usamos, teremos perdido todo interesse pela vida concreta -inclusive pela nossa própria.

Era isso que eu tentava dizer a Sebastião.

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A Itália e o caso Battisti



A Itália ganhou a guerra dos anos 70: a República se manteve sem deixar de ser Estado de Direito


QUANDO SAÍ de férias, o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) tinha negado o status de refugiado político a Cesare Battisti, o foragido da Justiça italiana preso no Brasil em 2007, num quiosque de Copacabana (esse detalhe deve ter revoltado mais de um, na Itália: "Matou meu pai, meu marido, meu amigo, e agora toma água de coco na praia?").

Durante os ditos anos de chumbo italianos, Battisti, 54, foi membro dos PAC (Proletários Armados para o Comunismo), um grupinho ideologicamente pouco expressivo, mas muito violento. Em 1981, sem ser acusado de nenhum homicídio específico, ele foi condenado a 12 anos de prisão; fugiu para o México e, logo, para a França. Quando a França mudou sua política de asilo aos terroristas foragidos, Battisti veio ao Brasil, com documentos falsos.

Entretanto, Pietro Mutti, chefe dos PAC, foi preso na Itália e, para evitar a prisão perpétua, escolheu a "delação premiada". Na delação premiada, os acusados, para se salvarem, denunciam outros culpados, e é frequente que eles "ferrem" logo os foragidos, que estariam "a salvo" (esse era o caso de Battisti). Agora, sem a delação premiada, a polícia italiana não teria desmanchado as organizações terroristas dos anos 70 nem marcado pontos no combate contra as máfias.

Enfim, o "arrependimento" de Mutti levou a novos processos, nos quais Battisti foi condenado por seu envolvimento em quatro homicídios -dois eram execuções de comerciantes que tinham "ousado" resistir aos assaltos pelos quais os PAC "arrecadavam" fundos.

Bem no dia de minha volta ao Brasil (15 de janeiro), eis que Battisti estava nas primeiras páginas da imprensa italiana, num coro de indignação: Tarso Genro, ministro da Justiça, acabava de conceder asilo a Battisti, revertendo a decisão do Conare.

Deixo de lado o debate jurídico. O que mais fere os italianos é a ideia de que, segundo o Brasil, Battisti, voltando para a Itália, correria perigo de vida; como se o Estado italiano fosse um bandido, pronto a eliminar restos incômodos de seu passado.

Há, nessa ideia brasileira, uma projeção: nos anos 70, a Itália teria sido uma ditadura, como o Brasil.

Essa visão da Itália, além de errada, é cúmplice do próprio ideário dos anos de chumbo. Pois, nos anos 70, foi graças à visão de um Estado bandido que os terroristas italianos, de esquerda e de direita, justificaram seu ódio pelo que lhes parecia ser a "mediocridade" democrática.

Neofascistas ou "revolucionários", eram adolescentes enlouquecidos que queriam vidas e mortes "extraordinárias". Atiravam em sindicalistas e comerciantes ou colocavam bombas nos trens para acabar com a "normalidade" cotidiana que receavam para seu próprio futuro; e juravam que era para lutar contra a opressão do Estado.

Hoje, é possível dizer que a Itália ganhou a guerra dos anos de chumbo: a jovem República se manteve sem deixar de ser um Estado de Direito. Quem pensa assim?

Acaba de sair um livro de Adriano Sofri, que foi (ele sim) uma figura crucial e pensante daqueles anos, líder de Lotta Continua, acusado como mandante do homicídio do comissário Luigi Calabresi e condenado a 22 anos de prisão. Em "La Notte che Pinelli" (ed. Sellerio), Sofri reconstitui a história da investigação depois do atentado de Piazza Fontana, em Milão, em dezembro de 1969 (bomba que foi o primeiro ato dos anos de chumbo).

O comissário Calabresi seguiu a pista anárquica -errando, pois a bomba (entendeu-se mais tarde) era de direita. O anarquista Giuseppe Pinelli, questionado, "jogou-se" da janela do quarto onde estava sendo interrogado. Lembro-me bem: Pinelli, para todos nós, "tinha sido suicidado".
Junto com o corpo de Pinelli, naquela noite, ruiu a confiança no Estado. Ou seja, a bomba surtiu o efeito desejado: durante décadas, a democracia pareceu ser apenas o disfarce de uma dominação brutal e escusa, que legitimaria o combate armado. Calabresi, um policial íntegro, não foi responsável pela morte de Pinelli, mas foi assassinado, em 1972, depois de uma campanha de imprensa que o culpava.

Com coragem admirável, Sofri escreve o que talvez venha a ser o melhor epitáfio dos anos de chumbo: "Não me sinto corresponsável por nenhum ato terrorista dos anos 70.

Mas do homicídio de Calabresi, sim, por ter dito ou escrito ou por ter deixado que se dissesse e se escrevesse "Calabresi, você será suicidado'".

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Um Ano Novo feliz e desconfiado



Meus votos de um Ano Novo corajoso, sem as pequenas complacências do nosso dia-a-dia

SE VOCÊ quer começar o ano com o pé direito (ou seja, como é costume, com alguns bons propósitos), não perca "Um Homem Bom", de Vicente Amorim. O filme, uma produção anglo-alemã, traz para a tela "Good", de C. P. Taylor -peça de 1981, que é uma das grandes meditações literárias sobre a poltronice que pode levar qualquer um às piores cumplicidades.

Viggo Mortensen é o professor Halder, que, na Berlim dos anos 1930, ensina Proust na universidade e se deita regularmente no divã de um psicanalista freudiano. Junto a seu psicanalista (que é judeu e é também seu melhor amigo), Halder observa o nazismo incipiente com um sarcasmo que se torna desgosto quando os livros de seus autores preferidos são destinados à fogueira.

Em suma, tudo prepara Halder para ser um dissidente (eventualmente morno e pouco heroico, mas, mesmo assim, um dissidente). Ora, eis que, um belo dia, a Chancelaria do Terceiro Reich se interessa por um romance que Halder publicou sem grande sucesso. Nele, é narrada a história de um homem cuja amada sofre de uma doença terminal; por amor, o homem aceita ajudá-la a pôr fim a seus dias. A Chancelaria pede a Halder um ensaio que sirva de fundamento moral para os projetos de "eutanásia" que o regime nazista, "caridosamente", está concebendo para doentes mentais e deficientes graves -na verdade, para todos os "subumanos". Halder não quer o mal de ninguém -ainda menos o de seu amigo judeu. Mas, aos poucos, ele é enredado numa malha de sentimentos pequenos, banais e dificilmente resistíveis: vaidade, ambição, medo e, talvez sobretudo, preguiça e inércia.

Tornando-se membro do partido e da SS, Halder pode festejar sua promoção: ele é agora chefe de seu departamento universitário. Claro, no dito departamento, não se ensina mais Proust. Também, em sua ascensão, Halder substituiu um colega judeu; é uma pena, mas, afinal, se não fosse Halder, seria outro, não é? Assim, à força de covardias aparentemente triviais, homens "bons" e comuns se tornam cúmplices de horrores dos quais, sem mentir propriamente, eles poderão dizer que "não sabiam", "não imaginavam" nada disso.

Ou, melhor ainda, sem mentir propriamente, eles poderão dizer que, se tivessem sabido, se tivessem sido informados, aí sim, eles, "obviamente", não teriam concordado, sua oposição teria sido explícita e vigorosa, mesmo que isso colocasse a perder sua carreira e sua vida. Alguém observará: o fascismo e o nazismo foram derrotados na Segunda Guerra Mundial, e o sistema soviético desmoronou com o Muro de Berlim -por que é que a gente se debruçaria a esta altura sobre a facilidade de nossa complacência com os totalitarismos?

Seria possível responder que a lista é longa dos totalitarismos, grandes e pequenos, que continuam vivos ainda hoje, e não muito longe de nossa casa. Mas o mais importante é que a complacência com o totalitarismo segue sendo a chave mestra que explica quase todas as patologias de nossa relação com as coletividades (nações, torcidas, religiões, culturas, partidos etc). Claro, pertencer a um grupo e se deixar levar por ele é sempre menos cansativo do que decidir por nossa conta. A ponto que as razões para aderir ao grupo se tornam indiferentes: o que importa é o conforto que o grupo oferece a seus membros.

Em outras palavras, para não ter que pensar e agir sozinho, o homem "bom" topa qualquer parada. Por exemplo, pertencer ao partido nazista alivia seriamente meu dever (incômodo) de pensar e agir segundo meu foro íntimo; aceito ser antissemita, homofóbico, defensor da supremacia ariana etc. tanto mais facilmente que tudo isso, no fundo, pouco me importa: é apenas um pedágio que pago para ser membro do clube.

Paradoxo crucial: um grupo pode se unir ao redor de uma ideologia ou de uma convicção na qual quase nenhum de seus membros, em sã consciência, acredita, mas que todos compartilham apenas PARA constituir um grupo -ou seja, pelo prazer de sair quebrando vitrinas, linchando negros e "bichas", torturando calouros, apedrejando o ônibus da torcida oposta. E qual é esse "prazer"?

Simples, é o prazer de esquecer a dificuldade de viver, tirando das costas o fardo e a responsabilidade de julgar com a nossa cabeça. Pois bem, aqui vão meus votos de um Ano-Novo corajoso, livre das pequenas (e terrificantes) complacências do nosso dia-a-dia.