quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Mundo Não Acabou


Depois do fim do mundo, a gente se encarará sem mediação, com uma mão pronta em cima do coldre 

PODE SER que o mundo acabe entre hoje (segunda, dia em que escrevo) e quinta, 27, dia em que seria publicada esta coluna. Em tese, eu não devo me preocupar: meu título não será desmentido -pois, se o mundo acabar, não haverá mais ninguém para verificar que eu me enganei.

 Tudo isso, em termos, pois o fim do mundo esperado (mais ou menos ansiosamente) por alguns (ou por muitos) não é o sumiço definitivo e completo da espécie. Ao contrário: em geral, quem fantasia com o fim do mundo se vê como um dos sobreviventes e, imaginando as dificuldades no mundo destruído, aparelha-se para isso. Na cultura dos EUA, os "survivalists" são também "preppers": ou seja, quem planeja sobreviver se prepara.

A catástrofe iminente pode ser mais uma "merecida" vingança divina contra Sodoma e Gomorra, a realização de uma antiga profecia, a consequência de uma guerra (nuclear, química ou biológica), o efeito do aquecimento global ou, enfim (última moda), o resultado de uma crise financeira que levaria todos à ruina e à fome.

 A preparação dos sobreviventes pode incluir ou não o deslocamento para lugares mais seguros (abrigos debaixo da terra, picos de montanhas que, por alguma razão, serão poupados, lugares "místicos" com proteção divina, plataformas de encontro com extraterrestres etc.), mas dificilmente dispensa a acumulação de bens básicos de subsistência (alimentos, água, remédios, combustíveis, geradores, baterias) e (pelo seu bem, não se esqueça disso) de armas de todo tipo (caça e defesa) com uma quantidade descomunal de munições -sem contar coletes a prova de balas e explosivos. Imaginemos que você esteja a fim de perguntar "armas para o quê?".

Afinal, você diria, talvez a gente precise de armas de caça, pois o supermercado da esquina estará fechado. Mas por que as armas para defesa? Se houver mesmo uma catástrofe, ela não poderia nos levar a descobrir novas formas de solidariedade entre os que sobraram? Pois bem, se você coloca esse tipo de perguntas, é que você não fantasia com o fim do mundo. Para entender no que consiste a fantasia do fim do mundo, não é preciso comparar os diferentes futuros pós-catastróficos possíveis.

Assim como não é preciso considerar se, por exemplo, nos vários cenários desolados do dia depois, há ou não o encontro com um Adão ou uma Eva com quem recomeçar a espécie. Pois essas são apenas variações, enquanto a necessidade das armas (e não só para caçar os últimos coelhos e faisões) é uma constante, que revela qual é o sonho central na expectativa do fim do mundo. Em todos os fins do mundo que povoam os devaneios modernos, alguns ou muitos sobrevivem (entre eles, obviamente, o sonhador), mas o que sempre sucumbe é a ordem social. A catástrofe, seja ela qual for, serve para garantir que não haverá mais Estado, condado, município, lei, polícia, nação ou condomínio.

Nenhum tipo de coletividade instituída sobreviverá ao fim do mundo. Nele (e graças a ele) perderá sua força e seu valor qualquer obrigação que emane da coletividade e, em geral, dos outros: seremos, como nunca fomos, indivíduos, dependendo unicamente de nós mesmos. Esse é o desejo dos sonhos do fim do mundo: o fim de qualquer primazia da vida coletiva sobre nossas escolhas particulares. O que nos parece justo, no nosso foro íntimo, sempre tentará prevalecer sobre o que, em outros tempos, teria sido ou não conforme à lei.

 Por isso, depois do fim do mundo, a gente se relacionará sem mediações -sem juízes, sem padres, sem sábios, sem pais, sem autoridade reconhecida: nós nos encararemos, no amor e no ódio, com uma mão sempre pronta em cima do coldre. E não é preciso desejar explicitamente o fim do mundo para sentir seu charme. A confrontação direta entre indivíduos talvez seja a situação dramática preferida pelas narrativas que nos fazem sonhar: a dura história do pioneiro, do soldado, do policial ou do criminoso, vagando num território em que nada (além de sua consciência) pode lhes servir de guia e onde nada se impõe a não ser pela força.

 Na coluna passada, comentei o caso do jovem que matou a mãe e massacrou 20 crianças e seis adultos numa escola primária de Newtown, Connecticut. Pois bem, a mãe era uma "survivalist"; ela se preparava para o fim do mundo. Talvez, junto com as armas e as munições acumuladas, ela tenha transmitido ao filho alguma versão de seu devaneio de fim do mundo.

domingo, 23 de dezembro de 2012

O Massacre de Newton



Na sexta passada, em Newtown, Connecticut, um jovem de 20 anos voltou para sua antiga escola primária e matou 20 crianças, de seis e sete anos, e seis adultos (a diretora, a psicóloga da escola e quatro professoras). Em casa, ele já tinha assassinado sua própria mãe. 

 Fiquei diante da televisão durante boa parte do fim de semana. O cenário bucólico da região reforçava a insensatez do acontecido.

 1) Poucas horas depois do massacre, o dr. Sanjay Gupta, neurocirurgião e "correspondente médico" da CNN, afirmava enfaticamente que precisamos de "uma legislação que permita que as autoridades façam o que deve ser feito". "Essas coisas", ele acrescentou, "podem ser previstas e podem ser tratadas".

 Na emoção do momento, Gupta (que, em geral, é competente e prudente) reiterou que sempre há sinais que nos avisam de que algo terrível está para acontecer. Seu exemplo? Veja: "Alguém está irritado e isolado, sofre de alucinações auditivas, tem paixão por armas e frequenta um estande de tiro".

 Diante desse quadro, lamentou Gupta, você não tem como chamar a polícia, pois ela não tem os meios legais para intervir. Por sorte, acrescento eu.

 Mais tarde, também na CNN, uma psiquiatra declarou que o atirador "era um perigo para sua própria família" (fácil de se dizer, sobretudo DEPOIS de ele ter assassinado a mãe). Segundo ela, fomos longe demais no respeito por doentes e perigosos: temos medo de prender as pessoas. A mesma psiquiatra disse que pessoas como o assassino, infelizmente, se recusam a serem medicadas.

 Ou seja, não é que nossos diagnósticos sejam imprecisos e tardios, nem que nossos remédios sejam insuficientes e precários. Também não é que a gente não saiba prever uma explosão de loucura assassina.

 Nada disso. Na sexta-feira, segundo a CNN, se tivéssemos os meios legais de internar e medicar à força, teríamos resolvido o problema definitivamente. Eu mesmo adoraria jurar, em cima das tumbas das vítimas de Newtown (e de milhares de outras, mundo afora), que, a partir de suas mortes, tudo mudará. Mas essas são palavras que apenas servem para nos consolar.

 2) Sou favorável ao movimento para que sejam verificados a sanidade (até onde possível, que é pouco) e os antecedentes dos que adquirem armas. Sou favorável à proibição da venda das armas de guerra --e talvez até de todas as armas. Mas, por favor, SEM ILUSÕES.

 No caso, em Connecticut, o controle já existe, e as armas usadas pelo assassino de Newtown eram devidamente registradas: elas pertenciam à mãe de assassino, uma de suas vítimas.

 O Japão tem uma legislação rigorosa contra a posse de armas. Justamente, em 2001, Mamoru Takuma, condenado à forca em 2004, entrou numa escola primária de Osaka e matou oito crianças --com uma faca.

 No Reino Unido, depois do massacre de Hungerford, em 1987 (16 vítimas, entre as quais a mãe do assassino --mais o assassino, que se suicidou), as armas automáticas e semiautomáticas foram banidas pelo Firearms (Amendment) Act, de 1988. No massacre na escola de Dunblane, na Escócia, em 1996 (morreram 16 crianças, um adulto --e o assassino, que se suicidou), foram usadas duas pistolas e dois revólveres. Em consequência, foi proibida a propriedade privada de todas as armas de mão. Isso não impediu que, em 2010, alguém, no condado de Cúmbria, Inglaterra, matasse 12 pessoas e ferisse mais 11, antes de se suicidar.

 Meus amigos caçadores, membros da National Rifle Association, pensam que não é bom proibir as armas: segundo eles, se as professoras, a diretora e a psicóloga de Newtown estivessem armadas e reagissem, o balanço do horror teria sido mais leve. O mesmo argumento poderia ser invocado pelo massacre na escola Municipal Tasso da Silveira, no Realengo, no ano passado. Mas você gostaria que suas crianças frequentassem uma escola em que os professores estivessem constantemente armados?

 Minha conclusão é a de que devemos agir, sim: controlar as armas de fogo, melhorar nossos diagnósticos. Mas, por favor, sem mentir para nós mesmos.

 Nossas ações acarretarão consequências mínimas: algumas vítimas talvez sejam salvas graças às novas disposições (isso já é muito), mas horrores parecidos com os que mencionei vão acontecer de novo --e nunca teremos como evitá-los, nunca teremos mesmo como preveni-los.

 Desculpem-me se o tema da semana foi sombrio. Mesmo assim, boas-festas a todos!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O devaneio é uma doença?



Enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para transformar o devaneio numa doença
CANSADA DE sonhar de olhos abertos, uma leitora, Ana, quer saber mais sobre devaneios: "Por que acabo sempre fugindo para esse lugar fictício, onde tudo pode ser tão melhor ou pior, um mundo do que poderia ser, do que poderia ter sido, da pior hipótese fantástica, pretéritos imperfeitos, mais que perfeitos, futuros incertos -e quando vejo, perdi tanto tempo com isso?".
Tenho carinho pelos sonhos de olhos abertos. Até o começo da adolescência, o devaneio era meu aliado contra o que me parecia ser a mediocridade do mundo.
Para mim, como para Ana, o devaneio era o país de onde eu vinha (minha origem escondida) ou minha pátria futura; de um jeito ou de outro, era meu passaporte para um outro mundo, que me salvaria de meu lugar e de meu presente.
Graças ao devaneio, assisti a centenas de aulas chatérrimas aparentando minha absoluta atenção (embora de olhos um tanto vidrados). Quando atravessei a dolorosa época em que os adolescentes menosprezam os seus pais, o devaneio me consolou, alimentando a certeza de que eu, de fato, pertencia a outra família.
Enfim, à força de contar histórias para mim mesmo, aprendi a contá-las para os outros.
O que fez com que, aos poucos, meu devaneio se acalmasse (por sorte, sem se exaurir)? Será que eu "amadureci"? Ou será que as aulas, o trabalho e os amores se tornaram interessantes, e a necessidade de sonhar diminuiu?
Na hora de explicar o excesso de devaneio, o adolescente tende a acusar a realidade na qual ele vive, a qual mereceria o enfado que ela lhe inspira. Mas, em geral, não há realidade enfadonha, apenas indivíduos enfadados, que, por alguma razão, não enxergam o encanto possível do dia a dia.
Ao devanear, eu me afasto da realidade. Por outro lado, sem devanear, mal consigo inventar e desejar realidades diferentes. O que é pior? Entre renunciar a devanear e sucumbir ao devaneio, talvez seja pior renunciar a devanear.
Infelizmente, enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para transformar o devaneio num transtorno, se não numa doença. Desde um texto de 2002 no "Journal of Contemporary Psychotherapy" (revista de psicoterapia contemporânea,http://migre.me/cjDUi), monitoro a ascensão do "transtorno" de devaneio excessivo e "mal-adaptativo" (ao mesmo tempo, desadaptado e capaz de comprometer nossa adaptação ao mundo).
Rapidamente, os blogs se multiplicaram -tanto de pessoas se queixando de seus devaneios excessivos como de médicos interessados em registrar o novo transtorno e propor uma cura. Dez anos atrás, o devaneio era considerado como fuga de um provável abuso infantil. Hoje, é possível ser sonhador sem ter sido abusado; é um alívio.
No fim de 2011, foi publicada, em "Consciousness and Cognition" (consciência e conhecimento), uma pesquisa detalhando o sofrimento dos sonhadores compulsivos (http://migre.me/ciyPG): blogs e sites fizeram uma festa.
Aprendemos que os sonhadores de olhos abertos sentem vergonha de sua condição. Eles se escondem, mas podem ser identificados porque, sem se dar conta, enquanto sonham, eles atuam seus devaneios em gestos e palavras (ou seja, falam sozinhos). Enfim, eles precisam ser ajudados porque tudo isso leva a ansiedade e depressão.
Li recentemente, num blog, a carta de uma mãe preocupada porque o filho, de sete anos, não para de sonhar em proteger o mundo contra os malvados ou em distribuir dinheiro aos pobres. Será que, nas próximas décadas, o devaneio ocupará o lugar do transtorno de deficit de atenção?
Desde 2008 (http://migre.me/ciyZL), alguns garantem que a fluvoxamina (remédio, em tese, para transtornos obsessivo-compulsivos) cortaria o devaneio excessivo. Se os laboratórios decidirem que medicar o devaneio é um bom negócio, que Deus acuda as crianças.
O devaneio excessivo é o hábito de Dom Quixote, Madame Bovary, dois terços dos adolescentes, quase todos os autores de novelas e romances etc. Transformar esse hábito, tão humano, em "transtorno", é uma tentativa de regular nossas vidas com a desculpa higienista: tudo nos é imposto para nossa "saúde" e nosso bem. Pararemos de sonhar porque é mais "saudável" prestar atenção só no que está na agenda de hoje?
No fundo, nada disso me estranha. Desde o século 19, as regras para uma vida saudável (física e psíquica) são nossa nova moral. E esse ataque contra o devaneio era previsível: qualquer forma de poder prefere limitar os sonhos de seus sujeitos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O fim da infância?

Quando as notícias comunicam o número de mortos e feridos num atentado, numa catástrofe ou numa chacina, nunca falta o número de crianças.

Podemos não saber se morreram mais homens ou mulheres, mas, se houve crianças entre as vítimas, seremos informados. E, das imagens que a reportagem nos mostrará, a mais tocante será a de um pai ou de uma mãe, carregando o corpo inerte do filho ou da filha. Menos de dois séculos atrás, a frase "houve 12 vítimas, entre as quais quatro crianças" produziria provavelmente um pequeno alívio, como se a perda das crianças fosse menos deplorável do que a dos adultos. Hoje, é o inverso. Da mesma forma, hoje, se a imprensa escrevesse que houve, entre as vítimas, cinco idosos, reagiríamos pensando que é uma pena, claro, mas, menos mal: eles já estavam de saída.

Ora, um hipotético leitor de dois séculos atrás pensaria que os idosos são a perda irreparável: afinal, uma criança, ninguém sabe no que ela vai dar, enquanto um idoso é patrimônio consolidado. Num incêndio, você prefere que queime um caderno quase virgem ou o outro, no qual você anota seu diário há décadas? A mostra "The Century of the Child" (o século da criança), no Museum of Modern Art, de Nova York, fechou em 5 de novembro. Mas o catálogo (com o mesmo título, publicado pelo próprio museu) é melhor que a mostra: os documentos que foram expostos são todos reproduzidos e acompanhados por uma coletânea de ensaios excelentes.

 A tese geral é que, de 1900 a 2000, foi inventado e construído um mundo especificamente destinado às crianças e a suas necessidades presumidas, na sala de aula e na casa, na hora de aprender, de brincar e de se divertir. Ao longo desse século, as crianças deixaram de ser consideradas como adultos em miniatura ou incompletos para se tornar uma espécie autônoma e, supostamente, melhor do que a nossa --em tese, sem as más influências dos adultos, elas poderiam ser geniais, inocentes e puras como o bom selvagem. Pouco importa se perguntar o que é realmente uma criança e de qual barbárie ela seria capaz sem a ajuda dos adultos.

A invenção da especificidade da infância não diz nada sobre as crianças em si, mas revela algo sobre os adultos. Pois essas crianças, tão diferentes de nós, encarnam o que gostaríamos de ser. Dois exemplos. 1) O quarto de criança de classe média (o habitat infantil idealizado) é dominado pela estética do fofo. Os adultos se livram do desconforto da arte e das incertezas do gosto para "apreciar' sem culpa patinhos de madeira, bonecos, florzinhas e estrelinhas no teto. Eles também se livram da história: nenhum móvel e nenhum objeto antigos (a higiene é a desculpa).

Com esse interior atemporal, de conto de fada, o adulto moderno, atormentado por um irremediável desamparo existencial (falta de pátria, de classe, de tradição, se não de família), inventa, para a criança, a caricatura do amparo que ele deseja para si. 2) Quase no meio do século da criança, em 1938, Johan Huizinga publicou "Homo Ludens" (o homem que joga - ed. Perspectiva) --o clássico, que, como se sabe, situa o jogo como atividade humana por excelência.

Vale a pena lê-lo ou relê-lo pelo prazer, e também para entender quanto e como a proposta de Huizinga foi, por assim dizer, extraviada --resultando numa massa de escritos em favor do divertimento, do ócio, das férias, do brincar e do infantil como atividades muito mais humanas, produtivas e interessantes do que o trabalho, a concentração, a reflexão e a maturidade. Entende-se que crescer tenha se tornado difícil para as crianças, pois elas não podem parar de brincar, ou seja, de encenar a "virtude" do jogo, que nós, supostamente, perdemos. No começo do catálogo que citei, Juliet Kinchin, curadora, escreve: "Falando solenemente para a câmera em 1995, como parte do documentário ficcionalizado 'Children´s Video Collective', um menino faz a predição seguinte: 'No futuro, as crianças não existirão mais.

Minha geração é provavelmente a última geração de crianças. Ou melhor, a última geração a ter a experiência da infância. Isso não significa necessariamente que chegou o momento de guardar as coisas da infância. Ao contrário, isso pode significar que o uso das coisas da infância talvez acabe sendo prolongado indefinidamente, até a morte'". Ou seja, a infância não vai acabar, mas os adultos já estão em extinção.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Decisões morais



Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois assaltantes; você vai acelerar?

É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está nervoso e a fim de matar.

Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados, que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados, divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um lugar onde isso é possível e corriqueiro.

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos assaltados e de todos nós.

Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?

Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai acelerar?

Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir "segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a "legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados -não é verdade?

Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado. Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você vai dormir tranquilo?

Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?

Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se esconder atrás do volante.
O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.

Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.

Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme excelente, que não me sai da cabeça, "Disparos", de Juliana Reis, em cartaz desde sexta passada.

"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja, hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).

O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças -goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.

Para crianças como para adultos, "aprender" ética significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes, insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só melhora à força de encarar dilemas.

Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir (e levar nossos adolescentes) ao cinema. "Disparos" é um filme perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos vivendo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A menina que se achava 007


 Por que uma menina de 13 anos entende um filme de James Bond, mas não a tragédia de uma família? 

 ASSISTI, NESSES dias, a um documentário bonito e tocante, "Diário de uma Busca", de 2011. 

 A autora, Flavia Castro, investiga a morte misteriosa de seu pai, Celso Afonso Gay de Castro. Junto com um amigo, também militante de esquerda durante a ditadura, Celso morreu ou foi morto, em 1984, em Porto Alegre, no apartamento de um alemão que teria sido oficial nazista. 

 Na tentativa de entender o que aconteceu, Flavia reconstrói sua própria infância durante a clandestinidade e o exílio dos pais, nos anos 1960 e 1970, por Argentina, Chile, França e Venezuela. 

 Achei que uma menina como S., 13 anos, gostaria do filme, e a deixei em frente à TV, aparentemente interessada. Meia hora mais tarde, S. estava no meio da reprise de "007 - Cassino Royale", o James Bond de 2006, que ela já vira duas ou três vezes. Ela me disse que tinha parado o documentário porque "não entendia o que acontecia na história". 

 Ou seja, uma menina inteligente de 13 anos "entende" sem problema que Bond mate um tal Mollaka, explodindo, no Madagascar, a embaixada do país de Nambuto (?), e logo ele reapareça na casa de M. na Grã-Bretanha -ou talvez ele reapareça (não me lembro mais) nas Bahamas- para seduzir a mulher de Dimitrios. A mesma menina não entende a fuga de um militante de 40 anos atrás -aliás, nem estou certo que ela entenda o que era um militante de 40 anos atrás. 

 Tudo bem, lamento a mediocridade do ensino e, em geral, a futilidade da conversa dos adultos. Mas há uma outra razão, talvez mais importante, que faz que, para S., seja mais fácil entender as aventuras fantásticas de Bond do que a tragédia real da família Castro. 

 É aqui que a leitura de "O Homem que se Achava Napoleão - Por uma História Política da Loucura", de Laure Murat (Três Estrelas), torna-se indispensável. 

 Murat mostra exaustivamente como, da Revolução Francesa até a Comuna de Paris, os acontecimentos políticos e sociais modelaram a loucura e os delírios. Claro, no meio do Terror, com suas incessantes execuções públicas, era mais fácil do que hoje que alguém acreditasse ter sido decapitado e andar pelo mundo com a cabeça de outro, erroneamente instalada no seu pescoço. 

 Mas as implicações do livro de Murat são mais gerais e radicais. Como mostra Jurandir Freire Costa no breve mas importante prefácio, a questão é: "Em que medida a loucura pode ser dissociada da atmosfera cultural que a cerca?". 

 Como Murat (e como Freire Costa), tendo a pensar que cada cultura (e cada época de cada cultura) dá forma a sofrimentos psíquicos que lhe são próprios. 

 As revoluções do fim do século 18 produzem um homem novo, de quem ainda somos os herdeiros. 

 Esse homem novo é levado a "apreender a ordem do mundo através de sua subjetividade": ele "se identifica com os personagens do romance psicológico", "funda a introspeção como meio de conhecimento" e, sobretudo, ele é obrigado a reconhecer que a autoridade não é mais um atributo dos padres, dos nobres ou dos anciões. Ele mesmo, esse homem novo, deve decidir no que acreditar, seguindo seu foro íntimo e suas convicções. 

 Uma parte dos transtornos modernos derivam da incerteza de quem abandonou sua confiança tranquila nas tradições laicas ou divinas. Mas talvez esses não sejam os transtornos mais graves. 

 Bem na aurora da modernidade, Philippe Pinel, o inventor da psiquiatria, observa que, de todas as formas de mania, duas são incuráveis: "os inchaços do orgulho e o fanatismo religioso". 

 Laure Murat entende que Pinel, aqui, está sendo "político", transformando em doenças incuráveis as paixões dos grandes inimigos da Revolução Francesa (os aristocratas são "orgulhosos", e o clero é "fanático"). 

 Mas eu acho que Pinel, nessa observação, está também descrevendo com propriedade os transtornos mais graves da modernidade, que são reativos. É contra a angústia de ter que inventar e sustentar nossas próprias crenças que adotamos fanatismos religiosos nostálgicos ou fantasias grandiosas e heroicas nas quais imaginamos que somos as pedras angulares do mundo, invencíveis, imortais, extraordinários e únicos. Esse "inchaço do orgulho", aliás, é o que mais gostamos de transmitir a nossas crianças, para que continuem tão grandiosas e heroicas quanto nós somos, em nossas delirantes fantasias. 

 Entende-se por que S., 13 anos, acha que uma história de James Bond é mais compreensível do que a incerteza e a dureza do destino da família Castro.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A fé no progresso


 A ideia de progresso 'natural' é falsa. Na história, nada é garantido: tudo é, sempre, conquistado 

 ASSISTI A "Lincoln", o novo filme de Spielberg, no dia da estreia, na sexta-feira passada, numa lotadíssima sessão da tarde, em Manhattan. No Brasil, "Lincoln" chegará só no fim de janeiro. 

 O filme, que é uma obra-prima imperdível, se concentra sobre o esforço político de Lincoln para que a Câmara dos Representantes ratificasse, em 1865, a 13ª emenda da constituição dos EUA -a que aboliu a escravatura no país. 

 A escravatura era a aposta central da guerra, que durava havia quatro anos, entre o Norte e o Sul escravocrata. Mas, mesmo no Norte, nem todos eram abolicionistas, e muitos temiam que os negros liberados se tornassem um dia cidadãos e, pasme, pudessem votar. 

 Ninguém, naquela sala de cinema, na sexta passada, podia evitar de pensar que, três dias antes, o país reelegera seu primeiro presidente negro. Em menos de 150 anos, foi um progresso e tanto. 

 Falo de progresso só porque essa mudança promove valores nos quais aposto: quando eles avançam, acho que a gente progride. Não acredito na ideia de uma evolução "natural" da civilização (nota para os amigos filósofos: concordo com Voltaire, não com Condorcet, ainda menos com Saint-Simon). 

 Lembro-me de discussões intermináveis, no fim dos anos 1960, com Nicola, um jovem salernitano que fazia uma pós-graduação em geologia do petróleo em Genebra e que era decididamente anticomunista. A cada almoço, eu e meu amigo Enzo tentávamos convencer Nicola de que o futuro do socialismo seria radioso. Não funcionava. 

 Um dia, achei um escrito (filosoficamente duvidoso, mas de uma procedência que pareceu confiável a Nicola) segundo o qual, radioso o não, o futuro socialista era inelutável, previsto pelo marxismo "científico". Nicola acreditava na ciência, era ingênuo, e o texto o abalou. Não sei se ele se converteu, mas sumiu do restaurante universitário durante um tempo, e a gente se perdeu de vista. 

 Bom, Nicola, é um pouco tarde, mas talvez você esteja trabalhando numa plataforma do pré-sal e leia este jornal (o mundo é pequeno, mesmo). Nesse caso, aceite minhas desculpas: o marxismo "científico" é uma ideia calhorda, e o comunismo nunca foi inelutável. Já naquela época, aliás, eu sabia que nada acontece na história sem o engajamento subjetivo dos atores (por isso preferia, por exemplo, Henri Lefebvre a Louis Althusser -e por isso continuo gostando de Alain Badiou, porque ele nunca deixou de pensar que, sem engajamento dos sujeitos, não acontece nada, não há progresso algum). 

 Tudo isso parece óbvio? Vamos devagar: o sonho comunista pode estar morto, mas nossa (cômoda) crença num progresso "natural" e garantido continua bem viva. 

 Por exemplo, na semana passada, na eleição americana, junto com a vitória de Obama, aconteceu a derrota de dois candidatos a senador cuja oposição à legalização do aborto (mesmo em caso de estupro) era de um machismo e de uma estupidez ultrajantes. Na mesma eleição, houve também Estados que aprovaram o casamento de pessoas do mesmo sexo. 

 Nasci e cresci numa Itália em que a desigualdade de fato e de direito era sinistra, e o amparo era pouco. Nesse mundo, as mulheres estavam longe de ter direitos comparáveis aos dos homens, não existia divórcio, qualquer aborto era criminoso, o consumidor de droga era igualado ao traficante, e a homossexualidade era uma vergonha que era melhor esconder. 

 Para que essas realidades mudassem, lutei -ou seja, junto com muitos outros, votei, escrevi, desfilei, militei. Mesmo assim, tenho a estranha impressão de que fomos carregados por uma espécie de movimento "natural", ao qual era possível resistir, mas que sempre ganharia no fim -um progresso na direção do grande ideal cristão: a maior liberdade possível dos indivíduos sem renunciar à solidariedade. 

 Essa impressão de progresso "natural" é falsa e perigosa. Na história, nada é garantido: tudo é, sempre, conquistado. 

 O que nos separa de outros mundos possíveis (e horríveis) não é a inelutabilidade do progresso, mas a obstinação de pequenos grandes gestos. Entre nós e as trevas, há o corpo ferido de Malala Yousafzai, 14, baleada na cabeça pelo Talibã paquistanês porque promovia o "secularismo' (ou seja, queria ir para a escola e pensar com a sua cabeça). 

 Ou, a coragem da catarinense Isadora Faber, 13, que continua seu "Diário de Classe" on-line, embora hostilizada por professores, por administradores e talvez por um pintor negligente (Folha, 11 de novembro).

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Notas do diário das eleições nos EUA


 A austeridade é um remédio religioso para a crise: gastamos e pecamos, o perdão virá pela penitência 

 3/11 - Observadores, dentro e fora dos EUA, dizem que o país está dividido, "polarizado" entre dois extremos. Mas de que extremos estão falando?

 À direita, existe, de fato, um extremismo, que hoje é encarnado pelo movimento Tea Party e que conta com representantes eleitos. Por que é um extremismo? Um traço decisivo é o revisionismo histórico: para conferir um selo de nobreza às suas ideias, o pessoal promove qualquer lorota sobre o passado dos EUA -sobre o que teriam pensado os pais fundadores, sobre o "verdadeiro" sentido da constituição etc.

 Outro traço é o fundamentalismo religioso, que se expressa em ideias assustadoras, como as do candidato ao Senado para quem, se uma mulher estuprada ficar grávida, é que, na verdade, ela gostou.

 Mas à esquerda não existe nada equivalente. Ou, se existe, é tão recente e marginal quanto o movimento Ocupe Wall Street.

 Uma consequência dessa disparidade foi notada por E. J. Dionne (no ótimo livro sobre a pretensa polarização dos EUA, "Our Divided Political Heart", nosso coração político dividido, Bloomsbury, 2012).

 Quando Romney promete governar próximo do centro, e não segundo a vontade da maioria de seus eleitores republicanos, sua promessa faz sentido, e podemos esperar que ele seja menos truculento do que muitos parlamentares de seu partido.

 Mas, quando Obama faz uma promessa análoga, ele promete se afastar de qual esquerda "extrema"? Como ele faria concessões para governar o país ao centro, visto que ele já é e sempre foi o centro?

 4/11 - O psicólogo Drew Westen é autor de um livro notável sobre a irracionalidade das escolhas políticas, "O Cérebro Político" (Unianchieta).

 Num artigo no "New York Times" de hoje, ele afirma que, seja qual for o presidente eleito, a guinada será à direita. Eis a argumentação. 1) Se Romney perder, seu partido pensará que foi porque ele não se mostrou suficientemente conservador; 2) se Obama perder ou ganhar por um fio (dá na mesma), seu partido pensará que ele perdeu (ou quase) porque se arriscou à esquerda além da conta ou antes da hora (e, com isso, assustou os americanos, com a reforma da assistência médica e com a política de subsídios à economia).

 Ou seja, é como se todos se preocupassem com o que pensa uma suposta maioria de direita.

 Ora, na campanha eleitoral, Romney ganhou intenções do voto quando ele começou a desmentir tudo o que ele tinha proposto antes, tomando posições mais progressistas. E Obama recuperou sua popularidade quando começou a atacar agressivamente os privilégios fiscais dos mais ricos. Ou seja, talvez o eleitorado seja menos "de direita" do que pensam os candidatos e os políticos.

 5/11 - Eis um exemplo da tese de Westen sobre o importância das emoções nas escolhas políticas. Os republicanos se dizem conservadores fiscais; segundo eles, o governo não deveria estimular a economia, mas praticar a austeridade e reduzir o deficit.

 Em geral, essa "austeridade" se traduz no fato de que o povo se austeriza e alguns lucram com a austeridade dos demais. Mas, fora qualquer consideração econômica, o discurso da austeridade (tanto nos EUA como na Europa) evoca a ideia religiosa de penitência. Gastamos muito, pecamos -e agora só obteremos o perdão divino passando por uma merecida penitência (jejum, autofustigação e austeridade como soluções para a crise).

 6/11 - Hoje, no distrito da rua 48 West, em Nova York, as filas eram longas. Levei duas horas para votar. Bom sinal para os democratas. Mas Nova York significa pouco numa eleição -a cidade sempre foi um reduto democrata. Mais significativos, nos últimos dias, foram os apoios a Obama de dois republicanos, o governador de Nova Jersey, Chris Christie, e o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg. Será que a dureza do furacão Sandy, por um momento, aboliu o caráter abstrato das oposições eleitoreiras e permitiu pensar no "bem comum"?

 6/11 - Obama ganhou: alívio. Uma vitória de Romney daria força, inevitavelmente, às ideias da parte pior do partido republicano. Alguns dirão que essas não são as ideias de Romney, por mais que ele as tenha defendido na campanha. Justamente, este teria sido o problema maior de uma presidência Romney: ao longo de toda a campanha, ele me apareceu como um homem sempre pronto a se transformar de maneira a ser exatamente como seus interlocutores do momento desejavam que ele fosse.

 É uma qualidade? Talvez, num candidato. Num presidente dos EUA, seria catastrófico.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Segurança (uma modesta proposta)


 A certeza de que o socorro será precário, lento ou ausente alimenta a sensação de insegurança 

 A CIDADE de São Paulo está insegura como não estava há tempos. Claro, estão acontecendo ataques mortíferos contra policiais e prováveis execuções dos supostos responsáveis por essas mortes. Mas não é só isso.

 A nova insegurança de nossas ruas é óbvia para qualquer paulistano, no aumento dos crimes contra ele mesmo ou contra seus próximos. No dia 21 último, a morte de Caroline Silva Lee, de 15 anos, confirmou o que já sabíamos: a cidade, absurdamente perigosa, parece voltar aos piores momentos do fim dos 1980 e começo dos 1990.

 Naquela época, as grandes acusadas eram a exclusão social e a desigualdade excessiva de nossa sociedade. Hoje, parece mais provável que alguns jovens da novíssima classe C estejam adotando, como símbolo de status, uma necessidade imperiosa de consumo -e isso sem incorporar hábitos menos tentadores e menos conspícuos da classe média (ética do trabalho, meritocracia etc. Nota: melhorias socioeconômicas não implicam necessariamente melhorias do tecido social da comunidade).

 Hoje, como naquela época, é pífia, se não nula, a confiança dos cidadãos no socorro da força pública.

 A prova disso está nas estatísticas apresentadas pela Folha na sexta, 26, (http://migre.me/bsb4k). Em 2012, os latrocínios (roubo seguido de morte) aumentaram 27% em relação ao mesmo período de 2011 e os roubos de veículos aumentaram 13%, enquanto os roubos simples aumentaram apenas 4%. Nenhum mistério nessa disparidade: o crime é denunciado quando há morte ou roubo de veículo (o seguro pede o boletim de ocorrência). No mais, chamar a polícia e registrar a ocorrência é fora de questão: já pegaram meu relógio, vão querer meu tempo também?

 Silogismo. 1) A certeza de que o socorro será precário, lento ou ausente alimenta a sensação de insegurança; 2) a sensação de insegurança entrega a rua aos criminosos; 3) diminuir a sensação de insegurança seria uma maneira de combater a insegurança efetiva da cidade.

 Um carro de bandidos em fuga capotou na sua frente atropelando duas pessoas, que agora gemem debaixo do carro revirado. Você, escondida, tem como dar um telefonema.

 Qual é o número mesmo? Dos bombeiros, para que levantem o carro acidentado e salvem os atropelados? Seria 193, se não me engano. Da Polícia Militar? Esse, a maioria das pessoas conhecem: 190. Ou da Polícia Civil? Seria 147, é isso? O pronto-socorro médico é 192, mas será que são eles que despacham as ambulâncias?

 O 190 responde, em tese, no primeiro ou segundo toque. Já, se você for atrás de uma ambulância, pode acontecer a situação descrita num tweet de @toledoana (em "Mdrama", SP Escola de Teatro, Gov. do Estado): "Você ligou para Godot. Por favor, aguarde na linha. Sua ligação é muito importante para nós".

 A segurança pública deveria ter um número único, que respondesse obrigatoriamente com a rapidez que constatei no 190. Quem atende deveria 1) decidir qual é o socorro certo e despachá-lo (ambulância, guindaste, polícia) com a urgência adequada, 2) permanecer na linha, assistindo quem ligou até a chegada do socorro, 3) preparar, enquanto isso, o encaminhamento do socorro (encontrar e prevenir o melhor hospital de destino, por exemplo).

 No atendimento, a prioridade deveria ser saber o local e a natureza da urgência (o CPF e o RG de quem chamou não são condições para escutar e assistir).

 A rapidez e a competência desse atendimento unificado seriam uma piada de mau gosto se não houvesse um tempo de resposta decente entre a chamada e a chegada do socorro.

 As unidades móveis de socorro (carros das polícias e dos bombeiros, ambulâncias públicas ou privadas) já dispõem (ou deveriam dispor) de GPS, de maneira que pode ser monitorada constantemente a cobertura do território do município, garantindo que nenhuma área esteja fora de um alcance rápido.

 Em Nova York, o tempo médio é de quatro minutos para os bombeiros e oito minutos para a polícia (esse tempo desce drasticamente se a urgência for uma ação criminosa armada em curso).

 Que tal propor uma meta -um tempo médio de resposta- até o fim do ano? Muitas vezes, de qualquer forma, os socorros chegarão tarde demais, mas 1) será possível medir, em cada caso, onde e por que se originou o atraso e, sobretudo, 2) será bom os cidadãos sentirem que, na hora em que eles pedem socorro, alguém se apressa.

 Como disse, a segurança é, antes de mais nada, uma sensação.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Silêncio e barulho das emoções


 Qual é o transtorno? A falta de emoções dos filhos? Ou o excesso das emoções dos pais "baby boomers"? 

 AS ELEIÇÕES esquentam os ânimos. As promessas duvidosas de tal ou tal outro candidato me irritam, assim como as propostas que são perigosas para minha liberdade ou repugnantes para meu sentimento de justiça. 

 Mas o que me indigna mais é a paixão partidária em si, seja qual for seu conteúdo -mesmo quando ela promove ideias com as quais concordo. Tanto faz que eu prefira melhorar o transporte em São Paulo ampliando o metrô ou a rede de ônibus, de qualquer forma, se alguém ficar na esquina pulando e gritando "Serra!" ou "Haddad!", aquilo vai me deixar perplexo (isso, a não ser que ele seja pago para mostrar seu entusiasmo -nesse caso, entendo, sem problema). 

 Na verdade, todas as emoções -da paixão partidária ao espírito torcedor, passando pelo amor, a saudade, o ciúme, o ódio etc.-, aos meus olhos, são quase sempre excessivas: transportes descontrolados ou atuações caricatas. Longe de serem reações adequadas a circunstâncias externas, elas me parecem ser teatralizadas (se não produzidas) por nós mesmos. Teatralizadas por quê? 

 Oscar Wilde disse um dia que as aquarelas de Turner inventaram o pôr do sol -pois, se não fosse pela pintura de Turner, nem pararíamos para contemplar as cores do crepúsculo. Algo análogo poderia valer para emoções e sentimentos. 

 Alguém ama do jeito sofrido do jovem Werther com Charlotte? Ou ele imita a paixão de Werther para convencer aos outros e a si mesmo de que ele ama? Alguém enlouquece de ciúme como Otelo ou ele imita a loucura de Otelo para convencer a si mesmo e aos outros de que ele está com ciúme? 

 Além disso, desde os anos 1960, assistimos a uma valorização das emoções, como se sua livre expressão fosse a marca da autenticidade. 

 Sem suspeitar que talvez estejamos expressando emoções muito além do que realmente sentimos, consideramos a ausência de emoções como um defeito, num arco que vai da frieza (considerada dissimuladora) até verdadeiros transtornos, como atimia (falta de emoções) ou alexitimia (incapacidade de expressar emoções). 

 Sem dúvida, há indivíduos que não sentem, não reconhecem nos outros e não expressam emoções. Eles não se confundem com os psicopatas, que precisam reconhecer perfeitamente as emoções dos outros, para manipulá-los. Quem são, então, os atímicos? 

 Estou assistindo a um extraordinário seriado sueco da BBC Four, "The Bridge" (http://www.bbc.co.uk/programmes/b01gxlxj). A policial da história é um exemplo perfeito de atimia e alexitimia. 

 Ela interroga por telefone um homem que está preso dentro de um carro-armadilha, que vai explodir em dois minutos. O homem, desesperado, não consegue pensar nem responder. Nossa policial não entende: qual é o problema? O fim do homem vai ser imediato, sua vida vai parar sem sofrimento. Para que o desespero? 

 Uma noite, a policial está a fim de sexo. Ela vai para uma boate e troca um olhar com um moço, o qual pergunta se ele pode oferecer um drinque. A policial responde "Não". O moço se afasta. A policial o segue e lhe pergunta por que ele foi embora. "Porque você disse não", responde o homem. E a policial explica que ela não queria um drinque, queria sexo. 

 A atimia (que estaria aumentando) é provavelmente uma falha de comunicação entre os hemisférios do cérebro. Alguns dizem que seria causada por pais frios e distantes, que desejam e encorajam muito a autonomia dos filhos. Subtexto: os pais que prezam os valores da modernidade estariam produzindo crianças alexitímicas. 

 Tendo a pensar o contrário. E constato que há adolescentes que fogem para a aparente "frieza" da alexitimia porque, de fato, eles não aguentam o excesso de emoções teatralizadas pelos pais. 

 Nesse caso, qual é o transtorno? A falta de emoções dos filhos? Ou o excesso das emoções dos pais "baby boomers"? 

 "Alexithymia" é uma música de Anberlin, um grupo de rock que aprecio. As letras dizem : "So very hard to breathe. My mask is growing heavy but I've forgotten who's beneath" (difícil respirar, minha máscara se tornou pesada, mas eu me esqueci de quem é que está debaixo dela). O título sugere que a letra é menos óbvia do que parece. 

 A máscara que pesa e nos sufoca talvez não seja (no estilo 1960) a cara impassível que esconderia nossas emoções reprimidas. As máscaras que pesam e nos sufocam talvez sejam as que vestimos para expressar e teatralizar emoções excessivas e obrigatórias, que todos esperam de nós.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Quanto vale uma virgem?

 Comprando uma hora com a virgem prostituta, alguns sonham juntar, por uma vez, amor e desejo 


 Uma catarinense de 20 anos, Catarina Migliorini, está leiloando sua virgindade. Isso acontece no quadro de um programa da televisão australiana, "Virgins Wanted" (procuram-se virgens), "mezzo" documentário "mezzo" reality show (a Folha de 26 de setembro publicou o depoimento da moça, http://acervo.folha.com.br/fsp/2012/09/26/15). Os lances são dados pela internet; quem ganhar o leilão receberá seu lote durante uma hora, dentro de um avião que sobrevoará o Pacífico.

 O leilão devia terminar na segunda passada, mas foi prorrogado até 25 de outubro. Hoje, a virgindade de Catarina está valendo mais de R$ 500 mil. Concordo com Hélio Schwartsman (na Folha de domingo passado): a questão interessante, nessa história, não é a conduta da moça, mas a extraordinária valorização da virgindade.

 Schwartsman foi procurar respostas em Paul Bloom, um psicólogo evolucionista, que eu não levo muito a sério, mas que acho engraçado (o que já é um ponto a favor).

 Segundo Bloom (e outros evolucionistas, mas não todos -por sorte da disciplina), nossa maneira de pensar (no caso, nosso apreço pela virgindade) é um resto da maneira de pensar de nossos antepassados do Pleistoceno (que é quando o homem apareceu na Terra).

 Não sei como Bloom sabe das ações e dos pensamentos do homem pré-histórico, mas, segundo ele, o homem do Pleistoceno queria sobretudo propagar SEUS genes, não os dos outros; portanto, ele preferia mulheres virgens. Aviso prático ao leitor: cuidado, casar com virgem não garante que a dita virgem engravide só da gente -a vida é longa. Fora isso, o homem do Pleistoceno, segundo Bloom, se preocupava muito com a sobrevivência dele mesmo, de seu clã e de sua espécie. Ou seja, por determinação biológica, ele era parecidíssimo com um ocidental do século 19. Por que será?

 Enfim, meus informantes do Pleistoceno (diferentes dos de Bloom), além de não saberem o que é um gene, tampouco sabem que é transando que se engravida uma mulher. Os poucos com os quais conversei confessaram, aliás, que eles preferiam mulheres que não fossem virgens, pois, percebendo que corticoides e antibióticos levariam tempo para serem inventados, eles estavam com muito medo de esfolar seu membro.

 Bom, trégua de ficção científica e vamos para a experiência concreta.

 A virgindade feminina era um bem apetível no interior da Itália central, quando eu era criança, e o código de honra mandava pendurar na janela o lençol manchado de sangue depois da primeira noite de núpcias. Havia desonra na ideia de que a mulher, tendo amado outro homem, fosse a aliada de um grupo diferente do clã do marido e do dela (traição mais séria do que qualquer brincadeira carnal ou amorosa); e havia desonra na suposição de que o marido não tivesse sido capaz de deflorar sua esposa. O lençol resolvia a questão.

 O código de honra é aquela coisa pela qual é preciso estar disposto a morrer. Ele não é do Pleistoceno, mas é muito mais antigo do que o século 19, onde floresceu a ideia de que os indivíduos, os grupos e mesmo as espécies só querem evitar a extinção e onde parecem viver os homens do Pleistoceno de Paul Bloom.

 Código à parte, a virgem tem uma série de atrativos. 1) Para ela, por mais que sejamos medíocres, seremos inesquecíveis. 2) Diante dela, em tese, seremos sem rivais (doce ilusão e mais um conselho prático: em matéria de amor, melhor rivalizar com um outro real do que com a idealização de outros apenas sonhados). 3) A ignorância sexual da virgem alimenta a ilusão de que podemos lhe ensinar alguma coisa e que, portanto, sabemos algo sobre o sexo.

 Mas os atrativos da virgem empalidecem diante dos atrativos da virgem prostituta -requisitadíssima: há leilões de virgens prostitutas pelas zonas do Brasil inteiro. Por quê?

 Muitos homens vivem divididos entre dois tipos de mulher: a "puta", que eles desejam, mas que não conseguem amar, e a virgem, que eles amam perdidamente, mas que eles não conseguem desejar (ela é linda, pura e intocável, como a mãe).

 A figura da virgem prostituta carrega em si essa contradição: como virgem, ela é parecida com a mãe, intocável e apenas amável, mas, por ser prostituta, ela é desejável e acessível. Comprando uma hora com a virgem prostituta, alguns talvez sonhem juntar, por uma vez, amor e concupiscência; é uma fantasia poderosa: a de conseguir, enfim, reverenciar amorosamente um corpo ilibado, mas sem renunciar a sujá-lo com seu desejo. A esses alguns, boa sorte no leilão!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Eleições e debates


 Quem vota em alguém por um jingle? Pois é, numa campanha, os candidatos não passam de jingles 

 Na quarta da semana passada, assisti ao primeiro debate entre Barack Obama, presidente dos EUA, e Mitt Romney, o republicano que disputa com ele a Presidência.

 A atitude quase deprimida de Obama contrastava com a performance de Romney, que, inesperadamente (para quem o viu anteriormente), parecia confiante, bem-humorado e até capaz de compaixão.

 Não há quem discorde: Romney ganhou o debate. Mas cuidado: isso não significa que ele demonstrou a superioridade de suas propostas. Um debate eleitoral não compara as diferentes soluções aos problemas do país -até porque, nele, para uma maioria na qual me incluo, muito do que os candidatos dizem é imponderável.

 Obama e Romney travaram, no debate, uma guerra de argumentos e números impossíveis de serem verificados. Tanto faz, pois o que é esperado não é que o espectador adote um plano ou uma ideia, mas que ele escolha um candidato.

 Alguns acharam que o debate presidencial dos EUA, por mais chato que fosse, era muito "melhor" do que nossos debates políticos, supostamente dominados por argumentos genéricos e apenas "sedutores". Penso diferente: o debate presidencial dos EUA, por mais aparentemente racional que fosse, era um duelo de charmes e não de argumentos (ainda menos de números).

 O único componente mais ou menos racional da escolha vem da tradição política do eleitor (prefiro Obama porque sou democrata). Mas o que acontece na ausência dessas preferências políticas preestabelecidas? Pergunte aos marqueteiros, que, cá entre nós, não são misteriosos "persuasores ocultos" (como dizia o título de num livro clássico de Vance Packard), mas apenas conhecedores dos diferentes caminhos pelos quais um produto nos seduz.

 Tanto faz que seja o tom, o sorriso confiante, a familiaridade ou, às vezes, seu contrário, a distância: de qualquer forma, nossa preferência será o efeito de retóricas pela quais, em tese, devemos ser conquistados.

 Durante a campanha paulistana, por duas vezes, um caminhão com alto-falantes e bandeiras ao vento se instalou na av. 9 de julho, a duas quadras de meu escritório e, durante horas, não tive como escapar à idiotice de um jingle "O meu prefeito é Fulano...". Pensei: se estivesse nos EUA, poderia folhear um catálogo de rifles de longa distância. E depois, mais seriamente: mas por que fazem isso? Quem vota em alguém por um jingle?

 Pois é, esse segundo pensamento não percebe algo essencial: numa campanha, seja ela paulistana ou norte-americana, todos os candidatos não passam de jingles. Os argumentos numéricos e aparentemente racionais do debate presidencial dos EUA eram pretextos para trejeitos retóricos "à la Tiririca". Desses, se espera que eles nos conquistem -isso, sem nenhuma crítica ao deputado Tiririca, pois, ao contrário, o que estou afirmando é que, no fundo, todas as campanhas são equivalentes à que ele fez.

 Nesse contexto, alguns candidatos pedem que a coisa mude e todos discutam seriamente os problemas e as propostas. O que resulta disso é apenas mais um trejeito, que diz "Olhem para mim, sou sério, e é disso que vocês vão gostar".

 Enquanto essas divagações me distraiam do debate, pensei num título para um livro sobre Obama (copiado de Peter Handke, "O Medo do Goleiro na Hora do Pênalti"): a tristeza do candidato na hora de debate.

 Mais tarde, Obama disse ter sido desconcertado pelas mentiras de Romney (o qual, no debate, mais de uma vez, disse o contrário do que ele e seu partido tinham proposto até então, durante a campanha).

 Imagino que essas mentiras tenham desvendado, aos olhos de Obama, a vaidade do processo. Obama é um racionalista, centrista por ser um defensor quixotesco das virtudes do diálogo, como se não existissem inimigos, apenas mal-entendidos. Parece que, debatendo com Romney, ele sentiu a quanta distância ele estava da racionalidade discursiva. Talvez ele tenha encarado, de repente, a essência inevitavelmente irracional do processo eleitoral democrático. E tenha se perguntado: mas o que estou fazendo aqui?

 Durante minha graduação, na Suíça, fui bolsista pelo boxe. Perdi uma final nacional, em São Galo, porque, no meio da luta, não entendi mais por que eu estava lá e porque eu estava batendo naquele estudante de Berna. Não foi uma reflexão pacifista. Apenas pensei: que palhaçada, eu não preciso disso, vamos acabar logo e voltar para casa. Perdi. Espero que Obama se recupere a tempo.

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

De volta para o passado


Os remorsos são injustos: esquecemos as razões que nos fizeram decidir nas circunstâncias passadas

ADORARIA QUE fosse possível viajar no tempo e voltar para épocas anteriores de minha vida.

Ingenuamente, imagino que, em vários momentos do passado, eu teria me beneficiado de algo que sei só agora. Quem melhor do que eu aos 50 ou 60 anos para aconselhar uma versão mais jovem de mim, a de dez, 20, 30 anos atrás?

Hoje, enfim, meço as consequências de algumas escolhas antigas. Sei (ou imagino) que teria sido melhor me separar logo daquela pessoa e nunca me afastar de outra, que era insubstituível e que eu perdi; sei (ou imagino) que poderia ter evitado riscos inúteis e me exposto a outros dos quais fugi; sei (ou imagino) que deveria ter insistido quando desisti e desistido quando insisti. E, para quem pode viajar no tempo, nunca é tarde para salvar Inês.

Voltar ao passado para nos dar conselhos em momentos cruciais parece ser uma maneira racional de endireitar nossa vida, a única que leve em conta as consequências confirmadas de nossos atos. 

Mas um ditado italiano ("del senno di poi son piene le fosse" -da sabedoria do depois as valas estão cheias) sugere que esse saber das consequências, além de chegar atrasado, talvez seja inútil.

Concordo: as escolhas da gente são quase sempre as melhores, se não as únicas possíveis na hora em que tivemos que decidir. E os remorsos são quase sempre fajutos: quando reavaliamos e censuramos nossas decisões passadas à luz de suas consequências presentes, estamos esquecendo as razões que nos fizeram decidir naquele momento e naquelas circunstâncias. Mesmo assim, a vontade é grande de voltar atrás e alterar o passado.

Quando era mais jovem, depois de qualquer crise (embate, briga, acidente), revivia mil vezes o que acabava de acontecer, corrigindo ou aperfeiçoando imaginariamente minha reação (o que eu "deveria ter feito").
Hoje, mais velho, quando volto a lugares do passado, sempre os encontro assombrados, como se minha história ainda estivesse por lá, suspensa, na espera de uma solução alternativa à que se realizou na época.

Me dei conta disso quando, pela primeira vez, morreu alguém que tinha sido minha companheira. O luto foi violento, igual ao que seria se minha história com ela nunca tivesse acabado.

Como podia ser? Se passaram tantos anos sem eu pensar nela... Por que esta dor agora? Era como se, com a morte dela, acabassem as chances de dar àquela história um desfecho outro, como se só com a morte dela o passado se tornasse realmente passado.

Seja como for, por ser um fã das viagens no tempo, não podia perder "Looper - Assassinos do Futuro", de Rian Johnson, que estreou na sexta passada. No filme, daqui a 30 anos, as viagens no tempo serão possíveis e proibidas. A máfia instalará seus assassinos, os "loopers", no passado (ou seja, numa época mais permissiva); e para esses assassinos ela despachará as pessoas que deseja eliminar, para que sejam mortas.

Um dia, um assassino descobre que o condenado, que ele recebe do futuro, é a versão mais velha dele mesmo. Será que o jovem "looper" vai querer poupar sua própria vida? Não é óbvio: afinal, matar a nós mesmos daqui a 30 anos é parecido com fumar e comer toucinho.

Esse cara, 30 anos mais velho do que eu, será que ainda sou eu? E será que alguém aos 20 ou aos 30 escutaria o que sua versão de 60 anos tentasse lhe dizer? Ou será que, para mim aos 20, eu seria hoje apenas mais um velho chato qualquer? Questão antiga: fora nossa identidade jurídica, que permanece igual, será que, ao longo da vida, somos a mesma pessoa?

Nesse fim de semana, no festival de cinema do Rio, assisti a "Camille Outra Vez", de Noémie Lvovsky, título original "Camille Redouble" (não sei quando o filme será distribuído no Brasil, mas conto com o cinema Reserva Cultural, que, em São Paulo, para quem aprecia cinema francês, é uma dádiva).

No filme, Eric e Camille ficaram juntos a vida toda. Mas Eric acaba de deixar Camille por uma mulher mais jovem (e talvez menos beberrona). No Réveillon, Camille desmaia e acorda aos 16 anos. Ela reencontra seus pais, as amigas da escola e, sobretudo, Eric, pois é bem naquela época que eles se encontraram.

Claro, Camille quer mudar o curso de sua vida (não namorar Eric) para evitar a dor futura da separação. Mas o fato é que muitos amores são como a vida: eles valem a dor que seu desfecho triste nos dará eventualmente um dia. 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Protestos muçulmanos




 A facilidade com o qual me sinto ofendido revela que eu concordo, em parte, com a ofensa que recebi 

 O VÍDEO "A Inocência dos Muçulmanos", apesar de sua mediocridade, fez sucesso. Ninguém aguenta ver aquilo até o fim, mas o vídeo instigou a curiosidade dos internautas quando se soube que ele era a causa dos violentos protestos que se alastraram pelos países muçulmanos, nas últimas duas semanas.

 Esquecendo os terroristas que se aproveitaram desses protestos para semear a morte, a visão dos desfiles e dos quebra-quebras foi instrutiva e desalentadora. Instrutiva por nos explicar, mais uma vez, a diferença cultural que separa o Ocidente do islã, e desalentadora porque a esperança de um entendimento recíproco parece pequena.

 a) Os cristãos terão dificuldade em sentir empatia com os muçulmanos indignados pelo vídeo, pelas caricaturas dinamarquesas de seis anos atrás etc. Afinal, aqui, Jesus é uma marca de calças jeans e uma personagem de "South Park". No YouTube, encontrei um grupo francês, "Les Vampires", que, como capa de seu disco sobre a homossexualidade de Jesus, propõe o Cristo com uma mão pregada na cruz, enquanto, com a outra, ele se masturba.

 Os cristãos se deleitaram com "O Código da Vinci", um best-seller, que explica que Jesus teve filhos com Maria Madalena e a igreja nos escondeu tudo isso até hoje. Qual empatia possível com os que condenaram à morte Salman Rushdie por ter escrito "Os Versos Satânicos", um grande livro, mais citado que lido, em que há sequências oníricas das quais eu nunca entendi por que seriam ofensivas para o islã? Nota: acaba de sair a autobiografia da clandestinidade de Rushdie, "Joseph Anton, Memórias" (Companhia das Letras).

 b) Imaginemos, por um instante, que eu não me aguente e queira manifestar minha indignação com "Les Vampires". Uma das últimas coisas que eu faria seria atacar a embaixada da França.

 Entendo que os protestos atuais passem a ser contra países cuja política seria mais favorável a Israel do que à Palestina. Mas o fato é que, neles, as massas muçulmanas reagem como se considerassem que um pensamento é a expressão e a responsabilidade do grupo ao qual seu autor pertence. No mínimo, o grupo (a nação) seria culpado porque não sabe disciplinar seus membros.

 Ora, prefiro, de longe, aturar "Les Vampires" a exigir que os Estados se tornem guardiões do que pensam seus cidadãos.

 Já houve épocas (não tão remotas) em que queimávamos e torturávamos pessoas que pensavam fora dos trilhos da igreja. Mesmo naquelas épocas, ninguém imaginava que os produtos das consciências individuais fossem responsabilidade do grupo ou da nação.

 c) O comentário mais interessante que li nestes dias foi a citação, feita por Clóvis Rossi, de Yaron Friedman, no jornal israelense "Yediot Aharonot": "Na consciência árabe e muçulmana, Maomé e seus primeiros califas [chefes político-religiosos] do século 7º simbolizam a idade de ouro do islã e a gênese de um império árabe-muçulmano que chega ao século 12 na vanguarda do desenvolvimento cultural mundial".

 "Toda ofensa feita ao profeta é cutucar a lembrança do estatuto de inferioridade no qual se encontra, desde o século 19, o mundo árabe-muçulmano em relação ao Ocidente."

 É quase uma regra: qualquer suscetibilidade extrema é o sinal de uma fragilidade interna. Em outras palavras, a facilidade com o qual eu me sinto ofendido revela que eu mesmo devo concordar, ao menos em parte, com a ofensa que recebi.

 Ou seja, a suscetibilidade muçulmana manifesta que deve existir, na alma muçulmana, um conflito entre o tradicionalismo religioso e uma aspiração à liberdade em suas manifestações modernas ocidentais.

 d) Alguém perguntará: se estamos dispostos a aturar qualquer expressão individual, será que, para nós, nada é sagrado? Será que nenhuma opinião nos ofende a ponto de nos dar vontade, por exemplo, de manifestar?

 Resposta. O que é sagrado para mim não é tal ou tal outra opinião -ainda menos a minha. O que é sagrado é o próprio direito de expressar uma opinião e de viver segundo ela manda.

 Se uma mulher no Irã queima uma bandeira dos EUA ou da França, acho que é seu direito. Mas, se ela for apedrejada por ser adúltera, irei para a rua pedindo que a gente intervenha com tudo o que temos. Por ser ocidental e moderno, durmo bem com os insultos de quem pensa diferente de mim. Só não durmo bem com o grito dos indivíduos impedidos de se expressar e de viver segundo a liberdade de sua consciência.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A saca de sal


 Antes de viver juntos, seria bom consumir uma saca de sal. Para o quê? Para se conhecer melhor? 

 COMEÇOU COM um e-mail bizarro me avisando que o restauro da Fontana del Sale (a fonte do sal, em Novi Ligure, Itália) estava terminado (bizarro porque o restauro foi terminado um ano atrás). Imediatamente, a mensagem evocou em mim um momento esquecido.

 Novi Ligure (leia-se "lígure") é uma cidade de menos de 30 mil habitantes; apesar de seu nome, ela não está na Liguria, mas no Piemonte. Num domingo de inverno do fim dos anos 70, eu atravessava a Piazza Mariano delle Piane, em Novi, com minha avó Elena.

 Sei que era domingo porque ela tinha pedido que parássemos (íamos de Rapallo a Casale Monferrato, visitar amigos) para que ela escutasse a missa. E sei que era inverno porque ela estava com um sobretudo longo de cachemira um tanto surrada, mas especialmente mórbida, com um colarinho do mesmo astracã cinza de seu chapéu "clochê".

 Também ela tinha enfiado a mão, numa luva escura, debaixo do meu braço, mais pelo calor e pela intimidade do gesto do que por necessidade de apoio ao caminhar.

 Eu estava lhe contando que acabava de me juntar com uma mulher, na cidade onde eu morava, que era Paris. Ela parou diante da Fontana del Sale, que está no meio da Piazza.

 "Fonte do sal" não é um apelido. No passado, o sal era crucial para preservar os alimentos (pense no bacalhau), era vendido em sacas, e era precioso. Em 1814, os noveses defenderam sua reserva de sal contra franceses e ingleses. Para celebrar o esforço, foi construída a fonte, no meio da qual surge uma figura, que aperta contra o peito uma saca, que se parece com uma daquelas almofadas que as crianças querem sempre consigo e sem as quais elas não conseguem dormir (uma foto da fonte: http://migre.me/aKii8).

 Minha avó, olhando para a estátua, disse: "Prima di vivere insieme, bisogna consumare un sacco de sale" -antes de viver juntos, é preciso consumir uma saca de sal. Minha avó era religiosa, mas sábia demais para se opor ao fato de eu me juntar sem me casar. Sua preocupação era com a precipitação.

 Eu, nascido em tempos de geladeira, não sabia quanto tempo duraria uma saca de sal. Mas o recado era claro: antes de se juntar, um longo namoro é oportuno.

 Há uma constatação que eu faço com frequência: não sei quem começou, se fomos nós ou se foram a literatura e o cinema, mas, em geral, no início das relações, a gente idealiza tanto o parceiro quanto o novo envolvimento afetivo ou sexual (as dificuldades da etapa seguinte ficam para a comédia, se não para a farsa). Consequência: o exórdio das relações aparece como um momento glorioso, cujo espírito se perderá, inelutavelmente, ao longo do tempo, consumido pela trivialidade do dia a dia e da convivência.

 Uma leitora, Ester Costa, comenta: "Eu acho que, na verdade, começa mal e vai piorando. É ruim e errado desde o começo, e a gente sabe, mas, por decreto decide que vai continuar. Ninguém esconde do outro o que é, a gente é que não quer enxergar". Ou seja, "o germe da destruição" das relações está no seu começo, "o ovo da serpente está aí".

 Outra leitora, Mariana Seixas, vai na mesma direção; ela acha que, quando encontramos alguém "com quem no futuro dividiremos uma vida e quatro paredes, (...), não conhecemos bem a pessoa", e o futuro nos apresentará "uma pessoa diferente daquela dos primeiros meses de namoro".

 Em outras palavras, a degradação das relações está num defeito de fábrica, numa pressa ou num descuido do encontro inicial, em que, paradoxalmente, falamos demais e não nos mostramos o suficiente.

 Minhas leitoras têm razão. O momento do encontro é enganoso, por um viés de otimismo: valorizamos tanto o grande amor definitivo que acabamos enxergando sua miragem no horizonte, mesmo quando não há por quê. Você lê os três primeiros números sorteados da Mega-Sena, são os que você jogou, o coração já dispara -embora até lá você não tenha ganho absolutamente nada, nem a consolação de uma quadra.

 Seria bom, em suma, segundo minhas leitoras, que os futuros consortes se conhecessem melhor.

 Em tese, eu concordaria. Mas, naquele domingo dos anos 70, eu completei a frase de minha avó perguntando-lhe, justamente, se o tempo da saca de sal era para o casal se conhecer melhor. Ela fez o gesto de quem descarta uma estupidez e disse: "Ma vá un po', non per conoscersi; per abituarsi", deixa de bobagens, é preciso de tempo não para se conhecer, mas para se acostumar.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Conversas para mestres inseguros


Pode desejar fora dos trilhos, mas só se seu desejo for consequência de um trauma infantil
Ao longo do século 20, a melhor literatura erótica foi escrita por mulheres -de Anaïs Nin a Régine Deforges e Mara. "Emmanuelle", o elo fraco do conjunto, foi, de fato, escrito por um homem. A obra-prima da série é "História de O", de Pauline Réage (eternamente esgotado na Ediouro).

Juntando "História de O" com, por exemplo, "A Vida Sexual de Catherine M.", de Catherine Millet (Pocket Ouro), seria tentador chegar à conclusão de que as mulheres sejam especialistas em fantasias de submissão.
Esse "achado" seria confirmado pela nova onda de literatura erótica escrita por mulheres, nos EUA.

Já mencionei, nesta coluna, os romances de E. L. James (http://migre.me/aE4KL). E acaba de sair o primeiro da série "Crossfire", de Sylvia Day: "Toda Sua" (Paralela).

A heroína de E. L. James lida com um homem que lhe propõe amarras e chicotes. Eva, a heroína de Sylvia Day, lida com um parceiro mais interessado no controle mental e sexual do que no domínio físico. Mesmo assim, alguns homens correrão para a padaria para anunciar aos amigos, entre piadas e tragos, que as mulheres "gostam de apanhar".

Essa roda de padaria sobre a suposta submissão feminina revela uma dupla fraqueza dos homens.

1) Em qualquer encontro da comunidade sadomasoquista (real ou virtual), constata-se que sempre faltam mestres (dominadores), enquanto sobram submissos e submissas. Uma anedota explica por quê.

Uma mulher, que conheci muito tempo atrás, estava radiante por ter encontrado, enfim, um mestre rigoroso como ela queria. Um dia, o mestre, ao deixar o apartamento da escrava, descobriu que seu carro tinha sido levado pela polícia e só podia ser resgatado pagando multa na hora. O mestre voltou para o apartamento da escrava e pediu um dinheiro emprestado. Foi o fim. A escrava aceitaria e adoraria ser explorada, mas achou intolerável o pedido de um dinheiro "emprestado", porque esse pedido diminuía o mestre.

Conclusão. O que leva alguns homens até a padaria mais próxima para fazer piadas entre amigos sobre as mulheres supostamente submissas? É o medo de sua insuficiência como mestres. Mas é também o medo de suas próprias fantasias de submissão, como explico a seguir.

2) Se faltam mestres e sobram submissos, não é só porque é difícil ser mestre; é também porque a fantasia de submissão é comum a todos -isso, aliás, explica o sucesso da literatura erótica de submissão: todos, homens e mulheres, gozam com fantasias de submissão. Para explicar por que a submissão é uma fantasia básica universal, baste isto: 1) vivemos com a ideia de que o protótipo do prazer é o do bebê pendurado no seio materno, 2) você acha que tem muita diferença entre, sei lá, ser possuído/a de mãos presas, sem poder reagir, e a condição do bebê entregue, indefeso, aos cuidados de quem troca sua fralda?

Em outras palavras, um ideal nostálgico define para nós o prazer ao qual parecemos mais aspirar: é o ideal de estar literalmente nas mãos de outro que nos ama. Quem estranha que a submissão seja uma fantasia fundamental?

Enfim, uma comparação entre a literatura erótica do século 20 e a onda de hoje revela uma diferença significativa.

Na literatura erótica do século 20, cujos melhores exemplos são, em grande parte, franceses, não me lembro que as fantasias de um protagonista ou de um personagem, por mais que fossem bizarras, fossem "justificadas" pelo relato de sua infância difícil.

Ou seja, na literatura erótica (francesa e feminina) do século 20, alguém pode se excitar com fantasias sádicas, masoquistas ou outras e pode praticá-las, simplesmente, porque gosta. Não é necessário que o protagonista ou o personagem tenha sido abusado quando criança.

Na recente literatura erótica feminina do século 21, que, até agora, parece vir sobretudo dos EUA, acontece o contrário. É possível desejar (um pouco ou muito) fora dos trilhos, mas à condição que esse desejo seja apresentado como o destino patológico de quem foi "traumatizado" na infância.

Em outras palavras, podemos admitir que homens e mulheres transem de maneiras aventurosas, mas o bom costume será salvo se eles transam assim porque foram maltratados quando pequenininhos.

É uma diferença cultural entre Europa e EUA, ou seja, é caretice norte-americana? Ou é o sinal de um novo passo na longa luta da cultura ocidental (a nossa) para disciplinar o prazer? Algo assim: se não basta mais ele ser pecaminoso, que seja, ao menos, doentio...

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Internação e força de vontade

De que adianta nos fecharmos num spa se não temos a força de vontade para respeitar um regime? 

O CANAL a cabo A&E propõe a série "Intervenção", às 23 h das quartas-feiras (trechos dos primeiros episódios no sitehttp://migre.me/ay14F).

 Trata-se de um reality show, produzido no Brasil, no qual cada episódio apresenta um dependente químico (os de crack foram maioria), que é filmado na sua vida cotidiana e familiar, "para um documentário" -isso é o que o dependente acredita. No fim, o indivíduo é convidado a uma reunião-surpresa com as pessoas mais próximas; nessa ocasião, um psiquiatra sugere que o dependente consinta em ser internado para se desintoxicar e se curar.

 Até agora, todos aceitaram. Entrevistados na clínica, alguns meses depois da internação, os dependentes estão "limpos" e bem melhor. Mas o que acontecerá depois que eles voltarem para a dita vida ativa? Quando "Intervenção" estreou, a reportagem da Folha registrou as críticas de colegas psiquiatras que trabalham com dependentes (http://migre.me/ay5DI).

Por exemplo, o programa transmite a impressão de que a internação seja a única solução e um tiro certeiro, enquanto, infelizmente, as estatísticas são deprimentes: no caso do crack, em média, cinco anos depois de qualquer tratamento, mais de 80% voltaram a usar a droga. O programa tampouco explica que há internações diferentes e que todas se beneficiam de programas simultâneos de trabalho com a família, de reinserção social etc.

Além disso, não sei qual valor atribuir ao consenso do dependente, que é arrancado, na reunião final, como se fosse a condição indispensável (não só juridicamente) do sucesso de uma internação. É isso mesmo? 

Críticas à parte, considero importante que o grande público tenha uma visão (fiel) do que significa ser dependente e familiar de um dependente num contexto de classe média, diferente daquele dos "noias" errantes pelo centro da cidade. No mais, o programa da A&E me levou a pensar sobre internação. Por que seria interessante que os outros nos proibissem alguma coisa da qual queremos, mas não conseguimos nos desfazer?

Por exemplo, de que adianta nos fecharmos num spa onde passaremos fome se não temos a força de vontade para respeitar um regime? Será que uma imposição externa pode nos ajudar a combater um hábito ao qual não sabemos resistir?

 Me lembrei de uma experiência de Roy Baumeister, de 1998, sobre o cansaço do autocontrole. Baumeister a reapresenta num livro recente, escrito com J. Tierney, "WillPower" (força de vontade, Penguin). A pesquisa original pode ser pedida em pdf no site http://migre.me/ay6Y4 : Baumeister, Bratlavsky e outros, "Ego Depletion: is the Active Self a Limited Resource?" (sangria do Ego: o self ativo é um recurso limitado?), "Journal of Personality and Social Psychology", 74,1998.

 Os pesquisadores arregimentaram três grupos de estudantes famintos; todos tiveram que resolver problemas de geometria que eram insolúveis, embora os estudantes não soubessem. O grupo 1 foi direto para a tarefa. O grupo 2 ficou, primeiro, diante de cookies de chocolate quentinhos, com a autorização de comer livremente. O grupo 3 também foi exposto aos cookies quentes, mas foi autorizado a comer só rabanetes. O grupo 1 se esforçou em média 20 minutos tentando resolver os problemas insolúveis. Mesma coisa para o grupo 2. O grupo 3 (o dos rabanetes) desistiu em oito minutos. Duas interpretações possíveis.

 1) Talvez as frustrações não tenham valor educativo: não é proibindo os cookies que criaríamos pessoas capazes de perseverar no esforço. Ao contrário, liberar os cookies seria uma condição para fomentar em todos uma grande força de vontade.

 2) Talvez os que tiveram que se controlar para resistir à tentação dos cookies (que estavam na mesa) tenham esgotado sua força de vontade, a ponto que não lhes sobrou força alguma na hora de abordar os problemas de geometria.

Se, em vez de estarem na mesa, os cookies estivessem trancados a sete chaves ou ausentes (como para o grupo 1), os estudantes não precisariam se cansar para se impedir de comê-los. A pesquisa justificaria, por exemplo, a internação: alguém se encarrega de proibir para que eu não tenha que fazer o esforço de me abster -com isso talvez eu possa me dedicar mais eficazmente a outra coisa (meu futuro, o planejamento de minha reinserção).

 Então, enigma: a pesquisa de Baumeister justifica o rigor da internação ou a permissividade?

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O menino acorrentado

Os pais podem chegar a acreditar que o fundamento da autoridade seja a força: obedece ou te acorrento 

 A NOTÍCIA apareceu na internet na quinta passada, dia 23: no Paraná, um menino de nove anos foi encontrado acorrentado, sozinho em casa, sem água e sem comida ao seu alcance. A mãe e o padrasto foram trabalhar e o deixaram assim. Na primeira reportagem, as explicações do comportamento dos pais estavam no condicional: segundo eles, "seria" a primeira vez, e o menino "estaria" envolvido com drogas. Ou seja, opróbrio nos pais cruéis.

 Mais tarde, o site da CGN publicou uma entrevista com o padrasto. Pergunta: "Você sabe que agora, por mais que você tenha tido uma boa intenção, vocês vão responder judicialmente pela atitude que vocês tiveram?". O padrasto: "Com certeza. Só que acontece que eu não vou criar um moleque ladrão, maconheiro e bandido dentro da minha casa, para, amanhã ou depois, vocês jogarem na minha cara que eu não fui pai e não pude educar".

 Depois de o padrasto expor um rosário de roubos cometidos pela criança, nova pergunta: "Não era o caso de procurarem a Polícia Militar e falarem: 'Está assim! Não estamos conseguindo (...)', em vez de acorrentar essa criança em casa?". E o padrasto: "A minha esposa já ligou (para a PM), acho que umas três ou quatro vezes. Mas ele sai de casa, ele some".

 No dia seguinte, a TV Tarobá ouviu a mãe e o menino. Para a mãe, "se tentar segurar (o menino), é pau, pedra, tijolo, faca, o que tiver na frente ele taca. Não tem quem segure". O menino acrescentou detalhes, como a vez em que cortou o braço da irmã com gilete. A mãe: "Às vezes, é melhor acorrentar ali, do que ver mais tarde ele virar um bandido, um ladrão, um drogado. E você olhar na minha cara e falar que eu não criei meu filho, que eu não prestei para ser mãe". Detalhe: fora a corrente no pé, o menino não apresentava nenhum sinal de maus-tratos.

 Foi assim que, em um dia, passamos da indignação pela violência dos pais à perplexidade (humilde) diante da tarefa impossível de educar.

 Os pais têm razão: se o menino se tornasse ladrão e bandido, há sabichões que os acusariam. Os mesmos sabichões diriam, aliás, que, se os pais tiveram que acorrentar o menino, é porque eles fizeram algo muito errado -algo que comprometeu sua própria autoridade. 

Adoraríamos que os sabichões tivessem razão. Saberíamos com certeza que o fracasso da autoridade depende da falta de amor e de cuidados: "Você não cuidou bem de seu filho? Pior para você: ele não te respeitará. Bem feito". Ou, então, o contrário (tanto faz, o que importa é fazer de conta que a gente saiba o que não dá certo): "Você sempre o mimou. Por preguiça ou pela vontade de vê-lo rindo como você nunca riu, você foi permissivo, e por isso ele nunca te respeitará".

 Infelizmente, ninguém sabe o que faz que uma educação dê certo. E pais e filhos, perdidos (os primeiros no desespero e os segundos no desafio), acabam acreditando, um dia, como no caso do menino do Paraná, que o fundamento da autoridade e da rebeldia seja a força -eu te acorrento, e você vem com gilete.

 Uma pesquisa famosa de Daniel Kahneman, em 2004 (http://migre.me/asSPV, para assinantes), constatou que criar filhos não é uma fonte de bem-estar. No melhor dos casos, criar filhos deixa uma lembrança boa (idealizada), mas é uma experiência dura e, às vezes, ruim. Na mesma linha, para Daniel Gilbert ("O Que nos Faz Felizes", Campus), os filhos e o dinheiro são as coisas das quais pensamos erroneamente que nos fariam felizes.

 Uma recente pesquisa feita por M. Myrskylä (http://migre.me/as4jY) foi recebida com alívio porque mostra apenas isto: 1) depois da dureza e das crises dos primeiros meses do filho, os casais não desmoronam definitivamente na infelicidade, mas, aos poucos, eles voltam ao nível de bem-estar de quatro ou cinco anos antes de engravidar; 2) depois dos 40, os casais com filhos adultos estão um pouco melhor do que os que não tiveram filhos.

 Seja como for, a criação dos filhos é uma experiência menos satisfatória do que todos queremos acreditar que seja.

 O que foi? Será que, de repente, na modernidade, perdemos a mão, e ninguém sabe mais ser pai direito? Por que, na hora de educar, nossos avós pareciam se sair melhor do que a gente -com menos questionamentos e menos dramas?

 É uma questão de expectativas: eles não esperavam nem um pouco que criar filhos lhes trouxesse a felicidade. E é uma questão de lugar: para eles, as crianças não eram o centro da vida dos adultos.