Há homens e mulheres que não aguentam conviver. Apaixonam-se, às vezes casam ou se juntam, mas logo se sentem sufocados. Alegam que falta liberdade, privacidade, silêncio. Algo, que não é apenas a variedade da vida sexual, estaria sendo impedido pelo parceiro (ou pela parceira).
Outros conseguem conviver durante anos ou para sempre, mas com a sensação constante de que estão sendo limitados, constrangidos. Ou seja, com a idéia ressentida de que, se o consorte não estivesse junto, a vida vingaria como nunca.
Essa atitude, entre lamento e reivindicação, é quase sempre presente quando um dos parceiros tem (ou imagina ter) uma vocação artística.
O diabo é que isso acontece hoje com frequência crescente. Não me estranha: numa cultura que valoriza o indivíduo, espera-se de cada um que se faça ouvir e reconhecer pelo que tem de mais singular. Um dos grandes imperativos da época diz que é preciso expressar-se. E acreditamos automaticamente que, se pudéssemos procurar fundo nas nossas tripas, encontraríamos pérolas.
Eu sou advogada, mas, lá no fundo, sou poeta ou romancista. Eu sou engenheiro, mas, lá no fundo, sou viajante como Amyr Klink. Eu sou bancário, mas, no fundo, sou músico e cantor. Eu sou médica, mas, no fundo, sou dançarina. O vínculo social tenta nos definir, mas a criatividade nos resgatará.
Valorizamos o indivíduo em suas expressões mais singulares. Portanto as relações sociais nos parecem sempre suspeitas: será que elas não ameaçam a expressão de nossa subjetividade, única e original? É apesar dos outros, imaginamos, que é possível ser "nós mesmos" e produzir algo de valor.
Muitos acabam pensando que, se eles não seguem sua vocação, é por causa do parceiro ou do casal. "Não posso deixar de trabalhar e, à noite, quando volto para casa, não dá. Precisaria de solidão para tocar, escrever, pensar, treinar. Estou cansado, as crianças pedem atenção e não há como não conversar." Em suma, as necessidades da vida em família seriam responsáveis por nossas falências expressivas.
Às vezes, o parceiro que se considera inibido pelo casal impõe uma condição: "Quero tempo, quero um espaço que seja só meu". E o outro (ou outra), generosamente, aceita e encoraja: "Claro, vamos alugar um pequeno escritório para você tocar, escrever, pensar e ficar tranquilo (tranquila) à noite e nos fins de semana. Ou, então, vamos usar a poupança, e você fica um ano sem trabalhar, mas não aqui; na casa de praia dos tios, lá, sem ninguém".
Surpresa e mistério: quando a reivindicação é satisfeita, em regra, ocorre um imprevisto. Na maioria dos casos, o sujeito, aliviado dos deveres da conjugalidade e das responsabilidades sociais, sozinho no lugar e com o tempo que pediu a Deus, livre e desembaraçado, não faz nada. Salvo, talvez, lamentar a época em que, para dedicar-se a sua paixão, ele roubava horas ao sono, aos filhos e às obrigações familiares do fim de semana.
O tempo e o espaço reservados transformam-se na caricatura do pior vácuo da adolescência: televisão, chat de computador, navegações a esmo na internet, infindáveis jogos de paciência. Em suma, uma preguiça que beira e anuncia a depressão.
"Agora que poderia, não sei o que acontece, não saio da cama." Resumindo: achava que o outro me impedia de realizar meus sonhos. Mas, uma vez livre de sua presença, constato que, sem ele (ou ela), mal consigo me mexer, perco a vontade. Descubro assim que: 1) o outro não era minha distração, mas talvez fosse minha motivação, 2) o tempo e o espaço que eu exigia, longe dele ou dela, eram, de fato, tempo e espaço para não fazer nada.
Em suma, quando um parceiro pede para ficar sozinho e, assim, dar livre curso a suas veias criativas, expressivas ou meditativas, seu pedido, embora sincero, alveja quase sempre um ócio avacalhado. Na maioria dos casos, o outro que queremos eliminar não é o carrasco de nossas aspirações, mas o penoso lembrete dessas aspirações. Como assim?
É simples e banal. Um casal serve (também) para isto: o outro é encarregado de encarnar nossas próprias exigências, sobretudo as mais frustrantes. Por exemplo, José se queixa da obsessão de Maria com a ordem nos armários. Qual importância? Só dá briga porque José, de fato, adora ordem e sonha com fileiras perfeitas de meias, cuecas, sapatos e camisas, mas sua vontade morre na praia. Maria torna-se assim a representante do desejo frustrado de José, ou seja, o lembrete de um encargo (fazer ordem nos armários) que é o próprio desejo dele, mas que ele não consegue cumprir -irritante, não é? O mesmo mecanismo vale para obrigações maiores e mais cansativas: se Maria ama e, portanto, idealiza um pouco José, ela certamente quer que ele siga seus anseios artísticos.
Consequência: quando José procura a solidão "para perseguir melhor sua vocação", muitas vezes, ele não tenta evitar a diversão do barulho das crianças, do papo e da transa compulsória com Maria. Ao contrário, ele pode estar fugindo de um amor que é incômodo porque lhe lembra seu próprio desejo.
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