sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Atores famosos no palco

Passei um mês em Nova York --escrevendo, lendo e frequentando teatros, cinemas e galerias. Aproveitei para ver ao vivo alguns atores de cinema ou de televisão. Por que eu não estaria a fim de "conhecer os corpos" de atores que dão vida a ficções que me tocam?

 No teatro, nunca desdenho uma primeira fileira, de onde é fácil ouvir a respiração e enxergar as gotas de suor e de saliva que constituem, para mim, o charme da presença material, física do ator. Vi Jessica Chastain (a imperdível protagonista de "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, que estreará em 15 de fevereiro), David Strathairn e Dan Stevens (o Matthew Crawley de "Downton Abbey" --agora no GNT), todos em "The Heiress" ("A Herdeira"), de R. e A. Goetz, no Walter Kerr Theatre. E vi Scarlett Johansson em "Cat on a Hot Tin Roof" ("Gata em Teto de Zinco Quente"), de Tennessee Williams, no Richard Rodgers Theatre.

 Ao entrarem no palco, os atores eram recebidos por aplausos que sustavam a ação: afinal, o público estava lá para vê-los. Mas, fora essas breves suspensões, todos eles seguiam o que é hoje um padrão de atuação: uma sólida quarta parede. Explico. No teatro, o palco é delimitado por três paredes, a quarta sendo a que está faltando, de modo que a plateia possa enxergar a ação. Os atores podem aproveitar dessa abertura para interagir com o público (lembrando assim a todos que se trata de uma peça) ou, no extremo oposto, agir como se eles estivessem sozinhos, entre quatro paredes.

Hoje, em regra, o ator (ainda mais se for de cinema) tende a atuar assim, entre quatro paredes, como se não houvesse câmera nem plateia. A ponto que uma cumplicidade com o público parece intencional --um jeito de transgredir o padrão dominante, de nos fazer rir ou de nos distanciar da história representada.

A experiência foi diferente quando fui ver Al Pacino em "Glengarry Glen Ross", de David Mamet, no Schoenfeld Theatre. Aqui, a atuação de Al Pacino era um grande aparte endereçado ao público. Mesmo nos diálogos com os outros atores, ele olhava e falava para nós.

Não vou me queixar de que, num diálogo comigo (e 800 outros, claro), ele usasse as manhas de Michael Corleone, Frank ("Perfume de Mulher") ou Lefty ("Donnie Brasco"). Afinal, eu estava lá para isso, não é?
No Brasil, também, já vi atores famosos do cinema e da televisão atuando no teatro. Nunca vi um deles dar uma de Al Pacino e quebrar a quarta parede para oferecer ao público um banho de presença estrelada.
Em compensação, fico quase sempre com a impressão de que, no Brasil, os atores mantêm uma conexão com a plateia que abre uma fresta na famosa quarta parede.

É óbvio que não estou me referindo a peças nas quais, de maneira intencional, os atores interagem com a plateia como se não houvesse quarta parede. É óbvio também que não estou falando de rupturas escrachadas da quarta parede, como, sei lá, apartes ou piscadinhas engraçadas para o público.

Ao contrário, gostaria de descrever (mas não consigo) uma impressão sutil de que os atores, aqui no Brasil, atuam PARA mim. Ou seja, que a presença da plateia pesa no que acontece no palco.

Se essa minha impressão capta alguma realidade, qual seria uma origem possível do fenômeno? É difícil superestimar a importância da telenovela na cultura nacional (e, por consequência, na formação dos atores). Ora, há uma especificidade da novela que dota a quarta parede de uma leve, mas constante transparência. Qual?

A novela é escrita enquanto está sendo gravada e vai ao ar --ela é um pouco herdeira da "commedia dell'arte", uma gloriosa forma de teatro em que os atores improvisavam a partir de uma sinopse.

A primeira consequência disso é que, na novela, como em nenhum outro gênero, a relevância de um personagem e seu destino na história podem depender da recepção que o público lhe reserva.

O ator sabe que, se seu personagem conquistar o público (pelo bem ou pelo mal), ele ganhará relevância nos capítulos seguintes (um personagem pode ser secundário na sinopse e se tornar central ao longo da novela). Ou seja, o caráter inacabado do texto impõe ao ator uma tarefa que corrói a opacidade da quarta parede: a tarefa de ser especialmente apreciado (gostado ou odiado, tanto faz).

Em suma, talvez a telenovela, por sua relevância e por essa sua caraterística, produza, entre nós, atores particularmente atentos ao retorno da plateia. Não sei se é um bem ou um mal.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Loucos e adolescentes suicidas


Nos EUA, desde o massacre na escola primária Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, o debate não para: quem mata, as armas ou os homens? 

Obviamente, quem mata são homens com armas --e é mais fácil controlar as armas do que controlar os homens, os quais são bastante imprevisíveis.

Para a NRA (Associação Nacional dos Rifles), ao contrário, as armas não seriam problema à condição de que elas não caíssem nas mãos de malucos. Como evitar que isso aconteça? O presidente da associação propõe a criação de uma lista nacional das pessoas que, em algum momento da vida, precisaram de atendimento em saúde mental. Os que estivessem nessa lista seriam barrados na hora de adquirir uma arma.

Não se sabe se a lista incluiria só os que recorreram a psiquiatras e a medicações ou também os que recorreram a um psicoterapeuta (sem contar os que pediram ajuda a padres, pastores, rabinos e outros "sábios").

Mesmo supondo que se trate só dos pacientes medicados, imagine as consequências. Dez anos atrás, você ficou triste porque perdeu o emprego, e um médico (talvez desavisado) quis ajudar e lhe prescreveu antidepressivos (que, aliás, provavelmente não serviram para nada). Pois bem, desde então, você está na tal lista nacional (a qual, não se iluda, não será consultada só quando você pedir para adquirir uma arma).

Anos atrás, psicoterapeuta nos EUA, eu atendia pacientes que tinham direito ao reembolso da terapia pelo seu seguro de saúde, mas que preferiam pagar meus honorários de seu bolso: eles não queriam que ficasse registrado em lugar algum que eles tinham precisado de assistência em saúde mental --achavam que essa "fraqueza" mancharia seu currículo. Essa preocupação me parecia descabida, mas talvez eles tivessem razão.

Recorrer à psicoterapia e à medicação psiquiátrica se tornou banal. Isso não é só consequência de diagnósticos e prescrições apressados, mas também de uma mudança na ambição da psiquiatria e da psicologia clínica, que querem, como a medicina, cuidar da gente, ou seja, exercer seu poder sobre nossas vidas.

Em vários casos, a nova versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5), da Associação Americana de Psiquiatria, prevista para este ano, baixa o limiar do que pertence à patologia, designando como transtornos --passíveis de cuidado médico e psicológico-- afetos, pensamentos e humores que, até hoje, eram considerados parte da experiência humana normal.

Em outras palavras, somos cada vez mais considerados como "doentes" (e convidados a procurar tratamento) por uma psicologia e uma psiquiatria que não param de definir nossa "normalidade" --com as melhores intenções.

Isso é bom ou ruim? Nem sempre é fácil responder. Eis um exemplo, complicado.
Acabo de ler uma pesquisa sobre suicídio na adolescência, de Matt Nock (professor de psicologia em Harvard) e outros, publicada em 9 de janeiro no "JAMA Psychiatry", o Jornal da Associação Médica Americana on-line (íntegra:http://migre.me/cNp2O ).

Numa amostra de mais de 6.000 adolescentes de 13 a 18 anos, os pesquisadores acharam que 12% pensaram em suicídio de maneira consistente e continuada --as meninas mais do que os meninos: entre elas, 6% fizeram planos de suicídio e 5% tentaram se matar. Esses números não destoam de minha experiência, tanto de clínico como de ex-adolescente, mas, claro, preocupam.

No entanto, a repercussão do estudo é devida a outro dado: como o "New York Times" destacou, segundo a pesquisa, mais da metade dos adolescentes suicidários tinham recebido algum tipo de tratamento antes de planejar ou mesmo tentar o suicídio.
Receávamos que nossos adolescentes não tivessem acesso ao tratamento do qual precisam, mas o problema, aparentemente, é que os tratamentos não estariam funcionando direito. Claro, é preciso aperfeiçoá-los, estender seu alcance etc. Mas será que nossos tratamentos não funcionam ou será que estamos esperando deles o impossível?
Mal precisa dizer que devemos evitar que os adolescentes se suicidem. Por outro lado, é raríssimo que alguém atravesse a adolescência sem pensar, de vez em quando, que o futuro poderia não valer a pena.
Seria fácil, mais uma vez, designar esse pensamento normal como transtorno e, para curar alguns adolescentes, pretender curar a adolescência, tentando tirar dela aquela dor de viver que, bem ou mal, a define.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Então, era só isso?


 Mal conseguimos ver o tempo passar sem pensar que a nossa vida poderia ou deveria ter sido diferente 

 MICHAEL APTED é um diretor de cinema inglês, premiado e popular (participou das "franquias" James Bond e Nárnia). Em 1964, aos 23 anos, ele fez um filme para a televisão inglesa, chamado "7 Up" (de sete para cima, com um trocadilho com o nome de um refrigerante), no qual entrevistou 14 crianças de sete anos, de origem social variada, perguntando quais eram seus sonhos, planos e desejos. Ele prometeu que voltaria a entrevistar as crianças a cada sete anos.

 Apted manteve sua promessa. Entrevistou o mesmo grupo aos 14 anos, aos 21, aos 28 etc. A cada filme, os entrevistados comentavam suas repostas anteriores, ou seja, mediam as mudanças em sua vida.

 Na semana passada, estreou, em Nova York, "56 Up": as crianças de 1964 (todas vivas) têm hoje 56 anos. Para ter uma ideia do conjunto e do último documentário, veja trechos no site da CBS: http://migre.me/cHQ6k.

 A intenção inicial de Apted era documentar, ao longo de décadas, as consequências das diferenças econômicas e de classe. De fato, a mobilidade social existiu, mas não foi grande. Os mais ricos, que estudavam nas melhores escolas, foram para as melhores universidades e, hoje, estão, como se diz, bem de vida. Os mais pobres (alguns vinham de uma espécie de asilo para crianças carentes, outros, do East End de Londres) tiveram uma vida mais dura. Em suma, tudo tocante e mais ou menos previsível, salvo a sensação com a qual fiquei ao sair do único cinema de Manhattan em que o filme está passando, o IFC Center, na Sexta Avenida, na altura de 3rd Street.

 Quase em frente ao IFC, do outro lado da avenida, está o Blue Note, que, desde os anos 1980, é um templo do jazz nova-iorquino. Deixando o cinema, deparei-me com o letreiro do clube: a "blue note" é aquela nota que é cantada ou tocada meio tom abaixo do que seria esperado e confere, portanto, à música e às letras uma dimensão de tristeza quase existencial (o "blues"). Por isso, alguns dizem que a "blue note" tem a ver com a vida nas plantações, sua dureza e a nostalgia de outro destino.

 O trecho da Sexta Avenida de ambos os lados do cinema IFC fica animado até muito tarde: há dois sex shops e cinco ou seis estúdios de tatuagem e piercings. Para quem passar por Nova York e quiser se aventurar por lá: nenhuma preocupação, não há perigo de ser assaltado.

 Mas há outros perigos, sobretudo se você já tiver esbarrado no letreiro do "Blue Note", depois de assistir ao documentário de Michael Apted. No meu caso, aconteceu o seguinte: fiquei parado, na calçada, intensamente triste, sem saber por quê. As únicas palavras que vinham à minha cabeça eram: "Então, era isso?".

 Cuidado: nenhum dos entrevistados de Apted, nem na infância nem na juventude, expressou desejos extravagantes. A maioria, de um jeito ou de outro, teve a chance de tentar realizar seus sonhos. Claro, alguns escondem suas dificuldades (de nós e de si mesmos), mas, no conjunto, a vida não foi propriamente cruel com nenhum dos 14. Quase todos tiveram amores, filhos, alguma realização; um construiu uma bonita fazendola, outro comprou uma casa de férias na Espanha e outro, que fracassou na vida, foi eleito representante de sua comunidade. Então, qual é a razão da "blue note" que ressoou em mim?

 Talvez seja a sensação de que a vida vai (aos poucos, de sete em sete anos) e que poderia ter sido outra. Mas será que poderia? E outra como?

 Os estúdios de tatuagem e os sex shops da Sexta Avenida parecem sugerir que há vidas que, à diferença da nossa e da dos entrevistados de Apted, queimam rápido, sem se resguardar; mas basta entrar nas lojas para descobrir que nada aí dentro é "extremo" -o ideal de uma vida intensa, como um único grande e curto fogo de artifício, mal tem existência própria, mas é apenas o efeito da nossa nostalgia de "outra coisa".

 Só há uma vida: a que estamos vivendo. É óbvio. Mas por que mal conseguimos viver sem imaginar que ela possa ou deva ser "outra"?

 É uma aflição moderna, pós-romântica. Imagine que Emma Bovary e Anna Karenina tenham se juntado, desistido de complicar sua vida com amantes e sonhos, e transferido todas suas aspirações para seus filhos, ou seja, para nós. Rebentos dessas duas maravilhosas mulheres, como poderíamos achar que o que vivemos é suficiente? Como poderíamos ver o fim da vida se aproximando sem resmungar: "Então, era só isso?".

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Experiência para 2013


A vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las seria esconder nossa maior riqueza

Vinte anos atrás, fui ao casamento de uma amiga em Saratoga Springs, no norte do Estado de Nova York. Era o fim do inverno; a cidade ainda não recebera a turma das águas termais, que chega na primavera, e ainda menos a turma das corridas de cavalos, que acontecem no verão.

Na noite antes da festa, passeando pela rua principal (que, se não me engano, chama-se Broadway), entrei numa loja para fugir do vento. Num canto, estavam os restos dos restos das liquidações de inverno, descontados até não poder mais: as camisas custavam US$ 5 (R$ 10, mais ou menos). Adquiri duas camisas idênticas de sarja pesada, de um cinza escuro, quase preto. Eram as últimas duas no meu tamanho.

Desde então, com o uso, a sarja se tornou mais macia e a cor desbotou um pouco. Por sorte minha e das camisas, isso aconteceu ao longo de uma época que me parecia valorizar, digamos assim, as marcas da experiência. É dessa forma que sempre entendi a moda do brim desbotado, das bainhas desfeitas e desfiadas ou das calças jeans furadas e rasgadas: a vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las (por exemplo, atrás de roupas novas) significaria esconder a maior riqueza que acumulamos, a dos percalços de nossa existência -que eles tenham sido bons ou ruins, tanto faz.

Um dia, 8 anos atrás, a manga de uma dessas camisas brigou com a maçaneta de uma porta, e o tecido foi rasgado, na forma de um sete -de cinco centímetros por oito.
Mandei consertar, sem dissimular o remendo. Afinal, o mundo me parecia maduro para isso: tanto eu quanto minha camisa (que se tornou a preferida das duas) podíamos mostrar sem vergonha as marcas dos anos e das batalhas.

Durante muito tempo, carreguei meu remendo na manga como o distintivo de uma honrada patente militar. Ou como uma declaração à la Neruda, feita por mim e por minha camisa: "confesso que eu vivi".
Como disse, minha confiança no espírito dos tempos era um pouco ingênua, e isso foi revelado nos últimos dias, quando, de repente, um menino de dez anos apontou o dedo para a manga de minha camisa e estranhou: "Mas este é um rasgo?".

Pensei que ele estivesse censurando o que talvez lhe aparecesse como desleixo: por que eu não compraria uma camisa nova e pararia de impor ao mundo a triste visão de um remendo? Mas logo percebi que ele estava usando uma calça jeans rasgada com afinco, de modo que era suficiente ele dobrar levemente as pernas para que seus joelhos estivessem ao ar livre.

Agora, a própria existência de calças rasgadas e desbotadas para crianças invalida meu entendimento de que os nossos tempos valorizariam a experiência. Pois, mesmo vivendo intensamente, uma criança não teria tempo para maltratar sua calça a ponto de lhe imprimir um "look" rasgado radical.

Conclusão: para o menino, meu rasgo e meu remendo eram ruins porque eram verdadeiros. Enquanto os rasgos da calça jeans dele eram bons porque eram de mentira. Ou seja, o que ele aprendera a valorizar não era a experiência real (pressuposto de eventuais acidentes com suas calças), mas os rasgos falsos, ou seja, a pura aparência da experiência.

Entendo que adolescentes e pré-adolescentes tentem aparentar "quilometragem". Alguns, aliás, fazem "besteiras" para acumular logo experiências que lhes permitam se comparar aos adultos. Outros (hoje mais numerosos, talvez?) fazem menos besteiras, porque escolhem um atalho (que os pais, em geral, adoram propor): eles descobrem que arriscar-se a viver é mais difícil e mais cansativo do que acumular e exibir as falsas aparências da experiência. Para eles, os rasgos falsos são propriamente melhores do que os verdadeiros. E brincar é sempre melhor do que viver.

Escrevo esta coluna no dia 31. Estou perto de Times Square. Ao longo da tarde, periodicamente, ouço uma "hola" das pessoas que já esperam para o fim do ano. A "hola" corresponde aos momentos em que as redes de televisão ligam as câmeras. Faz frio e ficar 12 ou 14 horas em Times Square é chato. À meia-noite, você dará um abraço e um beijo nos amigos que estão com você, mas isso você poderia ter feito em casa ou numa festa. A razão de estar em Times Square não é sua experiência, é a aparência de alegria que você talvez possa mostrar ao mundo, na televisão.

Para todos, os votos de um 2013 com rasgos e remendos reais, ou seja, de uma vida que não precise ser confundida com um reality show para convencer aos outros (e à gente) de que ela vale a pena.