quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

A estrela na lapela

Quarta-feira da semana passada, em São Paulo. Tomo meu café contemplando a imagem de capa da Folha: o aperto de mão entre o presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e George W. Bush, presidente dos Estados Unidos.

Uma assimetria: Bush traz, na lapela, uma bandeira dos EUA, e Lula arvora a estrela vermelha do PT. Toca o telefone, e começa uma ciranda de comentários que duram o dia inteiro. "Elegemos o presidente do Brasil ou o do PT?" "O que é, voltou o Komintern?"

Na quinta-feira, aparecem as fotografias do encontro com Vicente Fox, presidente do México: na lapela de Lula, nenhum distintivo. Parece que Lula vestiu a estrela especificamente para o encontro com Bush.

Imagino que ele tenha usado o distintivo para declarar sua fidelidade às aspirações e ao percurso que o levaram até o encontro no Salão Oval da Casa Branca. Lembrete: serei cordial, engolirei os sapos necessários, mas não renegarei a estrela que representa meu sonho de um mundo solidário e generoso. Ora, do lado americano, como foi recebido o gesto?

As vicissitudes da estrela vermelha tornam seu valor simbólico problemático. A estrela no chapéu de um chinês durante a longa marcha era o símbolo de uma grande esperança. Décadas depois, em Pequim, a mesma estrela no chapéu de um policial ou de um burocrata era o símbolo do terror. Soviéticos, chineses, castristas, coreanos do norte e vietnamitas do norte fizeram do bem comum sonhado por todos um pretexto para moer os indivíduos, e, repetidamente, a estrela vermelha virou emblema da repressão. Mas pouco importa: na Casa Branca, certamente, ninguém confundiu o presidente do Brasil, democraticamente eleito, com um burocrata chinês.

No entanto o uso do distintivo deve ter sido entendido como uma provocação e, portanto, como uma fraqueza: em suma, como uma molecagem. Pense no que acontece quando um adolescente insiste em usar seu piercing no nariz logo no dia em que veste terno e gravata para enfrentar uma entrevista de seleção. O jovem acha que ele está, assim, reivindicando sua autonomia: preciso de emprego e você me intimida, mas, cuidado, não pense que deixarei de usar meu piercing, viu? O detalhe incôngruo é, de fato, a prova de sua fragilidade. Pela necessidade de conclamar sua independência na hora de apresentar-se e de pedir, ele revela que está se sentindo ameaçado por sua própria inferioridade. Em boa psicologia de recursos humanos, é por isso que o dito jovem não conseguiria o estágio ou o emprego. Ele sairia esbravejando: fui discriminado por causa de meus anseios de liberdade! Na verdade, seu piercing revelou não um excesso de independência (essa seria uma qualidade prezada), mas uma falta de segurança.

E o americano médio? Quem se interessa por política internacional (uma minoria, sem dúvida) sabe que o presidente eleito do Brasil pertence a um partido de esquerda. Mas a foto do encontro com Bush mal apareceu na imprensa. Segunda-feira de manhã, em Nova York, pergunto a Marshall Blonsky (professor de semiologia na Tisch School of the Arts e autor de "American Mythologies") como reagiria, a seu ver, o americano médio se os jornais tivessem mostrado em primeira página a foto colorida que nós vimos no Brasil, com a estrela vermelha na lapela de Lula.

Responde: "Ficariam exasperados. Pensariam: esse cara está procurando nas ruínas sinistras do passado uma maneira para mostrar a língua a Bush e à gente. Nós estamos em guerra, ele vem pedir crédito e abana com as mãos ao lado das orelhas cantarolando: olhem para a minha estreeela... nana nanana. É tudo o que tem para nos dizer?".

Mas há uma boa chance, acrescenta Blonsky, de que, para os mais jovens, a estrela vermelha evoque sobretudo uma propaganda da Heineken, a cerveja da estrela. De fato, se o retrato do Che pode estar em cada quarto de estudante e embelezar um famoso biquíni apresentado por Gisele Bündchen, por que a lapela de um presidente não seria alugada como espaço para a promoção de logomarcas?

Difícil não ouvir, no cinismo divertido de Blonsky, um fundo de ressentimento. Decididamente, não é o melhor momento para fazer molecagens com os americanos.

Segunda-feira à tarde, por volta das 15h, passam na minha rua, em Manhattan, as coortes dos estudantes que saem da Park West High School, uma escola pública. Enquanto me dirijo a um bar para terminar de escrever esta coluna, cruzo com um adolescente negro que veste o tradicional casaco preto de náilon da North Face, um moletom com capuz cinza e um gorro de lã com, bem no meio da testa, uma estrela vermelha. Para verificar a previsão de Blonsky, aponto para a estrela e comento: "Cool" (legal). Martin F., 17, pára, e conversamos no frio. Mostro-lhe a capa da Folha de quarta-feira. Quando enxerga a estrela, exclama: "Cooool" (leeegal). Imagina que Lula seja um cara da Rússia. Faço-lhe notar que os russos não têm mais nada a ver com as estrelas vermelhas. "Como não? São as lojas dos russos que vendem essas estrelas em qualquer canto do Brooklyn."

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