quinta-feira, 18 de março de 2004

A Paixão de Cristo

"A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, estréia amanhã no Brasil.

1) Muitos perguntarão: por que representar a paixão de Cristo com tamanha violência e tanto sangue? O cristianismo não seria mais bem apresentado pelo Cristo da ressurreição e pela mensagem generosa dos Evangelhos?

Ora, em 1521, Lucas Cranach publicou um pequeno livro, "Passional Christi und Antichristi" (Paixão do Cristo e do Anticristo). A gravura em que o anticristo era coroado com muita pompa, como um papa ou um imperador, era contraposta à que representava o Cristo escarnecido e humilhado, com sua coroa de espinhos.

Como milhões de homens e mulheres ocidentais, passei minha infância sob o olhar protetor de dois tipos de imagens: de um lado, os heróis nacionais com faixas, gala, espada e bandeira; do outro, o crucifixo. Cuidado: não era o Cristo sentado à direita de Deus nem o Cristo conversando amavelmente com os apóstolos ou sarando leprosos e ressuscitando mortos. Era o Cristo na cruz. Seu poder era obviamente diferente do poder dos heróis a cavalo: ele parecia se originar no próprio martírio.

Em matéria de religião, prefiro conviver com perguntas que não têm resposta. Mas uma coisa me parece certa: sem o mistério (absurdo, como dizia Tertuliano) de um deus que teria aceitado viver um suplício horrível para redimir os pecados dos homens, o cristianismo não passaria de uma ideologia social-democrata. Ótimo e simpático, mas não precisa do Cristo para isso.
No filme de Mel Gibson, a paixão acontece na presença constante do demônio, que é o único derrotado. Se o Cristo desistisse de seu martírio e recorresse a uma mágica divina para evitar o sofrimento, o demônio triunfaria. E prevaleceria, em nossa cultura, uma única idéia do poder, a idéia da qual gosta o maligno e segundo a qual o poder está com o mais forte.

2) Vários críticos acusam Mel Gibson de ser hollywoodiano. Dizem que, na "Paixão de Cristo", o sangue escorre como num filme de ação de segundo escalão.

É uma inversão. O Cristo crucificado é a imagem que mais foi reproduzida e divulgada no segundo milênio do Ocidente. Não é estranho, por conseqüência, que um tema básico de nossas narrativas populares seja o seguinte: um homem é massacrado, surrado, deixado numa poça de sangue, mas ele é um justo e voltará um dia para ajustar as contas.

A paixão de Cristo não precisa do sangue falso de Hollywood, mas há muito sangue de Hollywood que seria impensável sem nosso fascínio pela paixão de Cristo. O próprio Mel Gibson, como ator, já foi "crucificado" mais de uma vez.

3) Ao achar que a violência do filme é excessiva, somos fiéis à modernidade. A partir da segunda metade do século 15, somem das praças da Europa as brutais encenações teatrais do suplício de Cristo, e as imagens da paixão na arte sagrada se tornam menos cruentas. O historiador suíço Valentin Groebner, num livro recente e admirável ("Defaced, the Visual Culture of Violence in the Late Middle Ages"; Desfigurado, a Cultura Visual da Violência na Idade Média Tardia, Zone Books), nota que, a partir de 1525, as representações de Jesus crucificado, em vez de mostrar a agonia de um torturado, começam a apresentar "um redentor delicadamente suspenso na cruz".

Há exceções: o barroco brasileiro produziu, por exemplo, algumas estátuas do corpo doloroso de Cristo que não ficam para trás de nenhum Mel Gibson. Mas, no conjunto, o Renascimento do século 16 (e a gente com ele) prefere esquecer pragas e dores para exaltar as potencialidades do homem. O que era o crucifixo para um sujeito medieval? Uma consolação? Um exemplo de resignação? Pode ser. Mas, quando os pestilentos, os supliciados em praça pública, os famintos e os destroçados das mil guerras olhavam para o crucifixo, eles deviam encontrar um curioso espelho. O que havia de mais real em seus corpos, o sofrimento e a fragilidade mortal, fora também o lote de Deus. Talvez, com isso, eles reconhecessem que sua desgraça não os excluía da humanidade.

A modernidade continua pendurando crucifixos nas paredes, mas prefere esquecer pudicamente a paixão representada. Se precisássemos da imagem de um corpo comum, seria mais um ginasta que um crucificado.

Mel Gibson nos lembra de algo incômodo. E também útil: não há como entender o que é um homem moderno sem considerar que, para muitos, desde a infância, a imagem de um jovem torturado e agonizante foi o primeiro símbolo (paradoxal) de grandeza e o primeiro ideal de um corpo masculino amável e venerável.

Notas
1) Alguns acham que "A Paixão" é um filme anti-semita. A obra confirmaria o antigo argumento segundo o qual "os judeus" quiseram supliciar o Cristo (argumento que, de fato, a Igreja Católica usou durante séculos para supliciar judeus). Ora, no conto evangélico como no filme, Caifás e o "establishment" judaico de Jerusalém (não "os judeus") pediram a crucifixão de um profeta de sucesso, que minava o poder religioso instituído. Esse profeta era Cristo, um judeu.

2) De fato, Tertuliano (terceiro século de nossa era), no "De Carne Christi", não disse "credo quia absurdum" (creio porque é absurdo), mas "credibile est, quia ineptum est": é acreditável porque é inepto, ou seja, porque é uma história fraca.

Aliás, a paixão serve para isto: para que acreditemos nos fracos.

quinta-feira, 11 de março de 2004

Os Estados Desunidos da mente



Há mais de quatro décadas, o La MaMa, no East Village de Manhattan, é o templo nova-iorquino do teatro experimental. No sábado passado, no La MaMa, estreou uma peça escrita e dirigida por Gerald Thomas: "Anchor Pectoris, The United States of the Mind" (Anchor Pectoris, os Estados Unidos da Mente).

A expressão conhecida é "angina pectoris": designa uma dor violenta e opressiva atrás do esterno, que nos aflige quando o oxigênio que chega ao coração é insuficiente. "Anchor pectoris", uma âncora no peito, é uma boa metáfora: evoca o sofrimento (uma espécie de facada no coração e um peso que, esmagando-nos, impede a respiração), mas também, paradoxalmente, promete uma cura. Afinal, estamos (ou somos) todos um pouco perdidos, navegando à deriva: lamentamos o porto seguro do qual saímos um dia e sonhamos com uma âncora que possa nos prender a um lugar ou a uma idéia certa e clara.

A peça nasceu como um "tour de force". Gerald Thomas, de passagem por Nova York em janeiro, visitou Ellen Stewart, a diretora artística do La MaMa. E Ellen, de repente, lhe propôs de montar e encenar um espetáculo em 30 dias.

O resultado é intenso, engraçado e tocante: o diretor nos apresenta a atual encruzilhada de sua vida num instantâneo que é também um inventário tragicômico da subjetividade contemporânea.

Como personagens de Beckett, erramos por um terreno baldio, em que circulam lembranças, pensamentos, esperanças e fragmentos obcecantes de discursos políticos vazios (os de George W. Bush, no caso). A musa que poderia nos inspirar (surpreendente Fabiana Guglielmetti) ora parece morta, ora dança zombando da gente. Stephen Nisbet e Tom Walker são os (ótimos) atores que encarnam o próprio Gerald Thomas. Há um momento em que Nisbet pergunta: será que alguém encontrará o tempo para juntar a sucata em que se partiu nossa subjetividade? E será que valeria a pena? O ator, nessa hora, se parece com um boneco que tivesse desmontado a si mesmo para compreender melhor seu funcionamento e, então, perplexo no meio de um quebra-cabeça de braços e pernas, não encontrasse mais o jeito de se reconstruir.

Surge a tentação de juntar-se ao coro das viúvas do "Meu Deus, que horror, tudo o que é sólido se desmancha no ar". É fácil ser mais uma voz chorando o fim dos ideais, do claro sentido da história, do respeito absoluto pelos mestres etc.

Cuidado: certo, o boneco pós-moderno não consegue rejuntar a sucata em que foi transformado por sua própria curiosidade, no entanto ele oferece algumas compensações. Ele é capaz, por exemplo, de escrever a peça de Gerald Thomas, ou seja, de se enxergar com lucidez e ironia atormentadas. Você acha que essa qualidade não levanta pirâmides nem redige sistemas filosóficos? Pode ser. Mas é a qualidade crucial para aqueles que querem (e ousam) mudar.

Um dos livros mais interessantes que li nos últimos anos é "The Protean Self, Human Resilience in an Age of Fragmentation" (O Sujeito Protéico, a Resistência Humana numa Época de Fragmentação), de Robert Jay Lifton, o grande psicanalista e psiquiatra americano que escreveu sobre a Guerra do Vietnã, as conseqüências psíquicas da ameaça nuclear etc. Protéico, no título, não tem nada a ver com as proteínas; é uma referência a Proteus, um deus da mitologia grega que tinha a faculdade de adotar infinitas formas diferentes (de leão, de serpente, de árvore e mesmo de água), sobretudo para evitar que fosse encurralado e obrigado a responder a perguntas sobre o passado e o futuro (sendo que sobre ambos ele sabia mais do que queria dizer). Proteus é o padroeiro das mudanças.

Entre os mil ensaios sobre a pós-modernidade e a subjetividade contemporânea, "The Protean Self", publicado em 1993, é um dos poucos que não se resumem num lamento da consistência perdida. Para Lifton, a novidade pós-moderna é que, claro, vivemos num mundo inquietante, fluido e múltiplo, mas a contrapartida positiva dessa inconsistência é a extraordinária e constante possibilidade de nos outorgar segundas, terceiras e quartas chances.

O sujeito contemporâneo é um imigrante, um órfão e um sobrevivente: perdeu seu lugar de origem, a proteção da autoridade paterna e a fé tanto na imortalidade de sua alma quanto no progresso infinito da espécie. Essas perdas nos definem e nos mantêm num luto constante, mas elas são as condições de nossa plasticidade, ou seja, de uma capacidade, inédita e gloriosa, de mudança. Quem não tem país, não tem pai e não conta com a eternidade atreve-se facilmente a transformar radicalmente sua vida.

Para Lifton, a subjetividade contemporânea é uma agonia que acarreta seu próprio remédio: a experiência do desamparo é a mola de nossas reinvenções.

É a época sonhada por qualquer terapeuta: nunca houve tanto sofrimento para curar, mas também nunca houve tanta possibilidade de curar, pois nunca houve tanta disponibilidade para mudar.

É também uma boa época para pensar, pois é permitido (ou mesmo encorajado) descuidar autoridades e doutrinas para aceitar as incoerências que são impostas pela realidade.

sexta-feira, 5 de março de 2004

Admiráveis mulheres

Na Folha de domingo passado, uma reportagem de Gilmar Penteado, "Dobra o número de meninas na Febem". O texto apontava que, nos últimos três anos, dobrou o número de meninas cumprindo "medidas socioeducativas" na Febem, enquanto o número de garotos aumentou apenas 49,3%. Além disso, com esse entusiasmo inédito, as meninas se encaminham para os mesmos crimes que são preferidos pelos garotos (roubo qualificado e tráfico de drogas).

Você pensava o quê? As mulheres deixaram de se preocupar só com as panelas e o repouso sexual do guerreiro. Participam da dita "vida ativa" (ou seja, da produção) tanto quanto o homem. Portanto, acabou a época em que as mulheres cometiam lânguidos crimes por paixão ou eram cúmplices fiéis de seus companheiros ladrões. Chegou a época da igualdade: as meninas assaltam como garotos.

Nostalgia das mulheres que se dedicavam só ao lar e à tarefa de seduzir? Seria estranho, pois os homens de hoje não gostam especialmente de amélias. Então nostalgia de quê?

Os homens ingressaram na modernidade se transformando em puros agentes econômicos: a profissão nos define, os bens acumulados e a renda nos qualificam socialmente, o lucro nos motiva, e o consumo expressa nossos desejos.

É simples, mas custoso, pois essa transformação pede, em princípio, que os homens descuidem de seus vínculos afetivos e passionais. Nada de lar, pátrias e amores: somente o mercado. Idealmente, o produtor-consumidor, sedento de bens e status, é órfão, apátrida e desdenhoso de sentimentos complexos.

No começo, as mulheres foram poupadas pela modernidade. Sobrou-lhes a tarefa de cuidar dos homens e de reproduzi-los. Com isso, elas se tornaram, para todos (inclusive para elas mesmas), o símbolo do que os homens perdiam, do lar, da terra, da sensualidade do corpo, dos transportes da paixão, enfim, da vida concreta. Nos últimos 50 anos, as coisas mudaram. Será que as mulheres de hoje, como as meninas da Febem, se parecem com os garotos?

Começou, na semana passada (e permanece até 30 de maio), no Itaú Cultural (avenida Paulista, 149), a exposição "O Preço da Sedução, do Espartilho ao Silicone". Sem pedantismo, com quadros, roupas, acessórios, revistas da época (que podem efetivamente ser folheadas) e trechos de filmes, a curadora, Denise Mattar, esboçou uma bonita história da sedução feminina nos últimos 200 anos.

Em reverência obrigatória ao senso comum, é difícil não criticar a servidão das mulheres, "forçadas" a modelar seus corpos segundo o desejo masculino. Mas, percorrendo as salas da exposição, pensei algo um pouco diferente.

É extraordinário que, desde os anos 50, as mulheres consigam produzir como os homens sem abandonar a arte da sedução e (embora esse não seja o tema da exposição) sem deixar de ser mães: elas continuam sendo guardiãs do lar, representantes da paixão e símbolos da sensualidade dos corpos.

É uma missão impossível a cada dia: leve as crianças para a escola, corra para o trabalho, ao meio-dia depilação e almoço executivo, volte para o escritório, encontre a orientadora do colégio do filho, aproveite aquela liquidação de lingerie, escreva o relatório para a conferência anual e esteja em casa a tempo para tomar banho, secar o cabelo e acolher os convidados para o jantar. No meio disso, faça o necessário para que fechem as contas do mês. Admiráveis mulheres.

Logicamente, para a mulher que se tornou agente econômico (e que assalta como um garoto), as antigas exigências da sedução, da paixão e do lar soam como uma imposição violenta. "Além de trabalhar, olhe o que me toca fazer enquanto meu suposto companheiro volta do serviço como um viking voltava da guerra. Alega suas feridas para descuidar de si, dos filhos, da casa e de mim. E ainda pede que Salomé dance para ele, com ou sem os sete véus."

É grande a tentação de entender a história dos artifícios da sedução como uma história das alienações impostas às mulheres pelas fantasias dos homens. Os homens do século passado deviam gostar de cintura fina, e as mulheres se deixavam sufocar nos espartilhos. Muitos homens hoje devem gostar de peitos fartos, e as mulheres passam na faca. Será que é isso?

Talvez. Mas pensar assim não é diminuir o mérito das mulheres? Afinal, foram elas que, no mundo abstrato dos agentes econômicos, souberam e ainda sabem inventar mil maneiras de manter vivo o desejo concreto.

A história da sedução não é só uma história de violências sofridas e de sujeição às fantasias dos homens. É também a história de como, nas margens das fábricas e dos escritórios, as mulheres conseguiram resguardar um tempo e um lugar para as paixões ou para as vontades marotas.

O preço da sedução, do espartilho ao silicone, não é só o preço pago pelas mulheres submissas ao desejo masculino. É também o custo de um projeto, o preço que elas pagam por querer que a vida seja diferente, menos pobre e menos aborrecida.

Certo, parece um despropósito: a arte da sedução como meio para mudar o mundo? Mas veja só. Várias propagandas antigas são reproduzidas na exposição. Por que usar a Lugolina do dr. Eduardo França? Pois é, declara a modelo, "estou convencida de que, para ser bela e dominar o mundo, deve-se usar só Lugolina".

quinta-feira, 4 de março de 2004

A arte do retrato



Terça -feira, em Nova York. Hoje, uma grande rodada de eleições primárias escolherá o candidato democrata à Presidência americana. É um bom dia para tomar café e discutir política no clube da Universidade Yale, na rua Vanderbilt: na sala principal, ao lado do bar, tronam os retratos dos ex-alunos da universidade que foram presidentes dos EUA, Gerald Ford, George Bush (o pai) e Bill Clinton. O retrato de George W. Bush (o filho), também ex-aluno, chegará no fim do mandato.

Os ex-presidentes são representados à paisana: nada de pingüim, nada de faixa, nem mesmo uma gravata com as cores da bandeira. Os retratos são acadêmicos e não fazem o meu gosto. Mas não é só isso: eles são pouco palatáveis por uma outra razão.

Todos nós temos, no mínimo, dois corpos: um corpo público ou político e um corpo privado. O primeiro é o corpo que apresentamos aos outros no exercício de nossas funções sociais: o enfermeiro e a médica de jaleco branco, o homem de negócios de terno escuro, o professor de paletó xadrez e gravata borboleta, a roqueira de calça apertada e cabelo punk. O segundo é o corpo que veste a camiseta do domingo, o couro e a lingerie da noite licenciosa ou a nudez dos enlaces amorosos. E é banal que tenhamos mais de um corpo público e mais de um corpo privado. Nota: aprendi a reconhecer a pluralidade de corpos que habitamos lendo (anos atrás, sorte minha) "Os Dois Corpos do Rei", de Ernest Kantorowicz (felizmente traduzido pela Companhia das Letras).

Mas voltemos ao clube nova-iorquino: os retratos dos três ex-presidentes são medíocres porque, apesar de não mostrarem explicitamente as fardas e os atributos do poder, eles conseguem a duvidosa façanha de apresentar corpos perfeitamente políticos. Quem se der o trabalho de contemplá-los receberá apenas esta mensagem: os três aqui retratados foram poderosos do jeito discreto e austero que convém a um ex-aluno de Yale. Para um olhar moderno, não basta; hoje, espera-se que qualquer retrato levante a suspeita de que, atrás do corpo público, há o enigma de desejos privados. Estamos interessados em indivíduos que sejam gente, não em fardas, que nos parecem sempre vazias.

Aliás, é por isto que todos os candidatos exibem filhos, mulheres e parentes: querem nos mostrar que eles têm um corpo privado, como nós. Claro, há corpos privados que a opinião média julga incompatíveis com certos corpos públicos: será que aceitaríamos um presidente que, à noite, vestisse calcinha e cinta-liga para encontrar seu amante? Provavelmente não, mas é indubitável que desconfiaríamos de um sujeito que quisesse nos convencer de que seu corpo é inteiramente político e público.

Por essas razões, um retrato que apresenta só o corpo público do retratado é, aos nossos olhos, simplesmente ruim.

Acabo de ler "Portraits, A History" (retratos, uma história), de Andreas Beyer. O original em alemão saiu em 2002; a tradução em inglês é do fim do ano passado.

O livro, que é maravilhosamente ilustrado e pesa seis quilos, narra de maneira magistral a evolução da arte do retrato.

Beyer confirma esta tese estabelecida em 1860 por Jacob Burkhardt (em "Cultura do Renascimento na Itália"): até o começo do Renascimento (primeiras décadas do século 15), a pintura ocidental não produziu retratos de indivíduos. Para os gregos, os romanos e os homens medievais, retratar significava mostrar não a unicidade do sujeito retratado, mas sua função social, seu status, seu lugar na hierarquia do poder. Por exemplo, o retrato de um imperador romano não se preocupava com a reprodução dos traços distintivos de sua pessoa, mas tentava criar uma imagem que expressasse a majestade da autoridade absoluta, da sabedoria e talvez do sagrado. Reconhecer o imperador no retrato significava reconhecer seu poder, muito mais que suas feições.

A partir do século 15, os retratos começam a insistir na singularidade dos sujeitos retratados. A mudança se explica assim: a modernidade valoriza o indivíduo mais do que a comunidade. Portanto, espera-se que o retrato moderno revele a verdade do corpo privado, único e inconfundível. A função social do sujeito (seu corpo público), no melhor dos casos, é uma espécie de mentira necessária.

No retrato antigo, os atributos da função eram mais importantes que os traços singulares do sujeito porque, antes da modernidade, o sujeito parecia ser definido perfeitamente (ou quase) por sua função social. Se, ao retratar César, mostrei que ele é imperador, revelei o essencial de sua pessoa. Ao contrário, se, ao retratar um presidente de hoje, eu só conseguir mostrar que ele é presidente, o retrato será propriamente um fracasso.

Para nós, modernos, a função social não resume nem define o indivíduo que a preenche. Quando contemplamos um retrato, o que nos interessa é aquela parte do sujeito retratado que não cabe na farda do corpo público.

A Antigüidade era o reino das fardas. O homem clássico conhecia uma (suposta) paz de espírito porque sua função na ordem social lhe bastava para responder à pergunta: "Quem é você?".
A modernidade é o mal-estar produzido pela descoberta de que um corpo privado se agita atrás das fardas, que não definem mais nossa pessoa. A esse descompasso devemos nossa pequena liberdade.