quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004

"Peixe Grande" e a paixão pela vida

Na semana passada, estreou "Peixe Grande", de Tim Burton.

O filme é maravilhoso e tocante. Conta como, de um pai para o filho, transmite-se um bem precioso: a paixão pela vida.

A história é a seguinte: um filho passa a infância boquiaberto, escutando o pai, que não pára de narrar suas aventuras mirabolantes. Ao tornar-se adulto, o filho não agüenta mais: as narrações paternas lhe parecem fanfarrices. Quando o pai está próximo da morte, o filho volta para casa, decidido a entender o tamanho e a razão das "mentiras" paternas.

Difícil dizer se as histórias contadas pelo pai eram mentiras ou não. Mas tanto faz: o que o filho descobre é outra coisa e mais importante. De que se trata?

Para termos vontade de viver, não basta dispor do famoso instinto de autopreservação. Claro, reagimos imediatamente a situações de perigo. Se o corrimão da sacada balançar de repente, evitaremos cair no vazio jogando nosso peso para trás. Fato notável, o reflexo funcionará mesmo se estivermos deprimidos e prestes a cometer suicídio, de revólver na mão.

Essa contradição sugere o seguinte: o instinto de autopreservação não se confunde com a vontade de viver. O gosto pela vida não vem com o pacote genético: é uma paixão que nos é transmitida de maneiras diferentes, segundo a cultura, a época e a família em que nascemos.
Os pais podem inculcar no filho a vontade de viver para que o rebento realize as ambições nas quais os genitores fracassaram: "Viva, filho, para nos dar uma segunda chance". Na mesma linha, encontra-se: "Viva e reproduza-se para que a família continue", "viva para honrar os preceitos dos antepassados ou da religião" e "viva feliz para mostrar ao mundo que nós, seus pais, fizemos um bom trabalho". Em todos esses casos, a vontade de viver é transmitida como um mandato que se justifica por razões externas à própria experiência da vida.

Ora, sou pai de três rapazes. Gostaria de lhes transmitir uma paixão pela vida que não dependesse da realização de sonho algum, ainda menos de um sonho meu. Gostaria que eles encontrassem sua razão de viver não alhures (numa obrigação ou mesmo nos grandes princípios que dirigem suas ações), mas na própria experiência da vida que levam, em seus momentos felizes ou tristes, jocosos ou duros.

Mas como transmitir uma paixão pela vida em si?

O pai de "Peixe Grande" responde: para amar a vida, é preciso saber romanceá-la, não necessariamente devaneando que cada peixe pescado seja Moby Dick, mas vivendo a vida como uma aventura maravilhosa.

É impossível sair do filme sem pensar no pai da gente. Meu pai não gostava de contar em público suas façanhas. No entanto, não parava de maravilhar-se com a vida.

Até os meus sete ou oito anos, a cada vez que meu pai atendia o telefonema de um de meus colegas da escola, ele declarava, seriíssimo: "Só um instante, Contardo está preparando a comida para a girafa" ou "Vou ver se pode, estava dando banho no hipopótamo, talvez tenha terminado".

Mais de uma vez, tive que lidar com amigos furiosos, convencidos de que eu escondia um zoológico em casa e inconformados com meu egoísmo. Por que não permitia que os amigos brincassem com meus bichos?

Na época, eu detestava essas brincadeiras do meu pai. Hoje, acho que ele tentava me transmitir um pouco de sua capacidade de temperar a existência com pitadas de fantasia.

Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que sua caligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe. Às vezes, eu ficava escutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a transformação que as palavras do diário impunham a acontecimentos que eu tinha presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava uma vasta produção teatral cujo tema maior era sempre, aliás, o seu amor pela minha mãe.

Por exemplo, num vilarejo perto de Milão, numa tarde de domingo, com um frio de cão e uma chuva de afogar rãs, meu pai procurava o sacristão fantasma que talvez tivesse a chave de uma capela meio destruída, onde, segundo constava, sobravam os restos de um afresco do século 15. Minha mãe devia estar de saco cheio tanto quanto nós.

Mas meu pai ditaria esse transtorno como o encontro encantado do céu cinzento de Lombardia com o sorriso de minha mãe (que ele era o único a ter entrevisto), com a dedicação do sacristão (que, provavelmente, maldisse esse erudito que aparecia num domingo de inverno), com o sublime gesto do pintor (do qual gesto não sobrava quase nada) e, enfim, com o tormento e a esperança dos soldados que, num momento da Segunda Guerra, deviam ter encontrado amparo na capela, cujos muros eram grafitados por balas de metralhadora. Tudo isso convergiria para compor um momento mágico nas páginas do diário e, de fato, na vida dele.

Quando meu pai morreu, fiquei com seus diários. Leio de vez em quando. Não procuro informações sobre sua vida, apenas o segredo de sua paixão de viver e de amar.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

Ataque dos clones

Na semana passada, pesquisadores da Universidade Nacional de Seul, na Coréia do Sul, anunciaram ter conseguido uma proeza científica e técnica.

Eles convenceram células quaisquer de um organismo humano a comportar-se como células-tronco originárias, ou seja, como células não diferenciadas, prontas a transformar-se em todos os tecidos dos quais o organismo possa precisar.

As promessas terapêuticas da experiência são imensas. Um infartado, por exemplo, poderia implantar em seu coração células dispostas a regenerar o órgão ferido.

Claro, a experiência acarreta a possibilidade de que um dia consigamos clonar um sujeito humano a partir de qualquer uma de suas células.

Conseqüência: ninguém comentou a experiência sem manifestar preventivamente sua recusa da clonagem.

Cada vez que se fala em clonar seres humanos, primeiro declaramos nossa oposição. A clonagem tem esse mérito: graças a ela, por uma vez, todos parecemos concordar. A unanimidade e o caráter peremptório das reações me levam a perguntar: com quem estamos brigando?

Não gostamos da idéia de que seja possível reproduzir-se sem passar pelos prazeres e desprazeres do sexo, do amor e do casal. Mas onde está a novidade trazida pela clonagem? A instabilidade dos casamentos já tornou banal que haja homens e mulheres criando filhos sem parceiro; para ter uma prole, casais homossexuais recorrem a barrigas de aluguel ou ao esperma de doadores anônimos; o sexo virtual é, para alguns, a modalidade preferida de relacionamento erótico-amoroso: seus adeptos devem renunciar a maternidade e paternidade?

Desaprovamos o projeto de produzir um ser humano que teria exatamente a mesma carga genética de seu (único) genitor: "O que é isso de querer se duplicar? Cara, qual é a sua, está com medo de morrer?". É curioso: a mesma pergunta poderia ser colocada à grande maioria dos casais que se reproduzem segundo o cânone estabelecido. Já faz mais de dois séculos que fazemos filhos na esperança de corrigir nossa intolerável mortalidade e os amamos por eles representarem nossa segunda chance: quem sabe eles realizem os sonhos que não alcançamos no decorrer de nossa vida.
Alguns se indignam porque, clonando, estaríamos brincando de Deus; clonar, eles notam, não é "natural". Certo, mas tampouco é natural erradicar a peste bubônica, inventar a energia nuclear, modificar o tamanhos dos seios e transplantar rins.

Outros levantam o espantalho da eugenia nazista. Dizem que, se pudermos escolher, soltaremos nossos piores preconceitos, planejando uma raça de loiros de olhos azuis, altos, fortes e livres de estigmas hereditários. Fora o fato de que nem todos temos os mesmos preconceitos (há quem prefira corpos morenos e cabelos encaracolados), será que não estamos já engajados numa eugenia de bom tamanho? Para que servem os exames pré-conjugais? E o acompanhamento pré-natal? E os exames do líquido amniótico, sistemáticos em mulheres grávidas acima dos 40 anos?

Outros ainda se queixam de que a clonagem comprometeria nossa unicidade. Mas a queixa manifesta sobretudo nossa ciumenta vontade de sermos inconfundíveis, pois a identidade de patrimônio genético não ameaça a singularidade dos sujeitos: a vida já se encarrega de diferenciar os gêmeos.

Em suma, somos contra a clonagem de seres humanos. Certo, mas é bom reconhecer que essa oposição apenas renova conflitos ordinários em nossa cultura.

Voltemos à experiência sul-coreana. Os fundamentalistas religiosos (de Bush ao Vaticano, passando pelos evangélicos) desaprovam e querem proibir: consideram que, seja qual for o estágio de desenvolvimento de um embrião, ele já é uma vida humana. Destruí-lo para extrair células-tronco seria, para os fundamentalistas, a mesma coisa que matar um sujeito para transplantar seu coração para outro.

Ora, justamente o cristianismo nos convida a descobrir e a respeitar a humanidade em nossos semelhantes. Para que um embrião que contém uma centena de células-tronco me apareça como meu semelhante, é preciso que minha definição do humano seja biológica. Seria humana qualquer existência, em qualquer estágio, com a condição de que pertencesse à espécie. Por esse caminho, por que não chorar pelos espermatozóides sacrificados, não digo nas camisinhas e nas masturbações, mas na própria hora da fecundação? E por que não pedir que as mulheres enterrem com ritos religiosos cada óvulo expulso na menstruação?

Fora de brincadeira, vale a pena notar o caráter pós-moderno dessa posição moral aparentemente conservadora. Veja bem: se a humanidade é definida por via biológica, então o bem supremo é a sobrevivência. E nenhum valor moral pode situar-se acima do bom funcionamento dos órgãos. Há uma curiosa cumplicidade entre a idéia de que um embrião é nosso semelhante e a idéia de que é mais moral fazer regime balanceado do que ler o jornal tomando café. Se o Paraíso obedecer ao Vaticano, os mártires cristãos que se cuidem: afinal, eles foram para a morte "só" para defender uma idéia.

Quanto a mim, prefiro reconhecer a humanidade de meus semelhantes nas faíscas da emoção, do pensamento e, sobretudo, da dúvida, que talvez seja a atitude mais humana de todas.

Aliás, quando encontro sujeitos que só têm certezas (como, neste caso, os que se indignam com a experiência coreana), eles me parecem ser apenas embriões de sujeitos.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004

Consumidores e assanhados

Na semana passada, assisti a alguns capítulos da novela das oito da Rede Globo, "Celebridade".

Um anúncio da Honda voltava seguidamente, intercalado na novela. No sábado, quando o anúncio não apareceu, senti sua falta: cadê a propaganda da Honda?

Era um breve filme em que um carro, rápido, altivo e solitário, percorria as ruas de uma cidade; o turbilhão produzido por sua passagem levantava as saias curtas e vaporosas de mulheres maravilhosas. O roteiro parecia ditado pelo espírito da "Motivational Research" (pesquisa das motivações) do pós-guerra americano.

Os estudos das motivações dos consumidores foram, se não introduzidos, no mínimo popularizados, nos anos 50, por psicólogos de formação psicanalítica.

O mais famoso foi o dr. Ernst Dichter, que nasceu em Viena e, criança, residiu perto da casa de Freud (curiosidade que não prova nada). Ele foi psicanalisado por Wilhelm Steckel e demonizado por Vance Packard, em 1957, num clássico da sociologia de esquerda americana, "The Hidden Persuaders" (os persuasores ocultos). Dichter saiu de Viena a tempo, passou pela França e fugiu para os EUA antes da invasão nazista. Nos EUA, ele fez fortuna no marketing recorrendo à psicanálise para apontar as razões inconscientes das escolhas dos consumidores.

Em 1995, visitei sua viúva, que vivia em Westchester, ao norte da cidade de Nova York. Tive acesso aos arquivos de Dichter e consegui uma cópia de sua tese de doutorado, que, confesso, ainda não estudei. Queria entender qual era a visão da subjetividade pelo dr. Dichter. Deixando de lado a hipótese do simples oportunismo, perguntava-me: qual otimismo de imigrante neo-americano podia levar o dr. Dichter a pensar que o uso comercial das motivações inconscientes não constituísse uma falha ética, mas talvez contribuísse à formação de uma sociedade de consumo "feliz"? Mas não é esse o tema de hoje.

Ao meu ver, os melhores trabalhos do dr. Dichter não são propriamente pesquisas (embora ele se servisse de entrevistas e grupos de foco). Eles são exercícios de interpretação livre. Por exemplo, num relatório famoso, ele sugeriu a uma fábrica de carros que as concessionárias colocassem sempre na vitrina um conversível, enquanto o carro de quatro portas, apesar de ser o modelo mais vendido, ficaria atrás. Dichter se valia do seguinte argumento (resumido): os homens (na época eram eles que compravam) sempre entram num lugar atrás de uma amante, embora acabem levando uma confortável esposa. Outro relatório salientava a relação íntima do sabonete com o corpo e propunha que a propaganda de sabão se baseasse na sensualidade da espuma e não na virtude higiênica.

Hoje, esses achados parecem ingênuos: como o dr. Dichter conseguia ser pago para "descobrir" trivialidades? No entanto, é preciso lembrar-se de que, antes da Segunda Guerra, a propaganda consistia, em geral, na apresentação do produto, acompanhada da lista de suas propriedades, eventualmente milagrosas. No marketing dos anos 50, era inovadora a idéia de que o consumidor teria duas motivações básicas -poder social e sucesso sexual- e que, portanto, uma propaganda eficiente deveria relacionar o produto a uma delas ou às duas.

Dichter podia dizer-se freudiano, pois Freud teria concordado: as motivações humanas cabem em duas categorias (relacionadas), sucesso social e sexual.

O que mudou desde a época de Dichter? O que fez que, aos poucos, ele fosse esquecido? As motivações não mudaram, mas mudou seu estatuto: elas não têm mais nada de inconsciente nem de vergonhoso ou escondido.

A propaganda da Honda que cativou minha atenção era apresentada, como já disse, no meio de "Celebridade". Na novela, as motivações explícitas de vários protagonistas (motivações que ninguém estranha) são as mesmas que, segundo Dichter, animam o consumidor potencial. De uma certa forma, a propaganda da Honda (deve ser por isso que senti sua falta no sábado) era uma síntese (parcial, claro) da novela.

Meio século depois de Dichter, parecemos continuar exatamente como ele supunha que fôssemos: consumidores sedentos pelo prestígio que as mercadorias conferem e assanhados. A única (e notável) diferença, aparentemente, é que, além de consumidores e assanhados, somos assumidos: sem grande resistência, concordamos com a suposição de Dichter.

Talvez o psicólogo vienense-americano pensasse que, revelando as motivações básicas do sujeito moderno, ele estivesse fazendo uma obra civilizadora, produzindo uma espécie de terapia coletiva. Afinal, graças a ele, motivações inconscientes se tornariam conscientes. Não é isso que se espera da psicanálise?

Pois é, a psicanálise como "ciência" das motivações é mesmo trivial: duas ou três pulsões, uma corrida atrás do desejo (sobretudo o dos outros) e por aí vai. Só que a psicanálise não é uma ciência das motivações, mas uma arte de explorar (e modificar) os meandros pelos quais cada um constrói uma existência singular (sofrível ou sofrida) negociando como pode com as tais motivações básicas triviais.

Sobra, portanto, uma pergunta: se o que nos define não é a banalidade das motivações, mas nossa capacidade de inventar a vida negando, deslocando e transformando as ditas motivações, então por que nos espelhamos docilmente nas idéias de Dichter? Por que aceitamos ser definidos sumariamente por cobiça e luxúria?

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

Volta a Dogville



Muitos leitores me escreveram comentando a coluna de quinta passada, que tratava de "Dogville", de Lars von Trier. Agradeço a todos.

1) Alguns perguntam por que, ao avaliar um filme, daríamos peso às declarações do diretor: "Não seria melhor considerar a obra em si, sem interessar-se pelas intenções do autor?". No caso, pouco importaria que Von Trier anunciasse estar apresentando a "realidade" americana.
Problema: o que Von Trier declara em suas entrevistas não é ausente do filme. Dogville é um vilarejo americano. O protagonista masculino se chama Thomas Edison. As fotografias da miséria do mundo que acompanham os créditos do filme sugerem uma relação causal: olhem para os horrores produzidos pelo espírito de Dogville que estaria no âmago dos EUA. Essa mensagem está na obra.

Mas há uma questão mais geral. Com o estruturalismo dos anos 60, triunfou a idéia de que deveríamos entender as criações sem pensar nos autores. O objeto das ciências humanas não seria mais o sujeito com suas intenções confusas, absconsas e inexplicáveis, mas a matéria de seus produtos. Limitando-se a essa matéria (texto, filme, discurso etc.), seria possível operar com método e rigor. As ciências humanas alcançariam, enfim, as exatas.

O movimento (no qual militei) prosperou eliminando o que era refratário a seu projeto racionalista (não sei o que fazer com a complexidade das intenções, portanto elas não são relevantes). Com isso, ele se tornou imoral. Um caso foi decisivo para mim: o grupo Tel Quel decidiu que "Bagatelle pour un Massacre", de Louis-Ferdinand Céline, era uma obra de arte sublime e uma esperança da Revolução (sempre iminente). Pouco importava que o livro fosse uma expressão revoltante de racismo. As intenções do autor deviam ser desconsideradas, pois a materialidade do texto, por sua novidade estilística, nos transformaria em homens do futuro. Como dizem os cariocas quando querem sair de perto: a gente se vê na praia.

Hoje, leio, escuto, vejo e entendo levando em conta as intenções dos autores. Claro, a obra diz mais que essas intenções, mas, de qualquer forma, para mim, as intenções fazem parte da obra. A crítica é um exercício, ao mesmo tempo, estético e ético.

2) Outros leitores observam: "O filme repreende os EUA que Von Trier afirma não conhecer, e você parece concluir que "Dogville" é a expressão de um preconceito. Será que produzimos preconceitos a cada vez que falamos de algo que não conhecemos concretamente?".

Acho legítimo e interessante que proponhamos entendimentos ou interpretações de algo que não conhecemos por experiência. O preconceito é outra coisa. Explico.

É banal que, ao descrever uma reunião, digamos: "Havia cinco pessoas". No entanto, havia seis: a gente não se contou entre os presentes. Esse deslize exemplifica o oitavo pecado capital: tirar o corpo fora, ou seja, falar dos outros e do mundo como se nossa subjetividade não atrapalhasse nem o mundo nem nossa fala. O preconceito é filho desse pecado: se me esqueço de mim e de minha história na hora de falar dos outros, é provável que eu acabe lhes atribuindo exatamente aquela parte de mim ou de minha história que quis suprimir.

Isso acontece no caso do filme de Von Trier. Quem conhece as pequenas comunidades americanas e a história da Europa constata que Dogville é diferente das primeiras, mas encena um momento triste da segunda. Uma leitora, Anette Lewin, observou que, no vilarejo que evoca o drama de milhares de judeus escondidos pela Europa afora nos anos 40, o cachorro da cidade (a cidade do cão, Dogville) é chamado de Moisés: vingança do inconsciente.

Corolário. Se, ao contar uma história, tirarmos o corpo fora, a história contada será esquemática, pois só temos acesso à complexidade do humano reconhecendo nossa própria complexidade, ou seja, nos colocando em causa.

Aqui é oportuno que responda a uma leitora que não entende bem a razão de minha "ira". Ela é subjetiva. Nasci europeu (como Von Trier), italiano, filho de um militante antifascista: há esquecimentos com os quais não gosto de brincar e não gosto que alguém brinque.

Nota. Para quem não conhece a "América profunda", uma sugestão: para criticar a pequena comunidade americana, melhor ler Tocqueville que ver "Dogville". Agora, para criticar o racismo e o fechamento na sociedade européia, aí sim, é bom ver "Dogville".

Atenuante. O dito oitavo pecado capital está entre os mais praticados. Há o marido que quer pular a cerca e por isso se torna ciumento. Há o jovem que não tem a coragem de seguir seus desejos e por isso acha os pais conformistas. Somos todos Von Triers.

3) Um colega me dá a lição: o psicanalista não deveria, ele diz, interpretar, mas ajudar o sujeito a interpretar-se sozinho. É bem o que espero que Von Trier faça.

Escrevi sobre Von Trier a mesma coisa que eu diria, logo na primeira entrevista, a um paciente suíço que me contasse que acha o Brasil um horror porque os brasileiros são muito pontuais e ficaram com o dinheiro dos judeus durante a Segunda Guerra.

Morei bastante tempo em Porto Alegre e devo ter sido influenciado pelo analista de Bagé: quando é preciso, dou um joelhaço.

4) Outros leitores acham que minha apreciação negativa de "Dogville" seria um efeito de filoamericanismo. É o contrário. A crítica de Von Trier pratica o oitavo pecado capital, que consiste em atribuir aos outros as mazelas da gente. Não diz nada contra os outros e nos mantém na ignorância do que deveríamos criticar em nós mesmos. Seu maior defeito é de ser ineficaz.