quinta-feira, 31 de julho de 2008

Batman, as trevas e a moda



Com os super-heróis, sonhamos que nosso cotidiano insosso é uma identidade secreta

ASSISTI A "BATMAN - O Cavaleiro das Trevas", de Christopher Nolan. Gostei e me diverti. Pouco tenho a acrescentar à massa do que já foi escrito sobre o filme, salvo uma vaga decepção, como se eu esperasse "mais". Mas mais do quê? Os releases, a imprensa e o título prometiam um super-herói com uma nova profundidade moral.

Desta vez, desceríamos no âmago escuro de Batman, aprenderíamos que mesmo o caminho das melhores intenções é ladrilhado de tentações e motivações sombrias. Uma exposição está acontecendo no museu Metropolitan de Nova York (até 1/9), "Super Heroes - Fashion and Fantasy" (super-heróis -moda e fantasia): o tema é a influência do traje dos super-heróis na moda contemporânea.

No prefácio do catálogo, o curador observa que os super-heróis nasceram como personagens de romances de dez centavos e de quadrinhos, mas não por isso devem ser subestimados: "Sua aparente trivialidade é justamente o que faz com que, enquanto eles nos divertem, possam levantar questões sérias sobre os valores e sobre os méritos [de cada um]". Concordo.

E acrescento que: 1) na verdade, quase todos os filmes recentes de super-herói (Homem-Aranha, Hulk, os X-Men etc.) fogem da oposição primária entre o mal e o bem absolutos; 2) a "complexidade" subjetiva e moral dos super-heróis não é uma novidade cinematográfica; ela já estava nas histórias em quadrinhos.

Voltando ao Batman de hoje, de onde nasceu (inclusive em muitos críticos do filme) o sentimento de uma nova "complexidade" moral do herói? É porque Batman deve se conter para não matar seu repugnante adversário?

Porque está a fim de largar tudo e viver normalmente com sua amada? Porque ele se pergunta se sua figura de justiceiro misterioso é um bem ou um mal para a cidade? Não sei. Mas sei que, mais de uma vez, durante o filme, pensei: "É só isso?". De fato, no filme, a "complexidade" aparece sobretudo do lado do mal.

Deve ser por essa razão, aliás, que (performance de Heath Ledger à parte) o Coringa rouba a cena de Batman. Sebastião (13 anos), ao sair do cinema comigo, não tinha perguntas sobre Batman, mas tinha uma sobre o Coringa: "Como é que ele queima aquele monte de dinheiro?".

Ou seja, ele é do mal para o quê, então? Sebastião, em suma, acabou meditando sobre a profundeza do mal, não sobre as trevas escondidas no desejo de fazer o bem. Além disso, o filme nos apresenta um excelente dilema moral. Imagine dois navios parados no meio do mar. Cada navio é recheado de explosivos e carrega 200 pessoas (que não constituem um grupo, não são nem uma torcida nem uma tribo).

São 23h, e à meia-noite os dois barcos explodirão, a não ser que, antes disso, um deles vá para o espaço. Detalhe: o detonador que comanda a explosão de cada embarcação está nas mãos dos passageiros do outro barco.

Ou seja, em cada barco, os passageiros devem decidir se eles apertam o botão e se salvam matando os outros ou, então, morrem dignamente, sozinhos ou junto com os outros. Melhor viver assassino ou morrer inocente? Pois é, a resposta moralmente mais elevada não consiste em escolher morrer para não matar.

Consiste em decidir que, seja qual for a conseqüência, nossa dignidade subjetiva nos impede de participar dessa brincadeira. Confira o que acontece no filme: de novo, a complexidade aparece do lado do mal. Enfim, o prefácio que citei afirma que o super-herói, com sua identidade secreta, encarna nossa vontade de sermos "outros". É a idéia da exposição: "a moda, como o super-herói, (...) oferece possibilidades ilimitadas de dar nova forma ao nosso corpo e, em geral, a nós mesmos".

Num desfile de Moschino, um homem de terno, com os óculos de Clark Kent, abre sua camisa mostrando uma camiseta que evoca o traje de Superman. Legal. Mas, agora que somos grandes, se quisermos pensar nos nossos anseios de vida dupla ou tríplice, talvez pudéssemos dispensar os super-heróis e contar a história dos executivos que, no fim de semana, vestidos de Hell's Angels, sobem numa Harley.

Ou a das executivas que passam os domingos pulando de pára-quedas. Ou a dos que só toleram o cotidiano à condição de se perder, a cada noite, nos inferninhos da cidade. Ou ainda a dos que sempre sonham em férias que nunca são a "outra" vida desejada. Isso sem contar os que acham que, para ser super-herói, basta encontrar a roupa e os apetrechos certos, fazendo compras em Miami.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Desgosto



A Itália decreta o censo da população cigana: o próximo passo será uma estrela cravada no peito?

ESCREVO COM tristeza, embora a história comece com um cartaz da Lega Nord que achei hilário.

A Lega Nord é um partido político italiano que pregava o separatismo do norte da Itália, apostando no desprezo dos italianos do norte pelos meridionais pobres e roceiros que migravam rumo aos pólos industriais do norte do país (imagine, no Brasil, uma "Liga Sul" que quisesse um país de Espírito Santo para baixo, sem retirantes nordestinos).

A Lega Nord, ao ganhar expressão nacional, teve que converter seu separatismo em exigências de autonomia regional. Como reanimou suas tropas? Simples. Na Europa, o vínculo do cidadão com sua terra é atávico e facilmente exclusivo -não é, como nas Américas, o fruto do sonho de antepassados que imigraram. Foi fácil, para a Lega, tornar-se o partido dos descontentes com as ondas de imigrantes externos dos últimos anos: africanos, asiáticos e europeus do Leste.
Volto ao cartaz: é o perfil de um índio norte-americano, com seu cocar. Legenda: "Eles sofreram a imigração. Agora vivem em reservas.

Pense nisso". Fiquei pasmo: os italianos não participaram da conquista do Oeste, mas muitos deles "fizeram a América"; agora deveriam se identificar com os índios norte-americanos e sua história? Qualquer coisa vale para tirar proveito da insegurança econômica e social das classes médias transformando-a em pavor do estrangeiro, do diferente, do outro afoito e rapace que estaria querendo nosso trabalho e nossas mulheres.

O cartaz (www.leganord.org/ilmovimento/manifesti.asp) tem uma nova versão, com a legenda "A fuga das reservas começou" -ou seja, estamos retomando nossa terra das mãos dos invasores.

É um jeito de festejar o endurecimento da política italiana contra os imigrantes no novo governo Berlusconi, do qual a Lega é um componente essencial.
Posso entender (em termos) que um governo criminalize o acesso e a permanência ilegais no país.

Imagino (em termos) que um grupo étnico, encabeçando as estatísticas do crime, venha a ser discriminado no dia-a-dia do trabalho de polícia (em muitos países, se um branco assalta um negro, a polícia, chegando, primeiro prende o negro e depois se preocupa com a reconstituição dos fatos). Mas começo a me horrorizar quando, encorajados pelas idéias ambientes, uns amalucados, como aconteceu na Itália, organizam pogrons para incendiar acampamentos de comunidades ciganas.

Agora (Folha de 11 de julho) o governo italiano (apesar dos protestos da União Européia e da ONU) decretou um censo da população cigana nômade que vive na periferia das grandes cidades, crianças incluídas, com impressões digitais etc. -ou seja, um registro específico e detalhado que se torna obrigatório para uma etnia só. Note-se que um terço da dita população cigana não é imigrante, é italiana. E acrescente-se que o governo nomeou um responsável para a "questão cigana". Isso lembra alguma coisa?

Nada parecido aconteceu, num país ocidental, desde o começo da exterminação dos judeus, dos homossexuais, dos ciganos (coincidência) etc., durante o nazismo e o fascismo.

O próximo passo será uma estrela cravada no peito? Ou talvez, por os ciganos serem nômades, uma roda de charrete? Que cor?

O governo italiano afirma que tudo isso é para proteger as crianças ciganas que são forçadas a pedir esmola nas esquinas. Em suma, é para o bem dos ciganos. A justificativa dá arrepios: no começo, os nazistas diziam que a deportação protegeria os judeus contra a hostilidade dos arianos.

A oposição italiana e o papa se declararam contra. Poucas centenas de manifestantes apareceram em frente ao Parlamento, e só.

Neste espaço, em maio, estando na Itália, escrevi que, com a chegada de um presidente da Câmara que já foi do MSI (partido herdeiro do fascismo italiano), ficava claro que o passado da luta antifascista não era mais o divisor de águas da política italiana (ou européia).

Numa lápide murada no município de Cuneo (Piemonte), há um poema de Pietro Calamandrei, endereçado ao general nazista Kesserling, que acaba assim: "Por essas estradas se quiseres voltar/ aos nossos postos nos encontrarás/ mortos e vivos com a mesma garra/ povo reunido ao redor do monumento/ que se chama/ agora e sempre/ Resistência". Aparentemente, sobraram só os mortos.

Resta esperar que os italianos daqui, quando votarem para as eleições na Itália, não se esqueçam.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Volta de Paraty


Um romance interior, diferente para cada um, responde às perguntas que surgem na infância

DE QUARTA a domingo passados, participei da Festa Literária Internacional de Paraty -a Flip.
De alguns escritores presentes, eu já tinha lido um livro ou mais. Quanto aos outros autores, nas últimas semanas, encurtei minhas noites para conhecer ao menos o sabor de sua ficção. A bancada de meu escritório se cobriu de volumes inchados pelas orelhas das capas, com as quais eu marcava o progresso da leitura, e, ao redor de minha cama, espalharam-se em permanência dez livros abertos.

A essas leituras fragmentárias, acrescentaram-se, ao longo da Flip, os trechos lidos por cada autor.

Não sei quantas dessas histórias acabarei lendo por inteiro. A vida continua, e novos livros me levarão consigo. Mas, até das obras que não terminarei de ler, algo permanecerá -sem que eu saiba necessariamente o quê.

Os livros folheados, sondados, lidos às pressas e apenas em parte, os trechos ouvidos e mesmo os relatos de quem me contou de suas leituras -tudo isso alimentará (já alimenta), de uma maneira ou de outra, meu "livro interior". O que é meu "livro interior"? Um pouco de paciência.

Essa bonita expressão é de Pierre Bayard, cujo recente "Como Falar dos Livros que Não Lemos?" (Objetiva) foi o objeto de uma mesa da Flip, na qual, aliás, servi de mediador entre o próprio Bayard e Marcelo Coelho, colunista da Folha. O livro de Bayard é, à primeira vista, uma sátira (muito divertida) dos costumes (universitários e mundanos) pelos quais todos falamos de livros que não lemos como se os tivéssemos lido. Digo "à primeira vista", porque, de fato, o livro de Bayard é muito mais do que isso: é uma investigação sobre os caminhos misteriosos pelos quais os livros passam a fazer parte da gente, mesmo que os tenhamos apenas folheado ou nem isso.

Há os livros dos quais só ouvimos falar; há os muitos que compramos e ficam para sempre virgens em cima do criado-mudo; há os que apenas iniciamos e os que lemos aos trancos. Sem contar aqueles dos quais não sabemos mais se os lemos ou apenas acreditamos conhecê-los à força de falar como se os conhecêssemos. Fragmentos, re- latos, resumos de ficções, de uma maneira ou de outra, passam a fazer parte de nós, tanto quanto nossas leituras exaustivas. Como assim?

Num capítulo de seu livro, Bayard faz uma distinção entre o livro interior de quem pertence a uma sociedade tradicional (que seria um livro coletivo, repleto de representações, lendas e histórias que são fundamentalmente as mesmas para todos) e o livro interior dos modernos, único e diferente para cada um. É o romance que vamos aprimorando a partir das primeiras ficções que inventamos para responder às perguntas que se colocam desde nossa infância.

Para nós modernos, por exemplo, o parentesco sem amor não é garantia de nada, e o berço não dita o destino; só podemos, portanto, tentar imaginar: "Somos amados ou não?", "Será que nossos pais se amam?", "Eles amam mais a gente ou o irmão e a irmã?", "Qual será nosso futuro?", e por aí vai nossa tarefa de romancistas.

Aos poucos, as histórias que lemos, que ouvimos ou às quais assistimos (no cinema ou na televisão) enriquecem nossa ficção originária. E, como escreve Bayard: "Os livros interiores individuais formam um sistema de recepção de outros textos (...) constituem uma grade de leitura do mundo e particularmente dos livros, dos quais organizam a descoberta".

Ou seja, talvez nossa apreciação crítica seja isto: as exigências de nosso livro interior nos fazem gostar (ou não) de uma história porque ela pode (ou não) se enquadrar na ficção de nossa vida.
E as histórias que integramos à nossa ficção podem ser trechos, fragmentos, resumos, relatos de segunda mão.

Anos atrás, na Suíça, ensinando literatura a imigrantes italianos que preparavam o exame final do ensino básico, eu gostava de resumir os clássicos para eles. Eles escutavam, comentavam e liam pequenos trechos que eu tinha, quase sempre, simplificado. Os maiores sucessos eram a "Odisséia" e "Moby Dick" - o que não é surpreendente, tratando-se de homens que eram separados de suas famílias e corriam atrás de um sonho impossível.

Hoje, se alguém perguntasse a meus ex-alunos se eles leram esses dois livros, talvez eles dissessem que sim. Mentira? Pode ser. Mas aposto que Homero e Melville os reconheceriam como bons leitores de suas obras.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Ser homem ou mulher


A anatomia é o destino? Talvez, mas há lugares em que a mulher pode escolher ser homem

NOS ANOS 1960, "descobrimos" que a identidade de cada gênero, masculino, feminino ou outro (há outros, sim), era construída e imposta pela cultura em que vivíamos. Ou seja, nosso sentimento íntimo de ser homem ou mulher dependia dos valores que nos eram transmitidos: "alguém" nos oferecera bonecas ou soldados e nos propusera futebol ou costura.

A descoberta encorajou a militância igualitária, os papéis sociais de homens e mulheres se aproximaram e, enfim, tornou-se possível sentir-se homem e cuidar das crianças ou fazer bordado, e sentir-se mulher e pensar na vida profissional ou entrar no exército. Isso, sem que ninguém se atormentasse com dúvidas excessivas sobre sua identidade viril ou feminina.
Nas últimas décadas, houve um refluxo: hoje, sentir-se homem ou mulher nos parece ser, antes de mais nada, um efeito da diferença biológica entre os sexos.

Talvez seja por causa das próprias mudanças que mencionei acima: as diferenças culturais entre gêneros se tornaram menos relevantes e procuramos outras, mais "sólidas".

Mas muitos dirão que aconteceu o seguinte: os avanços da ciência mostraram que, na constituição das identidades de gênero, hormônios, genes etc. contam mais do que as palavras e os comportamentos. Ou seja, pouco importa que eu vista você de renda ou de farda, você será ou se sentirá homem ou mulher como mandam a química e a física de seu corpo.

Paradoxalmente, essa posição, que pretende ser materialista, parece apostar na separação de corpo e mente, como se um mundo "real" de genes e hormônios existisse separado do da fala e dos atos da gente (que, cá entre nós, não é menos real). Acho mais provável que haja um mundo só, em que interagem fenômenos descritos de jeitos diversos, mas que pertencem a uma única realidade, a nossa, feita de descargas hormonais, obrigações indumentárias e comportamentais, genes, xingões, chapoletadas, neurotransmissores, conselhos, amores e carícias.

Além disso, é bom não esquecer que a primazia atual das explicações "anatômicas" é, por sua vez, um fato cultural. Ela é a evolução esperada da cultura ocidental moderna, que promove, dessa forma, sua melhor idéia: a de uma humanidade comum a todos, além das diferenças culturais. Por exemplo, para justificar a existência de direitos humanos universais, nada melhor do que uma definição da espécie a partir da biologia comum e não das culturas, que divergem.

Seja como for, o clima de hoje sugere que a anatomia seja o destino. Nesse quadro, é bom meditar sobre um extraordinário artigo de Dan Bilefsky, no "New York Times" de 25 de junho (em www.nytimes.com, procurar "Woman as Family Man"). Bilefsky viajou pelas montanhas do norte da Albânia, onde sobrevivem os restos de uma cultura tradicional, regida por um cânon rigoroso que, entre outras coisas, prescreve a vendeta entre famílias, de geração em geração: vocês matam um dos nossos, nós mataremos um dos seus -sendo que só podem matar e ser mortos os homens das respectivas famílias. "Abril Despedaçado", de Ismail Kadaré (Companhia das Letras), dá uma boa idéia do clima local. Quem não leu pode assistir ao filme homônimo, de Walter Salles, que transpôs o romance de Kadaré para o norte do Brasil no começo do século 20.

Pergunta: o que acontecia, numa cultura como essa, quando só sobravam as mulheres de uma família? Pois é, no caso, encorajada pelo fato de que, nessa cultura, ser mulher era especialmente chato, uma virgem, livremente, podia decidir ser homem. Ela cortava o cabelo, vestia-se de homem, carregava faca e arma, sentava-se com os homens e com eles rezava na mesquita, matava e era morta nas vendetas e tornava-se patriarca da família.

Belefsky encontrou e fotografou várias mulheres-homens, na faixa dos 80 anos, mulheres que, 60 anos atrás, virgens, renunciaram à vida sexual e decidiram ser homens. E, de fato, sentiram-se e foram homens. Na verdade, ainda são: no pleno exercício de seu patriarcado.

O que assombra nessa história, aliás, não é só a construção cultural do gênero, mas a incrível liberdade que se revelava possível numa sociedade estritamente tradicional (a gente pensa, em geral, que a liberdade de escolha seja coisa exclusivamente nossa).

Queria prestar homenagem a Ruth Cardoso. O jeito foi escrever sobre algo que, onde quer que ela esteja hoje, talvez a interesse.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

O risco de se perder



Renegar seus próprios princípios para se proteger é uma boa maneira de se destruir


NA QUINTA PASSADA , manifestei meu desgosto ao aprender que o governo italiano decretou um censo sistemático da população cigana nômade que vive ao redor dos grandes centros urbanos.

Alguns leitores me lembraram que, na Itália, a percentagem de ciganos envolvidos em crimes é bem mais significativa do que a percentagem dessa etnia na população geral.

Respondo que qualquer sociedade tem o direito e o dever de perseguir os INDIVÍDUOS criminosos, mas nenhuma estatística pode autorizar uma democracia moderna a discriminar a ETNIA dos mesmos.

Outros leitores evocaram a necessidade de proteger a cultura italiana.

Poderia responder que a "pureza" italiana, que se trataria de preservar, é o fruto de uma incrível mistura: as invasões bárbaras, a dos normandos na Sicília, o domínio austríaco no Norte do país e espanhol no Sul etc.

Mas me interessa mais a questão seguinte: mesmo supondo que uma onda imigratória possa corromper e destruir uma civilização, será que essa civilização, para se proteger e se preservar, pode se engajar em práticas que desmentem seus próprios valores fundamentais?

Um leitor afirmou que pode ser necessário "sacrificar princípios para preservar a cultura (européia) que é a base do apogeu da civilização humana, seja nas artes, na filosofia, literatura, psicologia etc.".

Em regra, penso que renegar seus próprios princípios para se preservar é uma boa maneira de se destruir. Mas não é uma questão simples.

Por exemplo, as democracias, depois da Segunda Guerra Mundial, tiveram que decidir se elas admitiriam ou não a existência, em seus parlamentos, de partidos totalitários (herdeiros do fascismo ou porta-estandartes da ditadura soviética). Admiti-la significava correr o risco de desaparecer como democracia caso um desses partidos chegasse ao poder. Não admiti-la significava silenciar a vontade política de alguns cidadãos, privando-os de representantes eleitos -o que seria negar o próprio princípio de uma democracia.

Outro exemplo, mais próximo. Aceitemos como uma hipótese, sem discutir, a idéia de que o terrorismo islamista seja uma ameaça fatal para a civilização ocidental e que o governo Bush queira proteger o que nossa civilização tem de melhor. Agora, o governo Bush autorizou detenções e métodos de interrogatório contrários aos princípios da mesma civilização que ele tenta preservar. Pergunta: se, defendendo-nos, cometemos os mesmos abusos que praticam nossos inimigos, o que nos sobra que valha a pena ser preservado?

Mais próximo ainda. Uma democracia que quer se proteger contra uma corrupção endêmica e onipresente pode ou não recorrer, por exemplo, ao uso indiscriminado de escutas e grampos, negando o direito de seus cidadãos à privacidade (que é uma das razões pelas quais é bom que uma democracia exista)?

Essas questões surgem em contextos específicos, que deveriam ser avaliados caso a caso. Mas há uma questão de fundo, que também vale na nossa vida de cada dia: as "medidas excepcionais" que tomamos para nos preservar podem comprometer e perder nossa diferença, ou seja, aquilo mesmo que se tratava de amparar.

Quantas vezes, para nos protegermos, sacrificamos um princípio que é para nós essencial, algo sem o qual, no fundo, não somos mais aquele "nós" que queríamos proteger?

Quantas vezes os atos com os quais pensamos nos preservar destroem nosso âmago talvez mais do que o perigo contra o qual reagimos?

Os exemplos estão na história de cada um. São as covardias das quais somos capazes em nome de uma necessidade de defesa ou de preservação.

É melhor sermos derrotados, perdermos um emprego, perdermos um amor ou, então, "ganharmos a parada" com um gesto que nos extravia, que nos torna, aos nossos próprios olhos, indignos do amor que queríamos resguardar e conservar ou do poder que queríamos manter ou conquistar?

Aviso urgente. "Nome Próprio", de Murilo Salles, estreou na sexta passada em poucas (mas boas) salas de várias capitais do país. Com a extraordinária interpretação de Leandra Leal, o filme leva para a tela o mundo impetuoso, fragmentado e tocante do blog e dos romances de Clarah Averbuck. É imperdível para quem vive amores inquietos (ou seja, para quase todos) e, óbvio, para quem é atormentado pela paixão de escrever.

Participo assim da campanha para que o filme permaneça em cartaz o (longo) tempo que ele merece.