quinta-feira, 30 de março de 2000

O álibi do mar de lama

Pitta vai e Pitta vem. Maluf sujou, mas quer voltar para limpar. Também houve vereadores cassados e presos, mas (a menos que se confunda com Jânio Quadros em algum delírio) será que alguém acredita mesmo que conseguimos passar uma vassoura? Perguntem para o presidente da Associação dos Camelôs Independentes de São Paulo...

As notícias se sucedem e mal conseguem se organizar em um parágrafo com pé e cabeça.
Enfim, a metáfora do mar de lama segue atual e quase perfeita.

A lama é enganadora: quem se ilude achando poder pisá-la como se nada fosse logo perde os sapatos, chupados pela viscosidade melequenta; no segundo passo, lá se vão as meias, e, no terceiro, o sujeito começa a afundar. Para flutuar e se salvar, é necessário se deitar, se esticar numa espécie de abraço impossível de se preservar limpo. Ou seja, a moral é: "te enlameia ou afoga". A única outra possibilidade consiste em manter-se afastado de qualquer pântano. Ou seja, "esqueça a vida pública e fique rigorosamente na tua".

Pela virtude de sua consistência líquida, o mar de lama extravasa, transborda e acaba preenchendo a maior parte do globo, tornando-se assim um espaço privilegiado de trocas e contatos mundiais: a lama é cosmopolita e globalizada.

Por mais que eu viaje, esse mar é uma presença inevitável, banha todos os países. A lama estava por todo lado na Itália do pós-guerra. Mais ou menos vistosa, estava também na Suíça, na França e nos Estados Unidos.

Qualquer americano sabe que os custos astronômicos das campanhas eleitorais constituem um dos ambientes no qual a lama vive e se reproduz melhor. Ora, embora ele tenha perdido, a campanha de John McCain para ser escolhido como candidato republicano à Presidência foi surpreendentemente forte e significativa. Mas essa façanha foi possível graças ao caráter de McCain, ao seu passado heróico e à sua moderação: o cavalo-de-batalha de sua campanha -o projeto de reforma do financiamento das campanhas eleitorais- ficou na sombra. Ou seja, todos os eleitores democratas e republicanos parecem achar que é uma necessidade absoluta, uma questão de saneamento básico da vida pública. Mas não se entusiasmaram com isso. Reagiram, simplesmente, como se não acreditassem.

Talvez seja melhor ceder ao cansaço, devolver as armas e, sem vãs indignações e agitações, aceitar enfim que no mundo ocidental inteiro a lama tornou-se parte da paisagem. Ela está naturalizada, um apêndice mais ou menos inflamado, mas sempre inoperável da modernidade democrática. Ninguém acredita que seja possível moralizar a vida pública.

Na semana retrasada em São Paulo, peguei quatro táxis numa mesma tarde. Logicamente, conversamos sobre lama e enchentes. Todos os motoristas se declararam antimalufistas. Coisa impensável três anos atrás.

Mas as quatro conversas acabaram todas numa forma de ceticismo resignado do qual eu mesmo participei. Não era o antigo cinismo de "deixa ele, pois rouba, mas faz". Era assim: "Se ele rouba, então afasta ele, tenta até prender. Mas não esquenta: fica sem ilusões que não tem jeito". A lama é como a bolha assassina, não há como pará-la.

No fim de cada uma das quatro conversas, resultava o seguinte: a lama sufocou nossas esperanças, enterrou nossas ingenuidades corajosas. De decepção em decepção, perdemos a confiança. Agora só não entramos na dança (tipo: "olha, eu vou roubar, pois quem não rouba é trouxa") porque somos do bem. Então pegamos nossa bola e voltamos para casa: aqui não jogo não, está sujo demais, vou cuidar do meu jardim.

Em suma, a lama justifica nosso particularismo, a fraqueza de nossos engajamentos políticos e mesmo a mediocridade de nosso sentimento cívico.

A lama é uma desculpa moral, um álibi perfeito -uma verdadeira racionalização chamada a justificar nossa desistência cívica. Se a lama não existisse, precisaria inventá-la. Pitta, Maluf, os vereadores etc. não nos tornaram inertes e egoístas por excitar nosso ceticismo. Ao contrário: somos inertes e egoístas e -graças a Pitta, Maluf e companhia- podemos acusar a lama.

Suspeito que ainda não tenhamos conseguido assimilar completamente a virada dos anos 70, quando começou a ficar claro (permita a ironia) que os ideais sociais e políticos eram critérios incertos demais para orientar nossas vidas. Aliás, eles alimentavam discussões e discórdias intermináveis. Agora as coisas estão bem melhor: todos concordamos facilmente que nosso bem-estar individual físico, psíquico e financeiro merece ser o farol de nossas existências. É o sonho de Adam Smith realizado: cada um pensa em si mesmo, e, oh, milagre!, todos concordam (que é ótimo pensar em si mesmos)

Mas essa é uma novidade de duas ou três décadas apenas. De vez em quando, alguma nostalgia das quimeras do bem comum ainda deve trotar por nossos cérebros. Quando isso acontece, é bom matar logo qualquer veleidade política, pensando em Maluf, em Pitta ou na Câmara de vereadores. E concluir que é melhor mesmo ficar em casa, pois a lama respinga.

quinta-feira, 23 de março de 2000

Vamos instituir o concurso Papel de Parede

No fim dos anos 70, em Paris, conheci um casal de jovens que, embora mediamente felizes, brigavam com determinação e frequência. As brigas se resolviam regularmente por uma renovada declaração de amor recíproco. Curiosamente, esta era a cada vez oficializada por uma espécie de fórmula sagrada: "C'est juré pour le Brésil!", "Juro pelo Brasil!".

Ambos adotaram essa invocação porque, na mágica da paixão inicial, decidiram brincando que um dia iriam juntos para o Brasil. Não tinham sequer lido um guia turístico do país, e o Brasil não era o lugar mais exótico disponível para seus sonhos. Como muitos, eles passavam férias no Marrocos ou na Tunísia, que, entre odaliscas, camelos e beduínos, são para um europeu lugares mais exóticos do que o Brasil.

No entanto, o Brasil era para eles o nome do lugar improvável onde se amariam e seriam felizes. Nunca testaram a idéia.

Lembro-me desse casal a cada vez que penso no Brasil como sonho ou pesadelo da consciência européia. As imagens européias do Brasil me interessam, pois elas contêm uma parte do segredo das imigrações (aliás, a começar pela minha própria). Com isso, explicam um pouco o Brasil de hoje, que, como todas as colônias, certamente deve um tributo às fantasias dos que para cá viajaram.

Neste estado de espírito e para começar a celebrar os 500 anos, fui visitar a exposição da Pinacoteca do Estado de São Paulo "Coleção Brasiliana". É um conjunto de obras de viajantes do século 19 reunidas por um colecionador que nunca veio ao Brasil (o catálogo, preparado por C. Martins e V. Piccoli, é ótimo).

Saí pensando que os sonhos europeus que deram forma à realidade brasileira são de três categorias.

Primeiro, há os sonhos antes e ao redor do Descobrimento, aqueles que Sérgio Buarque descreveu em "Visões do Paraíso". Na exposição da Pinacoteca essas fantasias estão presentes numa divertida alegoria da América com índios paradisíacos e infernais. Sorridentes canibais que convidam: "Venham explorar, ficar ricos e ser comidos, ou mesmo devorados. A começar (verifiquem) pela bunda".

Depois, há o Brasil romântico dos pintores viajantes. Suas paisagens dão uma espécie de dor no peito. Transmitem a sensação de uma dupla paz entre os homens e a natureza. É como se o Brasil de Gilberto Freyre tivesse conseguido resolver toda contradição dolorosa: o escravo e o senhor estariam felizes numa democracia racial. A aparição noturna do senhor na senzala não anunciaria um estupro a mais, só prometeria prazeres eróticos compartilhados. A dor no peito é uma languidez insustentável, o fascínio e a nostalgia por um mundo inadmissível e que de qualquer forma nunca existiu. Na exposição, contemplem, por exemplo, o quadro de Charles Landseer: o erotismo dos corpos escravos que descansam de tanto caçar borboletas pela paz quase audível da estrada do Silvestre.
Os EUA acham que são responsáveis pela liberdade no mundo, por encarnarem o ideal de democracia. O Brasil poderia se declarar responsável por uma boa parte das fantasias mundiais -sonhos de gozo e de lânguidos prazeres.

Enfim, até a exposição da Pinacoteca me faltava um termo para designar a terceira categoria, a do exotismo mais vulgar e redutor. Achei: papel de parede. Na exposição da Pinacoteca há um extraordinário papel de parede, 15 metros de "Vistas do Brasil". Foi fabricado em 1830 e reproduzido até a Segunda Guerra Mundial. Milhares de exemplares ornaram o "quarto brasileiro" de palacetes parisienses ou provincianos. Segundo o desenhista, o papel devia permitir "viajar sem sair de casa". Tem de tudo: uma caça ao touro selvagem na baía de Guanabara, índios pendurados em ramos como macacos, negros fiéis trucidados por índios infiéis, por sua vez mortos a tiros, caça à onça e ao jacaré e, enfim, paz e felicidade numa fazenda litorânea.

Proponho chamar de papel de parede o caleidoscópio dos lugares comuns mundiais sobre o Brasil. Bem diferente dos sonhos de gozo e das nostalgias sublimes das primeiras duas categorias de imagens, o papel de parede inclui fotos de férias, folders turísticos e desinformação às vezes mal-intencionada.

No aniversário dos 500 anos, poderíamos instituir um prêmio anual Papel de Parede. Serão premiadas as piores besteiras produzidas pela fantasia européia e americana sobre o Brasil.
P.S.: Começo a anotar. Um sociólogo italiano de passagem foi assistir ao Carnaval. Segundo "O Globo", ele decretou que o Carnaval encenava a luta de classe com o objetivo de evitá-la (eta!). E achou "absurdo que não se discuta o Carnaval da forma que ele merece". Em suma, o tal sociólogo não só ignora o básico da sociologia brasileira, mas também se torna ator de um quadro temático do papel de parede: convencer os índios que o que eles têm (o Carnaval) é de grande valor, mas eles não sabem o que fazer com isso (pois eles não têm sociólogos, não é?). É o espírito das grandes companhias petrolíferas: "Deixa que te ajudo a explorar esse óleo bruto". O concurso Papel de Parede está aberto.

quarta-feira, 22 de março de 2000

A inocência das crianças



O horror da história de Jandira está obviamente na idade das vítimas e ainda mais na idade dos assassinos. O de 16 anos ainda passa. Mas como podem duas crianças de 9 e 13 anos matar colegas a pauladas, estuprar e ainda contar tudo sem nem choramingar?

As crianças, na verdade, são inocentes só graças aos esforços de nossa imaginação. Ou seja, nós imaginamos que elas sejam sem malícia e sem pecados, queremos preservá-las da pretensa corrupção da vida adulta e repetidamente declaramos que é assim que gostamos delas: puras e queridas.

É esse esforço de nossa imaginação que acaba civilizando as crianças. Elas se conformam com os anjinhos que nós imaginamos que elas sejam.

O porquê é simples: há uma série de vantagens para quem é amado. Ora, os adultos amam anjinhos. Portanto há vantagens evidentes em ser anjinho.

Nenhum cinismo nessa constatação: a educação moderna das crianças se faz desse jeito. Amando anjinhos para que as crianças tentem se identificar com eles.

Esse mecanismo é menos simples do que parece. Ele entra facilmente em crise de duas maneiras:
1. Quando não fica nada claro para as crianças como e quais são os anjinhos que os adultos gostam e amam.

2. Quando, aos olhos das crianças e de fato, os adultos não amam nenhuma imagem com a qual as crianças possam tentar se identificar. Em outras palavras, quando os pais não conseguem sonhar nem esperar nada para as crianças que produziram.

No primeiro caso, as crianças ficam com a tarefa de reconstruir ou mesmo de inventar o que os adultos querem que elas sejam.

Elas podem acreditar, por exemplo, que seja um bom negócio compor uma identidade feita de pedaços de violência hollywoodiana. Afinal, elas poderiam dizer: "Não é com isso que meus pais e a grande maioria dos adultos se divertem? Não é disso que eles gostam?".

É o que aconteceu, presumivelmente, com a série de menores americanos que nos últimos dois anos se transformaram em assassinos. A marca dessa confusão quanto ao que precisa para ser amado se revela no drama dessas crianças depois dos fatos. Não é que se sintam culpados.

Eles, sobretudo os mais jovens, se surpreendem, estranham que a mãe, por exemplo, não venha e não fique com eles. Nas entrevistas, há uma espécie de pergunta no ar: "Mas como, não era isso que vocês todos queriam de mim? Que eu fosse Rambo ou coisa que valha?".

Os três garotos de Jandira não colocam nenhuma pergunta desse tipo. Matam, estupram ou eventualmente perdem a vontade de matar. Mas em todo o caso nunca parecem ser cativos do amor. Não são reféns de nenhuma vontade de ser amados pelos adultos. Por isso eles estão fora da infância. E fora de nosso alcance

Nada de novo nisso: já sabíamos há tempo que nossa sociedade não se importa de excluir radicalmente um bom número de seus membros adultos e crianças. E ser excluído de uma sociedade moderna significa exatamente isso: ser privado da expectativa de ser amado ou gostado pelos outros. Ora, o horror de Jandira nos lembra que, num mundo que não é mais regrado por um Deus e pelo temor que ele inspira, o verdadeiro destemido, o mais perigoso de todos e para todos é justamente aquele que perdeu a esperança de ser amado.

domingo, 19 de março de 2000

A caminho de Porto Seguro


Porto Seguro - Parece que foi inventada uma língua especial para os 500 anos. Chama-se precaucionês. Ninguém quer anunciar ou mencionar (celebrar nem se fala) o aniversário dos 500 anos sem primeiro prevenir a platéia contra qualquer explosão de ufanismo maníaco. É assim: "Fique bem frio, que não há nada para celebrar; de qualquer jeito, não aconteceu nada de importante. Se algo aconteceu, foi muito errado e deu em algo pior ainda." Todos parecem preocupados com a "versão oficial". Só que, à primeira vista, a verdadeira versão unânime e oficial parece ser justamente o precaucionês que manda desconfiar da "versão oficial". Ainda não encontrei manifestações (oficiais ou não) de entusiasmo cego que justifiquem atitudes tão precavidas.

Temos razões acumuladas para desconfiar do que é "oficial". No balanço dos 500 anos, a administração pública não sai muito bem na foto.

Mas nem tudo o que é coletivo é oficial. Concordemos que, depois de 500 anos, ainda não está consolidado o sentimento de um destino comum e solidário. Nessa condição, será que podemos nos dar ao luxo de renunciar a compartilhar um aniversário?

Venho para São Paulo de TAM. O aniversário é lembrado (ninguém se alarme: sem entusiasmos excessivo) por uma carta do presidente da companhia etc. Converso commeus vizinhos de vôo: o aniversário é do Descobrimento ou do Brasil? Meus interlocutores não querem festejar o Descobrimento, que foi uma catástrofe para os índios. Se fosse do Brasil, seria diferente, mas é do Descobrimento.

Não entendo direito. O aniversário de alguém é no dia do nascimento, mas comemora sua vida toda, soleniza o quese tornou, bem ou mal. É por isso que eventualmente celebramos o aniversário da morte de um próximo, mas nunca o aniversário de um morto.

O precaucionês quer evitar a auto-satisfação babaca, que obviamente não cabe. Mas quem disse que um aniversário deve ser um momento de exaltação auto-satisfeita? Os aniversários são ocasiões de encarar a realidade, revisar o percurso, constatar os erros e projetar os remédios. As marchas dos índios e do MST (com as 500 invasões projetadas), por mais que os organizadores receiem que elas atrapalhem a ordem, fazem parte dos "festejos". Que aniversário seria para o Brasil se nessa ocasião não pudesse pensar seus fracassos como comunidade, se não se confrontasse com as caras de seus excluídos?

quinta-feira, 16 de março de 2000

A culpa e os outros méritos de João Salles

Em 1997, no morro Dona Marta (Rio de Janeiro), João Salles filmou um documentário justamente famoso, "Notícias de uma Guerra Particular". Assim ele conheceu Marcinho VP, traficante, acusado de homicídio. Criou-se, se não uma amizade, uma curiosidade recíproca. João propôs para Marcinho uma bolsa de R$ 1.200 por mês se ele abandonasse o tráfico e tentasse escrever um livro sobre sua vida. Funcionou durante quatro meses.

Quando isso veio à tona, logo antes do Carnaval, deu um estorvo no governo carioca e pano para debate. João foi generoso ou ingênuo? Inventou uma passarela entre morro e asfalto ou apenas ajudou um foragido?

Um amigo, parado numa sinaleira carioca, olha ao redor circunspecto e comenta: "Precisa tomar cuidado por causa dos bolsistas...". Os chistes vingam, como sempre, para assinalar e esconder alguma verdade doída. No caso, trata-se da ferida que divide a "cidade partida". Mas também de contradições que não valem só para o Rio: paradoxos de nossa cultura. Eis quatro pontos, só para começar a pensar.

1. Nós, modernos, não acreditamos em essências subjetivas, mas na possibilidade de cada um mudar radicalmente. Com isso, nossas legítimas pretensões de segurança e de vingança se chocam com a suspeita de que, na hora da punição, o criminoso poderia não ser mais o mesmo sujeito que nos lesou. Como punir quem pode mudar? Imaginou-se um sistema penal paradoxal, que ofereceria ao mesmo tempo segurança e vingança para as vítimas e uma chance para os criminosos mudarem. Neste sistema, Marcinho se emendaria redigindo suas memórias atrás das grades. Tudo bem, mas como fica se de fato o sistema penal é só punitivo?

2. Alguns evocam a "ingenuidade" de João Salles. É engraçado, eu não vejo nenhuma ingenuidade na paixão moderna de reformar, educar e salvar aos outros. A modernidade começou batizando e convertendo à força índios, negros e judeus. Supostamente buscando o bem.

A fantasia de redenção segue ativa em nosso cotidiano: há o homem que casa com uma prostituta para tirá-la da rua e a mulher que sonha em seduzir um homossexual.

Esta vontade de mudar os outros é a face escondida de nossa tolerância: "somos ambos humanos", dizemos ao próximo, "mas quero te mudar. Aceito você, mas não assim como você está". Adoramos ser São Jorge liberando a donzela, mas evitamos de nos perguntar: e se a donzela gostasse de ficar cravada na rocha pelo bafo do dragão?

Pessoalmente, como João Salles, agiria para conquistar a alma de um Marcinho. Mas este esforço é eventualmente uma violência, não uma ingenuidade.

3. Por que querer salvar logo um bandido? Não há remédio: a modernidade é fadada a idealizar o fora-da-lei -cangaceiro ou hollywoodiano. Somos individualistas, vivemos proclamando que nossa liberdade estará acima de toda imposição social. Mas, para conseguir viver com os outros, tragamos -resignados e um pouco covardes- qualquer dose de conformismo. Com esta amargura na garganta, como não criar romances com a vida (miserável) de quem sai atirando nas margens?

4. Entrevistando João Salles para a revista "Veja", Thais Oyama observou: "Muita gente classificou sua atitude como uma tentativa de expiar uma culpa pelo fato de ser muito rico" (a família Salles é dona do Unibanco). João Salles: "É difícil que alguém neste país não tenha culpa social". Oyama de novo: "É melhor fazer algo movido a culpa que não fazer nada?".

Oyama se faz porta-voz de um lugar-comum de nossa cultura: o gesto que se origina na culpa perde sua nobreza, pois hoje é "cool" estar satisfeito consigo mesmo, sem reservas. A culpa está fora de moda.

O modelo dessa culpa culpada é: gostamos de geléia, a mãe decidiu que não, porque é quaresma. Desejamos a geléia, mas, por sentir culpa, aceitamos a frustração. Ou então roubamos uma colherada e, pela mesma razão, não aproveitamos direito. Em suma: a culpa seria submissão a valores que não são de nosso feitio e que nos impedem de gozar das coisas que desejamos.

Mas a história da geléia proibida é um modelo arcaico de culpa, afastado da experiência contemporânea. Com poucas exceções patológicas, nós, modernos, saboreamos a geléia sem lágrima nenhuma. Nossos apetites se legitimam sozinhos e se deixam dificilmente culpabilizar.

A culpa que João Salles reivindica é a culpa moderna: nesta, nossos desejos são a autoridade suprema, portanto é com eles que ficamos sempre em dívida. Não somos culpados de desobedecer a interdições de geléias variadas. Hoje nos sentimos culpados quando não conseguimos fazer o que desejamos.

Alguns de nós, como João Salles, têm anseios de justiça -uma vontade de mudar o mundo, de torná-lo melhor. É fácil ficar em dívida com este desejo, se sentir culpado de não conseguir realizá-lo.

Outros não conhecem esta culpa. Uma emergente, ao perceber olhares de inveja, comenta, feliz: "O povo me adora". Ela, por exemplo, não se sente culpada, porque não deseja, nunca desejou mudar nada.

segunda-feira, 13 de março de 2000

A batalha pela alma de Elián González

Elián González é o menino cubano que perdeu a mãe no naufrágio do barco que o levava à Flórida. Os parentes e a comunidade cubano-americana de Miami querem que ele fique nos EUA. O pai quer que ele volte a Cuba.

Passei por várias fases. Uma fase pró-cubanos de Miami, na qual desconfiava do pai. Pedindo o filho de volta e falando para a pátria ultrajada, ele não estava sendo coagido por Fidel?

Depois, houve a fase indignada com o pós-feminismo: parecia-me evidente que, se fosse o inverso, ou seja, se o pai tivesse se afogado e a mãe estivesse em Cuba pedindo o filho de volta, o rapaz já estaria no avião para casa.

Houve a fase legalista: respeitemos as leis americanas de imigração. Elián, sendo menor, nem pode pedir asilo. O resto é politicagem. Deixei essa fase para a proposta tanto de Bush quanto de Gore: por decreto, outorguem direito de residência a Elián, assim a questão de saber com quem ele fica sairá do direito de imigração e irá para a vara de família, onde prevalece o interesse da criança. Mas qual é o interesse da criança?

Aí outra fase pró-cubano-americanos, simplesmente porque tenho alergia a todo regime que impede seus sujeitos de viajar livremente. Lembro-me dos 63 civis desarmados que tentavam emigrar de Cuba em 1994 e foram assassinados por agentes do governo cubano. Havia 12 crianças entre eles. Por que Elián voltaria para isso?

Por outro lado, um cubano de Miami levanta este cartaz: "A liberdade antes da paternidade". Ou seja, ser livre é mais importante do que ter um pai. É uma versão da regra moderna: crescer não é se conformar aos pais. Mas estamos dispostos a desconsiderar os laços de família por ideais políticos? O que diríamos de uma criança que, em Cuba, denunciasse as simpatias subversivas dos pais seguindo o mesmo princípio?

Imaginei uma solução: devolvam Elián para o pai e autorizem que ele volte para os EUA mais tarde, quando ele quiser visitar seus tios ou mesmo para ficar -só para dizer que americano não rejeita criança que naufragou. Feito. Vamos cuidar da vida.

Mas a figura de Elián segue reinando na imprensa americana e nas conversas sociais. Por quê? A luta ao redor de Elián é uma parábola que propõe uma explicação de quase meio século de nossa história.

Uma comentadora teme que, de volta para Cuba, Elián passe por uma lavagem cerebral. Outros perguntam então como a gente chama a reeducação americana pela qual Elián está passando agora pelas mãos de seus parentes de Miami. Não é lavagem também?

Elián é a derradeira aposta da Guerra Fria. A batalha pela sua guarda e sobretudo pela sua alma é que justifica a Baía dos Porcos, o Vietnã e a Coréia.

A luta é e sempre foi, de fato, entre Mickey Mouse e Fidel Castro ou entre Stakhanov e o Pato Donald. Nessa luta, o Che foi o campeão da esquerda, mas não tinha como ganhar -mais sozinho contra Hollywood do que contra o Exército boliviano.

Eis que Elián volta de sua primeira visita a Orlando, onde foi beijado pessoalmente por Mickey. Na primeira página dos jornais, Fidel, em Cuba, rivaliza e beija a testa do irmãozinho de Elián. Quem beija com mais carinho: Fidel ou Mickey?

Sempre soubemos que a Guerra Fria era sobretudo cultural. Graças a Elián, aparece enfim que, de fato, era uma competição onírica para ver quem conseguiria encarnar o sonho das crianças.
Pouco importa quem organiza melhor a produção, pouco importa quem é mais rico e quem é mais justo, já que, afinal -considerando o lugar extraordinário das crianças e dos jovens no imaginário ocidental moderno-, a questão derradeira é: com quem e com o que sonham as crianças? Pois para lá iremos ou, no mínimo, irão nossos corações.

Os EUA sempre se definiram como a terra das oportunidades. Ora, as crianças e os jovens, para nós modernos, são exatamente isso: os depositários das oportunidades que desperdiçamos. Logo, os EUA são o campo dos sonhos dos jovens. Não deu outra. Os jovens podem contestar o projeto hegemônico americano, discordar, opor-se. Mas seus sonhos são americanos. Assim foi perdida a Guerra Fria, a golpes de rock and roll, calça Levis e batata Pringles (por exemplo).

Provavelmente Elián voltará para a ilha junto com o pai dele e sob o olhar atônito da comunidade cubana de Miami, que não entende como esse homem possa querer voltar para casa.

Vejo a acumulação de brinquedos no pátio de Elián em Miami. Surpreendo o brilho no olhar de Elián sorrindo para os manifestantes na frente de casa: está gostando de seus 15 minutos de celebridade. Constato, por outro lado, a estética austera do outdoor que o governo cubano começou a desdobrar em Cuba: "Devolvam Elián à sua pátria", dizem.

Só falta que, na volta para Cuba, Elián tenha de escutar um discurso de Fidel de três horas. Vai acabar pulando no mar à procura de sua mãe e da Flórida.

Um oficial republicano da guerra da Espanha inventado por Hemingway, observando seus aviões indo para mais uma batalha perdida, dizia: "Como sempre, estamos fodidos". E olhem que, ao ser inventado, ele nem sabia que Hemingway era americano.

quinta-feira, 9 de março de 2000

Viva o Carnaval na Sapucaí

A Sapucaí tem um lado cruel. Na avenida não há ninguém para editar piedosamente as imagens.

Impossível não ver o apoio de destaque e harmonia ou os empurradores atrás dos carros alegóricos. Os diretores de ala puxam, empurram, mandam parar ou correr. Há fantasias que se desfazem antes da hora. Aquele lá perdeu um sapato. Outro foi para a avenida com um tênis preto que destoa e brilha no meio das sandálias douradas. Aí há dois que, em vez de sambar, não param de conversar.

As mulheres e os homens mais bonitos, nus, ou quase, no destaque, enchem a tela da televisão. O telespectador pode imaginar que os corpos de todos sejam formosos e apetecíveis. Mas na Sapucaí, de perto, entre as lantejoulas, aparecem muitas carnes brancas e trêmulas, um pouco enjoativas.

Em suma, pode surgir uma dúvida: não era melhor na TV, tudo bonito, tudo aparentemente espontâneo, um milagre de alegria, sem falhas e sem erros?

Há quem ache isso mesmo. Tarde na noite de domingo, num camarote, há três homens (turistas) e três meninas. Enquanto as meninas sambam, um dos homens, bêbado, deitado no chão, contempla na TV a versão Globo do desfile que está passando logo atrás dele. Os dois restantes preferem fazer sua própria edição. Um olha para a avenida pela telinha de sua videocâmara. Ele prepara a versão uso família: nudez permitida, mas sem provocações. O outro prepara a versão dura: só fotografa as mulheres que respondem obscenamente às suas tentativas (eficazes, aliás) de chamar a atenção.

Afinal, eles estão vivendo um bom momento, quem sabe um sonho. Por que não editá-lo na hora? Na mesma linha, não me estranharia que, um dia destes, um prefeito do Rio colocasse telões gigantes no sambódromo para que possamos, estando na Sapucaí, ver nossa alegria já editada e, portanto (dirão), mais perfeita.

Na fila para comprar os ingressos para o baile do Scala, um jovem quer o baile de sábado, que é o bom. Cinquenta reais é muito, ele diz, mas desta vez ele vai, seja qual for o preço. Confessa: "Não aguento mais ver isto só na televisão".

Ele não vai se decepcionar. Afinal, está já com a experiência editada por anos de Scala na TV. Sua lembrança será igual a seu sonho televisual acumulado, mais a certeza de que ele esteve lá de verdade.

Mas voltemos à Sapucaí. O milagre é que a avenida ganha da TV. Gosto das imperfeições, dos ventres moles, dos sambas de pato bêbado e das fantasias quebradas. É isso que me comove. Reconheço-me no esforço de todos justamente porque é um esforço heróico, obstinado e fracassado.

Mas de qual esforço estou falando?

Sábado à noite, desfilando na avenida, às vezes a harmonia enfraquece, a mágica parece estar prestes a se desfazer. Aprendo logo que o remédio é levantar os braços e os olhos para a arquibancada ou os camarotes, pedindo um retorno: dancem, se mexam, se empolguem conosco.
Nas noites seguintes, como espectador, verifico que é difícil recusar este apelo. Uma vez encontrado um olhar lá embaixo, fica impossível não sacudir e acompanhar. O samba é de todos, porque é de todos o esforço de se ver felizes. É para isso que serve o desfile: a arquibancada se vê na escola e a escola se vê na arquibancada. Juntas se confirmam na vontade de alegria.

Afinal, todos precisamos nos ver de alguma forma. Isso pede invenção e manutenção. O Carnaval é como a malhação anual coletiva necessária para manter a imagem, o "look" que a gente quer. E a imagem aqui na Sapucaí é honesta: não é alegria televisiva ou babaca. Ao contrário, é a própria imagem do esforço que custa passar pela vida mantendo o sorriso e o samba no pé.

Ninguém aqui confunde a fantasia com a roupa de cada dia e todos sabem que a fantasia é imperfeita e embaraçosa.

Há outras maneiras de ver, certamente. As mais patéticas são as que tentam passar por outra coisa que não fantasias.

Por exemplo, alguns anos atrás, um psicanalista francês passou o Carnaval no Rio. De volta à França, declarou a uma assembléia admirativa que o Carnaval carioca era, como ele se expressou, "uma experiência de gozo especular". Até aí tudo bem.

Mas era óbvio, na fala, um desprezo para os índios que gostam de ser alegres e de se olhar nesta alegria. Na verdade o desprezo era pelo simples fato de os índios gostarem de se olhar - ponto. Subentendido: "A gente aqui em Paris não brinca com espelhinhos; a gente nem precisa se ver; a gente, aliás, prefere ser do que se ver". O engraçado é que ele falava numa situação absolutamente parecida com a Sapucaí: ele falava e sua arquibancada só queria se espelhar nele. A única diferença é que, naquele caso, todos queriam se ver não alegres e felizes, mas metidos a besta. Conseguiam muito bem.

Breves:
Por que a bandeira estampada em camiseta ou sutiã pode, mas desenhada no corpo não pode?
Adorei Roberta Close como símbolo da liberdade de escolha. São as verdadeiras "Diretas Já".
As impressões de Carnaval são como um bloco que deveria se chamar A Cada Ano Sai Diferente.

segunda-feira, 6 de março de 2000

Atenção: homens e mulheres trabalhando



Na segunda-feira, o Nasdaq -índice das ações da dita nova economia- fechou em forte queda. Na terça, a coisa piorou. Será que a bolha explodiu?


Não sei, mas a pausa na euforia dá um alívio. Pois é duro aguentar a presença maciça da Bolsa de Valores na vida cotidiana americana e, aos poucos, mundial.


Lembra-se do Brasil dos anos 80? Era difícil passar um dia sem debater o que fazer hoje: comprar dólares, colocar no curto prazo, abrir uma caderneta ou entrar num consórcio? Parecia uma manobra de diversão, para que a gente esquecesse as urgências sociais e políticas. "Revolução? Pode ser, mas deixe primeiro passar no banco."


Hoje, nos EUA, fala-se de investimentos tanto quanto no Brasil daquela época. Só que positivamente: o problema não é como evitar a corrosão inflacionária, mas como não perder o trem da alegria. E o trem é um só: a Bolsa de Valores.


Não foi sempre assim. Até recentemente, a Bolsa era coisa de profissionais -caricaturas de terno e charuto, condensadas ao redor de Wall Street.


Como o capitalismo americano conseguiu produzir uma nação de investidores? Simples: confiando a cada um a tarefa de investir livremente o dinheiro de sua aposentadoria. Um pouco como se, no Brasil, todos tivessem a liberdade de administrar seu fundo de garantia.
Consequência: uma massa de dinheiro fluiu para a Bolsa, valorizando o mercado. A isso acrescenta-se, nos últimos anos, a possibilidade de investir por computador, ou seja, de comprar e vender ações com comissões irrisórias e de dispor das mesmas informações que um profissional.


Por que se queixar? Não é esse o milagre de uma sociedade em que cada cidadão (ou quase) seria diretamente interessado na prosperidade do sistema inteiro? Não é bonito que os trabalhadores invistam suas economias apostando num futuro do qual eles são todos sócios (embora minoritários -desculpe a ironia)?


Talvez seja preconceito de velho esquerdista, mas receio que, com, isso tenhamos sobretudo atingido o fundo do poço. Nunca a experiência da economia foi tão afastada das condições concretas do trabalho, da produção e da vida.


Por exemplo, imaginemos que em janeiro você tenha feito a contribuição (obrigatória nos EUA) a seu fundo de aposentadoria -sei lá, US$ 1.000 . Logo precisa investi-los. Você está sabendo que a biotecnologia é quente e investe nessa direção. Em um mês, seus US$ 1.000 se tornam US$ 1.700. Mas eis que 15 dias atrás Clinton declara que não é bom nem legítimo patentear fragmentos do genoma humano sem nem saber para que servem. As perspectivas de lucro da biotecnologia parecem de repente menores do que se pensava. O setor despenca.


Questão: você consegue aceitar que é moralmente justo que o genoma não seja objeto de patentes e que não se lucre com informações preciosas para a vida de milhões de pessoas? Ou você só pensa que essa brincadeira política de Clinton lhe custou US$ 500 em poucas horas? E, caso você se reconheça na primeira possibilidade, como fica se, em vez de US$ 500, fossem US$ 50 mil?


Na verdade, a popularização do investimento na Bolsa não inventa nenhum tipo novo de participação social. Ao contrário, ela vulgariza o espírito de tubarão, ou seja, a substituição de qualquer problemática moral por interesses particulares e imediatos. O homem da rua adotou o espírito do banqueiro de Londres, como diria Mário de Andrade. Para o trabalhador transformado em investidor, a economia torna-se um jogo abstrato. Uma fábrica que fecha ou uma fila de desempregados são indícios para a compra ou venda de títulos, os quais lhe aparecem paradoxalmente como sendo a economia real. Pergunta-se como o trabalhador, tomado na rede das cotações, concebe seu próprio trabalho, seu lugar no mundo e eventualmente seu próprio lugar na fila dos desempregados.


Por medida de saúde pública, proponho que, nos sites de investimento, seja imposto o uso de um programa pelo qual, a cada vez que o usuário clica para comprar ou vender ações, opções ou outros instrumentos desse tipo, apareça uma janela piscando: "ATENÇÃO: HOMENS E MULHERES TRABALHANDO".


PS: Com a queda do Nasdaq, muitos se perguntarão se a nova economia acabou.
A nova economia se distingue porque nela o valor de uma ação não está ligado à previsão de lucros da empresa. Ora, ela não vai acabar tão cedo, pois é nossa filha legítima. Em nossa cultura, vale o que é desejado, invejado, procurado. Isso é o caso dos produtos e dos sujeitos. Por que não seria o caso das empresas?


Quando o público se torna investidor, a Bolsa funciona como um mercado ordinário: a imagem de uma empresa prevalece sobre sua qualidade intrínseca.


Ninguém se preocupa em saber se, de fato, a intervenção de Clinton modificou as perspectivas de lucros da biotecnologia. O que importa é que assim pensou o público, ou melhor, importa que se preveja que o público pensará assim.


O expert em investimentos é cada vez mais o expert em marketing, pois a nova economia é uma economia de massa e de opinião.

quinta-feira, 2 de março de 2000

Walter Benjamin e "Terra Nostra"

Quarta-feira, nas comunidades brasileiras dos EUA, é o dia em que chegam as fitas da Globo: a semana de novela das oito ou das sete, o resumo do "Jornal Nacional" e os seriados.

Os capítulos das novelas são gravados sem propaganda. Acelerando títulos, retomadas e diálogos repetitivos, um espectador bem treinado assiste a uma semana de novela em duas horas. Nesse processo, aliás, a novela se enxuga e ganha, como se recebesse uma editoração final.

Passo na minha loja brasileira preferida, Terra Brasilis, em Brookline, e pego a dose semanal de "Terra Nostra". Por coincidência, acabo de comprar "The Arcades Project", de Walter Benjamin (Harvard University Press). É a tradução das notas que Benjamin deixou na Biblioteca Nacional de Paris quando, em 1940, fugiu da França invadida pelos nazistas, foi detido na fronteira da Espanha e acabou se suicidando.

Acidentalmente, o volume fica sobre o balcão da loja, junto com a última fita de "Terra Nostra". Os dois objetos parecem compor uma metáfora surrealista. De um lado, mil páginas de fragmentos, fichas, reflexões e citações, uma sublime polifonia filosófica sobre a sociedade moderna. Do outro, um produto televisivo, que certamente Adorno e Horkheimer -outros filósofos da escola de Frankfurt- teriam desprezado como dejeto da "indústria cultural".
O fato é que gosto dos dois. Sou muito feliz por ir para casa com meus dois pacotes.

Preciso esclarecer: assisto "Terra Nostra" sem pretextos. Não planejo nenhum pós-doutoramento sobre a Rede Globo e a ideologia da classe média brasileira. Nada disso. Se fico um tempo com Gumercindo, Francesco, Paola, Giuliana, Matteo etc., não é na esperança de surpreender um novo aspecto da cultura de massa. Ao contrário, faço parte da massa: gosto de seguir a história, gritar de horror contra a pérfida dona Janete ou exortar José Alceu a aceitar, enfim, Antenor como pai. Torço e comento com amigos e parentes.

Aliás, esta é a façanha das (melhores) novelas: invadem a conversa cotidiana, mobilizam afetos, crenças e opiniões, ou seja, elas nos transformam no coro de uma tragédia grega. Impondo-nos esse exercício, elas enriquecem ou mesmo inventam nossa cultura popular. E a cultura popular é o conjunto (grande ou pequeno) das verdadeiras razões pelas quais temos um destino comum como povo: mitos, lendas, histórias que compartilhamos.

"Terra Nostra" não puxa as lágrimas só no Brás ou na Mooca. A coragem, as penas e as alegrias da imigração italiana em São Paulo valorizam para todos a narrativa da cidade, do Estado e, enfim, do Brasil. Em suma, "Terra Nostra" torna essa terra "nossa" para todos os brasileiros.
Ora, eu gosto de Benedito Ruy Barbosa e de Benjamin no mesmo dia, sem problema e sem dilemas. A contradição vem de fora, dos vários Adornos que policiam as ruas da cultura. Perguntam-me: se você se deixa seduzir, como você mantém sua distância crítica, como se guarda das armadilhas "made in Globo"?

Ocorre-me que essas eram também as objeções que Benjamin recebia de Adorno. Benjamin queria escrever sobre as "arcades", ou seja, as passagens ou galerias de lojas onde, na Paris do século 19, as mercadorias se propuseram pela primeira vez como o verdadeiro arcano da modernidade. A variedade dos objetos oferecidos e dos passeantes descobrindo o prazer das compras lhe pareciam compor um rébus cuja solução diria quem somos hoje.

Ora, para Adorno já devia ser problemático que Benjamin procurasse a verdade do mundo moderno na fantasmagoria do consumo, e não na porta das fábricas. Pior ainda que ele desse mais importância aos sonhos dos modernos lambendo vitrines do que às condições reais de existência no mundo industrializado. E devia parecer catastrófico que Benjamin fosse ele mesmo um sonhador, "flâneur" sonâmbulo, seduzido pela cidade e as luzes das lojas.

Por pressuposto (dos Adornos), a massa, seja ela de telespectadores ou de consumidores, é alienada. E, para salvá-la (tarefa nobre), é necessário, primeiro, sair dela.

Ora, reivindico o direito de pensar sem me excluir da massa. Escrevo esta coluna para conquistar o direito de falar de "Terra Nostra" sem encontrar o sorriso de comiseração dos amigos intelectuais.

Pergunta: por que será que a partir do século 18 pensar passou a exigir um desprezo do comum? Logo quando caem as barreiras de casta do antigo regime, quando a igualdade de direitos ameaça pôr fim aos privilégios, eis que a inteligência promete um novo privilégio: uma aristocracia de gostos e de saberes. Curioso, não é?

P.S.: Os críticos americanos que escrevem nestes dias sobre o livro de Benjamin perguntam ironicamente: "Meu Deus, o que Benjamin diria dos shopping centers de hoje?". Subentendido: ficaria horrorizado, ele que apreciava as elegantes "arcades" de Paris. Tentam, em suma, adornizar Benjamin. Ora, eu acredito que ele se perderia em nossos shoppings como nas "arcades" de Paris.

Pois ele seguiria achando que são esses os lugares onde se desdobra a complexidade sedutora de nosso mundo.