domingo, 24 de abril de 1994

Adolescência parece sem fim

Desencanto que conduziu Kurt Cobain ao suicídio atesta um desejo de nada que seduz os jovens cada vez mais

Em um quarto arejado, cortinas combinando com o cobertor e as almofadas, TV em cores, vídeo, uns três vídeo games meio estragados de pisar em cima dos controles.

Também uma coleção Barsa obrigatória, prancha de surfe na parede, CD portátil com caixas de som, uns 15 bonés americanos –Chicago Bulls e não sei das quantas– camiseta da seleção, taco de baseball comprado em Nova York.

Ainda "t-shirts" meio sujas no chão, junto a cuecas e meias de tênis, raquete de duty free e vai andando, cabelos compridos que nem esfregão de cabeça pra cima, ou então raspado com máquina um ou dois, bermudão (não tão xadrez nem comprido assim, que é vulgarzinho) camiseta comprida e larga como camisola, o adolescente nirvânico escuta: "Nevermind, I hate myself".

Não diz nada de novo. Os lugares-comuns do adolescente moderno –quero dizer de 200 anos para cá (leiam Leopardi, grande poeta por volta de 1930 para verificar)– se seguem e repetem como grãos de rosário. O mundo que nos foi deixado é uma bosta, olha só a Amazônia, o buraco de ozônio, as baleias coitadas. Os pais só pensam em fazer dinheiro. Melhor morrer jovem que envelhecer assim. A vida é outra coisa, seria se desse para sair daqui.

Não se sabe o que, glória, dinheiro, grandeza, vagas aspirações, militar não que é careta, escritor ou intelectual não que é chato de galocha. Cantor é bom mesmo, mas como é que se chega lá? É tudo uma bosta de qualquer forma. A maconha é brincadeira. Por que não uma heroína para lhes mostrar o que fizeram de mim e do que sou capaz?

Pois é, nada novo mesmo. O que é novo é a grana. Adolescente tem dinheiro, pelo menos aquele que escuta no quarto arejado, cortinas coordenadas etc. Vide acima.

O tormento da adolescência é normal. Mas agora se tornou indústria. E dá lucro certo.
As ações da adolescência estão em alta constante. A adolescência um pouco menos. Milhões de quartos arejados são milhões de camisetas, pranchas, raquetes, tacos e discos que gritam: "I hate myself, I wanna die".

E bota volume, já que nem todos podem mostrar o pinto, quebrar amplificadores, guitarra e microfone ou cuspir na televisão no meio do um show.

Com um pouco de sorte, quartos muito menos arejados vão ecoar do mesmo jeito, não porque os adolescentes aí teriam tempo para os mesmos problemas, mas porque no mínimo, perdidos na miséria objetiva, podem tentar se parecer com aqueles que desfilam de motorista.

As questões são as mesmas, mas, sem indústria, dava para buscar respostas outras.

De qualquer forma, em nossa cultura, não tem saída para adolescente, só dando um jeito para pelo menos parecer diferente.

Mas a diferença se esperaria que fosse diferente para cada um. Ela já se tornou de massa logo após 68. Mesmo assim, Dylan e Joan Baez não cantavam para os olhos vidrados do adolescente farto, deitado na cama de quartos arejados etc.

Era, ao contrário, para acordar. Que, atrás de "Mr. Tambourine Man" fosse a turma toda fantasiada de Woodstock, é certo. Mas era de manhã, "a jingle-jangle morning".

A massa da época era artesanal. E o molde era um desejo (dos pais, naturalmente) de que houvesse um mundo melhor. A massa de hoje é industrial, e vai direto ao "quid": por que inventar projetos e saídas quando a própria esterilidade da adolescência vende tão bem quanto, se não melhor?

As questões necessárias e banais da adolescência, como deixá-las, desde então, como ultrapassá-las se são palavras de ordem para um mundo encantado de milhões de dólares?
Dá vontade, aliás, de ficar adolescente para sempre. E muitos ficam mesmo: aos 20 anos ainda passam trotes de calouro, outros esperam embaixo do palanque da UNE para pedir autógrafo. Chorando sobre a miséria da herança recebida, não querem saber nada de propostas e de ação, preferem a adolescência de massa: "Descontente procura star, urgente".

Quem fica adolescente "forever", coitado, é aquele que a indústria arregimentou para cantar a ladainha, adolescente profissional. Aí o problema é sem saída, ou quase. Como é que vou ser contra, se ser contra é o maior negócio? Dá até para fazer um show ruim de doer ou vários, dá para tratar de débeis mentais e lôraburras os que compram os discos. Com esta barata, Fernando (e Gabriel) o que vai fazer?
"Goodbye Kurt Cobain, have a nice last trip."

P.S. - Para quem se perguntar, como acontece que os pais se perguntem, de quem é a culpa, ela não é toda só dos corvos da adolescência que vendem niilismo barato.

Somos loucamente necessitosos de contemplar nossa própria felicidade, ao ponto de querermos encontrar sua imagem em nossas crianças e adolescentes. Isso é regra em nossa cultura há tempos. Por isso, se querem saber por onde anda nosso desejo, é só olhar para os adolescentes, pois sua aspiração à diferença se resolve sempre, em última instância, em uma respeitosa identificação com o que gostaríamos de ser. Mesmo que eventualmente não queiramos sabê-lo.

A imagem um pouco bovina dos novos consumidores que não trabalham é o nosso sonho. Se nos parece caricatura, é porque salienta os traços menos confessáveis: a droga é caricatura (apenas) de nossos prozaks, a ignorância é caricatura de nossos esquecimentos, a desenvoltura é caricatura de nossa malandragem.

Hoje, no lugar da imagem da felicidade, a foto revelada mostra o rito de uma infelicidade abstrata, um desejo de outra coisa tão rarefeito e histericamente vazio que é propriamente desejo de nada.