quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Papai Noel por toda parte







Nossa 'generosidade' é narcisista; deve ser por isso que preferimos fantasiá-la de Papai Noel

Embora meu pai fosse agnóstico, ele tolerou que, durante a infância, eu tivesse uma educação religiosa -católica, no caso.

Se meu pai tivesse impedido que eu fosse batizado, suponho que minha avó materna teria me administrado o sacramento às escondidas. Era ela quem me levava para a missa do domingo; foi ela quem se encarregou de minha primeira comunhão e de minha crisma.

Talvez meu pai aceitasse a ingerência da minha avó para preservar a paz do lar. Ou talvez ele pensasse que um pouco de religião na infância não me faria mal (há uma ideia laica de que um pouco de fé, no começo da vida, pode nos dispor ao respeito pelo próximo e a saudáveis escrúpulos morais).

Seja como for, meu pai era cético, minha mãe, incerta, e minha avó, crente -assim como muitos eram crentes entre os professores, os parentes e os amigos dos meus pais. Havia, portanto, muitos adultos para quem, apesar do ceticismo do meu pai, Deus era uma verdade -não apenas um artifício pedagógico.

Essa divergência não existe em matéria de Papai Noel: a partir da pré-adolescência, ninguém acredita mais que ele exista de verdade. Ao contrário, uma criança de dez anos que escreva uma carta para o polo Norte desperta preocupação: "Atraso cognitivo ou emocional?", perguntam, preocupados, os mesmos adultos que, poucos anos antes, declaravam a essa criança que Papai Noel existe (e se felicitavam ao verificar que ela acreditava).

O Papai Noel não é o único caso de crença reservada à infância. Porém, por mais que os adultos contem histórias de bruxas ou ogros e achem graça na credulidade apavorada das crianças, é só no caso do Papai Noel que produzimos anualmente um grandioso culto público.

Imagine que um meteorito se choque com a terra hoje, 22 de dezembro, acabando com a espécie humana. No futuro, uma expedição arqueológica de um planeta distante chegará à Terra com o intento de entender quem eram os humanos. Eles concluirão que uma grande parte dos terrestres venerava um velhinho acima do peso, que vivia na neve, se locomovia em trenó e presenteava as crianças.

No melhor dos casos, haverá, entre os ETs, uma espécie de Paul Veyne (o autor de "Acreditaram os Gregos em seus Mitos?", Edições 70): estranhando a contradição entre nossa cultura e o infantilismo de nossas crenças, ele escreverá "Será que os terrestres acreditavam mesmo em Papai Noel?".

Enfim, o fato é que, nesta estação, enchemos nossas cidades de imagens do Papai Noel e encorajamos as crianças a conversar com os papais noéis que povoam lojas e shopping centers.

Milagre natalino: sábado à noite, em São Paulo, a avenida Paulista (fechada aos carros) era um desfile alegre de famílias. Às crianças pequenas, boquiabertas, só sobrava acreditar no Papai Noel: se ele não existisse, por que os adultos se dariam àquele trabalho?

Alguns dizem que tudo isso não passa de uma invenção do comércio -para que todos esperem receber presentes e, na falta de um Papai Noel real, sejamos obrigados a tomar seu lugar, indo às compras. Eu tendo a pensar que o comércio pegou carona numa invenção que não foi dele, mas nossa, dos adultos em geral.

Talvez precisemos do Papai Noel para encarnar e disseminar o espírito natalino. Seríamos crédulos na infância e faríamos de conta uma vez por ano, para preservar um ideal de solidariedade e bonomia.

E há outra explicação, menos poética, mas não excludente. Amamos nossas crianças de uma maneira que não é exatamente prova de nossa grandeza de ânimo.

Sobretudo nas últimas décadas, enfiamo-lhes presentes ou guloseimas goela abaixo, que elas os mereçam ou não, para vê-las satisfeitas e gratificadas (mesmo que seja só por um instante).

Com que propósito? Esperamos que a fartura de nossos rebentos compense todas as nossas frustrações, passadas e presentes.

Como nos envergonhamos dessa "generosidade" narcisista, o jeito é fantasiá-la de Papai Noel: não somos nós que mimamos e estragamos nossas crianças, é um velhinho vestido de vermelho.

É um problema? Não sei, mas um adulto que acredita no Papai Noel é alguém convencido de que o almoço é de graça e não é preciso se esforçar: o mundo, os deuses ou a sorte lhe darão o que ele quer, que ele mereça ou não. É isso que queremos que nossas crianças acreditem?

A pessoa do ano

A coragem do manifestante, mesmo que a gente discorde dele, é a grande garantia da democracia

 Tradicionalmente, no fim de dezembro, a revista "Time" elege a "pessoa do ano" e lhe dedica sua capa. Nem sempre se trata de uma figura admirável. O critério da escolha é a influência, o peso -para o bem ou para o mal.

Prova disso: em 1938, a pessoa do ano foi Adolf Hitler, e Stálin ganhou o título em 1939 por causa dos possíveis efeitos catastróficos do pacto germano-soviético de não agressão (certamente pouco apreciado pela "Time" e por seus leitores).

Stálin foi pessoa do ano novamente (desta vez, por razões lisonjeiras) em 1942, pela vitória de Stalingrado, que mudou o curso da Segunda Guerra (1939-45). Como já sabíamos antes que a "Time" desta semana fosse publicada, a pessoa do ano de 2011 é "The Protester" -o protestador, no sentido de manifestante que contesta e protesta.

A "Time" reconhece que há diferenças consideráveis entre as três categorias principais de protestadores do ano, ou seja, entre 1) os insurrectos da Primavera Árabe, que pediram (e muitos deles ainda pedem) uma mudança de regime; 2) os indignados europeus, desempregados e/ou ameaçados pela crise de seus Estados assistenciais e 3) os revoltados norte-americanos do movimento "Ocupe Wall Street", descontentes com a desigualdade e com o poder do capital financeiro (um pouco no espírito da revolta de Seattle em 1999).

Mas a revista julga que os traços comuns a esses grupos são mais importantes que suas diferenças: nos três casos, a massa dos protestadores é composta de jovens, instruídos, de classe média, que não se identificam com partidos políticos oficiais e acreditam "que o sistema político e a economia de seu país tenham se tornado disfuncionais e corruptos -democracias de fachada, manipuladas para favorecer a ricos e poderosos".

Há outra diferença aparente entre os grupos: como nota Kurt Andersen, os manifestantes europeus e de Wall Street se queixam da falta de democracia nos seus regimes, enquanto muitos combatentes da Primavera Árabe apontariam esses regimes como modelos desejáveis de funcionamento democrático. Contradição? Nem tanto.

A democracia é um sistema que sobrevive à condição de que nunca paremos de lutar, ou seja, ela é sempre perfectível e se perde se a consideramos perfeita e deixamos de lutar por ela -para estabelecê-la (como os árabes) ou para aprimorá-la (como europeus e americanos), tanto faz. Além disso, a "Time" não escolheu um grupo: a pessoa do ano é um indivíduo, "o" protestador. Algo análogo tinha acontecido em 1956, quando os tanques da União Soviética esmagaram a resistência popular húngara.

A revista elegera pessoa do ano o "Hungarian Freedom Fighter", o lutador húngaro pela liberdade. Nesse caso também, não fora honrado um grupo, mas "o" lutador, um indivíduo -anônimo, mas um indivíduo mesmo assim, como o "protester" de 2011. Isso não acontece apenas porque "a pessoa do ano" teria que ser necessariamente singular (uma pessoa, justamente).

Há outra razão: a revista escolheu "o" indivíduo que manifesta porque (como escreveu Rick Stengel na apresentação), independentemente da razão pela qual ele protesta, pelo simples fato de protestar, essa figura "literalmente encarna a ideia de que a ação individual pode acarretar mudanças coletivas e colossais".

Em suma, alguns dirão que a escolha do protestador como pessoa do ano de 2011 não foi certa, porque, por exemplo, o foco dos protestos é vago e seus efeitos futuros ainda incertos -eles perguntarão: "Não será cedo para dizer se esses protestos transformaram alguma coisa para melhor?". Mas a "Time" enxergou outra coisa: a atitude do indivíduo que protesta é a matriz de qualquer democracia.

A coragem do manifestante, mesmo que, às vezes, a gente o julgue inoportuno, mesmo que discordemos de suas razões, de seus pedidos e dos meios pelos quais ele se expressa, não deixa de ser a grande garantia da democracia. Sempre me esforço para me lembrar disso quando sou aprisionado no meu carro por uma manifestação que paralisa o trânsito da cidade: o protestador acredita na possibilidade de seu ato mudar o mundo, e é graças a essa fé que a democracia se afirma e insiste -para todos nós.

Enfim, ao ler as retrospectivas, 2011 parece ter sido um ano de alegrias, dores e incertezas, um ano intenso. Espero que o próximo seja, para todos nós, tão interessante quanto este, se não mais.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Pentimentos

Sonhamos com escolhas passadas alternativas, que teriam nos levado a um presente diferente

"Pentimento" é a palavra italiana para arrependimento, mas designa (em muitas línguas) uma pintura, um desenho ou um esboço encoberto pela versão final de um quadro.

Às vezes, com o passar do tempo, a tinta deixa transparecer uma composição em cima da qual o artista pintou uma nova versão.

Outras vezes, os raios-x dos restauradores desvendam opções anteriores, que permaneceram debaixo da obra final. Esses esboços ou pinturas, que o artista rejeitou e encobriu, são os pentimentos, que foram descartados sem ser propriamente apagados.

Visível ou não, o pentimento faz parte do quadro, assim como fazem parte da nossa vida muitas tentações e muitos projetos dos quais desistimos. São restos do passado que, escondidos e não apagados, transparecem no presente, como potencialidades que não foram realizadas, mas que, mesmo assim, integram a nossa história.

Pensei nisso assistindo a "Um Dia", de Lone Scherfig, que estreou na sexta passada. O filme é a adaptação do romance homônimo de David Nicholls (Intrínseca), que foi uma das leituras que mais me tocaram neste ano e que já comentei brevemente na coluna de 21 de julho.

O livro e o filme (cujo roteiro é do próprio Nicholls) contam a história de Emma e Dexter, que são unidos pelo pentimento: cada um deles é o grande pentimento do outro -ou seja, ao longo dos anos, cada um é, para o outro, a lembrança de que um outro destino teria sido possível.

Reflexões, saindo do cinema:

1) Nossas vidas são abarrotadas de caminhos que deixamos de pegar; são todos pentimentos, mais ou menos encobertos: histórias que não se realizaram. Por que não se realizaram? Em geral, pensamos que nos faltou a coragem: não soubemos renunciar às coisas das quais era necessário abdicar para que outras escolhas tivessem uma chance. E é verdade que, quase sempre, desistimos de desejos, paixões e sonhos porque custamos a aceitar que nada se realiza sem perdas: por não querermos perder nada, acabamos perdendo tudo.

Emma e Dexter, por exemplo, ficam cada um como pentimento do outro porque nenhum dos dois consegue renunciar à sua insegurança (que é, aliás, o que os torna tão tocantes e parecidos com a gente): ela morrendo de medo de ser rejeitada, e ele, sedento de aprovação, fama e sucesso.

2) O problema dos pentimentos é que eles esvaziam a vida que temos. O passado que não se realizou funciona como a miragem da felicidade que teria sido possível se tivéssemos feito a escolha "certa". Diante disso, de que adianta qualquer experiência presente? Emma e Dexter, por exemplo, são condenados a fracassos amorosos pela própria importância de seu pentimento.

3) Nem sempre os pentimentos são bons conselheiros -até porque, às vezes, eles são falsos (esse, obviamente, não é o caso de Emma e Dexter). Hoje, é fácil esbarrar em espectros do passado: as redes sociais proporcionam reencontros improváveis e, com isso, criam pentimentos artificiais. Graças às redes, uma história que foi realmente apagada da memória (não apenas encoberta) pode renascer como se representasse uma grande potencialidade à qual teríamos renunciado.

No reencontro, um namorico da adolescência, insignificante e esquecido, transforma-se em (falso) pentimento, ou seja, numa aventura que poderia ter aberto para nós as portas do paraíso (onde ainda estaríamos agora, se tivéssemos ousado trilhar esse caminho).

Quando examino as fotos de minhas turmas do colégio, sempre fico com a impressão de que deixei amizades e amores inacabados ou nem começados, mas que teriam revolucionado meu futuro. É como se me perguntasse "Quem era minha Emma? Para quem eu era o Dexter?", fantasiando pentimentos de relações que nunca existiram.

Somos perigosamente nostálgicos de escolhas passadas alternativas, que teriam nos levado a um presente diferente. Se essas escolhas não existiram, somos capazes de inventá-las -e de vivê-las como pentimentos.

Avisos: os pentimentos não são necessariamente recíprocos, e os falsos pentimentos, revisitados, são pequenas receitas para o desastre.

4) Estreia amanhã "As Canções", de Eduardo Coutinho. Homens e mulheres cantam a música que foi crucial na sua vida (e explicam por que ela foi crucial). Em alguns casos, especialmente tocantes, as músicas são trilhas sonoras de pentimentos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A pele que habito (e a dos outros)

Há homens que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas

Nesta altura, considero conhecida a trama do último Almodóvar, "A Pele que Habito": um cirurgião, o doutor Ledgard, sequestra um jovem (Vicente) durante anos e o transforma numa mulher (Vera).

Na saída do cinema, alguém comenta: "Se acontecesse comigo, eu ficaria namorando o médico. Fazer o quê? Pênis, eu já não teria mais. E não estaria a fim de fugir. Voltar para minha vida de antes e contar que me tornei mulher para minha mãe e para meus amigos, já pensou?".

Infelizmente, na situação da vítima de Ledgard, ninguém conseguiria fazer prova de tamanho pragmatismo, por uma razão simples: a sensação íntima e profunda de ser homem ou mulher (a identidade de gênero) não é coisa que possa ser mudada.

É possível, isso sim (e acontece no caso dos transexuais), "retificar" o corpo, caso ele não coincida com a identidade de gênero de alguém.

Se você sempre se sentiu homem num corpo de mulher ou mulher num corpo de homem, se você tem a trágica impressão de estar no corpo errado, pois bem, nesse caso, à força de hormônios, operações cirúrgicas e orientações terapêuticas, você talvez possa modificar seu corpo de maneira que ele concorde com seu sentimento de identidade.

Mas não há tratamentos que, ao transformar seu corpo, possam levar você a mudar seu sentimento profundo de ser homem ou mulher.

Conclusão, se um homem fosse transformado em mulher à força, ele não se resignaria (pragmaticamente), mas passaria a vida querendo que seu corpo fosse retificado para ele voltar a ser o homem que ele nunca deixou de ser.

Em 24 de fevereiro de 2000, nesta coluna ("A terapia da faca e do superbonder"), contei a história de David Reimer, cujo pênis foi decepado acidentalmente na circuncisão, em 1966. Por sugestão do psicólogo John Money, Reimer foi castrado e criado como menina, com a ideia de que é melhor ser uma menina fabricada (na faca, com hormônios, roupas e brincadeiras adequadas) do que um menino com uma prótese peniana.

John Money escondeu o desespero de Reimer durante infância e adolescência. Reimer, ao descobrir o engodo do qual tinha sido vítima, parou a palhaçada e voltou a ser homem. Atualizando: em 2004, Reimer se suicidou.

Por qual loucura Money imaginou que, ao transformar o corpo de um menino, ele poderia mudar sua identidade e fazer dele uma mulher?

A resposta está na onipotência das ciências humanas nos anos 60, mas também numa fantasia erótica masculina, que talvez Money compartilhasse e que paira tanto sobre "A Pele que Habito" quanto sobre o livro (imperdível) que inspira o filme: "Tarântula", de Thierry Jonquet (Record).

Há sites (sixpacksite.com; tgcomics.com; fictionmania.tv) inteiramente dedicados a ficções e quadrinhos que elaboram fantasias de feminização forçada. A clientela desses sites é de homens heterossexuais, que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas. Dica: os machos que se gabam por levar as mulheres à loucura podem estar com vontade de sentir neles mesmos o efeito de seus próprios (supostos) talentos.

Mais perto do cotidiano, "A Pele que Habito" é também apenas mais uma parábola do amor, pois é banal que o amor nos leve a querer transformar parceiros e parceiras de forma que eles correspondam a nossas expectativas.

O projeto de moldar o outro transforma qualquer convívio numa violência. Mas essa violência não impede nada: no clássico "Post-traumatic Therapy and Victims of Violence" (terapia pós-traumática e vítimas da violência, Routledge, 1988), Frank Ochberg enumerava, entre os sintomas habituais das vítimas, tanto um ódio ressentido e doentio quanto sentimentos positivos -incluindo amor romântico, sujeição e, paradoxalmente, gratidão.

"A Pele que Habito" poderia ser, em suma, a versão trágica e realista de "My Fair Lady". No musical, Eliza Doolittle acaba amando mais que odiando o prof. Higgins, que a transformou numa "lady". No filme de Almodóvar, talvez Vera odeie Ledgard mais do que o ama. Mas o que importa é que os sentimentos da vítima são sempre ambivalentes.

É essa a chave para entender as mil histórias de vítimas que poderiam ou deveriam ter fugido, como a de Natascha Kampusch, abusada por "3096 Dias" (Verus ed.), ou como a da menina que foi escrava sexual de Gaddafi durante cinco anos

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Domingo na Rocinha


Por que os moradores da Rocinha não pensariam que houve apenas troca de uma máfia por outra?

A Rocinha não é bem uma favela. É um imenso bairro de classe média (mais ou menos baixa), que contém áreas de favela, como os barracos encostados no morro Dois Irmãos.
E é um bairro alegre: a proximidade entre a maioria dos moradores e seu local de trabalho faz com que as "favelas" da zona sul carioca não tenham o aspecto depressivo de dormitórios suburbanos.

Para os menos abastados, é ótimo viver em pequenas aldeias familiares, onde sempre há um parente para cuidar das crianças e ficar de olho nas posses. Na Rocinha, esse costume criou prédios de três ou quatro andares. O patriarca (nos anos 1950) fincou fundações boas e profundas, os filhos construíram em cima da laje dele. A precariedade das estruturas é apenas uma aparência, pela falta de reboco.
Enfim, no domingo, fui passear pela Rocinha pacificada.
Na estrada da Gávea, agora, os mototáxis exigem que, para subir na garupa, você coloque o capacete (que eles fornecem, claro).
Finalmente, a rua quatro, aberta pelo PAC em 2010, é transitável (tinha sido obstruída pelos bandidos, para que houvesse um acesso único ao bairro -mais fácil de controlar).
O turismo tem novas atrações: a academia onde treinava o Nem, a casa do Nem e o restaurante onde ele almoçava. Mas não há mais soldados do tráfico exibindo orgulhosamente suas armas. Para o turista, os policiais são menos pitorescos.
Sumiu a boca de fumo da via Apia (entre o restaurante Varandas -a picanha na chapa continua boa- e o Trapiá -sem vista, mas com ar-condicionado).
A venda de drogas continuará em outros lugares da cidade do Rio. O que foi abolido pela invasão não foi o tráfico, mas a independência de um enclave que o tráfico ocupava -policiando, administrando a Justiça, cobrando serviços. Por exemplo, a ADA (Amigos dos Amigos), na gestão de Nem, cobrava a "gatonet"; agora, será cobrada apenas a NET, sem gato. Para os usuários, não será uma grande mudança.
Domingo é o dia da feira do Boiadeiro (onde ainda é possível encontrar cabeças de porco, pés de boi, galinhas e coelhos vivos). Pela feira circulam policiais militares pesadamente armados. Duas semanas atrás, pela mesma rua, circulariam soldados da ADA, menos marciais, mas também garantes da ordem: um ladrão seria surrado, um estuprador poderia ser morto e desovado na mata.
Encontrei alguém que "mexeu com uma mulher do Nem" (ofereceu carona -cortesia excessiva). Quebraram-lhe a mandíbula. Nada de mais: nas terras de Fernandinho Beira-Mar, a mesma conduta teria dado tortura e morte.
O maior problema da ocupação pelos bandidos, para os moradores, era o estado de guerra: o tráfico defendia a Rocinha contra invasores de outros morros e contra a polícia, que era mais um grupo rival (o espectador de "Tropa de Elite 2" sabe que, muitas vezes, a substituição do tráfico pelas milícias foi parecida como a substituição de uma gangue por outra).
Conclusão: a Rocinha festejou a pacificação com cautela -e não tanto por medo da volta eventual do tráfico. Para quem foi vítima de um longo descaso, a questão da autoridade não é abstrata -no estilo: "Qual é a lei legítima à qual seria justo obedecer, a do Estado ou a do tráfico?". A questão é concreta e simples: "Quem me tratará melhor?".
O Brasil moderno, se quiser governar na Rocinha, deverá merecer a autoridade que ele pretende exercer, ou seja, deverá fazer o que ele, durante muito tempo, não fez: cuidar de seus sujeitos.
É bem possível, de fato, que, a partir de agora, os serviços sociais, culturais, escolares, administrativos e de saúde se desenvolvam com rapidez. Todos contam com isso (aluguéis e custo do metro quadrado na Rocinha subiram 50% numa semana).
Mesmo assim, não será fácil conquistar a confiança dos moradores. Afinal, se nós, aqui no asfalto, achamos que o Estado é corrupto, por que os moradores da Rocinha não pensariam que, até prova do contrário, na semana passada, houve apenas uma troca de uma máfia por outra?
A PM pediu confiança e espera que a comunidade denuncie esconderijos de armas e drogas. Pelos muros da Rocinha, lado a lado, há grafites da Amigos dos Amigos, cartazes com o número do disque-denúncia e outros com o número da corregedoria de polícia. Inquietante: que autoridade é esta, que, ao pedir confiança, deve pedir também ajuda em identificar os bandidos no seu próprio seio?

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A pauta dos jovens sem pauta comum



Esbarro em comentários que juntam lugares e fatos como se tivessem relevância comparável
1) A Primavera Árabe começou em dezembro de 2010, quando, na Tunísia, um jovem vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi, imolou-se pelo fogo diante dos guardas que o esbofetearam e confiscaram sua charrete.
Essa reação heroica ressoou pela costa oriental do Mediterrâneo. Bouazizi, sacrificando-se, proclamava a autonomia inalienável do indivíduo: os governantes podem me forçar a viver como querem, mas sempre me sobrará a liberdade de me matar -e de envergonhá-los, pela coragem de meu suplício.
O gesto de Bouazizi fez com que houvesse, enfim, na Tunísia, eleições livres. O movimento islâmico Al Nahda ganhou, mas não conseguiu a maioria absoluta e talvez não possa impor um governo fundamentalista. De qualquer forma, não sei mesmo se Bouazizi, caso estivesse vivo, teria votado nos religiosos que nos dizem como viver ou nos laicos.
E os jovens que lutaram contra a ditadura de Gaddafi, o que eles pensam da declaração do líder do Conselho Nacional de Transição da Líbia, segundo o qual a lei islâmica será a base para o novo governo nacional? Concordam ou discordam?
Uma pergunta análoga espreita os jovens egípcios, que sacudiram o trono de Mubarak, e os sírios, que protestam (e morrem) nestes dias.
Se alguns deles respondessem que se livraram de uma ditadura para se sujeitarem aos imames, não haveria por que criticá-los: afinal, o caminho dos ideais modernos de liberdade individual é árduo e incipiente (mesmo no Ocidente).
No século 16, a Reforma protestante se deu o direito de ler a Bíblia sem a tutela da igreja -e inventou assim nossa liberdade de consciência.
Mas, na época, os próprios reformados, que tinham acabado de se revoltar contra Roma, criaram a Genebra de Calvino, tão opressiva quanto a Roma do papa -ou quanto
seria, hoje, a Líbia sob a lei muçulmana.
2) O Ministério da Justiça britânico acaba de publicar um relatório segundo o qual mais de dois terços dos saqueadores de Londres (no começo de agosto) eram jovens com sérias dificuldades escolares (nas ruas dos enfrentamentos, as únicas lojas ilesas foram as livrarias).
Conclusão sumária: jovens iletrados roubaram roupa de marca e celulares para tentar ser cidadãos-consumidores como os outros, apesar do déficit educacional que os prende nas margens sociais.
3) Em 16 de outubro, o movimento Ocupe Wall Street pediu manifestações mundo afora. Na Itália, houve protestos violentos de jovens contra a possibilidade de que o plano de austeridade suprima benefícios adquiridos. Na Espanha Falta espaço, mas verifique: as manifestações tiveram sentido e alcance diferente na Espanha, na Grécia, em Portugal e no Brasil.
Será que é preciso também lembrar que o movimento Ocupe Sampa tem pouco a ver com Ocupe Wall Street? E que os jovens chilenos se manifestaram, desde maio, por razões diferentes das dos "indignados" de Oakland (Califórnia)?
A praça Tahir não é Zuccotti Park, que não é o Anhangabaú nem a USP. Parece óbvio, mas o fato é que não paro de esbarrar em comentários que juntam lugares e acontecimentos como se tivessem relevância comparável e inspiração comum.
Ora, esses movimentos e manifestações têm só uma coisa em comum: todos juntos, eles permitem uma espécie de "pauta projetiva".
Ou seja, eles não têm pauta comum (e, às vezes, não têm pauta alguma), mas, uma vez reunidos, constituem um conjunto suficientemente incerto para que nós, observadores, possamos lhes atribuir uma pauta que é da gente. Explico.
Sofremos com um sentimento de iniquidade, uma vontade de mudança, uma tensão do espírito crítico
-em suma, com a insatisfação abstrata que é a quintessência do espírito ocidental moderno e de sua inquietação.
Até aqui, tudo bem -só que, provavelmente, somos envergonhados por nossa incapacidade de pensar alternativas concretas. Receamos que nossa insatisfação apareça como o efeito combinado de uma preguiça intelectual com um vago desejo adolescente de que o mundo seja melhor.
Solução: numa série heterogênea de manifestações de jovens, "encontramos" uma pauta "comum", com a qual simpatizamos -obviamente, pois ela é apenas uma projeção de nossas próprias queixas mais abstratas.
É uma maravilha: podemos ser condescendentes com a eventual mediocridade de nossas próprias ideias. Olhe só, eles estão protestando contra o "sistema" injusto; é
um pouco genérico, mas é bonito, não é?

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Homofobia e homossexualidade

Experiência mostra que indivíduos homofóbicos sentem excitação diante a de estímulos homossexuais


Desde o fim do ano passado, em São Paulo, assistimos a uma série de ataques brutais contra homossexuais ou homens que seriam homossexuais aos olhos de seus agressores.

No fim de 2010, por decreto da Presidência da República, foi estabelecida a finalidade do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (parte da Secretaria de Direitos Humanos).

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como unidade familiar. Não me surpreende que uma explosão de homofobia aconteça logo agora, pois, em geral, o ódio discriminatório aumenta de maneira diretamente proporcional aos avanços da tolerância.

Funciona assim: quanto mais sou forçado a aceitar o outro como igual a mim, tanto mais, num âmago que mal reprimo, eu o odeio e quero acabar com ele. Mas por que eu preferiria que o outro se mantivesse diferente de mim? Por que não quero reconhecê-lo como igual? O termo de homofobia, inventado no fim dos 1960, designa, mais que um preconceito, uma reação emocional à presença de homossexuais (ou presumidos homossexuais), num leque que vai do desconforto à ansiedade, ao medo e, por fim, à raiva e à agressão.

Numa entrevista na "Trip" de outubro (http://migre.me/6563w), apresentei a explicação clássica da homofobia do ponto de vista da psicanálise: "Quando as minhas reações são excessivas, deslocadas e difíceis de serem justificadas é porque emanam de um conflito interno. Por que afinal me incomodaria meu vizinho ser homossexual e beijar outro homem na boca? De forma simples, o que acontece é: 'Estou com dificuldades de conter a minha própria homossexualidade, então acho mais fácil tentar reprimir a homossexualidade dos outros, ou seja, condená-la, persegui-la e reprimi-la, se possível até fisicamente, porque isso me ajuda a conter a minha'".

Exemplo: se eu sinto (e não quero sentir) atração por um colega de classe do mesmo sexo, o jeito, para me convencer que não sinto atração alguma, é chamar esse colega de veado, juntar um grupo que, como eu, odeie homossexuais e esperar o colega na saída da escola para enchê-lo de porradas.
Um amigo me perguntou se essa interpretação da homofobia não era sobretudo uma forma de vingança: você gosta de agredir homossexuais pelas ruas da cidade? Olhe o que isso significa: você mesmo é homossexual. Gostou? O amigo continuou: "Isso não é bonito demais para ser verdade?".

Pois bem, anos atrás, pesquisadores da Universidade da Georgia selecionaram 64 homens que (na escala Kinsey) se apresentavam como sendo exclusivamente heterossexuais. Todos foram testados por uma entrevista (clássica, o IHP) que estabelece o índice de homofobia, de 0 a 100. Com isso, foram compostos dois grupos: os não homofóbicos (IHP de 0 a 50) e os homofóbicos (IHP de 50 a 100).

Nota: chama-se pletismógrafo um instrumento com o qual se registram as modificações de tamanho de uma parte do corpo. Pois bem, todos vestiram um pletismógrafo peniano, graças ao qual qualquer ereção, até incipiente e mínima, seria medida e registrada. Depois disso, todos os 64 foram expostos a vídeos pornográficos de quatro minutos mostrando atividade sexual consensual entre adultos heterossexuais, homossexuais masculinos e homossexuais femininos.

À diferença do que aconteceu com o grupo de controle (ou seja, com os não homofóbicos), a maioria dos homofóbicos teve tumescência e ereção significativas diante dos vídeos de sexo entre homossexuais masculinos. Confirmando a interpretação da psicologia dinâmica: indivíduos homofóbicos demonstram excitação sexual diante de estímulos homossexuais.

Existe a possibilidade de que a excitação manifestada pelos homofóbicos seja efeito, por exemplo, de sua vontade de quebrar a cabeça dos protagonistas dos vídeos -existe, mas é remota (porque os 64 indivíduos da amostra passaram todos por um questionário que mede a agressividade, e ninguém se mostrou especialmente agressivo).

Para quem quiser conferir, a pesquisa, de Henry E. Adams e outros, foi publicada no "Journal of Abnormal Psychology" (1996, vol. 105, n.3), com o título "Is Homophobia Associated with Homosexual Arousal?" (a homofobia é associada à excitação homossexual?) e é acessível na internet: http://migre.me/656Z4.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Visita a Berlin

Numa sociedade livre, cada um é mais preocupado com a liberdade do vizinho do que com a sua própria


1) A Stasi (Staatssicherheit, polícia de Segurança de Estado da Alemanha Oriental) era terrível, absurda e inventiva (cf. o maravilhoso filme "A Vida dos Outros", de F. H. Von Donnersmarck). Em Berlim, professores de escola média eram encorajados a pedir que os alunos desenhassem sua família ao redor da mesa do jantar.

Esse dever de casa não servia para afirmar o valor da coesão vespertina do lar. De fato, pedia-se que o televisor ligado fizesse parte da cena representada: por mais que o desenho das crianças fosse primário, ele revelaria qual era o telejornal ao qual os pais assistiam.

Podia ser "Aktuelle Kamera" (câmera atual), instrumento de propaganda do regime comunista da Alemanha Oriental, ou "Tagesschau", (visão do dia), produzido para um consórcio de televisões públicas da Alemanha Ocidental. Ambos os programas eram de transmissão aberta, por antena, e não havia como saber quem assistia ao quê. Achou-se o jeito: transformar as criancinhas em espiões de seus próprios pais.

2) A melhor salada de batatas de Berlim talvez se encontre na cantina frequentada por técnicos e atores do Berliner Ensemble, o teatro onde Bertolt Brecht se instalou depois da Segunda Guerra.

A própria costeleta empanada e frita, a Wiener Schnitzel, não é nada má (uma Wiener Schnitzel é diferente de uma milanesa: a milanesa é sempre com osso e é fritada na manteiga, nunca na banha).

À força de frequentar a cantina do Berliner Ensemble, dei-me conta de que o teatro surge a poucas centenas de metros da estação de Friedrichstrasse -basta atravessar o rio Spree.

Na época do Muro, a estação de Friedrichstrasse era a única pela qual era possível transitar de trem entre Berlim Ocidental e Berlim Oriental -por lá, solicitando e obtendo (coisas distintas) as necessárias autorizações, comprando moeda oriental a um câmbio extorsivo, pagando o visto etc., alguém do Oeste podia entrar em Berlim Leste, de trem, e permanecer por um período muito limitado.

O edifício onde esse trânsito acontecia, e, por extensão, a estação de Friedrichstrasse inteira, era chamado de Tränenpalast, palácio das lágrimas, por causa do choro de parentes, amigos e amantes que lá se separavam, por causa da angustiante espera (horas, às vezes) de quem parecesse não ter todos os seus papéis em regra ou tivesse permanecido mais do que o permitido e também pelo choro dos cidadãos de Berlim Leste que, despedindo-se de seus queridos, lembravam-se de que eles viviam numa prisão.

Isso, Brecht, na época em que dirigia o Berliner Ensemble, não tinha como não ver. Certo, não se sabe o que ele realmente pensou sobre a revolta antistalinista de junho 1953 na Alemanha Oriental, embora sua posição oficial tenha sido a que o regime esperava. De qualquer modo, Brecht entrou no novo edifício do Berliner Ensemble, perto da estação de Friedrichstrasse, em 1954 e morreu dois anos mais tarde.

Mas a mulher dele, Helene Weigel, grande atriz, que dirigiu o Berliner Ensemble desde a morte do marido até a dela, em 1971, será que ela não via nada?

É fácil não ver nada. Também é fácil ver e se calar.

3) Berlim é uma cidade tocante pelo desejo manifesto de não tapar os olhos e de não esquecer. Fiquei, nestes dias, no apartamento de uma amiga querida, em Schöneberg, perto de Bayerischer Platz: pelas ruas, a cada poucos metros, há placas que lembram coisas que aconteceram, justamente, enquanto os vizinhos não viam, ou preferiam não ver.

15/4/37: "Formaturas proibidas para judeus"; 21/2/39: "Os judeus devem entregar joias e objetos de ouro, prata, platina e pérolas"; 4/7/40: "Os judeus só podem comprar alimentos em Berlim das 4 às 5 da tarde".

A existência dessas placas traduz um estado de espírito que faz de Berlim, hoje uma sociedade extraordinariamente livre, como só são livres as coletividades em que cada um é mais preocupado com a liberdade do vizinho do que com a sua própria.

E faz todo sentido: a liberdade do vizinho (sobretudo se ele for muito diferente de mim) é sempre a melhor garantia de minha própria liberdade.

Viveremos livres (mesmo) quando houver religiosos fundamentalistas desfilando para o direito de prostitutas trabalharem na esquina de sua igreja. Ou quando houver praticantes de SM ou de swing defendendo o direito de um templo abrir suas portas ao lado dos clubes nos quais eles se reúnem.

sábado, 29 de outubro de 2011

na TRIP

CONTARDO CALLIGARIS

O psicanalista explica por que a homossexualidade incomoda tanto?
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20.10.2011 | Texto por Lia Hama
Charles Gatewood/Topfoto/Keystock


De onde vem a homofobia? Como funciona o preconceito de quem acha que não o tem? Para responder a essas e outras perguntas, convocamos o psicanalista Contardo Calligaris - que sonha com um tempo em que ser homo, hétero ou bi não seja fundamental para definir nossas identidades

Contardo Calligaris é um homem acostumado a temas espinhosos. O psicanalista italiano de 63 anos, nascido em Milão e radicado em São Paulo, assina colunas toda quinta-feira na Folha de S.Paulo, e a trinca sexo, amor e relacionamentos é uma de suas constantes. Nesta edição de Trip dedicada à diversidade sexual, convidamos o terapeuta para refletir sobre por que, afinal, a homossexualidade provoca tanto incômodo. “Ninguém se incomoda com algo a não ser que isso seja objeto de um conflito interno. O homofóbico tem dificuldade em conter traços de homossexualidade que estão dentro dele”, responde Contardo. Segundo o psicanalista, as piadinhas sobre gays, tão comuns nas rodas de homens, celebram um laço que, no fundo, é homossexual. “Ninguém conta uma piada de veado para uma mulher, porque para ela é uma coisa totalmente ridícula. Ela vai virar e dizer: ‘Hein?’.”
Na entrevista a seguir, Contardo aponta para o enorme preconceito contra gays e lésbicas que ainda persiste no Brasil, fala sobre o papel das novelas na formação da opinião pública e defende a aprovação da lei que criminaliza a homofobia. “Essa garantia legal é crucial”, afirma. O psicanalista sai em defesa do “politicamente correto”, que, aqui, não funciona como nos EUA. “Lá, alguém como o [deputado federal Jair] Bolsonaro já estaria na cadeia há muito tempo”, acredita. Seu desejo, diz, é que a sociedade avance para um estágio em que se possa viver livremente de forma “junta e misturada”, ou seja, em uma realidade na qual ser heterossexual ou homossexual não seja tão importante para definir as nossas identidades.
Por que a homossexualidade incomoda tanto?
Vários psicanalistas e psicólogos já formularam sobre isso. Existe quase uma regra que quase nunca se desmente na prática. Quando as minhas reações são excessivas, deslocadas e difíceis de serem justificadas é porque emanam de um conflito interno. Por que afinal me incomodaria meu vizinho ser homossexual e beijar outro homem na boca? De forma simples, o que acontece é: “Estou com dificuldades de conter a minha própria homossexualidade, então acho mais fácil tentar reprimir a homossexualidade dos outros, ou seja, condená-la, persegui-la e reprimi-la, se possível até fisicamente porque isso me ajuda a conter a minha”. O problema de toda neurose é que a gente reprime muito mais do que precisa. A neurose multiplica a repressão. Se eu tenho uma vaga impressão de que eu poderia ter uma atração por um colega de classe, então acabo construindo uma série de comportamentos que me convençam de que não só não tenho atração nenhuma como eventualmente posso chamar esse colega de veado, criar um grupo de pessoas que compartilham daquela opinião e esperar ele sair da escola para enchê-lo de porrada.
O homofóbico necessariamente é um gay enrustido?
Eu não diria que é um gay enrustido. A homofobia responde a uma necessidade de reprimir uma parte da sexualidade, mas não significa necessariamente que essa pessoa seja homossexual. É alguém que está reagindo neuroticamente a traços de homossexualidade que estão em cada um. Isso já é suficiente para criar a homofobia.
A sociedade brasileira ainda é muito preconceituosa? O politicamente correto mascara isso?
O politicamente correto no Brasil é muito precário se comparado ao dos Estados Unidos. Aqui as pessoas se autorizam a dizer coisas que lá seriam impensáveis. O Bolsonaro já estaria na cadeia há muito tempo. Não tenho nada contra o politicamente correto, mesmo os seus excessos, porque não estou convencido de que as falas sejam inocentes. As piadas de discriminação deveriam ser proibidas. Deveria ser possível agir legalmente contra isso. Mas, sim, acho que a sociedade brasileira ainda é fortemente preconceituosa. O engraçado é que as formas mais triviais de preconceito se expressam em grupos que acabam sendo homossexuais. O clássico é a piada de veado, que faz todo mundo rir e ocorre numa roda de homens na padaria. Esses homens celebram rindo um laço entre eles que, no fundo, é homossexual. Os quatro skinheads que saem à noite para dar porrada na praça da República substituem o que seria uma homossexualidade neles batendo em quem eles supõem ser homossexual.
Você é a favor da lei que criminaliza a homofobia?
Sou totalmente a favor. Incitar o ódio e a exclusão não dá. A liberdade de expressão não justifica ir contra direitos fundamentais.
Como funciona o preconceito das pessoas que dizem não ter preconceito? Como reagem pais que se consideram esclarecidos quando descobrem que o filho é gay?
No caso dos pais, tem uma parte da reação que não é necessariamente homofóbica. Há um sentimento de perda e preocupação. Eles presumem que não terão netos, isso é uma perda. Eles têm uma apreciação realista da sociedade. Pensam: “Se o meu filho for gay, a vida dele será mais dura. Não poderá viver em qualquer lugar, vai ter que morar em grandes metrópoles. Quando for alugar um apartamento, talvez encontre um dono que não vai gostar de saber que ele vive com outro homem. Uma noite pode estar na praça da República e ser agredido. Quando for fazer a queixa na delegacia, pode ouvir que, se não fosse veado, isso não teria acontecido. Vai trabalhar numa multinacional e todo mundo vai ter a foto da mulher ou do marido em cima da mesa. Ter a foto de alguém do mesmo sexo provavelmente não vai contribuir para o progresso da carreira dele. Enfim, haverá uma série de limitações”. Pode ser que para nossos filhos e netos isso evolua, mas a realidade hoje é essa.
Esses pais se culpam? Perguntam: “Onde foi que eu errei?”
Hoje muito menos, o que prova que a homossexualidade está sendo menos considerada como patologia do que no passado. A homossexualidade é produzida por uma série de coisas complexas, algumas, aliás, não têm nada a ver com o tipo de criação que a pessoa recebeu. Responsabilizar os pais é algo grotesco. Agora, nos anos 70, sim. Eu atendi pais que se recusavam completamente a aceitar que os filhos eram gays. E tive pacientes homossexuais que tinham perdido o contato com os pais a partir do momento em que saíram do armário.
Como você vê a representação dos gays nas novelas?
A existência de gays como personagens positivos ou simplesmente aceitos tem um efeito importante. A novela das nove é a grande formadora de opinião no Brasil. Às vezes tem até uma capacidade de antecipar e transformar a visão sobre as coisas. Nem sempre o que aparece nas novelas é porque os brasileiros mudaram. Às vezes os brasileiros mudam porque apareceu na novela. É pequena a antecipação, mas ela existe. A novela pode se propor a escandalizar um pouco, permitir que as pessoas pensem um pouco além do que elas pensavam antes.
Homossexualidade é genética ou construída? Ou nem cabe mais essa questão?
É um debate aberto. O que todo mundo sabe hoje é que a genética não é o destino de ninguém. Mesmo que existisse um gene da homossexualidade, que, se existe, ainda não foi encontrado, ele precisaria ser posto em ação. Os nosso genes se realizam ou não a partir de uma série de questões relacionadas ao ambiente – geofísico e humano. Imaginar que exista uma separação rigorosa entre o genético e o construído é ingênuo. As coisas se misturam. O grande argumento a favor da tese de que é genético é que existem pesquisas com gêmeos que mostram que, em univitelinos, se um é homossexual a maioria dos irmãos também é. Algo em torno de 60%. Agora, isso é um argumento a favor da tese? Na verdade, é um argumento contra porque, se são univitelinos, deveria ser 100%, já que o patrimônio genético dos dois é rigorosamente igual. O caso é interessante porque mostra que a coisa é mais complexa.

"O gênero não é o mais importante para definir a sexualidade de alguém. A fantasia define muito mais"

Crianças criadas por casais homossexuais sofrem de dificuldades específicas? Seu desenvolvimento é diferente do de crianças de casais heterossexuais?Isso já está totalmente estabelecido. Há um campo de pesquisas importante nos EUA e em alguns países da Europa, onde já há um bom tempo os casais homossexuais foram autorizados a adotar crianças. Está absolutamente claro que as estatísticas, tanto do futuro da vida sexual dessas crianças como da patologia eventual delas, são absolutamente idênticas às das crianças criadas por casais héteros. Acho que isso não deveria nem mais ser tema de conversa. Porque os resultados estão lá, são conhecidos.
O preconceito é maior em relação a casais de homens que desejam adotar filhos?É possível. Até porque um dos grandes mitos da homofobia é que as pessoas, sobretudo as mais ignorantes, confundem homossexualidade com pedofilia. Então elas perguntam: “Mas como um casal de homossexuais masculinos vai adotar crianças? Eles vão estuprá-las”. E a pedofilia pode ser totalmente heterossexual.
Você já sentiu atração por homens? Teve vontade de beijar e transar com um homem?
Não, atração nesse sentido não... Mas cresci nos anos 60, uma época de amor livre. Tudo aquilo era bastante aberto e misturado.
Deu para experimentar bastante coisa?
Sim.
Você já questionou a sua orientação sexual?
Questionar a orientação sexual já é em si um problema porque, no fundo, eu não acredito muito nessa distinção entre homossexual e heterossexual como um divisor de águas. Do ponto de vista da personalidade de alguém, é um fato muito marginal. Muito mais do que se ela transa com pessoas do mesmo sexo ou não, o que define uma pessoa é a fantasia sexual com a qual ela funciona. Um homossexual cuja sexualidade é alimentada numa fantasia sadomasoquista tem muito mais a ver com um heterossexual com fantasia parecida do que com outro homossexual que, ao contrário, gosta de transar ternamente, dando beijinhos. O gênero não é o mais importante para definir a sexualidade de alguém. A fantasia define muito mais.
Há quem diga que no futuro as pessoas vão se relacionar independentemente do gênero. Seria tudo meio “junto e misturado”. Você concorda com isso?
Eu preferiria que fosse assim. A homossexualidade se tornou uma identidade necessária para tempos de luta. Nos últimos 30 ou 40 anos e certamente nas próximas décadas ainda terá que se afirmar para que haja uma paridade de direitos real e concreta. Mas, uma vez retirada essa necessidade de luta, não sei se a escolha de gênero do objeto sexual será o mais importante para definir a identidade de alguém... Sou homossexual ou sou heterossexual. Sim, e daí? Good for you. Não sei se verei esse novo mundo, mas espero que isto aconteça: que essa identidade se torne insignificante, pois não será tão necessária.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Teorias conspiratórias (e histéricas)


Uma conspiração, mesmo hostil, supõe um plano, uma ordem do mundo -e isso é sempre consolador


O protagonista do novo (e ótimo) romance de Umberto Eco, "O Cemitério de Praga" (Record), é um falsário do fim do século 19.

Você, emissário de sei lá qual governo ou grupo, quer fomentar o antissemitismo, provando que os judeus conceberam um plano diabólico de domínio do mundo? Devidamente contratado, o falsário criará "Os Protocolos dos Sábios de Sião", prova cabal de um complô judaico. O texto, uma vez "descoberto", alimentará o antissemitismo mundo afora, durante décadas.

Hoje, a tecnologia digital facilita o trabalho dos falsários, e, graças à internet, um boato se transforma rapidamente numa certeza coletiva.

Mas, de qualquer forma, nunca foi muito árduo inventar conspirações ocultas e espalhar desconfiança e delírios segundo os quais os misteriosos "eles" estariam tramando na sombra. O fato é que o público adora uma teoria conspiratória.
Ou melhor, sejamos sinceros: em regra, adoramos entender o mundo como fruto de conspirações que tentam nos enganar. Por que será?

Uma resposta está no livro (já clássico) de Elaine Showalter, "Histórias Histéricas" (Rocco, esgotado -tente www.estantevirtual.com.br).
Showalter lembra que, para negar a existência e o surgimento de desejos sexuais em seus corpos e almas, as histéricas começam por atribuir esses desejos aos outros ou, como se diz, por projetá-los nos outros. Logo, elas fogem dos ditos outros (que se tornaram zumbis portadores dos desejos delas) ou os acusam de seduções e estupros.

Moral da história, a histérica pode dizer: 1) eu não desejo nada, sou e me mantenho pura, pois o sexo não vem de mim, mas dos outros, que querem me sujar e 2) eu sei quem o outro "realmente" é, sei quais desejos vergonhosos ele esconde atrás de sua aparência bem-comportada. Em suma, 3) posso negar que tenho desejos, não preciso me responsabilizar nem me envergonhar por eles e, além disso, pretendo saber desvendar o lado obscuro de qualquer um.

Desvantagem: assim fazendo, eu me afasto irremediavelmente de meu próprio desejo.

E os homens, nessa história? Segundo Showalter, sobretudo hoje, a histeria dos homens aparece, justamente, na crença em teorias conspiratórias: as meninas acham que os outros querem seduzi-las e violentá-las, e os meninos acham que os outros querem enganá-los e manipulá-los.

(Antes de continuar, uma nota: pode ser que imaginar teorias conspiratórias e acreditar nelas seja uma forma de histeria masculina, mas isso não significa que as conspirações não existam. Ao contrário, como mostra o romance de Eco, sempre existe, no mínimo, a conspiração dos que constroem e espalham teorias conspiratórias.)

Mas voltemos à histeria dos homens segundo Showalter. Eis quatro vantagens para os que gostam de conspirações escusas.

1) Quem entende o mundo à força de "desvendar" conspirações só pode se perceber como uma exceção: ele acredita ser o único, ou quase, que enxerga as tramas nefastas dos outros -o único ou um dos poucos que "eles" não estão conseguindo enganar.

2) Com a ideia de que sempre há outros que tentam nos manipular e controlar, a gente se oferece uma volta à infância e à relação com os pais. Há um prazer nostálgico na suposição de que haja adultos os quais, num conluio entre si, decidem nosso destino, sem nos explicar nem de longe o que realmente acontece.

Há um prazer nostálgico na ideia (infantil e pré-adolescente) de estarmos nas mãos de outros todo- poderosos e de sermos os únicos que, heroicamente, resistem à sua sedução e desvendam suas mentiras.

3) Uma hipotética conspiração, por mais hostil que ela nos seja, permite-nos confiar numa ordem do mundo -boa ou ruim. Se há intenções escondidas, nada ou pouco acontece por acaso, o mundo obedece a um plano -da divina providência, do demônio ou dos conspiradores, tanto faz: de qualquer forma, a existência de um plano é consoladora.

4) Para as histéricas, atribuir o desejo sexual ao outro é um jeito de negar sua própria sexualidade.

Para os homens não é muito diferente: a invenção de uma conspiração maléfica lhes permite ignorar seus próprios desejos "políticos" sombrios, os que eles preferem esconder de si mesmos.

Afinal, o conspirador, ao qual atribuo a vontade de me enganar e manipular, é quase sempre uma projeção, ou seja, é minha própria criação, à imagem e semelhança de mim.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Fundamentos da moral




Você quer uma moral laica, inspirada pela razão? Pois bem, seus fundamentos serão frágeis (e engraçados)





Num belo dia de 1760 ou por aí, Denis Diderot recebe a notícia de que Jean-Jacques Rousseau desistiu de escrever o verbete "Moral" da grande Enciclopédia, da qual Diderot é um dos editores-chefes. A impressão do décimo volume da obra está parada na espera do texto. A solução é Diderot escrevê-lo, na hora, ao longo de uma tarde durante a qual várias circunstâncias colocam à prova, justamente, a moralidade do filósofo.

Essa é a situação apresentada na peça "O Libertino", de Eric-Emmanuel Schmitt, em cartaz até 27 de novembro no teatro Cultura Artística Itaim, em São Paulo. A peça foi adaptada e é dirigida por Jô Soares, com o brio alegre de uma farsa de Feydeau ou de uma comédia de Goldoni, e com um elenco particularmente feliz (a começar por Cassio Scapin, que é Diderot). Um provérbio latim diz que, rindo, a comédia critica os costumes. "O Libertino" nos leva não só a criticar nossos costumes, mas a examinar os frágeis fundamentos de nossas normas morais. Vamos com calma.


O evento apresentado na peça é uma ficção. O verbete "Moral", como quase um terço da Enciclopédia de Diderot e D'Alembert, foi escrito pelo cavalheiro Jaucourt, que redigiu sozinho mais de 17.000 verbetes, até merecer o apelido de "escravo da Enciclopédia". O cavalheiro era culto e sem brilho: o verbete "Moral" é um texto chato, com uma ou outra afirmação ousada -por exemplo, Jaucourt escreve que a moral é um investimento mais seguro do que a fé, porque um ateu virtuoso pode se salvar, enquanto não há salvação para um crente vicioso. Mas o que é virtuoso e o que é vicioso?


É fácil responder, se acreditarmos numa revelação divina. Mais complicado é fundar uma moral laica, inspirada pela razão. Jaucourt sugere apostar no número, notando que os povos civilizados concordam quanto aos pontos essenciais da moral, ao passo que podem discordar totalmente em matéria de fé religiosa. Talvez o aprimoramento mais recente do argumento de Jaucourt seja o de John Rawls. Em "Justiça como Equidade" (Martins Ed.), Rawls propõe que a gente aceite como normas sociais morais aquelas que aprovaríamos por unanimidade, caso todos nos esquecêssemos completamente de nossa etnia, de nosso status, de nosso gênero e de nossa concepção do bem. Essa amnésia fundaria nossa moral, pois, graças a ela, seriam aprovadas só as normas que servissem ao bem de todos. Laborioso, hein? Seja como for, as sugestões de Jaucourt e de Rawls valem sobretudo para a moral pública. Mas como se fundamenta a moral privada, que nos orienta na escolha do bem e do mal no dia a dia? Essa é a questão com a qual "O Libertino" nos faz rir e pensar. Na peça, Diderot está hospedado na casa do barão d'Holbach, por cuja filha (ótima Luiza Lemmertz) ele é seriamente tentado. D'Holbach era ele mesmo um contribuidor da Enciclopédia.


No seu "Sistema da Natureza", o barão avançava a ideia de que a virtude moral deveria estar ao serviço de nossa felicidade. Na peça, Diderot, escrevendo seu verbete, tenta adotar esse argumento, que d'Holbach desenvolvera até ao paradoxo: se um homem for feliz no vício (e não na virtude), de repente, o vício seria legitimamente sua moral. Problema.


O barão d'Holbach era ateu e materialista. Questão: se o homem é uma máquina sem alma, ele não tem liberdade de escolha, e, se ele não é livre, a própria ideia de moral perde seu sentido. Mais um problema.


Enfim, se você puder, assista à peça e se divirta. Se não puder, divirta-se imaginando como você escreveria o verbete "Moral" de sua enciclopédia pessoal -e lembre-se: você não tem o conforto de acreditar numa revelação divina e nem está convencido de que saibamos resistir livremente a nossos impulsos e desejos. 


Lembre-se também de escrever seu verbete numa tarde em que, como Diderot, 1) você é tentado pelo adultério, embora ame sua mulher, 2) você gostaria de seduzir a filha de um amigo, a qual tem a idade de sua filha, 3) você professa opiniões "avançadas", mas não quer que elas valham no caso de sua filha, 4) você é seduzido pelo charme de uma criminosa, a ponto de se perguntar se, no fundo, os valores estéticos não deveriam ser mais importantes que os valores morais (não se escandalize: há românticos e modernos para pensar exatamente isso). 


Mais uma coisa: se você for mulher ou tiver preferências diferentes das de Diderot, apenas mude o gênero no parágrafo acima. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

As fãs de Justin Bieber


Bieber é o "date" ideal para a idade em que "frisson" do sexo é tentar descobrir quem já beijou e quem não







Percorri autobiografia e biografia de Justin Bieber. Também brinquei com dois livros de jogos para as fãs do cantor testarem seus conhecimentos.

Continuo não fazendo a menor ideia de quem seja realmente Justin Bieber, mas constato que sua imagem é uma caricatura bom-mocista: o "date" com o qual os pais sonham para as primeiras saídas de suas filhas. Por isso mesmo, aliás, é curioso que ele suscite paixões avassaladoras entre as meninas.
Uma amiga, com quem comentei a febre Bieber, observou que, quando éramos adolescentes, os pais nunca gostavam de nossos ídolos do rock e do pop: aos olhos deles, eram influências que nos levariam à perdição.


Como eles aprovariam Elvis, com aquele rebolado que já era um ato sexual? E todos os que eram drogados, rebeldes, andarilhos do amor livre? E os Stones, juntando a lascívia de Elvis, a rebeldia e as drogas? 


E o figurino de Gene Simmons, do Kiss, hein? Entre os Beatles, os pais desconfiavam de John, George e Ringo, enquanto Paul era mais palatável. Engraçado, Paul era justamente aquele que encantava as meninas mais jovens -as que hoje adoram Justin Bieber. Ao longo dos anos, os pais não mudaram: eles continuam preferindo que as filhas gostem mais do modelo Justin que do Elvis. Tampouco mudaram os adolescentes propriamente ditos, que, hoje, acham Justin Bieber insosso, exatamente como nós o teríamos achado, quando adolescentes. Mas algo mudou, sim: chegou uma nova onda de consumidores (e sobretudo de consumidoras) de pop, mais jovens do que no passado.


A base dos fãs de Justin Bieber é composta de meninas entre 10 e 13 anos (cronológicos ou mentais), ou seja, meninas na fase na qual, aos olhos dos outros e delas mesmas, o corpo adquire novas formas e significações, que elas reconhecem como eróticas sem saber direito o que isso quer dizer (e ainda menos o que dá para fazer com isso). 


As meninas dessa idade são invadidas por sensações, fantasias e pensamentos que são enigmáticos para elas mesmas, mas cuja premência as leva a imaginar que elas (e só elas) conhecem na pele os frêmitos do amor e do desejo.


As meninas de nove anos podem achar Justin um pouco bobo. As de 14-15, também. Mas, para as que estão entre esses dois extremos, Justin é milagroso: ele responde ao confuso despertar de sentimentos de suas fãs, permitindo-lhes acreditar em sua maturidade amorosa sem que elas sejam ameaçadas pela brutalidade inquietante do amor e do erotismo adultos. Ele é o namorado ideal para a idade em que o "frisson" do sexo é discutir no MSN quem é ainda BV e quem não é mais (para quem não sabe: BV é boca virgem, que nunca beijou). Como Bieber consegue essa façanha?


Justin Bieber é para crianças. José Simão, na sua coluna naFolha, aproximou o cantor do Toddynho e do chocalho (ambos, em geral, apaziguam as crianças). O mercado confirma: os livros sobre Bieber estão na seção infantil das livrarias.


Agora, ele não pode ser completamente criança: sua imagem deve acarretar uma ponta de transgressão, em dose mínima, sem assustar, mas suficiente para cada menina acreditar que, por amar Justin Bieber, ela está, ousadamente, além dos adultos. 


No Google, procure fotografias de Justin Bieber e de Elvis de óculos de sol. O olhar escondido de Elvis dá arrepios, enquanto, digamos assim, os óculos de Bieber são parecidos com as novas sensações de suas fãs, mais obscuros do que escuros.


Enfim, graças a seu rosto infantil (redondo e bochechudo) e graças a uma produção cuidadosa (o incrível corte de seu cabelo), Justin é quase assexuado. As meninas podem sonhar com ele sem que nada as leve a fazer a preocupante descoberta de que elas não sabem quase nada do amor -e do sexo, menos ainda.


Só para sacanear, declarei a uma fã de Justin Bieber que eu acabava de ler, numa biografia do cantor, que, de fato, ele se chama Justino ou Giustino Biberoni e nasceu em Pindamonhangaba. Ela não achou graça. É que o ídolo deve ser familiar o suficiente para não assustar, mas deve também ser outro, bem estrangeiro. 


Afinal, é a ele que a menina pede para ser levada embora, longe daqui, longe deste lugar ao qual ela não pertence e onde ela é circundada por adultos que não entendem nada, porque, diferentes dela, eles não sabem nada do sexo, do amor e da paixão. 

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O sentido faz falta?




A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto


É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido -muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Aproveitar a vida e suas dores




Meu ideal não é a felicidade, mas a variedade e a intensidade das experiências, sejam alegres ou penosas


Com frequência, em conversas e entrevistas, alguém me pergunta o que penso da felicidade -obviamente, na esperança de que eu espinafre esse "ideal dominante" de nossos tempos.
Na verdade, não sei se a felicidade é mesmo um ideal dominante.


Claro, o casal e a família felizes são estereótipos triviais: "Com esta margarina ou com este carro sua vida se abrirá num sorriso de 'folder' ou de comercial". Mas ninguém leva isso a sério, nem os que declaram que tudo o que querem é ser felizes.


Se alguém levasse a busca da felicidade a sério, ele se drogaria, e não com remédios ou substâncias de efeito incerto e insuficiente: só crack ou heroína -tiros certeiros.


O que resta é a felicidade como tentação, como uma vontade de cair fora, compreensível quando a vida nos castiga muito. Fora isso, minha aspiração dominante não é a de ser feliz: quero viver o que der e vier, comédias, tangos e também tragédias -quanto mais plenamente possível, sem covardia.


Meu ideal de vida é a variedade e a intensidade das experiências, sejam elas alegres ou penosas.


Há indivíduos que pedem para ser medicados preventivamente, de maneira a evitar a dor de um luto iminente. É o contrário do que eu valorizo; penso como Roland Barthes: "Luto. Impossibilidade -indignidade- de confiar a uma droga -sob pretexto de depressão- o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma 'possessão' -uma alienação (algo que nos torna estrangeiros)- enquanto ele é um bem essencial, íntimo...".


O trecho está na pág. 159 de "Diário de Luto", que acaba de ser publicado em português (WMF Martins Fontes, excelente tradução de Leyla Perrone-Moisés).


São as fichas nas quais Barthes registrou sua dor entre outubro de 1977 (a morte da mãe) e setembro de 1979 (poucos meses antes de ele mesmo sofrer um atropelamento cujas consequências seriam fatais).


Logo nestes dias, um amigo meu, Paulo V., está perdendo seu pai. Ele me escreve, consternado, que "nada sobrará" do pai: uma cadeira vazia, gavetas de roupas e papéis e que mais? A lembrança se perderá com a vida do filho, que não lhe deu netos e de quem também nada sobrará. A resposta que encontro, para meu amigo, é uma questão: por que uma vida não se bastaria, mesmo que não sobre nada e, a médio prazo, ninguém se lembre?


Barthes se pergunta se ele estaria escrevendo "para combater a dilaceração do esquecimento na medida que ele se anuncia como absoluto. O -em breve- 'nenhum rastro', em parte alguma, em ninguém" (pág. 110). Mas suas anotações não são um monumento fúnebre para a mãe.


Para Barthes, escrever é o jeito de abraçar a experiência, de vivê-la plenamente. Ele se revolta contra as distrações e as explicações consolatórias dos amigos; recusa as teorias que lhe prometeriam um bom decurso de seu luto ("Não dizer luto. É psicanalítico demais. Não estou de luto. Estou triste") e foge, embora a contragosto, das crenças que apaziguariam a dor ("que barbárie não acreditar nas almas -na imortalidade das almas! Que verdade imbecil é o materialismo!").


Enfim, Barthes chega quase a recear que o luto acabe, como se, além da mãe adorada, ele temesse perder também, aos poucos, sua experiência dessa perda.


Meses depois da morte dos meus pais, havia momentos em que eu lamentava que meus afetos e pensamentos voltassem "ao normal", como se minha vida fosse mais pobre sem aquela dor. 

E havia outros em que, de repente, um detalhe me fisgava, até às lágrimas. Esses momentos eu acolhia com alegria.

Como Barthes anota, a dor do luto pode deixar de ser o afeto dominante, mas ela sempre volta, com a mesma força: "O luto não se desgasta porque não é contínuo" (pág. 92).

Falando em "detalhes" que fisgam, as anotações de Barthes reabriram a ferida de quando ele morreu, mais de 30 anos atrás.

De que sinto mais falta? Do timbre de sua voz e de duas coisas que, de uma certa forma, faziam parte do timbre de sua voz.

Sinto falta de seu gosto pela inconsistência das ideias e dos saberes ("proporcionalmente à consistência desse sistema, sinto-me excluído dele", pág. 73).

E sinto falta de sua coragem para falar a partir da singularidade de sua experiência, sem a menor pretensão de erigi-la numa generalidade que valha para os outros.

Em suma, sinto falta dele, mas não é só que eu sinto falta dele, é que ele, ainda hoje, faz falta.