quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O comandante McCain



O líder ideal de hoje seria um aviador caído que provou sua fibra em anos de detenção?

NOS EUA , a um mês e meio das eleições presidenciais, não faltam os indecisos. Os dois candidatos estão empatados, mas, por exemplo, uma maioria de eleitores parece pensar que Barack Obama, o democrata, lidaria com as dificuldades econômicas melhor do que John McCain, o republicano. Ou seja, há eleitores de McCain que, se dessem prioridade à economia, escolheriam Obama. Não é de estranhar: McCain sempre se disse pouco versado em economia e, durante a crise financeira da semana passada, produziu uma pirotecnia de declarações inflamadas e incoerentes.
Mais um exemplo. Nos EUA, o presidente é comandante supremo das Forças Armadas. Uma maioria de eleitores pensa que McCain seria um melhor comandante do que Obama. Ou seja, há eleitores de Obama que, se dessem prioridade às guerras em curso, escolheriam McCain.

Também, à primeira vista, não é de estranhar: McCain pertence a uma dinastia de militares, formou-se na academia naval de Annapolis e, assim que começou a Guerra do Vietnã, foi voluntário, servindo como piloto baseado num porta-aviões. Recebeu várias condecorações, entre elas a Purple Heart (coração purpúreo - reservada aos gravemente feridos em combate). Que mais os americanos poderiam querer no meio de uma guerra?

Pois é, a coisa é menos óbvia do que parece. Que o presidente comande as Forças Armadas não implica que ele deva ser um militar. Com raras exceções (Washington depois da Guerra de Independência, Eisenhower depois da Segunda Guerra Mundial), os presidentes norte-americanos não foram escolhidos por serem grandes comandantes. Abraham Lincoln, que liderou o Norte e salvou a unidade do país durante a Guerra de Secessão, não tinha experiência militar.

Franklin D. Roosevelt, vitorioso na Segunda Guerra Mundial, embora tivesse sido secretário-assistente da Marinha na presidência de Woodrow Wilson, nunca fora militar. E entende-se que as qualidades de um bom soldado não sejam as mesmas esperadas num bom presidente e comandante supremo: a decisão de entrar em guerra e a conduta de um conflito pedem determinação, coragem etc., mas, antes disso, pedem ponderação.

Então, qual pode ser, para os eleitores dos EUA, o apelo de McCain como comandante supremo? Consideremos seu currículo militar, que não é tanto uma experiência de liderança quanto uma longa provação que testou sua resiliência.

Na 23ª missão de McCain, em 67, seu avião foi abatido sobre Hanói. Na queda, ele quebrou os dois braços e uma perna. Os norte-vietnamitas descobriram que ele era filho do almirante que comandava as operações do Pacífico e propuseram sua liberação antecipada. Torturado, mantido em isolamento, McCain nunca aceitou a proposta e decidiu ficar preso, com os outros, até o armistício final, em 1973.

A história de McCain comanda respeito. Mas por que, para muitos americanos, ela o qualificaria, LOGO HOJE, como comandante supremo? Por que o comandante ideal de hoje não é um herói vitorioso, mas um aviador caído que provou sua fibra em anos de detenção?

Pois é, a Guerra do Iraque está longe de fazer a unanimidade; aos olhos de uma boa parte da população americana, os erros (ou as invenções) que motivaram a guerra, assim como os métodos de detenção e tortura usados em Guantánamo e Abu Ghraib, corroem a autoridade moral dos EUA. Embora as baixas sejam muito menores, a impopularidade da Guerra do Iraque é parecida com a da Guerra do Vietnã no fim dos anos 1960 e começo dos 1970. E, como no caso do Vietnã, paira uma incerteza quanto ao desfecho do conflito.

Ora, McCain não precisou estar numa guerra justa nem numa guerra vitoriosa: conseguiu ser herói numa guerra envergonhada, como foi a do Vietnã para a metade da população americana da época e como está sendo a do Iraque. Sua figura resgata a possibilidade de manter retidão e autoridade moral mesmo numa derrota e num conflito duvidoso.

Certo, entres os que preferem McCain, há muitos para quem se trata apenas de escolher um militar, que atire sem piscar. Mas também deve haver muitos para quem (talvez inconscientemente) McCain é o símbolo da honra que pode ser salva nas piores condições.
Isso sem contar os que elegeriam McCain para lavar a culpa coletiva, como um desagravo, um jeito de compensar os soldados que, por duas vezes, tiveram que combater sem que soubessem bem por quê.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

"Ensaio sobre a Cegueira"



Somos capazes de tudo: o apocalipse nos testa e nos revela a nós mesmos e ao mundo

GOSTO DOS romances e dos filmes apocalípticos, ou seja, das histórias em que algum tipo de fim do mundo (guerra nuclear, invasão extraterrestre, epidemia etc.) nos força a encarar uma versão laica e íntima do Juízo Final. Nessa versão, Deus não avalia nosso passado, mas, enquanto o mundo desaba, nosso desempenho mostra quem somos realmente. No desamparo, quando o tecido social se esfarela e as normas perdem força e valor, conhecemos, enfim, nosso estofo "verdadeiro". Somos capazes do melhor ou do pior: o apocalipse nos testa e nos revela.

O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido "O Último Homem" (ed. Landmark), de Mary Shelley, que é também a autora de "Frankenstein". De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada no bricabraque de um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre - para o bem ou para o mal.

No romance de Mary Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como na "Peste", de Camus, e como no "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.

A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria, sutil e forte. Por exemplo, o filme banha numa luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como foi dito e repetido) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes - até que as sombras e os brilhos sejam revelados na "hora do vamos ver", que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.

Depois de assistir ao filme, li algumas das críticas que ele recebeu em Cannes. A nota de Manohla Dargis, no "New York Times" de 16 de maio, por exemplo, é paradoxal: Dargis acusa o filme de ser uma Alegoria com "A" maiúscula, em que, aos personagens, faltaria espessura. Certo, os personagens de "Ensaio sobre a Cegueira" quase não têm história prévia, assim como a cidade em que os fatos acontecem (uma mistura de São Paulo com Toronto) é uma cidade moderna qualquer, cujas particularidades não contam. Essa, justamente, é a beleza do gênero: o surgimento quase abstrato de uma situação extrema, em que se trata de escolher e agir a partir de nada. O passado, o lugar não contam: os personagens são definidos por suas escolhas aqui e agora.

Dargis também se queixa da oposição que lhe parece excessiva, no filme, entre "os bons" e "os ruins", ou seja, entre os que, na cegueira, descobrem e aprimoram sua humanidade e os que a perdem. É uma queixa curiosa, pois, em quase todas as narrativas apocalípticas, a contraposição de retidão e bestialidade é o sinal de uma liberdade quase absoluta, angustiante: o fim do mundo é um bívio sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança. A oposição caricata dos bons e dos ruins expressa a incerteza do espectador, do leitor e do autor: "Você, se, por uma misteriosa epidemia, o mundo ficar cego, se o reino da lei acabar e começar a idade da luta pela sobrevivência, de que lado estará? Do lado dos que inventarão novas formas de abusos ou dos que descobrirão novas formas de respeito e de vida comum? Uma vez perdida a visão, o que você enxergará no seu vizinho: mais uma mulher para estuprar e um otário para explorar ou um irmão, perdido que nem você?"

No "Ensaio sobre a Cegueira" (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.

São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua "honra". São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).

Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

"Linha de Passe"



A invisibilidade é de duas mãos: insufilme nos vidros dos carros e nas viseiras dos capacetes

DESDE QUE assisti a "Linha de Passe", de Walter Salles e Daniela Thomas, os personagens do filme crescem na minha memória e parecem cada vez mais familiares, mais próximos de mim.
É curioso, pois eles habitam um mundo distante do meu. "Linha de Passe" conta a história de quatro irmãos (de pais diferentes), que vivem com a mãe (que espera um quinto filho), na Cidade Líder, zona leste de São Paulo. A mãe é empregada doméstica (a maravilhosa Sandra Corveloni, prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes). Um dos irmãos é frentista e evangélico. Outro, de peneira em peneira, sonha em se tornar jogador de futebol. Outro é motoboy e já tem um filho com uma menina que ele visita de vez em quando. O último seria estudante se não estivesse sempre viajando de ônibus, à procura do pai, que é ou foi motorista de uma viação paulistana.

Conhecendo esse resumo (e sem ter visto o filme), um colega, que tem um certo preconceito contra o cinema brasileiro, perguntou: "Mas por que nunca fazem um filme sobre pessoas que nem a gente? Motoboy, frentista, empregada doméstica, futebol como redenção: como é que vou reconhecer minha vida nesses estereótipos da pobreza nacional?".

Pois é, este é o milagre de "Linha de Passe": o filme é sobre "pessoas que nem a gente" porque nunca é "pitoresco". Como assim?

O "pitoresco" é uma prática estética que começou no século 18, na Inglaterra. Consistia em transformar paisagens potencialmente sinistras (por exemplo, as ruínas, caras aos primeiros românticos) em pinturas "graciosas", que pudessem ser penduradas em cima da lareira. Logo, o mesmo aconteceu com miseráveis e mendigos: inventou-se um jeito de pintá-los de tal maneira que, enternecedores ou monstruosos, mas sempre "recreativos", pudessem adornar as habitações de nobres e burgueses. Esses novos enfeites eram um bálsamo para a consciência: "Sou do bem, tenho um mendigo na sala". Para obter o efeito pitoresco, não se trata de amenizar a diferença do sujeito representado. Ao contrário, é melhor exagerar essa diferença, de forma que a miséria, a deformidade, a abjeção, por parecerem tão distantes, sejam "divertidas", e não tocantes: o grotesco é um tipo de pitoresco.

O pitoresco, em suma, aproxima falsamente, garantindo que o outro pintado permanecerá outro: uma vinheta caricata. O debate sobre a "estetização" da miséria no cinema brasileiro é, aliás, a continuação da antiga discussão contra ou a favor do "pitoresco".

Voltemos a "Linha de Passe". Suas personagens vivem numa São Paulo especialmente sóbria, muito diferente daquelas belezas naturais do Brasil que, vistas da janela afavelada ou do casebre, podem tornar pitoresca qualquer miséria.

O roteiro escolhe uma família pobre e sem pai, mas não indigente nem desunida. Também por isso, talvez, nos altos e baixos, nas brigas, nas alegrias, nos fracassos e nas incertezas morais dos protagonistas, a pobreza seja, por assim dizer, acidental: suas vidas nos tocam não pela condição social, mas por serem vidas de nossos semelhantes.

Chama-se linha de passe uma roda em que os jogadores devem passar a bola entre si sem que ela toque no chão. É uma versão do "ninguém se salva sozinho": se a peteca cai, todos perdem -é preciso jogar não contra, mas com e para os outros. E saí do filme pensando que a linha de passe não era só entre os irmãos da Cidade Líder. Há uma linha de passe que nos inclui.

Originalmente, o filme seria o primeiro de dois, filmados na seqüência. No segundo, as personagens centrais seriam as figuras de classe média que atravessam marginalmente, por um instante, a vida dos protagonistas do primeiro longa. De fato, o conjunto de filmes teria sido um marco.

Numa cena de "Linha de Passe", um dos irmãos, que desliza para o crime, acaba seqüestrando um motorista em cujo carro ele trombou ao fugir da polícia. Na cena, tensa e dramática, o jovem pede à sua vítima que olhe para ele, para ser visto. Como observou, num e-mail, um leitor e espectador do filme, Tomas Rosenfeld, o jovem tampouco percebe sua vítima (ele agride, aliás, quem o ajudou a se levantar).

O motoqueiro que se apresta a quebrar o vidro de um carro enxerga apenas uma bolsa, não o motorista -assim como o motorista no farol, ao ver surgir uma moto de seu lado, enxerga apenas a ameaça. A invisibilidade é uma via de duas mãos: insulfilm nos vidros dos carros e nas viseiras dos capacetes.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ciúme



Pesquisa oferece duas sugestões para que uma relação não seja envenenada pelo ciúme

A CADA semana, ouço a queixa de alguém que encontra, no celular de seu parceiro ou parceira, a "prova" de uma traição: o ciúme vinga com a tecnologia, mas entendê-lo continua difícil.

Para os darwinistas, a evolução favoreceu os ciumentos: sobrevive a linhagem dos que evitam sustentar rebentos ilegítimos, poupando assim seus recursos. Problema: o argumento evolucionista vale só para o ciúme masculino (mesmo no pleistoceno, os homens que pulavam a cerca não voltavam grávidos para casa), e, restaria explicar, o ciúme feminino. Várias pesquisas mostram que todos, homens e mulheres, são mais sensíveis à infidelidade emocional (que não engravida ninguém) do que à infidelidade sexual.

Os cognitivistas, em geral, entendem o ciúme como uma reação contra algo que ameaça a relação e fere o amor-próprio do "traído". Faz sentido, mas o ciúme (sobretudo patológico) nem sempre é reativo: às vezes, o ciumento inventa situações para alimentar seu ciúme.

Os terapeutas psicodinâmicos notam que o ciumento é mais preocupado consigo e com seus rivais do que com o objeto de seu amor. Eles reconhecem, grosso modo, dois tipos de ciúme, que ambos seriam restos neuróticos da infância:

1) Há o ciúme possessivo de quem não deixa a primeira infância, continua querendo ser um único corpo, junto com a mãe, e só enxerga ameaças - no pai, nos irmãos etc. Nesse estilo, uma tia minha passou a vida recluída pelo marido: não saía de casa, nenhum médico podia examiná-la. Por essa razão, eu não a conheci, mas minha avó dizia que o homem era louco e que ela era louca também, por aceitar.

2) Há o ciúme inseguro de quem nunca se sente "tranqüilamente" amável e está sempre revivendo as emoções da pré-puberdade, quando descobrimos que a mãe tem interesses diferentes da gente (experiência dolorosa, mas também prazerosa, pois, traindo-nos, ela nos liberta para desejarmos outras coisas).

Então? Pois é, acabo de ler uma pesquisa, de Visser e McDonald, no "British Journal of Social Psychology" (vol. 46, nº 2, junho 2007): "Swings and Roundabouts: Management of Jealousy in Heterosexual Swinging Couples" (suingue e carrosséis: administração do ciúme em casais heterossexuais que praticam o suingue).

Questão dos pesquisadores: há casais que praticam regularmente o suingue, a troca sexual de parceiros; como eles administram o ciúme?

Resultado previsível: os casais que praticam suingue transformam seu ciúme em excitação sexual. Essa transformação é mais fácil para o homem; na mulher, a visão do parceiro nos braços de outra produz facilmente insegurança. Seja como for, a transformação do ciúme em excitação sexual é possível à condição que seja garantida a confiança absoluta de ambos na coesão do casal. Garantida como?

1) A primazia do envolvimento afetivo sobre o sexual é permitida pela sinceridade. O parceiro é sempre o primeiro a saber: essa prioridade garante a superioridade do laço afetivo do casal sobre o laço sexual com outros. De fato, na infidelidade, o que mais causa aflição é que, por exemplo, o amante sabe do marido, e o marido não sabe do amante (diga para um amante que sua performance é comentada na mesa do casal, e ele, provavelmente, sumirá para sempre).

2) O próprio suingue, como fantasia constantemente elaborada pelos dois, consolida o laço do casal, torna-o muito mais importante do que os parceiros ocasionais de cada um.

Será que, dessas constatações, há como deduzir uma receita contra o ciúme ordinário?

Parece que sim: à condição de não precisar repetir os restos da infância mencionados antes, deve ser possível construir uma relação em que o ciúme seja tolerável. Para isso, segundo a pesquisa, é bom: 1) que as "infidelidades" (todas, não só as sexuais) sejam prenunciadas, ou seja, que elas existam primeiro na conversa do casal; 2) que os membros do casal compartilhem uma aventura, um sonho (voar de asa delta, aprender sânscrito ou praticar suingue, tanto faz).

Mais duas observações. A maior traição é a traição do próprio desejo da gente; portanto, pedir ao outro para não nos trair é menos importante do que lhe pedir para não trair a si mesmo. Até porque um parceiro ou uma parceira que traísse seu próprio desejo para ficar com a gente acabaria, a médio prazo, odiando-nos por ter-se traído.

Enfim, uma infidelidade não é razão para acabar com uma relação. No máximo, é razão para perguntar-se se a relação vale a pena.