segunda-feira, 25 de agosto de 1997

Nostalgia de quê?

No Festival de 1959, Joan Baez tinha apenas 18 anos. Seu nome nem constava no programa. Foi convidada a cantar duas músicas por Bob Gibson: o público e os críticos presentes se apaixonaram.

Não faltavam, no folk americano, musas com voz de soprano e longos cabelos, mas Baez tinha o espírito da época que espreitava. Identificou-se com o movimento dos direitos civis, marchou com Martin Luther King, lutou contra a Guerra do Vietnã. Tornou-se o ícone de uma geração.
A voz de Joan Baez _hoje com 56 anos_ continua a mesma. Mas o clima mudou.

Em uma entrevista ao jornal "Boston Globe" no começo do mês, comentando sobre sua recente turnê na Romênia, ela dizia: "Não canto mais 'We Shall Overcome' nos EUA. Aqui é uma coisa puramente nostálgica. "

A primeira vez que vi Joan Baez foi 28 anos atrás, acredito, no Madison Square Garden. Na época não havia telões e eu só conseguira comprar o ingresso mais barato. Baez, miúda, magrinha, era uma mancha de cabelos pretos de onde emanava uma voz extraordinária, forte, redonda e cheia.

Dava vontade de cantar junto e de pegar os vizinhos pelas mãos. Acabou assim mesmo, com "We Shall Overcome" cantado por todos, de mãos dadas e levantadas.

Baez jogava duro. Naquela noite, falou de seu marido, David, que estava em apuros por ter recusado ir para o Vietnã, instigou os presentes a queimar seus documentos militares, cantou uma música dos manifestantes dos direitos civis em Birmingham (Alabama) e dedicou a Ronald Reagan _então governadora da Califórnia_ uma música que começava: "É ele, o homem que entrega o leite cada manhã, é o chefe da Ku Klux Klan...".

Mas ela cantava "bonito". Era a face de nosso descontentamento que até nossos pais deviam gostar: melódica. Por mais que a mensagem fosse rebelde, ela era radiosa, nunca sinistra. Tudo era, ou parecia, tão claro. A gente era contra todas as guerras.

Contra o racismo, a racionalidade tecnológica, a divisão do trabalho, a alienação. Contra a repressão sexual e o machismo. Pela mágica de sua voz, mesmo nossa raiva era um bom sentimento.

Por isso, aliás, ela encarnou o espírito do folk: melodioso e, por mais sofrimento que expresse, acaricia a alma com um pano de fundo amoroso. Não foi estranho revê-la agora, como matriarca tranquila e segura de uma geração.

Cantou, com Dar Williams, "You're Aging Well" (você está envelhecendo bem) e produziu no público um riso estranho: os baby-boomers deram certo.

Com a música de Joan Baez, tive um outro encontro, diferente. Bem na época em que cantei "We Shall Overcome" no Med em Nova York, eu morava em Roma.

Tinha um amigo amigo californiano, Joshua Harding, aspirante a ator, rebelde e perdido rebento de uma família de artistas. Josh morreu aos 20 anos, durante uma indiada em Big Sur, Califórnia.

No meio da noite, carregado de pílulas de Nembutal corrigidas por simpamina e LSD, foi surfar. Encontraram seu corpo no dia seguinte, afogado na praia. Ele deslizara para a outra face dos anos 60, a face Janis Joplin, a face que perdeu o contato e saiu pela tangente.

O ano passado viajei pela Califórnia de carro. Dirigindo-me a San Francisco pela Rota 101, parei em Big Sur, onde Josh tinha surfado suas últimas ondas.

Subi de carro até em cima do promontório, abri vidros e teto e, a pleno volume, deixei tocar, para ele e para mim, "Amazing Grace", na versão _naturalmente_ de Joan Baez. Parecia-me a música certa para uma despedida que devolvesse sentido à sua morte e apaziguasse a memória.
Os mortos e feridos dos anos 60 não se contaram nos campos de batalha. Afinal, as vítimas de enfrentamentos (para ficar na América: os estudantes da Kent University, os manifestantes de Birmingham, o próprio Martin Luther King) não foram os únicos nem os principais heróis.
Os heróis dessa revolução foram aqueles que se perderam no caminho, aqueles chorados por Allen Ginsberg em seu "Howl": "Vi os melhores cérebros de minha geração destruídos pela loucura,... Arrastando-se pelas ruas negras na procura de uma agulha raivosa..."

Em Newport-97, escutando Baez, olho ao redor de mim e me espelho: há jovens, sim, mas a idade média é acima dos 30. O ambiente, apesar da multidão _10 mil no último dia e 7.000 no segundo_ é familiar, tranquilo.

Somos sobreviventes bem adaptados. As conversas não mentem: "Estava em Boston para uma reunião de negócios, li no jornal e não resisti, não vejo Baez desde 1971..". "Deixei meu barco no Maine e trouxe as crianças...".

Ben & Jerry, patrocinadores do evento e empresários de sorvete (ótimo, aliás), explicam que o novo orçamento dos EUA favorece os militares e abusa das crianças. Muito bem, só não sei se nos anos 60, patrocinador e empresário teriam conseguido falar.
Ao redor do palco, flutuam no vento, como bandeiras suspensas, uma série de inscrições: "O business tem a responsabilidade de devolver para a comunidade", assinado Ben (de Ben & Jerry).

Quem discorda aqui? De fato, as palavras de ordem de uma geração rebelde se tornaram leis trabalhistas e penais ou _no mínimo_ virtudes cívicas básicas. Isso não é uma revolução bem-sucedida? Talvez _poderia-se dizer_ a mais bem sucedida da história e ainda avançando.
A massa de Woodstock acreditava mesmo no poder do pensamento. E, antes da famosa chuva que transformou o festival em um mar de lama, todo o mundo ficou gritando: "No rain!". Choveu igual.

Em Newport-97, a chuva parou justo com a chegada de Joan Baez. Mas, no fim, ninguém foi embora cantando. Não que eu estivesse a fim. Não teria cantado mesmo. Fiquei sábio (irônico) logo: nem todas as guerras me parecem erradas, nem toda utopia me parece bem-vinda. Só fica uma estranha sensação, que diz assim: não era bem isso que a gente queria. Mas, então, o que era?
(CC)

domingo, 10 de agosto de 1997

Luxo à brasileira

Diferença crucial com os EUA não é religiosa, mas de modos de individualismo
Livro de Harrison contraria a ideologia multiculturalista dominante, para a qual diferenças culturais devem ser respeitadas


A ''questão hispânica'' nos Estados Unidos está na ordem do dia. É uma questão dupla. Externa: quais alianças privilegiadas, políticas e econômicas, estabelecer com a América Latina? Interna: qual o destino da imigração hispânica, que cresce desde os anos 70, e no próximo século ultrapassará os negros, podendo chegar, em 2050, a 26% da população americana?

A questão dá lugar a um sonho, ou a um pesadelo. O sonho é um caminho asfaltado com nobres sentimentos. A idéia de fundo é que paz e prosperidade trazidas por democracia e livre mercado transformarão os hispânicos em respeitáveis cidadãos americanos e seus países em honrosos parceiros de uma nova comunidade.

O pesadelo é mais perto da realidade. Ele diz que, externamente, as nações sul-americanas são parceiros pouco confiáveis, democracias e economias instáveis, corruptas e às vezes infiltradas pelo narcotráfico. O pesadelo diz também que, internamente, a imigração hispânica das últimas décadas é aquela que pior se integra na sociedade americana, a que mais recorre à assistência pública e transgride as leis etc.

No entanto, a idéia da Pan-América continua viva. Em 1961, Kennedy assinou com os chefes de Estado latino-americanos a Aliança para o Progresso. Três anos atrás, o projeto pan-americano se consolidou quando FHC e Clinton assinaram com os outros, de novo, uma aliança para o desenvolvimento e a prosperidade comuns.

Neste contexto, Lawrence Harrison argumenta que democracia e livre mercado são ótimos para todos, mas não suficientes para ultrapassar as diferenças culturais que nos separam. Tem toda razão.

A globalização é um projeto comportamentalista. Aposta-se que, modificando o comportamento político e econômico das pessoas, elas acabem se transformando também culturalmente. Harrison afirma que a especificidade da cultura latino-americana produziu nosso precário desenvolvimento. Portanto, ele conclui, para que seja possível um futuro de prosperidade pan-americana, é necessário que haja, na América Latina, uma mudança cultural (e não só política e econômica). Sem isto a América Latina está impedida por sua cultura. E os imigrantes latino-americanos seguem trazendo consigo um capital cultural negativo que dificulta e atrasa sua inserção na sociedade americana.

Pessoalmente, concordo com ambas estas afirmações, as quais indignam os norte-americanos, porque implicam uma declaração de inferioridade da cultura latina em relação à norte-americana. Como? Simples: o ideal de progresso e prosperidade é inquestionável na cultura norte-americana, portanto uma cultura menos performática deste ponto de vista é uma cultura inferior. Ora, a ideologia multiculturalista dominante pensa que as culturas devem ser respeitadas em suas diferenças, mas não autoriza nenhuma hierarquia entre elas.

Harrison não tem simpatia pelo multiculturalismo. Prefere a representação da sociedade norte-americana como ''melting pot'', onde as diferenças étnicas e culturais devem vir se integrar em um projeto comunitário. De novo, concordo: é difícil imaginar uma nação sem um sentimento de destino comum.

Duas observações merecem ser feitas. Primeiro, atrás do nome América está uma série de traços compartilhados por Norte e Sul, os quais poderiam constituir denominadores comuns.
Segundo, Harrison apenas menciona um fato decisivo no fracasso da integração hispânica nos EUA. A grande onda migratória latina começou nos anos 60, na época em que a consciência norte-americana atravessava uma crise inédita. Torturada pela culpa em relação aos índios e negros (para não falar do Vietnã), a cultura americana não parou desde então de se menosprezar, encorajando seus imigrantes a desconfiar dos valores americanos. Há mais: o movimento dos direitos civis teve o efeito de produzir, sobretudo na população afro-americana, uma atitude de reivindicação frente ao Estado e à nação. Ora, o tradicional estadismo latino pegou esta carona, auxiliado pela confusão produzida pela culpa norte-americana.

Conclusão: os hispânicos foram a única onda migratória a quem foi proposta (e que escolheu) uma identificação com os negros. Convidados, por exemplo, a considerar o Estado como uma teta, foram afastados de um dos valores americanos essenciais: ''self-reliance'', contar consigo mesmo. Valor do qual sua cultura já os afastava.

O perfume de ousadia que exala do livro é sem grande efeito para o leitor brasileiro. Cansamos de saber que nossas raízes históricas e culturais (colonização lusitana, escravatura) nos reservam um ingresso hesitante na modernidade. Mas não consideramos que progresso e prosperidade sejam valores absolutos. Podemos lidar com nosso ''arcaísmo'' com carinho, no estilo Roberto DaMatta, sem considerarmo-nos inferiores.

Ora, ignorando os clássicos da sociologia nacional, Harrison parece pensar que o Brasil tivesse como única explicação de seu atraso a Teoria da Dependência, assim resumida: é tudo culpa dos norte-americanos. Harrison acha que a Teoria da Dependência _uma espécie de doença infantil da América Latina_ escondeu aos latino-americanos o peso de sua herança cultural.
Ora, FHC e Enzo Faletto podiam acreditar que os males da América Latina fossem devidos ao então proverbial imperialismo ianque. Mas eram ambos cultos demais para não ter uma idéia dos fatores propriamente culturais também em jogo.

Resumindo: o Brasil teve um crescimento econômico assustador durante 20 anos e tem enfim instituições democráticas, mas não por isso realiza as condições mínimas de igualdade e comunidade de uma sociedade moderna. É culpa dos norte-americanos? Não. Então é uma questão cultural, ele conclui. Obrigado, já sabíamos. Vamos ver então qual é a dita diferença cultural. É aqui que o livro se revela tragicamente fraco.

Por um lado, Harrison _embora consagrando um capítulo a cada uma das grandes nações da América do Sul_ propõe substancialmente uma distinção monolítica. Há a América anglo-saxônica (EUA e Canadá), de um lado, e a América ibérica, de outro, ponto. Nenhuma consideração sobre as diferenças entre colonização hispânica e lusitana nem sobre os diferentes processos de descolonização e independência que criaram as nações sul-americanas. Sérgio Buarque, libera-nos!

Por outro lado, Harrison descreve a oposição cultural entre as duas Américas com um serrote elétrico. Um serrote weberiano. Ele pega Max Weber e simplifica ao osso uma idéia só: o protestantismo produziu prosperidade e progresso, o catolicismo é um atraso. Ele chega a afirmar que nossa esperança de progresso é a difusão do protestantismo na América Latina. Entraremos na modernidade graças ao bispo Macedo. Nestas condições, talvez fosse melhor ficar no atraso.

Max Weber, lendo Harrison, teria uma séria dor de cabeça. Não é possível tomar uma religião como uma invariante histórica e considerar que o calvinismo genebrino do século 16 e 17 possa reproduzir os mesmos efeitos sociais no Brasil do século 20. Sem contar que nem do mesmo calvinismo se trata.

Além desta ingenuidade grave, a oposição entre protestantismo e catolicismo é hoje ideologicamente pouco consistente. O individualismo, que é a ideologia básica da modernidade, foi alimentado pelo cristianismo católico. Certo, a um dado momento, a camisa católica revelou-se um pouco apertada para a ideologia moderna que ela promoveu. Precisou de uma reforma que outorgasse ao indivíduo a autonomia de interpretação do texto divino, uma ética do trabalho e das obras terrenas etc.

Apesar do papa, o catolicismo de hoje é de fato reformado: a maioria dos católicos, sem deixar sua igreja, adotam, por exemplo, uma autonomia ética.

Mais frustrante ainda: Max Weber _parcialmente e mal digerido_ é convocado sozinho. Talcott Parsons poderia ter sugerido a Harrison que, para entender uma diferença cultural, há outros fatores além da religião. Por exemplo, qual é a importância relativa de coletividade e indivíduo ou quais são os elementos que decidem o status em uma sociedade dada.

Werner Sombart (sobretudo ''Luxo e Capitalismo'', mas já a última parte do primeiro volume de ''Capitalismo Moderno'') lhe teria permitido entender a misteriosa permanência de desigualdades no Brasil. A modernidade começa, segundo Sombart, quando a posse e o uso de bens de luxo (e não as castas) determinam o status social. Ou seja, quando as diferenças sociais são quantitativas (quem tem mais e quem tem menos). Ora, a resistência do capitalismo brasileiro à distribuição das rendas e à abertura de um mercado interno se entende como uma maneira de manter diferenças qualitativas, reservando o acesso ao luxo para castas privilegiadas. Por este caminho, Harrison poderia descobrir que a diferença crucial não é de religião, mas entre o individualismo avançado norte-americano e uma sociedade em transição, ainda hierárquica e tradicional.

Enfim, Harrison esperneia contra a Teoria da Dependência que teria privado a América Latina do entendimento cultural de seu destino. Com isso, ele mesmo não percebe que talvez a Teoria da Dependência fosse a expressão de um traço essencial da cultura latino-americana. No estadismo ibérico, como ele afirma, o cidadão acredita que o Estado _e não ele mesmo_ deve resolver os problemas de sua vida. O simples complemento desta representação consiste em pensar que também o Estado (nacional ou outro) _e não o próprio cidadão_ é responsável pelos malogros.

Conclusão: o livro diz que os latino-americanos são culturalmente diferentes. Isso pode ser um problema para a Pan-América e para os EUA. E talvez seja um problema para a gente. Agora, sobre a diferença em questão, Harrison diz pouco que preste.