quinta-feira, 25 de julho de 2013

O papa no Rio


 
Aeroporto do Galeão, domingo de manhã. O pouso do avião que trazia meu enteado estava previsto para as 8h30, mas aconteceu com uma hora de atraso --e, sobretudo, ele só recuperou a mala e saiu da alfândega ao meio-dia.
O aeroporto do Rio parecia uma praça de Roma num filme de Fellini: monges, freiras e padres por todos os lados, conversando numa Babel de línguas. Uma tropa de jovens argentinos, de camiseta azul e branco e com uma cruz no peito (ou nas costas?), cantava em coro alguma música, que eu não reconheci, mas de que Deus devia gostar à beça.
Outro grupo, na área de espera, misturava cantoria com batucada. Alguém rabugento poderia pensar: e se eu não estivesse a fim de ouvir?
Um pensamento idêntico me ocorreu à tarde, enquanto caminhava pela praia de São Conrado. Um carro passou por mim. Na verdade, não um carro, mas um som poderoso, veiculado por uma sucata dos anos 1980 e tocando rap-funk.
Os três jovens no veículo faziam um esforço considerável para parecer mal-encarados (seu jeito de "esquentar" as minas e intimidar os passeantes). Será que os jovens cantando no aeroporto, comparados com a gangue do carro, eram "angelicais"? Não, os dois grupos eram igualmente belicosos e desagradáveis; ambos queriam me obrigar a tocar a vida ao som da trilha deles.
Domingo, houve um arrastão por peregrinos na praia de Ipanema (foto na capa da Folha de segunda). Se eu estivesse na areia, tomando sol com caipirinha, teria detestado; talvez achasse melhor um arrastão tradicional, de celulares e carteiras.
Com isso, fiquei feliz, na segunda, ao saber que, no largo do Machado, bem onde peregrinos da Jornada Mundial da Juventude católica esperavam seu transporte, um grupo de mulheres dançava exibindo os seios. Os jovens peregrinos vaiaram.
Lembrei-me de que, nos meus anos de faculdade, em Genebra, um amigo, que morava perto de Plain palais, tinha adotado uma resposta sistemática aos missionários mórmons e testemunhas de Jeová que batiam à sua porta com frequência: ele sempre abria a porta completamente nu. E, se estivesse com a namorada, fazia questão que os dois abrissem a porta juntos. Provocação por provocação, acho a de meu amigo e das mulheres do largo do Machado mais engraçada.
Você acha essas atitudes infantis e um pouco primárias? Tudo bem, vamos falar de coisas primárias. O kit recebido pelos peregrinos inclui um "Manual de Bioética", de 75 páginas, produzido originalmente na França pela fundação Lejeune.
Como mostrou a reportagem de Fabio Brisolla na Folha de segunda, esse livrinho de "ética" é imperdível (confunde aborto com contracepção, propõe juízos de valor como verdades "científicas" etc.).
Para ter uma ideia da qualidade dos argumentos, na hora de atacar a reprodução assistida (pág. 35), o livrinho lembra que, em 2004, só na França, "havia cerca de 120 mil embriões congelados": essa frase é acompanhada pela imagem de um menino que treme de frio... Campanha do Agasalho para os embriões?
A edição brasileira contém um acréscimo sobre "A Teoria do Gênero", que eu mesmo não sei o que é. Também não sei decidir se o tal capítulo foi escrito mais com má-fé ou com ignorância --talvez com uma combinação das duas.
Na pág. 73, por exemplo, lemos: "Os adeptos da teoria do gênero [?] pretendem que, por um simples ato de vontade, poderíamos alterar a realidade do que somos, escolhendo a nossa identidade sexual: 'Eu não sou o corpo que tenho'." Mamma mia! Só para começar: descobrir-se um dia em desacordo com seu próprio corpo (que não tem nada a ver com "escolher" a identidade sexual) é uma experiência dramática e dolorosa, que merece, no mínimo, respeito.
O autor do livrinho me fez pensar no professor de religião de meu último ano de colégio, que, para contestar a teoria darwinista, declarou que ele daria um soco em quem lhe sugerisse que a mãe ou a avó dele eram macacas. A classe riu, e ele deve ter pensado que sua grosseria nos conquistara. Erro: naquele dia, a classe inteira se tornou darwinista.
Bom, para celebrar a vinda de papa Francisco, também li algo melhor, "Sobre o Céu e a Terra" (Paralela), diálogo entre dois líderes religiosos de Buenos Aires, papa Francisco (à época do diálogo ainda cardeal Bergoglio) e o rabino Skorka.

Ainda comentarei esse livro, mas, primeiro, preciso de um tempo para esquecer minha irritação com o paternalismo, que enfia um livrinho meio infame na goela dos peregrinos e reserva sua cara mais civilizada aos que sabem ler.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

O partido da aventura



 
Nos anos 1970, na Itália, "il partito dell'avventura" era o golpismo que queria desestabilizar a democracia. De que forma? Insuflando os peitos da classe média com inquietudes e medos abstratos. Uma indignação generalizada (sem alvos muito específicos e circunscritos) e a sensação de insegurança (produzida pelo terror) levariam o povo a recusar o sistema no seu conjunto: a rua exigiria a renúncia do governo, o fechamento do Parlamento e o fim de partidos e sindicatos.
Se esses pedidos se impusessem, temíamos que a porta se abrisse para "aventuras" políticas imprevisíveis e (argumentávamos, baseando-nos na história recente) totalitárias: nostalgias fascistas ou sonhos stalinistas.
No retrospecto, estranho a facilidade com a qual parecíamos menosprezar a perspectiva da "aventura". Certo, as indignações generalizadas geram um futuro incerto, que ninguém sabe no que dará e que talvez dê em algo perigoso. Mas é curioso que a aventura, com sua promessa de mudanças radicais, não nos seduzisse nem um pouco.
Seja como for, estamos, hoje, num momento bom para o partido da aventura. Imagine uma pesquisa nacional que colocasse, em qualquer ordem, por exemplo, as perguntas que seguem.
Primeiro, sobre o Legislativo. Você quer que os nossos representantes parem de usar os aviões da FAB como táxi aéreo? Quer que eles possam ser eleitos só por um mandato? Quer que eles tenham um regime de INSS igual ao de todo mundo? Quer que eles sejam obrigados a recorrer exclusivamente aos serviços públicos de educação e saúde (pela qualidade dos quais, afinal, eles são responsáveis)? Você quer que eles não possam decidir os aumentos de seus próprios salários e mordomias? Enfim, você aceitaria que o Parlamento fosse fechado, e que novas eleições fossem convocadas, em que nenhum representante atual pudesse ser candidato?
Logo, o Executivo. Você acha que os ministérios existem como objetos de barganha política mais do que por necessidade de governo? Quer que o governo corte pela metade seus 39 ministérios? Você gostaria que o governo renunciasse e alguém de reputação ilibada, sem disposição para compromissos e negociatas, tomasse as rédeas do poder?
Não inventei nenhuma dessas perguntas. Cada uma delas está (com muitas outras) em vários e-mails que recebi nas últimas semanas. Talvez uma pesquisa desse tipo seja por si só uma "aventura" perigosa: se a resposta majoritária fosse positiva, a desmoralização da classe política inteira seria brutal.
Não tenho nenhuma simpatia pela ideia de uma figura salvadora providencial --Collor foi eleito com essa imagem, e olhe no que deu.
Por outro lado, desconfio de qualquer ordem estabelecida que tente se manter e se legitimar chantageando-nos com o espantalho de um futuro incerto: aceite a gente e as coisas assim como estão ou prepare-se para o risco da "aventura", ou seja, "depois de nós, o dilúvio". Dizem que sem partidos e sem Parlamento não há democracia; será? Apenas 240 anos atrás, quando a revolução americana inventou a república moderna, o mundo inteiro dizia que sem rei não haveria governo possível.
Numa entrevista publicada na Folha de segunda (8), um sociólogo italiano, Paolo Gerbaudo, citando Gramsci, falou dos "sintomas mórbidos" que aparecem no "interregnum", "quando um sistema de poder está em colapso, mas seu sucessor ainda não se formou". São "fenômenos estranhos, criaturas monstruosas e difíceis de serem decifradas. Hoje, as criaturas estranhas são esses movimentos populares". Um exemplo dessas criaturas? Depois da Primeira Guerra Mundial, as massas italianas e alemãs que se lançaram na "aventura" do fascismo, do nazismo e da Segunda Guerra.
Note-se que nem todos os sintomas mórbidos levam a um desfecho sinistro. Ao longo da história, houve "aventuras" que acabaram bem. Mas entendo o olhar atônito do governo e do Parlamento, pois a questão é saber para quem a aventura em curso acabará bem.
Pode ser que, aos poucos, as manifestações populares se acalmem. Mas talvez algo irreversível tenha acontecido: uma desconfiança, que existia há tempos (se não desde a origem do país), agora se tornou exasperação. E a exasperação é quase sempre um prelúdio. Ao quê? Seria sábio ter medo?

Uma coisa é certa: a responsabilidade pela eventual "aventura" de hoje não é das massas exasperadas, é de quem as encurralou até a exasperação.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Desacato



Em 2010, quando quis marcar o dia da inspeção veicular do meu carro, já não havia mais horários. A primeira data disponível era depois do fim do prazo de minha placa.
A inspeção descobriu que meu escape estava furado. Naquele dia, a caminho do mecânico que trocaria o tubo, meu carro passou por um radar e foi multado por circular sem certificação ambiental. Isso, eu descobri quando a multa chegou.
Tudo bem, não riam de mim, é que morei muito tempo na Europa e nos EUA, mas eis o que eu fiz: escrevi uma bonita carta ao DSV, Departamento de Operação do Sistema Viário, incluindo cópia dos documentos que atestavam 1) minha passagem pela inspeção na manhã do dia da multa, 2) o resultado da inspeção, 3) minha passagem pelo mecânico no mesmo dia, 4) a inspeção final.
Expliquei que eu tinha sido multado no trajeto entre a inspeção e o mecânico que consertaria o defeito encontrado e pedi que o departamento reconsiderasse a multa.
Talvez eu merecesse a multa de qualquer forma (pelo atraso inicial), mas a questão é: você recebeu resposta? Eu, nem sequer um sinal de que alguém tinha recebido minha correspondência.
O tempo passou. Neste ano, 2013, uma vez o IPVA pago, o licenciamento demorava a chegar. Um despachante descobriu que a multa de 2010, com juros e correção monetária, tinha reaparecido e impedia que meu carro fosse licenciado.
O despachante "nunca riu tanto" quanto ao escutar a história de minha carta etc. --coisa de gringo mesmo, essa de acreditar que, naquele endereço indicado nas notificações, alguém se daria à pena de ler e responder a um cidadão.
Essa história me custou algum dinheiro, mas não fui pessoalmente nem à inspeção nem ao Detran. É minha desobediência civil de privilegiado: pago, mas não deixo o Estado abusar do que tenho de mais precioso, meu tempo.
Para o Estado, em geral, o tempo do brasileiro não vale nada, e essa desvalorização do tempo do cidadão talvez seja mais injuriosa do que as eventuais falhas nos serviços. Nos serviços, podem faltar recursos (somos pobres), mas o descaso com o tempo do cidadão é só desprezo.
O mesmo desprezo aparece no fato de que a administração brasileira carece de mecanismos para proteger o cidadão contra os abusos do poder. Nos Estados democráticos, proteger o indivíduo é uma das grandes preocupações dos legisladores.
Nos Estados totalitários (modernos e antigos) ou nos Estados de origem colonial acontece o contrário: o legislador protege a administração (o partido único, a "coletividade", o império, a corte de Lisboa, tanto faz) contra o reles súdito.
Um leitor, Bárbaro, comentando a coluna da semana passada, assinala que os brasileiros não são vítimas só de descaso, "mas de intimidação mesmo, como atestam aqueles famigerados cartazes em qualquer repartição pública alertando o pobre cidadão que o desacato a funcionário público no exercício de seu trabalho é crime" (pena de seis meses a dois anos de detenção ou multa).
Talvez a reforma em curso do Código Penal acabe com o crime de desacato, que é uma pura coação do Estado contra o cidadão. Enquanto isso não acontece, proponho que, nas repartições públicas, ao lado do cartaz do desacato, seja pendurado outro, que lembre as punições para o funcionário e para o próprio Estado quando eles desacatam o cidadão que eles deveriam servir.
É uma boa ocasião, aliás, para sugerir que o termo "funcionário público" seja substituído por "servidor público". O que importa não é preencher bem uma função num governo ou numa administração: os torturadores eram ótimos funcionários da ditadura; o que importa é cumprir honradamente a tarefa de servir os cidadãos.
A ausência de canais pelos quais seja realmente possível se queixar (junto com a ideia intimidante de que a queixa pode ser entendida como desacato) são provas da necessidade de uma reforma política profunda, que mude a relação do Estado com o cidadão.
Esta é uma coisa que qualquer psicanalista e psicoterapeuta constatam e que vale no consultório e fora dele: escutar não é apenas uma condição para saber o que curar e como, escutar é tão importante quanto curar. Um governo que não escuta não terá legitimidade, mesmo que consiga curar alguns ou todos os males.

Justamente, o silêncio do DSV fez com que eu gostasse de ver, alguns dias atrás, as vidraças do Detran quebradas pelas pedras dos manifestantes.