quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A menina que se achava 007


 Por que uma menina de 13 anos entende um filme de James Bond, mas não a tragédia de uma família? 

 ASSISTI, NESSES dias, a um documentário bonito e tocante, "Diário de uma Busca", de 2011. 

 A autora, Flavia Castro, investiga a morte misteriosa de seu pai, Celso Afonso Gay de Castro. Junto com um amigo, também militante de esquerda durante a ditadura, Celso morreu ou foi morto, em 1984, em Porto Alegre, no apartamento de um alemão que teria sido oficial nazista. 

 Na tentativa de entender o que aconteceu, Flavia reconstrói sua própria infância durante a clandestinidade e o exílio dos pais, nos anos 1960 e 1970, por Argentina, Chile, França e Venezuela. 

 Achei que uma menina como S., 13 anos, gostaria do filme, e a deixei em frente à TV, aparentemente interessada. Meia hora mais tarde, S. estava no meio da reprise de "007 - Cassino Royale", o James Bond de 2006, que ela já vira duas ou três vezes. Ela me disse que tinha parado o documentário porque "não entendia o que acontecia na história". 

 Ou seja, uma menina inteligente de 13 anos "entende" sem problema que Bond mate um tal Mollaka, explodindo, no Madagascar, a embaixada do país de Nambuto (?), e logo ele reapareça na casa de M. na Grã-Bretanha -ou talvez ele reapareça (não me lembro mais) nas Bahamas- para seduzir a mulher de Dimitrios. A mesma menina não entende a fuga de um militante de 40 anos atrás -aliás, nem estou certo que ela entenda o que era um militante de 40 anos atrás. 

 Tudo bem, lamento a mediocridade do ensino e, em geral, a futilidade da conversa dos adultos. Mas há uma outra razão, talvez mais importante, que faz que, para S., seja mais fácil entender as aventuras fantásticas de Bond do que a tragédia real da família Castro. 

 É aqui que a leitura de "O Homem que se Achava Napoleão - Por uma História Política da Loucura", de Laure Murat (Três Estrelas), torna-se indispensável. 

 Murat mostra exaustivamente como, da Revolução Francesa até a Comuna de Paris, os acontecimentos políticos e sociais modelaram a loucura e os delírios. Claro, no meio do Terror, com suas incessantes execuções públicas, era mais fácil do que hoje que alguém acreditasse ter sido decapitado e andar pelo mundo com a cabeça de outro, erroneamente instalada no seu pescoço. 

 Mas as implicações do livro de Murat são mais gerais e radicais. Como mostra Jurandir Freire Costa no breve mas importante prefácio, a questão é: "Em que medida a loucura pode ser dissociada da atmosfera cultural que a cerca?". 

 Como Murat (e como Freire Costa), tendo a pensar que cada cultura (e cada época de cada cultura) dá forma a sofrimentos psíquicos que lhe são próprios. 

 As revoluções do fim do século 18 produzem um homem novo, de quem ainda somos os herdeiros. 

 Esse homem novo é levado a "apreender a ordem do mundo através de sua subjetividade": ele "se identifica com os personagens do romance psicológico", "funda a introspeção como meio de conhecimento" e, sobretudo, ele é obrigado a reconhecer que a autoridade não é mais um atributo dos padres, dos nobres ou dos anciões. Ele mesmo, esse homem novo, deve decidir no que acreditar, seguindo seu foro íntimo e suas convicções. 

 Uma parte dos transtornos modernos derivam da incerteza de quem abandonou sua confiança tranquila nas tradições laicas ou divinas. Mas talvez esses não sejam os transtornos mais graves. 

 Bem na aurora da modernidade, Philippe Pinel, o inventor da psiquiatria, observa que, de todas as formas de mania, duas são incuráveis: "os inchaços do orgulho e o fanatismo religioso". 

 Laure Murat entende que Pinel, aqui, está sendo "político", transformando em doenças incuráveis as paixões dos grandes inimigos da Revolução Francesa (os aristocratas são "orgulhosos", e o clero é "fanático"). 

 Mas eu acho que Pinel, nessa observação, está também descrevendo com propriedade os transtornos mais graves da modernidade, que são reativos. É contra a angústia de ter que inventar e sustentar nossas próprias crenças que adotamos fanatismos religiosos nostálgicos ou fantasias grandiosas e heroicas nas quais imaginamos que somos as pedras angulares do mundo, invencíveis, imortais, extraordinários e únicos. Esse "inchaço do orgulho", aliás, é o que mais gostamos de transmitir a nossas crianças, para que continuem tão grandiosas e heroicas quanto nós somos, em nossas delirantes fantasias. 

 Entende-se por que S., 13 anos, acha que uma história de James Bond é mais compreensível do que a incerteza e a dureza do destino da família Castro.

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