quinta-feira, 23 de janeiro de 2003

Nostalgia dos tubarões

No último número da revista "Science" (vol. 299, nº 5.605), Julia K. Baum e outros pesquisadores da Universidade Dalhousie (Nova Escócia, Canadá) apresentam uma pesquisa sobre "Colapso e Conservação das Populações de Tubarões no Atlântico Noroeste".

Entre 1986 e 2000, os tubarões, da Terra Nova a Recife, declinaram brutalmente. Os números são diferentes segundo as espécies, mas, com raras exceções, sempre significativos. O tubarão-martelo quase sumiu (diminuição de 89%), e o tubarão-branco (comedor de banhistas e protagonista do filme "Tubarão") perdeu 79% de seus efetivos.

Chegou-se a esses resultados acompanhando as variações no número de tubarões capturados acidentalmente pelos pescadores de atum e de peixe-espada. Nesse tipo de pesca, as linhas carregam centenas de iscas que qualquer peixe morde com apetite. Ora, essas linhas trazem de volta cada vez menos tubarões.

O próprio caráter não seletivo da pesca deve ser responsável pelo declínio dos tubarões. A isso se adiciona, hoje, a captura intencional: nos EUA, a pesca do tubarão é regulamentada, mas os pescadores europeus trabalham livremente, encorajados pela popularidade da carne de tubarão nos restaurantes da Europa.

Os pesquisadores manifestam sua preocupação. Afinal, os tubarões levam de 12 a 18 anos para atingir a maturidade reprodutiva, e as fêmeas, no decorrer de sua vida, criam, no máximo, dois tubarõezinhos. Será difícil inverter a tendência, mesmo com fortes políticas de proteção.

O tom preocupado do artigo desperta uma certa vontade de zombar. Afinal, danem-se os tubarões. Se querem sobreviver, é fácil: tornem-se vegetarianos. Evitarão as iscas e, assim, pararão de encher (ou morder) o saco da gente. Os pesquisadores canadenses, consternados, nos lembrariam que o fenômeno compromete o equilíbrio ecológico. Sem tubarões, seremos invadidos pelas focas, que ninguém comeria mais, e, na pança de tantas focas, sumiriam as sardinhas. Ora, sem sardinhas, como almoçar no porto de Lisboa? Pois bem, responderão os zombadores, que volte a moda dos casacos de pele, reabra-se a caça aos "bebês" de foca e, pronto, as sardinhas estarão salvas.

O declínio dos tubarões produzirá uma certa alegria entre banhistas e surfistas. Embora os ataques sejam raros, não duvido que, logo em janeiro, muitos achem ótimo que haja menos bichos dentuços nadando no fundo do mar. Comentarão que, para preocupar-se com o declínio dos tubarões, só os canadenses mesmo, que não entram na água do mar nem no verão.

Mas estou também convencido de que, entre os próprios surfistas que expõem assiduamente suas pernas apetitosas aos tubarões, muitos vão se manifestar contra a pesca industrial e seus estragos nas fileiras dos predadores do Atlântico.

É uma contradição constante. Acreditamos em nossa capacidade de transformar o mundo. Mas essa fé convive sempre com a nostalgia do cosmo imutável, ordenado pela bondade divina ou pela sabedoria da própria natureza.

Ora, os dinossauros não sumiram por culpa nossa, e uma enorme parte da evolução se fez em nossa ausência. Além disso, as formigas, ao construir colônias de formigueiros, não se preocupam com o plano da natureza. Idem para os castores quando constroem seus diques. Sem falar nos tubarões, que não se preocupam nem um pouco com a extinção dos surfistas e dos turistas em nossas praias. Ou seja, em princípio, as espécies "normais" modificam o hábitat e tentam impor suas necessidades sem grandes tormentos de consciência.

Essa era também a posição dos homens até, mais ou menos, dois séculos atrás. Paradoxalmente, a modernidade levou ao paroxismo a vontade de adaptar o mundo ao nosso capricho e, ao mesmo tempo, as lágrimas (de crocodilo) que choram os encantos perdidos de um mundo preservado. A história se acelerou, mas foram inventados os museus, a preservação dos monumentos históricos e os parques naturais. Com novas armas e armadilhas, exterminamos os lobos que ameaçavam nossos rebanhos; logo, criamos lobos em cativeiro e tentamos reintroduzi-los em nossas montanhas. O Ocidente colonizou (ou pós-colonizou) quase o mundo inteiro e agora lamenta a variedade perdida das culturas. Só falta recriar e reintroduzir os sioux nas planícies do oeste americano e os tupis-guaranis na mata atlântica.

Admiro o heroísmo preservacionista, mas desconfio um pouco dele. Há o sublime sacrifício: em nome da ordem cósmica, amo os tubarões, embora me mordam. Há a aparente abnegação: queria que o mundo não fosse sujo pela minha própria presença.

E há, atrás desses nobres sentimentos, um extremo narcisismo. Pois a abnegação afirma que somos completamente diferentes das outras espécies: seríamos os únicos que podem colocar o bem do ecossistema acima de nossos interesses imediatos.

Alguém responderá: nada disso, cuidamos da ordem do mundo apenas para garantir nossa sobrevivência. Pois é, lobos e tubarões agem diferente: não estão preocupados com sua morte a ponto de querer se consolar planejando a eternidade do planeta.

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