quinta-feira, 22 de abril de 2004

O diálogo contra o conflito



Muitos leitores me escreveram comentando a coluna de quinta passada, "Carta aberta a Silvio Santos", e o encontro de domingo entre Silvio Santos e Zé Celso. Agradeço a todos.

Em sua maioria, os que comentam o encontro festejam o acontecido, sem necessariamente tomar partido: o fato em si lhes parece uma boa notícia por ser uma vitória do diálogo contra o conflito. Compartilho esse sentimento.

Estou um pouco cansado de conflitos. E aparentemente não sou o único. Não me falta a vontade de lutar pelas coisas que importam. Mas parece que o conflito se tornou a maneira imediata de perceber o mundo.

Não é de estranhar que seja assim. Minha geração cresceu com as convicções seguintes: o drama social se entende pela luta entre classes ou interesses opostos, e o drama individual se entende pela luta entre desejos contrastantes ou entre os desejos e as forças que os reprimem.

A visão do mundo como campo de batalha não é falsa, longe disso. Mas, às vezes, ela funciona como uma forma de preguiça, pela qual preferimos o enfrentamento, por doloroso que seja, ao incômodo de entender, aceitar as diferenças e trocar figurinhas.

Essa constatação é comum a alguns dos melhores pensadores das últimas décadas do século passado. Vários defenderam a idéia de que a razão (que, em princípio, todos compartilhamos) resolveria muitos conflitos pelo diálogo. Isso se fizéssemos o esforço de dialogar.

Infelizmente, de Kosovo ao Iraque, a voz da razão ressoa como um réquiem abafado pelas explosões e pelos gritos de agonia. Parece que somos todos racionais, mas nem por isso somos razoáveis. Na hora do vamos ver, gostamos de mostrar os dentes.

Se a razão não basta para suspender o conflito aberto, fazer apelo a quê?

À força de andar pelo mundo e escutar meus semelhantes, uma coisa aprendi. Aquém das diferenças, de casta, de classe, de status, de ideais e de princípios, temos, sim, algo em comum: a alegria ou a tristeza das paixões, a desolação e o medo da vida que passa e acaba, os prazeres da amizade, a decepção das esperanças frustradas e a euforia das que, por mérito ou sorte, são recompensadas. Em suma, compartilhamos a experiência concreta da vida.

Cuidado: não aposto só na compreensão ou na compaixão. Sabemos que o outro está escrevendo uma carta de amor parecida com a nossa, mas nem sempre isso basta para que não joguemos granadas na trincheira da frente. É difícil renunciar à careta do inimigo jurado, pois ela nos proporciona o conforto de uma identidade clara e definida. Eu sou assim, o outro é assado. Só falta assá-lo mesmo, não é?

Mas a vida concreta oferece mais um recurso: sua sabedoria prática. Nela, quase sempre, os pretensos inimigos inventam e negociam, a cada dia, jeitos de baixar as máscaras e de habitar as mesmas ruas.

Vamos ao caso que nos interessa. Alguns leitores se disseram preocupados com a perspectiva de que a modernização do Bexiga acabe com a alma do bairro. Outros, ao contrário, preocupados com a perspectiva de que os obstáculos à mesma modernização condenem o bairro ao atraso e à pobreza.

Não sei qual será o futuro do diálogo que começou domingo. Mas, se me meti, é bem porque acho que o conflito é, em grande parte, abstrato, ou seja, que a oposição transforma ambos os lados em caricaturas desnecessárias. Não acredito que Zé Celso seja nostálgico do cartão-postal de um Bexiga pitoresco e miserável, como não acredito que Silvio Santos deseje um Bexiga sem alma, pesadelo extraído de um filme de Godard. Acredito, ao contrário, que o Bexiga de amanhã possa ser uma mistura de ousadia urbana e história, cinemas de arte e não de arte, padarias e fast food, botecos e pizzarias pronta-entrega, shopping center e lojinhas, teatros de vaudeville e arenas populares antropofágicas. Em suma, um bairro com a cara e as contradições da gente.

Jacqueline (dez anos) é uma das atrizes mais jovens e mais talentosas do teatro Oficina. Algum tempo atrás, durante um ensaio, Zé Celso pediu a Jacqueline que ela encenasse uma grande alegria e, para ajudá-la, lhe sugeriu que pensasse em algo muito prazeroso. Jacqueline se esquivava, e Zé Celso insistiu: "Qual é a coisa que você mais gosta?". "Um McDonald's", respondeu Jacqueline, para a hilaridade geral. Zé Celso não hesitou: "Então pense no McDonald's e encene".

Pois é, se Jacqueline pode encenar alegria pensando num Big Mac, por que, no Bexiga de amanhã, não coabitariam o teatro Oficina e a modernidade do projeto de Silvio Santos? Afinal, elas já coabitam concretamente em Jacqueline e, de fato, em todos nós.

Alguns me perguntaram qual foi minha função nesta história. Respondo com a observação de uma leitora, Lavínia Pannunzio, que, ao mandar seu abraço, retomou assim minha carta de quinta passada: "Você foi o palhaço com o megafone, abrindo caminhos pela cidade". Não podia aspirar a maior elogio.

A Silvio Santos vão meus agradecimentos mais sinceros: sua visita ao Oficina satisfez meu pedido de criança.

P.S.: No domingo passado, às 16h, eu devia estar na Bienal do Livro para lançar "Terra de Ninguém", uma coletânea destas colunas. Peço desculpa por não ter honrado o compromisso: quase no mesmo horário, aconteceu o encontro entre Silvio Santos e Zé Celso, no Teatro Oficina.

quinta-feira, 15 de abril de 2004

Carta aberta a Silvio Santos



Caro Silvio Santos,

Confesso que não sou um espectador de "Todos contra Um". No passado, assisti ao "Show do Milhão" só duas ou três vezes. Nunca comprei um "carnê do Silvio".

Mas meus sogros, Heloísa e Valentim, gostam de você. E, como tenho um grande carinho por meus sogros, sou grato por todas as vezes que eles passaram bons momentos assistindo ao "show do Silvio".

No ano passado, quando surgiu o boato de que você estaria doente, uma senhora, minha conhecida, comentou: "Só o que faltava, não ter mais nem o Silvio". Em geral, minha turma é crítica e pensa que você distribui ilusões como a gente enfia balas nas mãos dos meninos nos faróis. Mas eu acho que há um grande mérito (seu mérito) em conseguir encarnar, para tantos brasileiros, um sentimento sem o qual é difícil viver: a esperança de que amanhã a gente tenha um pouco de sorte.

Por isso, permito-me a familiaridade desta carta.

Escrevo-lhe por uma história que você deve estar cansado de ouvir: o grupo que você lidera projeta um shopping center (ou um centro de convenções) na área do Bexiga em que surge o Teatro Oficina, dirigido por Zé Celso Martinez. Claro, ninguém contesta: o teatro é tombado, pois ele é um patrimônio insubstituível da cultura brasileira, tanto por sua arquitetura quanto pela companhia que ele abriga. Também imagino, embora eu não conheça o projeto em sua fase atual, que nenhum arquiteto se proporia a encapsular o Oficina num casulo de edifícios. Então, qual é o problema?

O problema, como você sabe, é o espaço ao redor do Oficina. É necessário um recuo suficiente para que a luz do dia e o sol atravessem livremente a parede de vidro que, com o teto retrátil, faz do Oficina esta raridade: uma sala de teatro aberta para o mundo. Além disso, no terreno ao lado e nos fundos do teatro, o projeto do Oficina prevê uma arena aberta e locais para atividades que vão além da produção de peças: um lugar de lazer e educação teatral para as crianças do Bexiga que freqüentam o Oficina, um centro de estudos etc.

Pouco importam os detalhes. Meu pedido é apenas este: que você se disponha a encontrar Zé Celso ou autorize seu arquiteto a encontrar Zé Celso. No diálogo, é óbvio que se manifestarão interesses contrastantes, mas poderia também surgir o desejo comum de construir algo que seja bom para o Bexiga, para São Paulo, para o Brasil e para o teatro.

Sobre o Oficina, você já deve saber tudo o que importa. Se não for o caso, outros poderão lhe dizer melhor do que eu. Mas nada vale a experiência. Aposto (sem consultar ninguém) que a companhia se disporia a recebê-lo para uma representação só para você, quem sabe um condensado das duas partes de "O Homem". Mas deixe que lhe conte uma história.
Eu fui uma criança bem-comportada, numa cidade ferida pela guerra, Milão, na Itália. Um pouco por medo de que encontrasse uma bomba não explodida nos escombros, um pouco por respeitabilidade burguesa, meus pais não queriam que brincasse na rua. Ia para a escola, estudava e brincava no meu quarto.

Era raro, mas acontecia duas ou três vezes por ano, que um circo visitasse a cidade. Quando era um circo grande, passava um Fiat 600 gritando pelo alto-falante: "De volta da mirabolante turnê que o levou aos quatro cantos do Universo, ainda fremente pelos aplausos das multidões de Londres, Paris e Istambul, está em Milão o grande circo Togni; crianças, tragam seus pais; elefantes, leões, tigres da Bessarábia [nunca soube se há mesmo tigres na Bessarábia], os trapezistas de Moscou que arriscam sua vida sem rede, o homem-bala de Praga, os cavalos da grande escola de Viena".

Eu, na verdade, preferia os circos pobres, que se instalavam perto de casa. Nesse caso, o alto-falante vinha na mão do palhaço que abria um pequeno desfile de saltimbancos, malabaristas, anões, mulher barbada, homem-serpente e um ou dois bichos, um macaco, um cavalo.

Insistia tanto que meus pais achavam graça e deixavam que eu fosse a mais de uma representação do mesmo circo. Nunca souberam que o espetáculo, para mim, era duplo. Certo, admirava os corpos magicamente bonitos em suas roupas furadas de paetê; comovia-me com o drama do pateta, vítima do clown branco; gritava quando a trapezista voava no céu. Mas, no intervalo e depois do espetáculo, gostava de passear, meio às escondidas, entre os reboques que serviam de casa ao povo do circo. Tinha cheiro de sopa caseira, de roupa lavada e de malhas suadas, risos, gritos de brigas, portas entreabertas que mostravam espelhos, maquiagens e panelas. As duas coisas juntas, o espetáculo e os bastidores, eram, para mim, uma única experiência: foi ali que aprendi para sempre, acho, que é possível sonhar sem deixar de gostar da vida concreta.

Ora, quando vou para o Oficina, sinto a mesma alegria de quando era dia de circo na cidade. Não freqüento os bastidores do teatro. Não é preciso, porque o Oficina é construído para que não haja muita diferença entre cena, platéia e bastidores e porque a magia de seus espetáculos é esta: transformar em teatro a fúria, a euforia, a miséria e a paixão da vida concreta.

Em suma, caro Silvio Santos, receba este escrito como se fosse a carta de uma criança que lhe pede ajuda para que nosso melhor circo continue e cresça.

Obrigado e um abraço,
Contardo

sexta-feira, 9 de abril de 2004

Benjamim Zambraia e Tom Ripley

Dois filmes excelentes, ambos em cartaz neste momento, instigam a reflexão sobre a possibilidade de uma moral moderna.
Eis o problema: por prezarmos nossa autonomia acima de tudo, não gostamos que um deus seja nosso pastor e não aceitamos que a tradição nos diga o que é certo ou errado. Nessas condições, como orientar nossas vidas? Claro, julgando e pensando com nossas cabeças. Mas onde está, em nossas cabeças, uma inspiração que seja verdadeiramente a nossa e não apenas um resto de convenções estabelecidas, às quais não queremos mais obedecer?

"O Retorno do Talentoso Ripley", de Liliana Cavani, nos apresenta um Ripley maduro, que vive no Vêneto, numa esplêndida vila renascentista, e divide seu tempo entre sofisticações gastronômicas, música mais que clássica e transas eruditas, tocando o cravo a quatro mãos. Ele é um esteta, ou seja, um sujeito para quem os valores estéticos são a referência fundamental.
O esteta não se entrega desordenadamente às exigências da carne. Ao contrário, ele educa seus sentidos de maneira a inventar uma refinada disciplina de prazeres, que constitui sua regra. Confrontado com a tarefa de encontrar nele mesmo as normas de sua vida, o esteta responde adequadamente e escolhe o critério talvez mais subjetivo: o gosto.

Comparados com o Ripley de Liliana Cavani, os libertinos do marquês de Sade são os adolescentes da moralidade moderna, constantemente preocupados em desafiar a autoridade (divina ou política) para demonstrar sua autonomia moral. Ripley não se perde em blasfêmias, não se confronta com algum ente supremo. Ele apenas cuida da estética de seu prazer.

No intento de acalmar um amigo que parece atormentado pela dura tarefa de assassinar, Ripley comenta que não há por que se preocupar, já que "nobody is watching", ninguém está olhando. A frase não se refere só à ausência de testemunhas ou de policiais na hora do crime. É uma observação metafísica: ninguém contempla nossas ações e nos julga do andar de cima ou do céu. A origem das regras que regem nossas condutas está em nós, não nas sobrancelhas franzidas de um deus ou de um senhor.

Se ninguém está olhando, podemos cair numa gandaia desregrada, feito trapalhões da liberdade. Ou então, com Ripley, adotar a seguinte restrição: tudo é permitido, à condição de obrar com elegância. Matar alguém, como ele mesmo explica, significa que amanhã haverá um carro a menos no horário do pico, o que certamente melhorará a estética de nossas ruas.
Ora, Ripley é um extraterrestre: nós não somos assim.

Nós nos parecemos muito mais com o herói de "Benjamim", o filme de Monique Gardenberg, inspirado no romance de Chico Buarque. Benjamim Zambraia (atuação memorável de Paulo José) pode nos servir de anti-Ripley: não lhe falta o desejo de tocar a vida com bom gosto, mas sua existência é atormentada (e, portanto, organizada) por uma culpa.

Pouco importa qual foi o ato nefasto que está na origem da culpa de Benjamim; isso o espectador descobrirá. Mas, sem revelá-lo, podemos perguntar por que o ato em questão produz, para Benjamim, a culpa que organiza sua vida.

Benjamim é tão moderno quanto Ripley: ele não se angustia por ter transgredido ditados divinos ou tradicionais. O gesto que mancha seu passado produz culpa porque suscita o desprezo de seus amigos.

Ou seja, Benjamim vive no mesmo mundo sem deus e sem tradições no qual se movimenta Ripley. Mas, mais próximo da gente, ele não consegue erigir seu senso estético em regra moral absoluta; ele não tem a têmpera do esteta que, soberanamente, dispensa o aplauso de seus semelhantes. Benjamim precisa dos outros: portanto substitui o olhar divino pelo olhar do próximo. Ele mede a indignidade de seu gesto quando esse lhe vale um cuspe na cara.

O fim da história de Benjamim Zambraia contém uma outra lição. A culpa é certamente uma fonte possível da moral, mas é uma fonte perniciosa pela razão seguinte: os atos inspirados pela culpa visam sobretudo à punição de quem se acha culpado. Ou seja, se agirmos por culpa, nossa escolha "moralmente certa" não consistirá em fazer algum bem, mas em dar um jeito para que soframos, enfim, as conseqüências de nossos erros passados (essa constatação tem algumas implicações políticas e sociais, mas isso fica para outra vez).

Até aqui, apareceram três figuras da duvidosa e difícil moralidade moderna: o desbunde sem regras (no filme de Liliana Cavani, há um cúmplice passado de Ripley que é um bom exemplo disso; logicamente, ele acaba mal), o dandismo gélido do esteta (Ripley) e a expiação de uma culpa que foi decretada pela desaprovação dos outros (Benjamim).

Para completar a reflexão com uma nota de esperança, estréia na semana que vem "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado no diário que o jovem Ernesto Guevara escreveu durante sua viagem pela América Latina, em 1952.

Desde já, vale a pena antecipar que o filme nos encoraja a sonhar com uma quarta via. Para quem não aceita que as regras morais desçam do céu ou sejam ditadas pela tradição, talvez não reste apenas a escolha entre desbunde, estetismo e culpa. Talvez exista também a possibilidade de que uma regra moral surja a partir de uma experiência de vida. Justamente, o filme de Walter Salles nos conta como isso aconteceu com o futuro Che.

quinta-feira, 8 de abril de 2004

Adolescentes, entre um elefante e as cobras de Samwaad

Estreou na semana passada "Elefante", de Gus van Sant. O filme conta uma história mais que parecida com os acontecimentos de 20 de abril de 1999, quando dois estudantes de último ano do colégio de Columbine, Colorado, saíram atirando, assassinaram um professor e 12 colegas, feriram dezenas de outros e se mataram.

Para a decepção dos comentaristas, os dois jovens, Dylan Klebold e Eric Harris, eram quase "normais". Suas famílias não pareciam sinistras. Eles tinham pais e irmãos. Eram alunos corretos. Certo, não se integravam nos grupos em que se divide cada colégio americano (esportistas, cus-de-ferro, pode-crer etc.); mas os que não se integram são, em cada colégio, numerosos.

Verdade, gostavam de jogar "Doom", um video game muito violento; mas "Doom" vendeu acima de 600 mil cópias. Já havia armas em casa e era fácil conseguir mais; mas isso é banal num subúrbio do Colorado. Também, em 1998, os dois tinham tentado roubar um carro; mas, desde então, eles haviam completado com sucesso um programa para adolescentes réus primários (terapia, trabalho social etc.). Depois do massacre, foram encontradas, nos diários dos dois jovens, expressões de ódio suicida e homicida. Mas nada além de muitas letras de rap ou das músicas de um Kurt Cobain.

Em suma, mil razões, mas nenhuma à altura da enormidade do que aconteceu. Fora a dor das famílias das vítimas (e dos assassinos), fora o luto da comunidade de Columbine, o maior sofrimento produzido pelo evento foi, sem ironia, a frustração de não conseguirmos explicar.
A extraordinária qualidade do filme de Gus van Sant é esta: parece óbvio que uma tragédia vai acontecer, óbvio como um elefante passeando pela rua, mas as explicações do desastre são apenas jeitos que a gente encontra para que a razão nos console. As causas verdadeiras se perdem na banalidade cotidiana.

Naquele dia, Dylan e Eric, com seu fardo de armas, granadas e munições, levaram provavelmente para a escola um conjunto de desgostos triviais: a insatisfação com o vazio e a solidão de suas vidas, a vontade imperiosa de que algo acontecesse, a tristeza de eles não serem os heróis de ninguém, a frustração de não saber o que é amar.

Parêntese. Desde a ano passado, vários leitores me escreveram perguntando por que nunca comentei "Tiros em Columbine", o documentário de Michael Moore. De fato, gostei bastante do filme de M. Moore: é uma meditação (engraçada e corretamente não conclusiva) sobre a posse de armas na sociedade americana. É central, no filme, a comparação com o Canadá, onde a quantidade de armas per habitante é bem maior que nos EUA, embora o número de crimes seja incomparavelmente menor. Também central é o fato de que o próprio Michael Moore, fiel a suas raízes proletárias fincadas na América profunda, é membro de carteirinha da National Rifle Association, a associação americana dos proprietários de armas.

Os intelectuais progressistas americanos adotaram "Tiros em Columbine", mas a um preço: esqueceram a complexidade do filme. Puderam, assim, usá-lo para confirmar o que já pensavam: as armas são coisas de camponês e operário, coisa de pobre (de espírito e de conta no banco). Na espera de que as massas sejam "educadas", retiremos as armas de circulação, e as crianças voltarão para a escola seguras. Responde Gus van Sant: o buraco é mais embaixo. Parêntese fechado.

O que fazer, então, com esse elefante estranhamente familiar, que passeia por nossos gramados?
Lembra-se daquele jogo de crianças em que você coloca na mesa a figurinha de um bicho, e o colega propõe outro bicho, afirmando que o dele é mais forte e, numa luta, ganharia do seu? Ao elefante de Columbine, eu contraporia as cobras de adolescentes dançando, no espetáculo montado por Ivaldo Bertazzo, "Samwaad, a Rua do Encontro", no Sesc Belenzinho. Se você mora em São Paulo ou se vier para cá até o fim de junho, não perca.

O espetáculo é o resultado do projeto Dança Comunidade: durante nove meses, 53 jovens de várias ONGs de São Paulo passaram 25 horas por semana estudando e treinando para redescobrir seus corpos.

Em "Samwaad" não há discursos nem palavras. Só música, canto rítmico, percussões e dança. Misteriosamente, as evoluções dos dançarinos contêm e transmitem uma mensagem arrepiante de alegria de viver e de solidariedade possível.

Se fosse necessária uma demonstração de que o trabalho corporal pode tocar algum âmago da subjetividade, ela está dada. Aventurar-se na graça e na harmonia, transformar postura e gestualidade para um passeio na "Rua do Encontro" é uma maneira de recompor a imagem de si que cada um oferece aos outros, é um jeito de inventar novas relações. Pois, por exemplo, ninguém entra na ciranda sem confiar no próximo.

Olhando para os jovens de "Samwaad", pensei na caminhada triste de Dylan e Eric, que enfiavam os coturnos na grama carregando suas bolsas de morte, talvez encurvando os ombros, na paródia da postura do cantor de rap, que se tornou moda entre os adolescentes americanos e que evoca a atitude do boxeador acuado nas cordas.

Seria bom se os Dylans e Erics da vida encontrassem um Ivaldo Bertazzo que lhes ensinasse a dançar.

quinta-feira, 1 de abril de 2004

Desemprego

Capa da Folha, na quinta passada: em fevereiro, na região metropolitana de São Paulo, o índice de desemprego subiu mais um pouco.

No domingo, o caderno Empregos assinalava que 56 semanas é o tempo médio para que um desempregado encontre trabalho. Haja ânimo.

As porcentagens variam segundo o índice escolhido, mas, de qualquer forma, é provável que todos os paulistanos conheçam um amigo ou um parente que, a cada manhã, olha no espelho e se pergunta por que fazer a barba ou por que escovar o cabelo.

Estou lendo um livro recente, que trata dos efeitos das adversidades externas sobre nossa saúde mental, "Adversity, Stress and Psychopathology" (Adversidade, Estresse e Psicopatologia), de Bruce Dohrenwend (editor). A perda do emprego está na lista dos piores fatores adversos, com as catástrofes naturais, a morte de uma pessoa amada, o estupro, a doença grave, a separação ou o divórcio.

Nenhuma novidade nisso: é fácil entender que a perda do emprego seja fonte de angústia, de depressão e mesmo, às vezes, de "comportamentos anti-sociais": alcoolismo, violência familiar e condutas criminosas. Compreendemos imediatamente, por exemplo, o desespero do provedor (ou da provedora) que não consegue preencher as expectativas de seus dependentes. "Se a família não pode mais contar comigo, perco minha razão de ser."

Mas há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade mais danosa para nossa saúde mental.

Preste atenção: no balcão de um boteco, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta não será "quem é você?", mas "o que você faz na vida?". Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará como interesse por seu papel produtivo.

Ora, tanto você como seu vizinho (ou vizinha) viverão essa conversa inicial como um momento, de alguma forma, falso. Pois todos sabemos que somos mais do que nosso ofício: temos histórias, amores, esperanças, interesses, paixões e crenças que, de fato, expressariam muito melhor quem somos. Ao trocarmos cartões de visita, mentimos por omissão. Identifico-me como executivo, bancária, escritor, médica, mecânico, mas quem sou eu? A poeta da meia-noite? O sedutor das salas de bate-papo na internet? O piadista do bar da esquina? O pai preocupado com a doença do filho? A mulher que, a caminho do escritório, se agacha e conversa com o sem-teto que vive na calçada? O homem que cantarola Dorival Caymmi tomando banho?

Não é o caso de sermos nostálgicos. Num passado não muito remoto, cada um era definido por sua proveniência, e as perguntas iniciais diziam: quem foram seus pais e antepassados? Onde você nasceu? Quais são as dívidas que você herdou?

Prefiro os dias de hoje, em que são nossas próprias façanhas que nos definem. É uma escolha que deveria nos deixar mais livres, mas acontece que a praticamos de um jeito estranho: junto com os laços que nos prendiam a nossas origens e ao passado, nossa vida concreta também é silenciada na descrição de nossa identidade. E nos transformamos em sujeitos abstratos, resumidos por nossa função na produção e na circulação de mercadorias e serviços.

Conseqüência: o desemprego nos ameaça com uma perda radical de identidade. E não adianta observar que, afinal, nos sobra o resto, ou seja, toda a complexidade de nosso ser. Tipo: "Perdi meu emprego, mas ainda sou pai amoroso, amante, esposo, amigo, leitor de Saramago e corintiano ou palmeirense". Não adianta porque, em regra, já renunciamos há tempos a sermos representados por nossa vida concreta.

Não é por acaso que as mulheres lidam com o desemprego melhor que os homens, como mostra uma pesquisa recente de Lucia Artazcoz e outros, "Unemployment and Mental Health: Understanding the Interactions between Gender, Family Roles and Social Class" (Desemprego e Saúde Mental: Para Compreender as Interações entre Gênero, Papéis Familiares e Classe Social), "American Journal of Public Health", 2004, 94. Duas constatações de Artazcoz: 1) o impacto do desemprego é maior nos homens casados do que nos celibatários ("Se não traz o feijão, você ainda é o pai?"), 2) as mulheres casadas com filhos, ao perderem o emprego, sofrem menos que os homens e menos que as celibatárias. Explicação: para as mulheres, o exercício da maternidade ainda constitui uma identidade possível. "O que você faz na vida?" "Tomo conta de meus filhos." Para os homens, essa resposta não basta.

Enfim, espera-se que a economia crie empregos. Mas os poetas e os saltimbancos também têm uma tarefa crucial: são eles que podem, aos poucos, convencer a gente de que é nossa vida concreta que nos define, não nossa função produtiva.

P.S.: Um sonho recorrente propõe que reaprendamos a colocar raízes, ou seja, a definir nossa identidade por uma parcela de terra que nos sustentaria, que seria nossa e à qual pertenceríamos. Em 1932, Henry Ford, consternado pela crise que assolava os EUA, aderiu ao movimento da volta à terra. Declamou: "A terra! É lá que estão nossas raízes. Nenhum seguro-desemprego pode se comparar à aliança entre um homem e seu pedaço de terra". Curioso precursor de João Pedro Stedile, ele imaginava (e nisso tinha razão) que, se cada um mantivesse uma relação íntima com seu lote de terra, o desemprego poderia ser um aperto econômico, mas não uma queda no vazio. Pena, já era tarde demais para isso.