quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Pesquisas de grupo


Queremos ver as crianças felizes e jocosas. Portanto, nós preferimos emburrecê-las a aborrecê-las



FRANCISCO, 8, anuncia: "Preciso fazer uma pesquisa para um projeto de grupo sobre a China".
Encarregado das ilustrações, Francisco "pesquisa" no Google Imagens.

A impressora está em pane; alguém leva Francisco e seu pen-drive para a casa da tia, a qual interrompe seu jantar para imprimir os arquivos.

Em menos tempo (e sem mobilização familiar), Francisco poderia ter memorizado três boas páginas sobre a China, seus costumes, sua história etc.

Há 20 anos, como pai, padrasto, professor e terapeuta, sou perseguido pelas "pesquisas de grupo".

A moda do trabalho escolar em grupo evoca, aos meus ouvidos, a fala de colegas que, nos anos 70, improvisavam grupos terapêuticos. Os tempos são duros, eles diziam, e o paciente pagará a metade do que custa uma sessão individual.

De fato, a terapia de grupo não é uma espécie de excursão de ônibus (mais barata para os turistas e mais rentável para o cicerone): ao contrário, ela é uma forma específica de terapia, na qual a dinâmica do grupo mobiliza aspectos da subjetividade que seriam de acesso e manejo árduos numa terapia individual.

Ou seja, na terapia de grupo, a existência do grupo permite algo que aconteceria mais dificilmente numa terapia individual.

Será que o mesmo não deveria valer para os trabalhos em grupo nas escolas? O trabalho em grupo só se justificaria se ele permitir que o aluno tenha uma experiência diferente, mais rica da que é proporcionada pelo trabalho individual.

Alguns dirão que isso é o que acontece: o trabalho em grupo promove uma socialização que é crucial para a criança. Poderia responder que um pouco de solidão garante o silêncio necessário para que o aluno desenvolva uma vida interior.

Mas a questão é esta: quantos professores têm a competência e o entusiasmo pedagógicos necessários para propor um trabalho de grupo que não seja apenas uma excursão mais barata por ser de ônibus?

Também faz 20 anos que ouço crianças anunciando que seu dever de casa é uma "pesquisa" - nas enciclopédias, nas revistas, nos livros dos pais, nas bibliotecas, na internet e no Google.
Ora, procurar uma palavra num dicionário, numa enciclopédia ou no Google, é, justamente, uma procura -não é uma pesquisa.

Ler dez, 20 ou mesmo 50 livros sobre um tema não é pesquisar, é apenas se informar e estudar.
Se, a partir dessas leituras, alguém costurar uma nova interpretação dos fatos, essa engenharia do pensamento será suficiente para um trabalho de conclusão de curso, para uma dissertação de mestrado e até para uma tese de doutorado, mas ainda não será propriamente pesquisa.

Fazer pesquisa significa produzir (ou almejar produzir) um saber novo, inédito.
Imaginemos que Francisco, depois de passear pelo Google, leia dez livros sobre a visão da China pelos primeiros que viajaram para lá.

Isso seria estudo, não pesquisa. Agora imaginemos que, ao longo dessas leituras, ele se pergunte quais relatos de primeiros viajantes fossem conhecidos por Marco Polo.

Francisco poderia ir a Veneza e vasculhar a Biblioteca Marciana ou o Archivo di Stato até encontrar o testamento de Marco Polo, no qual o explorador talvez tivesse listado seus livros mais preciosos.

Essa, sim, seria uma pesquisa (aviso, para evitar viagens inúteis: o testamento de Marco Polo já foi encontrado há tempos).

Resta a pergunta: por que diabos, aparentemente, gostamos de convencer nossas crianças de que uma procura no Google seria pesquisa?

Por que diabos encorajamos trabalhos em grupo que são apenas maneiras de dividir as tarefas e minimizar o esforço? Por que, em geral, exigimos cada vez menos de nossas crianças?

A resposta usual (e certeira) é a seguinte: amamos nossas crianças como continuações de nós mesmos. Para compensar nossas frustrações, queremos vê-las continuamente saltitantes e jocosas. Portanto, preferimos emburrecê-las a aborrecê-las.

Mas é preciso completar essa resposta. Amamos as crianças porque elas poderão corrigir nossa vida quando não estivermos mais aqui.

É impossível que esse tipo de amor não seja contaminado por uma ambivalência, pois a vida futura das crianças é o símbolo de nossa mortalidade.

Nossa inveja (mais ou menos raivosa) pode, por exemplo, expressar-se assim: tudo bem, as crianças nos sobreviverão, só que a sua vida será inculta e chata -bem-feito, quem mandou não morrer com a gente?

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

"Bravura Indômita"


A liberdade do indivíduo solto no mundo não é abstração nem ficção; ela é nosso passado concreto



PASSEI JULHO e agosto de 1969 no sítio do meu então sogro, Bob Bond, , na periferia de Houston, Texas.

Bob, mestre de obras, estava entre dois empreendimentos, de férias. Eu, vindo da Europa e fascinado pela televisão que emitia a noite toda, não dormia nunca. Bob levantava antes do amanhecer e me puxava de diante da televisão para me enfiar na sua caminhonete e me levar a Galveston, de onde saíamos de lancha; pescávamos na primeira luz da manhã e arrastávamos uma rede pelo fundo arenoso do mar, para juntar camarões para o almoço.

De volta a Houston, cuidávamos de seus cavalos, que viviam soltos. Nos sítios da região, as cercas eram usadas sobretudo ao longo da estrada asfaltada: bichos e humanos circulavam, livres, numa vasta extensão aberta.

No meio de uma noite, Wolfgang, o pastor-alemão da casa, explodiu em latidos. Bob apareceu na sala, tranquilo, de pijama, botas, chapéu Stetson e dois revólveres na mão. Sem falar nada, desligou a televisão e me entregou uma das armas, na escuridão. Logo, ele pegou uma lanterna, que não ligou, e saiu de casa; eu fui atrás dele.

No breu, vinha na nossa direção, com uma lanterna acesa, um homem alto e magro, com um Stetson igual ao de Bob; ele puxava o baio que era o mais lindo dos cavalos de Bob. Wolfgang dava círculos ao redor do intruso, latindo, mas intimidado pela própria calma do homem. Era um vizinho: ele tinha encontrado o baio na estrada e o levava de volta para nós. Bob agradeceu e conversamos; as duas lanternas que, na noite, pareciam um fogo de acampamento, os chapéus, a presença das armas nas nossas mãos, tudo evocava um quadro noturno de Frederic Remington (sei lá, http://migre.me/3SqO6).

Numa tarde de agosto, Bob e eu assistimos a "Bravura Indômita", de H. Hathaway, com John Wayne. As primeiras palavras de Bob, saindo do cinema, foram: Você imagina Rooster Cogburn parando para abrir uma porteira no meio do caminho? Para Bob, o arame farpado era o símbolo de tudo o que impede de "move on", de ir em frente, não apenas geograficamente.

Bob teria amado o novo "Bravura Indômita", dos irmãos Coen, porque o filme (assim como o livro de Charles Portis, Alfaguara), sem perder o humor, é mais soturno que o de 69, mais atento à gravidade das questões que ele levanta.

Bob gostaria de ver levada a sério a ideia de que a vingança privada pode ser toda a justiça da qual precisamos. Ele também gostaria de uma visão do mundo em que os bandidos não sofrem de leis interiorizadas ou culpas e os delegados não são animados por vocações morais, ou seja, em que o conflito entre a lei e o crime é apenas mais um conflito armado.

Foi Bob, na saída daquele cinema de Houston, que me ensinou o ditado pelo qual "a Revolução de 1776 nos deu a liberdade; quem nos deu a igualdade foi Samuel Colt". Incidentemente, os revólveres de Bob eram Colts.

Alguns dirão que é por isso mesmo que, nos EUA, não faltam malucos para sair matando a esmo. Bob apenas notaria que tudo tem um custo. Você quer se vingar? Pode perder um braço. Quer ser livre? Vai encontrar loucos armados por aí.

Talvez os mesmos digam que a liberdade do indivíduo serve só para filmes e romances. No caso, a galopada de Rooster Cogburn seria um mito, que narra (agradavelmente) a transformação da sociedade norte-americana no fim do século 19. Certo; é isso mesmo. Mas a liberdade dos protagonistas de "Bravura Indômita" não é uma abstração nem uma invenção estética, é um passado concreto, que permanece no âmago de nossa ideia de liberdade.

Esse passado começou na Europa da "sociedade cavaleiresca" (livro essencial de Georges Duby, Martins Fontes), quando os poderes instituídos eram sempre distantes, enquanto o bem e o mal estavam nas mãos de homens armados errando e lutando pelas florestas que cobriam o continente.

A invenção dos EUA apenas aprimorou: no meio de um território tão selvagem quanto o da Europa do ano 1000, em vez de cavalheiros e bandidos católicos, foram soltos protestantes insubmissos a qualquer autoridade que lhes dissesse o que pensar.

Pois bem, como Bob, tenho saudade do Velho Oeste.

Uma sugestão. Se você tem uma filha entre dez e 16 anos, assista ao filme com ela e constate: é extraordinário como infantilizamos nossas crianças (e como elas se aproveitam disso para se infantilizar).

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Para que servem bonecos e bonecas?


É graças aos bonecos que a criança pode mutilar, despedaçar e queimar os ídolos que lhe são propostos


KEN, O companheiro de Barbie, chega aos 50 anos e não envelhece: a camiseta de sua última versão anuncia, sem falsa modéstia, que ele continua sendo "o namorado perfeito".

Tenho mais simpatia por Barbie que por Ken. Barbie foi detestada pelas feministas por ser incansavelmente consumista e narcisista. No entanto, ela foi uma batalhadora, competindo com os garotos em todos os campos do saber e do trabalho. Ken, em compensação, sempre me pareceu desmiolado por sua própria convicção de ser o objeto irresistível do desejo de todos -homens e mulheres (tudo bem, concordo: ele se redimiu um pouco em "Toy Story 3").

Enfim, o aniversário de Ken está sendo celebrado com um novo boneco, Sweet Talking Ken (Ken fala doce), que contém um sistema de gravação e fala: você aperta seu coração e grava a frase que ele repetirá quando você soltar o botão. Nos EUA, a propaganda diz: Ele é o namorado perfeito para todas as ocasiões. Por quê? Porque ele diz tudo o que você quer que ele diga.

De fato, apresentei o boneco a uma menina de 12 anos, que aprovou: os garotos não têm muito para dizer, melhor a gente escolher o que eles vão falar. Será que ela tem razão? Eis o caso que fez que, no fim de semana passado, eu me interessasse por Ken.

Um casal de conhecidos me ligou dos EUA, preocupado. Eles ofereceram o novo Ken à filha de oito anos, e logo constataram que o irmão (quatro anos mais velho) brincava com ela feliz (fato raro). Ótimo, eles pensaram -até perceberem que o jogo funcionava assim: o rapaz se enfiava no closet, gravava uma fala de Ken, saía e soltava o botão (e o verbo) para Barbie e a irmã ouvirem. Das frases que os pais escutaram, a mais simpática era: "Vou te encher de porradas, sua vaca".

Aparentemente, a menina achava graça, mas os pais não gostaram e mandaram o rapaz escrever cem vezes
"Devo respeitar minha irmã e todas as meninas". Como se não bastasse, logo naquele dia, os pais verificaram o histórico do uso da internet pelo filho e descobriram que ele tinha descarregado três vídeos mórbidos, em que uma garota, presumivelmente australiana, tortura uma boneca Barbie -quem tiver estômago, confira: migre.me/ 3PE9X. O rapaz confessou gostar de suplícios aplicados a bonecos e bonecas.

Recomendei um psicólogo e sugeri que o rapaz mostrasse os vídeos a seu terapeuta (se o colega fizer seu trabalho como manda o figurino, a garota australiana receberia um dia a visita preventiva de um serviço social de seu país).

Agora, patologias à parte, por que será que maus-tratos e torturas aplicados em bonecos e bonecas são estranhamente populares?

Barbie é um modelo impraticável para as meninas e um sonho impossível para os meninos. Mudando os gêneros, o mesmo vale para Ken (que também é vítima de suplícios pela net afora). Barbie e Ken, em suma, são ideais inatingíveis, e essa seria uma boa razão para odiá-los: eles estariam sendo supliciados por um bando de frustrados que não conseguem ser como eles ou que não encontram parceiros como eles.

Concordo em termos: bonecas e bonecos não servem apenas para propor ideais deprimentes de tanto que eles estão fora do alcance da espécie humana, eles servem para tornar esses ideais acessíveis. Como assim? Simples: é graças aos bonecos que cada criança pode mutilar, despedaçar e queimar os ídolos que lhe são propostos.

Ao longo da infância, tive bonecos e soldadinhos lindos; mais de uma vez decidi e jurei que eu os conservaria intatos. Mas nunca consegui. Misteriosamente, minhas mãos bem intencionadas sempre acabavam os ultrajando brutalmente. Por quê? Suspeito que os bonecos nos sirvam para nos livrar do estereótipo de nossa própria infância feliz (a infância que todos os adultos parecem desejar por nós): não sou nem serei perfeito como um boneco, até porque, de qualquer forma, olhe só, Barbie está queimando na cruz e Ken está passando por apuros parecidos. Que alívio!

De 12 a 28 de fevereiro, no shopping Pátio Higienópolis, em São Paulo, Ken será homenageado na exposição "Barbie & Ken - O Casal Perfeito". Antes de passear por lá, só para se lembrar de que "perfeito" é um jeito de falar, procure, na internet, as obras dos anos 90 (David Levinthal, Carol McCullen), em que Barbie era ultrajada e deturpada, como talvez seja normal e bom que aconteça com bonecas e bonecos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Todos os reis estão nus


Que Deus nos guarde de todos os que não enxergam sua própria nudez, sejam eles reis ou não



JÁ ESTÁ em cartaz (pré-estreia) "O Discurso do Rei", de Tom Hooper. O filme foi indicado ao Oscar em doze categorias; a atuação de Colin Firth (o rei) é tão inesquecível quanto a de Geoffrey Rush (o terapeuta).

Resumo. Quando George 5º morreu, o filho primogênito lhe sucedeu (com o nome de Eduardo 8º), mas por um breve período: logo ele abdicou, por querer uma vida diferente daquela que o ofício de rei lhe proporcionaria. Com isso, o cadete, duque de York, tornou-se rei -inesperadamente e num momento decisivo: era a véspera da Segunda Guerra Mundial.

O duque de York (e futuro George 6º) era tímido, temperamental e, sobretudo, gago -isso numa época em que, graças ao rádio, a oratória dos ditadores incendiava as praças do mundo: na hora do perigo, para que serve um rei se ele não consegue ser a voz que fala para o povo e por ele?

O filme, imperdível, conta a história (verídica) da relação entre o rei e seu terapeuta, Lionel Logue, um fonoaudiólogo australiano pouco ortodoxo. Eis algumas reflexões saindo do cinema.

1) Qualquer terapia começa com uma dificuldade prática: uma impotência, a necessidade de um conselho, uma estranha tensão nos ombros, uma gagueira. A relação terapêutica se constrói a partir dessa dificuldade: o terapeuta é quem saberá nos livrar do transtorno, seja ele fonoaudiólogo, terapeuta corporal, eutonista, psi (de qualquer orientação) etc.

Quer queira quer não, a ação do terapeuta é dupla: relaxaremos o ombro, exercitaremos a dicção ou endireitaremos o pensamento do paciente, mas, de uma maneira ou de outra, acabaremos mexendo nas fontes de um mal-estar mais geral que talvez se manifeste no transtorno.

2) Há, às vezes (mais vezes do que parece), escondidas no nosso âmago, ambições envergonhadas ou vergonhosas, que não confessamos nem a nós mesmos. Quando sua realização se aproxima, só podemos inventar jeitos de fracassar, porque, no caso, não nos autorizamos a querer o que desejamos.
Obviamente, detestamos a voz do terapeuta que se aventura a nos dizer o que queremos mas não nos permitimos. Essa voz atrevida é a única aliada de desejos que são nossos, mas que encontram um adversário até em nós mesmos.

3) No trabalho psicoterapêutico, o segredo de polichinelo é que, por mais que suspendamos diplomas em nossas salas de espera, somos todos leigos e aventureiros. Não sei se existem cursos ou estágios que ensinem a ouvir o que Logue ouve e entende do desejo escondido do duque de York. Certamente não há formações que ensinem a coragem maluca do terapeuta do rei, seu esforço para se colocar, sem medo, ao serviço do que o duque e futuro rei não quer saber sobre si mesmo.

4) Pensando bem, Logue (como Freud) tinha, sim, uma formação que o qualificava como conhecedor da alma humana e especialmente da dos reis: a leitura de Shakespeare.

5) Quase sempre, chega o dia em que um paciente descobre que seu terapeuta sabe muito menos do que ele (o paciente) imaginava. O paciente pode até pensar que o terapeuta, atrás de seu bricabraque de saberes práticos, é um impostor. É ótimo que isso aconteça, pois, geralmente, é sinal de que o paciente descobriu que ele também é um impostor. No caso, o terapeuta não é qualificado para ser terapeuta, exatamente como o rei não é qualificado para ser rei. (Parêntese: em geral, é assim que nasce uma amizade: os dois se tornam amigos por aceitarem estar ambos nus, como o rei da fábula - mesmo que seja só por um instante.)

Não há como ser terapeuta ou rei sem alguma impostura. Todos carregamos máscaras. Avançamos mascarados, enfeitados por mentiras que nos embelezam. Até aqui, tudo bem: essa impostura é uma condição trivial e necessária da vida social. Os melhores conhecem sua impostura e sabem que não estão à altura de sua máscara.

Os piores se identificam com sua máscara. Acreditar nas máscaras que vestimos é um delírio que nos torna perigosos. Não há diferença entre o rei que acreditasse ser rei, o terapeuta que acreditasse ser terapeuta e o anjo exterminador que saisse atirando e matando, perfeitamente convencido de ser uma figura do apocalipse. Os três teriam isto em comum: acreditariam ser a máscara que eles vestem.

Enfim, que Deus nos guarde de todos os que não enxergam sua própria nudez.