tag:blogger.com,1999:blog-25616368337028787652024-03-05T21:18:23.700-08:00C.CalligarisCalligarisalamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.comBlogger732125tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-45105296280174960272013-07-25T07:07:00.000-07:002013-08-04T07:14:04.036-07:00O papa no Rio<h1>
<br /></h1>
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Aeroporto do Galeão, domingo de manhã. O pouso do avião que trazia meu
enteado estava previsto para as 8h30, mas aconteceu com uma hora de
atraso --e, sobretudo, ele só recuperou a mala e saiu da alfândega ao
meio-dia.
<br />
O aeroporto do Rio parecia uma praça de Roma num filme de Fellini:
monges, freiras e padres por todos os lados, conversando numa Babel de
línguas. Uma tropa de jovens argentinos, de camiseta azul e branco e com
uma cruz no peito (ou nas costas?), cantava em coro alguma música, que
eu não reconheci, mas de que Deus devia gostar à beça.
<br />
Outro grupo, na área de espera, misturava cantoria com batucada. Alguém
rabugento poderia pensar: e se eu não estivesse a fim de ouvir?
<br />
Um pensamento idêntico me ocorreu à tarde, enquanto caminhava pela praia
de São Conrado. Um carro passou por mim. Na verdade, não um carro, mas
um som poderoso, veiculado por uma sucata dos anos 1980 e tocando
rap-funk.
<br />
Os três jovens no veículo faziam um esforço considerável para parecer
mal-encarados (seu jeito de "esquentar" as minas e intimidar os
passeantes). Será que os jovens cantando no aeroporto, comparados com a
gangue do carro, eram "angelicais"? Não, os dois grupos eram igualmente
belicosos e desagradáveis; ambos queriam me obrigar a tocar a vida ao
som da trilha deles.
<br />
Domingo, houve um arrastão por peregrinos na praia de Ipanema (foto na capa da <b>Folha</b>
de segunda). Se eu estivesse na areia, tomando sol com caipirinha,
teria detestado; talvez achasse melhor um arrastão tradicional, de
celulares e carteiras.
<br />
Com isso, fiquei feliz, na segunda, ao saber que, no largo do Machado,
bem onde peregrinos da Jornada Mundial da Juventude católica esperavam
seu transporte, um grupo de mulheres dançava exibindo os seios. Os
jovens peregrinos vaiaram.
<br />
Lembrei-me de que, nos meus anos de faculdade, em Genebra, um amigo, que
morava perto de Plain palais, tinha adotado uma resposta sistemática
aos missionários mórmons e testemunhas de Jeová que batiam à sua porta
com frequência: ele sempre abria a porta completamente nu. E, se
estivesse com a namorada, fazia questão que os dois abrissem a porta
juntos. Provocação por provocação, acho a de meu amigo e das mulheres do
largo do Machado mais engraçada.
<br />
Você acha essas atitudes infantis e um pouco primárias? Tudo bem, vamos
falar de coisas primárias. O kit recebido pelos peregrinos inclui um
"Manual de Bioética", de 75 páginas, produzido originalmente na França
pela fundação Lejeune.
<br />
Como mostrou a reportagem de Fabio Brisolla na <b>Folha</b> de segunda,
esse livrinho de "ética" é imperdível (confunde aborto com contracepção,
propõe juízos de valor como verdades "científicas" etc.).
<br />
Para ter uma ideia da qualidade dos argumentos, na hora de atacar a
reprodução assistida (pág. 35), o livrinho lembra que, em 2004, só na
França, "havia cerca de 120 mil embriões congelados": essa frase é
acompanhada pela imagem de um menino que treme de frio... Campanha do
Agasalho para os embriões?
<br />
A edição brasileira contém um acréscimo sobre "A Teoria do Gênero", que
eu mesmo não sei o que é. Também não sei decidir se o tal capítulo foi
escrito mais com má-fé ou com ignorância --talvez com uma combinação das
duas.
<br />
Na pág. 73, por exemplo, lemos: "Os adeptos da teoria do gênero [?]
pretendem que, por um simples ato de vontade, poderíamos alterar a
realidade do que somos, escolhendo a nossa identidade sexual: 'Eu não
sou o corpo que tenho'." Mamma mia! Só para começar: descobrir-se um dia
em desacordo com seu próprio corpo (que não tem nada a ver com
"escolher" a identidade sexual) é uma experiência dramática e dolorosa,
que merece, no mínimo, respeito.
<br />
O autor do livrinho me fez pensar no professor de religião de meu último
ano de colégio, que, para contestar a teoria darwinista, declarou que
ele daria um soco em quem lhe sugerisse que a mãe ou a avó dele eram
macacas. A classe riu, e ele deve ter pensado que sua grosseria nos
conquistara. Erro: naquele dia, a classe inteira se tornou darwinista.
<br />
Bom, para celebrar a vinda de papa Francisco, também li algo melhor,
"Sobre o Céu e a Terra" (Paralela), diálogo entre dois líderes
religiosos de Buenos Aires, papa Francisco (à época do diálogo ainda
cardeal Bergoglio) e o rabino Skorka.
<br />
<br />
Ainda comentarei esse livro, mas, primeiro, preciso de um tempo para
esquecer minha irritação com o paternalismo, que enfia um livrinho meio
infame na goela dos peregrinos e reserva sua cara mais civilizada aos
que sabem ler.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-67674960710193808152013-07-11T07:05:00.000-07:002013-08-04T07:06:10.587-07:00O partido da aventura<h1>
<br /></h1>
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Nos anos 1970, na Itália, "il partito dell'avventura" era o golpismo que
queria desestabilizar a democracia. De que forma? Insuflando os peitos
da classe média com inquietudes e medos abstratos. Uma indignação
generalizada (sem alvos muito específicos e circunscritos) e a sensação
de insegurança (produzida pelo terror) levariam o povo a recusar o
sistema no seu conjunto: a rua exigiria a renúncia do governo, o
fechamento do Parlamento e o fim de partidos e sindicatos.
<br />
Se esses pedidos se impusessem, temíamos que a porta se abrisse para
"aventuras" políticas imprevisíveis e (argumentávamos, baseando-nos na
história recente) totalitárias: nostalgias fascistas ou sonhos
stalinistas.
<br />
No retrospecto, estranho a facilidade com a qual parecíamos menosprezar a
perspectiva da "aventura". Certo, as indignações generalizadas geram um
futuro incerto, que ninguém sabe no que dará e que talvez dê em algo
perigoso. Mas é curioso que a aventura, com sua promessa de mudanças
radicais, não nos seduzisse nem um pouco.
<br />
Seja como for, estamos, hoje, num momento bom para o partido da
aventura. Imagine uma pesquisa nacional que colocasse, em qualquer
ordem, por exemplo, as perguntas que seguem.
<br />
Primeiro, sobre o Legislativo. Você quer que os nossos representantes
parem de usar os aviões da FAB como táxi aéreo? Quer que eles possam ser
eleitos só por um mandato? Quer que eles tenham um regime de INSS igual
ao de todo mundo? Quer que eles sejam obrigados a recorrer
exclusivamente aos serviços públicos de educação e saúde (pela qualidade
dos quais, afinal, eles são responsáveis)? Você quer que eles não
possam decidir os aumentos de seus próprios salários e mordomias? Enfim,
você aceitaria que o Parlamento fosse fechado, e que novas eleições
fossem convocadas, em que nenhum representante atual pudesse ser
candidato?
<br />
Logo, o Executivo. Você acha que os ministérios existem como objetos de
barganha política mais do que por necessidade de governo? Quer que o
governo corte pela metade seus 39 ministérios? Você gostaria que o
governo renunciasse e alguém de reputação ilibada, sem disposição para
compromissos e negociatas, tomasse as rédeas do poder?
<br />
Não inventei nenhuma dessas perguntas. Cada uma delas está (com muitas
outras) em vários e-mails que recebi nas últimas semanas. Talvez uma
pesquisa desse tipo seja por si só uma "aventura" perigosa: se a
resposta majoritária fosse positiva, a desmoralização da classe política
inteira seria brutal.
<br />
Não tenho nenhuma simpatia pela ideia de uma figura salvadora
providencial --Collor foi eleito com essa imagem, e olhe no que deu.
<br />
Por outro lado, desconfio de qualquer ordem estabelecida que tente se
manter e se legitimar chantageando-nos com o espantalho de um futuro
incerto: aceite a gente e as coisas assim como estão ou prepare-se para o
risco da "aventura", ou seja, "depois de nós, o dilúvio". Dizem que sem
partidos e sem Parlamento não há democracia; será? Apenas 240 anos
atrás, quando a revolução americana inventou a república moderna, o
mundo inteiro dizia que sem rei não haveria governo possível.
<br />
Numa entrevista publicada na <b>Folha</b> de segunda (8), um sociólogo
italiano, Paolo Gerbaudo, citando Gramsci, falou dos "sintomas mórbidos"
que aparecem no "interregnum", "quando um sistema de poder está em
colapso, mas seu sucessor ainda não se formou". São "fenômenos
estranhos, criaturas monstruosas e difíceis de serem decifradas. Hoje,
as criaturas estranhas são esses movimentos populares". Um exemplo
dessas criaturas? Depois da Primeira Guerra Mundial, as massas italianas
e alemãs que se lançaram na "aventura" do fascismo, do nazismo e da
Segunda Guerra.
<br />
Note-se que nem todos os sintomas mórbidos levam a um desfecho sinistro.
Ao longo da história, houve "aventuras" que acabaram bem. Mas entendo o
olhar atônito do governo e do Parlamento, pois a questão é saber para
quem a aventura em curso acabará bem.
<br />
Pode ser que, aos poucos, as manifestações populares se acalmem. Mas
talvez algo irreversível tenha acontecido: uma desconfiança, que existia
há tempos (se não desde a origem do país), agora se tornou exasperação.
E a exasperação é quase sempre um prelúdio. Ao quê? Seria sábio ter
medo?
<br />
<br />
Uma coisa é certa: a responsabilidade pela eventual "aventura" de hoje
não é das massas exasperadas, é de quem as encurralou até a exasperação.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-84981846785887480522013-07-04T07:03:00.000-07:002013-08-04T07:03:52.871-07:00Desacato<h1>
<br /></h1>
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<br /></div>
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Em 2010, quando quis marcar o dia da inspeção veicular do meu carro, já
não havia mais horários. A primeira data disponível era depois do fim do
prazo de minha placa.
<br />
A inspeção descobriu que meu escape estava furado. Naquele dia, a
caminho do mecânico que trocaria o tubo, meu carro passou por um radar e
foi multado por circular sem certificação ambiental. Isso, eu descobri
quando a multa chegou.
<br />
Tudo bem, não riam de mim, é que morei muito tempo na Europa e nos EUA,
mas eis o que eu fiz: escrevi uma bonita carta ao DSV, Departamento de
Operação do Sistema Viário, incluindo cópia dos documentos que atestavam
1) minha passagem pela inspeção na manhã do dia da multa, 2) o
resultado da inspeção, 3) minha passagem pelo mecânico no mesmo dia, 4) a
inspeção final.
<br />
Expliquei que eu tinha sido multado no trajeto entre a inspeção e o
mecânico que consertaria o defeito encontrado e pedi que o departamento
reconsiderasse a multa.
<br />
Talvez eu merecesse a multa de qualquer forma (pelo atraso inicial), mas
a questão é: você recebeu resposta? Eu, nem sequer um sinal de que
alguém tinha recebido minha correspondência.
<br />
O tempo passou. Neste ano, 2013, uma vez o IPVA pago, o licenciamento
demorava a chegar. Um despachante descobriu que a multa de 2010, com
juros e correção monetária, tinha reaparecido e impedia que meu carro
fosse licenciado.
<br />
O despachante "nunca riu tanto" quanto ao escutar a história de minha
carta etc. --coisa de gringo mesmo, essa de acreditar que, naquele
endereço indicado nas notificações, alguém se daria à pena de ler e
responder a um cidadão.
<br />
Essa história me custou algum dinheiro, mas não fui pessoalmente nem à
inspeção nem ao Detran. É minha desobediência civil de privilegiado:
pago, mas não deixo o Estado abusar do que tenho de mais precioso, meu
tempo.
<br />
Para o Estado, em geral, o tempo do brasileiro não vale nada, e essa
desvalorização do tempo do cidadão talvez seja mais injuriosa do que as
eventuais falhas nos serviços. Nos serviços, podem faltar recursos
(somos pobres), mas o descaso com o tempo do cidadão é só desprezo.
<br />
O mesmo desprezo aparece no fato de que a administração brasileira
carece de mecanismos para proteger o cidadão contra os abusos do poder.
Nos Estados democráticos, proteger o indivíduo é uma das grandes
preocupações dos legisladores.
<br />
Nos Estados totalitários (modernos e antigos) ou nos Estados de origem
colonial acontece o contrário: o legislador protege a administração (o
partido único, a "coletividade", o império, a corte de Lisboa, tanto
faz) contra o reles súdito.
<br />
Um leitor, Bárbaro, comentando a coluna da semana passada, assinala que
os brasileiros não são vítimas só de descaso, "mas de intimidação mesmo,
como atestam aqueles famigerados cartazes em qualquer repartição
pública alertando o pobre cidadão que o desacato a funcionário público
no exercício de seu trabalho é crime" (pena de seis meses a dois anos de
detenção ou multa).
<br />
Talvez a reforma em curso do Código Penal acabe com o crime de desacato,
que é uma pura coação do Estado contra o cidadão. Enquanto isso não
acontece, proponho que, nas repartições públicas, ao lado do cartaz do
desacato, seja pendurado outro, que lembre as punições para o
funcionário e para o próprio Estado quando eles desacatam o cidadão que
eles deveriam servir.
<br />
É uma boa ocasião, aliás, para sugerir que o termo "funcionário público"
seja substituído por "servidor público". O que importa não é preencher
bem uma função num governo ou numa administração: os torturadores eram
ótimos funcionários da ditadura; o que importa é cumprir honradamente a
tarefa de servir os cidadãos.
<br />
A ausência de canais pelos quais seja realmente possível se queixar
(junto com a ideia intimidante de que a queixa pode ser entendida como
desacato) são provas da necessidade de uma reforma política profunda,
que mude a relação do Estado com o cidadão.
<br />
Esta é uma coisa que qualquer psicanalista e psicoterapeuta constatam e
que vale no consultório e fora dele: escutar não é apenas uma condição
para saber o que curar e como, escutar é tão importante quanto curar. Um
governo que não escuta não terá legitimidade, mesmo que consiga curar
alguns ou todos os males.
<br />
<br />
Justamente, o silêncio do DSV fez com que eu gostasse de ver, alguns
dias atrás, as vidraças do Detran quebradas pelas pedras dos
manifestantes.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-44002359420849624362013-06-28T13:58:00.004-07:002013-06-28T13:58:43.421-07:00Qual baderna?<b><i>Em agosto de 1792, Maria Antonieta devia achar que os que se juntavam na frente das Tuileries eram baderneiros ignorantes. </i></b><br />
<b><i><br /></i></b>
Em dezembro de 1773, o governador inglês da província de Massachusetts devia pensar a mesma coisa dos "filhos da liberdade", que se disfarçavam de índios, subiam nos navios, jogavam o chá no mar e não queriam pagar os impostos.<br />
<br />
Na época, Samuel Adams explicou que, mesmo se esses homens fossem apenas vândalos descontrolados, eles seriam, de fato, os defensores dos direitos básicos do povo das colônias.
A maioria dos paulistanos (e, suponho, dos brasileiros) pensa como Samuel Adams e deseja que as manifestações continuem, por uma razão que está muito além da tarifa dos ônibus: a relação do poder público com os cidadãos do Brasil é, sistematicamente, há muito tempo, de descaso e desrespeito, se não de abuso.<br />
<br />
A escola e a saúde públicas são o destino resignado dos desfavorecidos. A insegurança se tornou uma condição existencial, tanto no espaço público quanto dentro da própria casa de cada um. O atraso da Justiça garante impunidades iníquas.
Claro, nossa arrecadação per capita é menos de um terço da dos EUA, por exemplo. Ou seja, talvez tenhamos os serviços públicos que podemos nos permitir.<br />
<br />
Convenhamos, seria mais fácil aceitar essa triste realidade 1) se a corrupção não fosse endêmica e capilar, especialmente na administração pública, 2) se os governantes baixassem o tom ufanista de nossos supostos progressos e sucessos, 3) se a administração pública não fosse cronicamente abusiva e desrespeitosa dos cidadãos e de seus direitos.<br />
<br />
Além disso, o dinheiro no Brasil compra uma cidadania VIP, na qual não só escola, saúde e segurança são serviços particulares, mas a própria relação com a administração pública é filtrada por um exército de facilitadores e despachantes.
A sensação de injustiça é exacerbada pela constatação de que muitos representantes procuram ser eleitos para ganhar acesso à dita cidadania VIP.<br />
<br />
Por isso, hoje, circulam aos borbotões, na internet, propostas de reforma política em que, por exemplo, 1) os membros do Legislativo e do Executivo seriam obrigados a recorrer, para eles mesmos e para seus filhos, aos serviços da educação e da saúde públicas, 2) os congressistas não teriam nenhum regime privilegiado de aposentadoria, 3) os congressistas não poderiam votar o aumento de seus próprios salários etc.<br />
<br />
Para piorar, os representantes parecem se preocupar pouco com os compromissos de seu mandato e muito com sua própria permanência nos privilégios do poder. Por isso, por exemplo, eles compõem alianças que desrespeitam e humilham seus próprios eleitores.
Nesse contexto espantoso, é patética a indignação com os "baderneiros" e mesmo com a margem de delinquentes comuns que se agregaram às manifestações.<br />
<br />
O poder, quando não é efeito de graça divina, vem dos próprios cidadãos e é condicional: só posso reconhecer e respeitar a autoridade que me reconhece e me respeita. Uma autoridade que me desrespeita merece uma violência equivalente à que ela exerce contra mim.
Além disso, é bom não perder o senso das proporções. "Olhe, olhe!", grita um repórter, enquanto a tela mostra alguém que foge de uma loja saqueada levando algo no ombro.<br />
<br />
Tudo bem, estou olhando e não estou gostando, mas minha indignação é mais antiga e por saques muito maiores.
Outro repórter pensa nos coitados que perderão o avião, em Cumbica, por causa dos manifestantes que bloqueiam o acesso ao aeroporto. Mas o verdadeiro desrespeito é o de nunca ter construído uma linha de trem entre São Paulo e o maior aeroporto do país.<br />
<br />
O ministro Antonio Patriota se declarou indignado com o vandalismo contra o Palácio do Itamaraty. Com um pouco de humor negro, eu poderia suspeitar que os apedrejadores talvez tenham precisado um dia dos serviços de um consulado no exterior. Mas, deixemos.<br />
<br />
Apenas pergunto: se esses forem vândalos, então o que são, por exemplo, os latifundiários desmatadores da Amazônia?
Enfim, à presidenta Dilma gostaria de dizer: não acredito que os "baderneiros" das últimas semanas tenham envergonhado o Brasil --nem mesmo quando alguns depredaram o patrimônio público.<br />
<br />
Presidenta, você sabe isto mais e melhor do que muitos de nós: o que envergonha o Brasil é uma outra baderna, bem mais violenta, que dura há 500 anos e que gostaríamos que parasse.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-14971570583025423682013-06-22T02:16:00.000-07:002013-06-22T02:16:12.052-07:00Sonhos de calor humano <h1>
<span style="font-size: small;"><i>Na sexta-feira passada, estreou o último filme de Richard Linklater,
"Antes da Meia-Noite", que eu estava aguardando. Mas, enquanto as ruas
pegam fogo, é difícil escrever sobre o amor.</i></span></h1>
As manifestações que se espalharam (e seguem se espalhando) por São
Paulo e por outras cidades do país me impressionaram pela rapidez com a
qual o protesto, supostamente motivado pelo aumento das passagens de
ônibus, tornou-se expressão de outras insatisfações, profundas e
cruciais --contra a má qualidade e a má gestão do que é público, contra a
insegurança de nossas ruas, contra a corrupção, contra o mistério
nacional que resulta em produtos caros e salários baixos, contra os
políticos com sua falta de competência e seu excesso de promessas,
contra o desperdício da Copa que vem aí, contra a lentidão e a
ineficácia da Justiça, que parece que late e nunca morde etc.
<br />
<br />
Domingo, num café de família, verifiquei, aliás, que as passeatas da
semana passada não eram mais (se é que foram no começo) a manifestação
de uma geração ou de uma classe social (e ainda menos de um partido).
<br />
<br />
Todos parecem cansados de uma cantilena ufanista que quase nos
adormeceu: o discurso do Brasil que dá certo, que cresce (?), que está
no caminho, que resistiu à crise enquanto os outros se deram pior, que
acabou com a miséria (?) etc.
<br />
<br />
Levantando a cabeça atordoada pela propaganda, a gente pergunta: isso aqui é mesmo tudo o que conseguimos ser, como sociedade?
<br />
<br />
As manifestações da semana são frutos de um descontentamento bem
justamente brasileiro. Ao mesmo tempo, elas pertencem a uma voz popular
que se expressa, mundo afora, há tempo --e não só desde Seattle, em
1999.
<br />
<br />
Paradoxalmente, foi assistindo ao filme de Linklater que me pareceu
entender por que somos (e não estamos) insatisfeitos com as sociedades
nas quais vivemos.
<br />
<br />
Linklater filmou uma trilogia: no primeiro filme, "Antes do Amanhecer"
(1995), Jesse e Céline descem do trem onde se encontraram para passear
por Viena, até eles terem que voltar, no dia seguinte, cada um para seu
lugar. No segundo, "Antes do Pôr do Sol" (2004), Jesse está promovendo,
em Paris, o livro que ele escreveu sobre seu encontro em Viena com
Céline; Céline vai ao lançamento, e eles se reencontram.
<br />
<br />
Em "Antes da Meia-Noite", agora em cartaz, Jesse e Céline se juntaram no
fim do filme anterior, tiveram duas filhas e estão de férias na Grécia:
o charme das conversas passadas se transformou num pesadelo, em que uma
oposição estéril, abstrata e inexplicável parece ser o destino a longo
prazo de qualquer conversa de casal.
<br />
<br />
Ou seja, o amor é o encanto de um encontro, um sonho: quando ele se
realiza como convivência, ele pode durar, mas será facilmente cômico e
sempre insuficiente.
<br />
<br />
Ora, essa verdade do amor talvez valha para qualquer projeto de
convivência social. A sociedade que nos parece certa, que desejamos,
existe na mágica do encontro e do sonho (o momento da manifestação, da
militância). Como acontece com o amor, a realização dessa sociedade é
sempre insatisfatória --claro, às vezes ela é um pesadelo absoluto e
totalitário, outras vezes ela é parecida com aqueles casamentos que
continuam porque ninguém acredita que a coisa possa melhorar e porque
ninguém está a fim de ficar sozinho.
<br />
<br />
Ao longo de alguns séculos, o indivíduo se tornou para nós mais
importante do que a comunidade. Esse período teve seu ápice no começo da
modernidade. Paradoxalmente, logo quando o indivíduo passou a encabeçar
nossos valores, a gente começou a idealizar o amor romântico como
doação perfeita de cada um ao outro.
<br />
<br />
Da mesma forma, quando começamos a inventar as regras e as formas de uma
sociedade de indivíduos separados e autônomos, logo naquele momento
começamos a sonhar com o abraço de comunidades unidas e fraternas.
<br />
<br />
Ou seja, quanto mais prezamos o indivíduo, tanto mais sonhamos com o amor e o ideal comunitário.
<br />
<br />
Esse paradoxo nos define. Estamos em conflito permanente entre nossa
aspiração individual e nossos sonhos amoroso e comunitário. Em matéria
de amor, a consequência parece chata (nunca dá certo).
<br />
<br />
Mas em matéria de sociedade, sorte nossa: de vez em quando, podemos nos
acomodar, mas nunca somos satisfeitos com a sociedade que conseguimos
construir.
<br />
<br />
<br />
Melhor assim.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-79452911887727850082013-06-13T00:55:00.004-07:002013-06-13T00:55:47.062-07:00Sex and the city<div class="kicker blue">
<i><b>O extraordinário não é que um casal transe na escadaria, mas que tantos transem só em suas camas</b></i></div>
<div class="kicker blue">
<br /></div>
Numa madrugada de inverno dos anos 1960, em Milão, um jovem casal estava
num carro estacionado numa praça. Dez minutos foram suficientes para
embaçar os vidros e esquentar os corpos.
<br />
<br />
Dois guardas notaram que o carro subia e descia com movimentos
"suspeitos". Eles gritaram "Polícia!" e mandaram abrir. O casal,
intimidado, obedeceu, revelando seus corpos nus ainda enroscados. Os
guardas atuaram a ambos por atentado ao pudor.
<br />
<br />
Um ano depois, os jovens foram inocentados: o juiz reconheceu que eles
só se mostraram porque os guardas mandaram abrir o carro --ninguém
atentara ao pudor de ninguém.
<br />
<br />
Com amigos e amigas, decidimos zombar da polícia e dos cidadãos
bem-pensantes (os quais, em cartas aos jornais, tinham manifestado sua
indignação). Era de novo inverno; estacionávamos nossos carros, não de
noite em lugares ermos, mas de dia, nas ruas mais frequentadas.
<br />
<br />
Assim que os vidros estivessem embaçados, era um exagero de sacudidas,
de modo que ninguém duvidasse que, lá dentro, a gente fazia a festa.
Infelizmente, nenhum guarda nunca bateu nos vidros de nossos carros
trêmulos e protestatórios.
<br />
<br />
Pensei nessa história na sexta passada, quando li a ótima reportagem de Roberto de Oliveira, em "Cotidiano" (<b>Folha</b>,
7 de junho): uma inquilina do edifício Copan, glória de São Paulo,
emprestou seus aposentos para um casal de amigos cariocas. Na noite do
dia 27, o casal subiu pelo elevador até o último andar e se engajou nas
escadas externas. Um segurança viu esse movimento pelas câmeras e foi
atrás, até encontrar o casal no ato (sexual, claro).
<br />
<br />
O síndico do condomínio multou a inquilina (R$ 678) --por escolher "mal"
seus amigos?-- e agora esbraveja que se tratou de um atentado ao pudor.
Mas ao pudor de quem? Se o segurança (que imagino que seja maior de
idade) "foi atrás", é porque estava afim de dar uma espiadinha,
suponho"¦
<br />
<br />
Claro, haverá um carrancudo para perguntar: não podiam ir para seu
apartamento e se deitar na cama? Pois é, não, não podiam. Ou melhor,
podiam, mas deviam achar que seria muito mais chato do que transar com a
vista de São Paulo, o ar frio, a sensação de estar fazendo algo
inusitado, a fantasia de serem vistos de alguma janela do Terraço Itália
e, enfim, o risco de serem surpreendidos pelo segurança do prédio, como
aconteceu.
<br />
<br />
Somos um pouco diferentes dos outros mamíferos. O cheiro do sexo oposto
não é suficiente para nos excitar; precisamos recorrer a fantasias
sexuais --sem isso, nada ou pouco acontece. E, se você acha que não
recorre a fantasia alguma, isso significa apenas que você não sabe a
quais fantasias recorre.
<br />
<br />
O que é extraordinário não é que um casal transe nas escadas externas do
Copan. O extraordinário é que tantas pessoas transem (ou digam que
transam) sempre nas suas camas.
<br />
<br />
Essa é uma opinião excêntrica de psicanalista? Tomemos o caso do risco:
dois grupos parecidos atravessam um precipício por pontes diferentes, um
passa por uma sólida ponte de alvenaria, e o outro, por uma ponte de
cordas. Na chegada do outro lado, quem está mais receptivo para sexo?
Pois é, são os da ponte estilo Indiana Jones.
<br />
<br />
O síndico do Copan declarou inicialmente que o ato era "depreciativo".
Que cada um escreva sua lista das coisas que depreciam nossa vida. Na
minha lista, há corrupção, violência, insegurança, incompetência,
intolerância, estupidez"¦ são as coisas que atentam cada dia ao meu
pudor. Um casal transando não está entre as coisas que depreciam meu
dia, mas entre as que lhe dão valor.
<br />
<br />
A vítima do Copan criou uma conta no vakinha.com.br, pedindo ajuda para
pagar a multa. Quis contribuir ao pagamento da multa, que me parece
injusta. Infelizmente, a conta foi apagada (talvez por causa dos
comentários bestas e agressivos que ela recebeu).
<br />
<br />
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, tirou do ar uma ação de seu
ministério voltada para as prostitutas (e demitiu o responsável pela
campanha), porque ele se escandalizou com a frase "Eu sou feliz sendo
prostituta", que ele substituiu por "Sem vergonha de usar camisinha"
(que ele deve ter complementado mentalmente: "mas com vergonha de ser
prostituta"). O ministro poderia ser candidato a síndico do edifício
Copan.
<br />
<br />
<br />
Caro ministro Padilha, antes de demitir mais colaboradores competentes,
dê uma lida: Gabriela Silva Leite, "Eu Mulher da Vida" (Rosa dos
Tempos), "Filha, Mãe, Avó e Puta" (Objetiva) e (um pouco mais complexo)
Eliana dos Reis Calligaris, "Prostituição "" O Eterno Feminino"
(Escuta).alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-57640061506035611842013-06-06T18:28:00.003-07:002013-06-06T18:28:54.309-07:00Anarquistas, neoliberais e Foucault<div class="kicker blue">
<i><b>Neoliberais e anarquistas têm uma paixão comum: para ambos, a liberdade do indivíduo é o valor supremo</b></i></div>
<br /> Por definição, os anarquistas não gostam de pertencer a coletividades,
comunidades e grupos. Eles têm em comum uma antipatia (se não um ódio)
pelos poderes instituídos, do Estado às igrejas, passando pelas
torcidas, os partidos, os clubes etc. Fora esse sentimento comum, eles
preferem pensar cada um por conta própria.
<br /><br />
Mas, embora haja mil maneiras de ser anarquista, existe uma grande distinção que talvez seja legítima.
<br />
Há os anarquistas clássicos, que a esquerda gosta de incluir em suas
fileiras. Grosso modo, eles acham que o fim do Estado e de todas as
igrejas (por exemplo) criará uma nova sociedade de homens livres e
pares. Tradicionalmente, esses anarquistas, por serem alérgicos ao poder
dos partidos e dos Estados pretensamente "revolucionários", foram
usados e, no fim, massacrados por seus supostos "companheiros"
comunistas e socialistas (como aconteceu na guerra da Espanha).<br />
<br />
E há os anarquistas que são hoje chamados de anarco-capitalistas, que a
direita gosta de incorporar. Os anarco-capitalistas não sonham com uma
sociedade radicalmente nova, eles apostam que a economia de mercado seja
capaz de se contrapor ao Estado e aos poderes instituídos, de forma a
substituí-los e torná-los desnecessários.
<br />
<br />
O que se ganharia com isso? Os anarco-capitalistas acham que, em matéria
de liberdade, ser consumidor é um jeito relativamente pouco custoso de
ser cidadão. Isso, sobretudo nas últimas décadas, em que o consumo tende
a não ser massificado. Ou seja, a ideia anarco-capitalista é que, se
deixássemos o mercado regrar nossa sociedade, nossa vida seria menos
controlada e regrada do que ela é agora, pelo Estado e outros poderes.
<br />
<br />
Pergunta: sem o Estado, quem nos protegeria contra os abusos do mercado?
É bom não esquecer que os anarquistas, em tese, se protegem sozinhos:
se você não gosta de delegar poder a uma instituição, seja ela qual for,
deve estar disposto a fazer polícia e justiça com suas mãos (é por
isso, aliás, que o movimento libertário dos EUA sempre será fortemente
favorável à livre circulação das armas).
<br />
<br />
Fato curioso, há uma similitude entre os anarco-capitalistas e os
neoliberais. Mas é melhor explicar um pouco, porque (sobretudo se formos
"progressistas") nossa visão dos neoliberais é distorcida.
<br />
Os liberais clássicos, tipo Adam Smith, querem preservar a liberdade do mercado dentro de qualquer sistema político.
<br />
<br />
Para os neoliberais de hoje, o mercado poderia (ou deveria) substituir
qualquer sistema de governo a ponto de torná-lo desnecessário.
<br />
<br />
Há duas maneiras de entender essa ideia. Uma consiste em pensar que os
neoliberais querem nos entregar de mãos atadas às grandes corporações e à
sedução de sua propaganda. A outra consiste em pensar que os
neoliberais são extremamente próximos dos anarco-capitalistas: querem
que o mercado nos liberte, ou melhor, imaginam que o mercado seja a
forma de organização social mínima, a que controla menos a nossa vida.
<br />
<br />
Para quem se deu a pena de ler Friedrich Hayek (que talvez seja o maior
pensador do neoliberalismo --vários livros em português, publicados pelo
Instituto Ludwig Von Mises), a resposta que faz mais sentido é a
segunda.
<br />
<br />
Ou seja, há uma séria proximidade entre neoliberais e
anarco-capitalistas. Essa proximidade consiste numa paixão comum pela
liberdade do indivíduo como valor que não pode nem deve ser alienado em
favor de entidade coletiva alguma.
<br />
<br />
Um sociólogo francês, Geoffroy de Lagasnerie, tenta há tempos defender
uma leitura atenta dos autores neoliberais (para ter uma ideia da
polêmica, um artigo dele de 2011, no "Le Monde", <a href="http://migre.me/eSa0S"><b>http://migre.me/eSa0S</b></a>).
<br />
<br />
Em 2012, De Lagasnerie publicou um livro crucial sobre Michel Foucault,
que acaba de ser traduzido, "A Última Lição de Michel Foucault" (Três
Estrelas).
<br />
<br />
O livro mostra o irrefutável: em seu último seminário ("O Nascimento da
Biopolítica", Martins Fontes), Foucault (um ícone da esquerda) leu,
apresentou e (pasme) levou a sério os pensadores neoliberais (Hayek, em
particular). E não foi uma loucura de última hora. Ao contrário, o
interesse de Foucault pelos neoliberais não deveria nos escandalizar.
<br />
<br />
<br />
Aliás, qual seria o escândalo? Aparentemente, a ideia de que, para o bem
ou para o mal, o neoliberalismo é também uma grandiosa defesa da
diversidade e da liberdade do indivíduo --fato que não podia deixar
indiferente o maior pensador anarquista do século 20, Michel Foucault.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-37914723130493131522013-05-23T17:04:00.001-07:002013-05-23T17:04:32.207-07:00Tratamentos e efeitos colaterais<br />
<div class="" style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<b><i>Preferimos enxergar todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar</i></b></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
1) No fim dos anos 60, pensávamos que, no fundo, o louco era um rebelde que sofria da repressão que lhe era imposta e das condições horrorosas da internação psiquiátrica.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
Mas o que tornou possível o progressivo fechamento dos manicômios não foi esse entusiasmo; foi a chegada de medicações mais eficientes, pelas quais o louco não precisava ser enclausurado, porque podia ser, não digo curado, mas controlado.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
Desde então, os remédios psicotrópicos (ou seja, que modificam o funcionamento da mente) fizeram progressos.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
2) A descoberta de que o remédio podia substituir as paredes do asilo repercutiu e contribuiu a inaugurar uma era em que preferimos enxergar quase todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar. Em outras palavras, se os remédios eram formas possíveis de controle social, por que eles não seriam também meios possíveis de autocontrole?</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
3) A modernidade é sedenta de técnicas de controle de si (dietas, prescrições, treinos, meditações etc.). Há menos controle externo (religioso ou político) sobre nossa vida; aumenta a necessidade de controle que nós mesmos exerceríamos sobre nós. Nessa tarefa, a ajuda de drogas e remédios é bem-vinda --para controlar nossa vida cotidiana, conter a tristeza, as variações de humor, a ansiedade, a preocupação etc.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
4) Tendemos a responsabilizar os laboratórios farmacêuticos por essa medicalização crescente da vida. Mas eles apenas se aproveitam de um pedido que é nosso: queremos remédios como formas de controle e poder sobre nós mesmos.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
5) Vi o último filme de Soderbergh duas vezes, no último fim de semana. O título original é "Side Effects", efeitos colaterais. Foi traduzido como "Terapia de Risco". Tudo bem --contanto que se entenda que os efeitos colaterais e o risco são tanto para o terapeuta quanto para o paciente.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
Sim, o filme denuncia os laboratórios e suas práticas de propaganda. Sim, o filme lembra que a medicação não é nenhum tiro certeiro: sua administração é empírica (tipo: vamos ver o que acontece) e sua eficácia é modesta. Mas, sobretudo, o filme é uma perfeita narrativa da época do higienismo tardio, em que quase tudo é efeito da medicalização da vida. Confira.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
6) Uma nota. Alguns psicoterapeutas e psicanalistas se opõem furiosamente à medicação de seus pacientes. Tudo bem, mas a medicalização é hoje uma cultura, um regime, um sistema de controlar e organizar a vida. Os remédios são apenas um dos meios da medicalização; é possível medicalizar a vida adotando práticas "saudáveis" ou frequentando um psicoterapeuta.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
7) Nossos mal-estares cotidianos não têm marcadores específicos. Ou seja, não tenho como verificar (com uma análise de sangue, uma endoscopia ou um balanço hormonal) se e quanto alguém está deprimido. Devo me contentar com o que ele me diz.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
Eu me formei numa escola de psicanálise em que acreditávamos que fosse possível encontrar, na fala dos pacientes, marcadores clínicos tão seguros quanto o nível de uma proteína no sangue.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
Em tese, apostávamos, deveríamos poder diagnosticar um tumor no cérebro sem exames de imagem, porque saberíamos, por exemplo, que tal esquecimento é diferente de um esquecimento histérico, de um começo de Alzheimer, de uma amnésia etc. Mas esse ideal não se realiza (ao menos, não plenamente).</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
E um bom simulador pode vender qualquer peixe a todos nós, psiquiatras, psicoterapeutas, psicanalistas etc. Ou seja, um sociopata de bom feitio faz gato e sapato não só da lei, da gente também.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
8) Se lêssemos as bulas com atenção, não tomaríamos nunca remédio algum. Os laboratórios, para prevenir processos, enumeram qualquer catástrofe.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
No fim dos anos 1960, um amigo, J.H., perfeito exemplo de medicalização da vida, procurava seu equilíbrio numa mistura de anfetaminas e barbitúricos. Morreu afogado, de noite. A bula do Nembutal poderia dizer: cuidado, em combinação com simpamina, pode produzir a morte em quem vai surfar sozinho em Big Sur de madrugada.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
Na época da medicalização, a lista indefinida (se não infinita) dos efeitos colaterais vale também como lista também indefinida das desculpas. Matou o vizinho, mas não foi intencional; foi porque ele tomava sei lá qual antidepressivo.</div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
<br /></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial; font-size: small;">
9) Assista a "Terapia de Risco" e, na saída do cinema, responda: ao seu ver, o psiquiatra do filme conseguiu ou não cuidar de sua paciente? </div>
<div>
<br /></div>
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-41096049533730779742013-05-09T06:44:00.000-07:002013-05-19T06:44:24.483-07:00Abusos e incompetênciaUma vez, fui contaminado pelo transtorno de um paciente.<br />
<br />
Aconteceu
muitos anos atrás, em Paris. Um jovem era aterrorizado pela
possibilidade de ser acusado de um crime com o qual ele não teria nada a
ver. Incapaz de provar sua inocência, ele passaria a vida preso ou se
escondendo.<br />
<br />
Apesar de meus esforços, as fantasias de meu paciente permaneceram frequentes e assustadoras --apenas se tornaram mais ativas.
<br />
<br />
Ou seja, em vez de se ver mofando numa prisão ou num esconderijo, o
jovem passou a imaginar que lutaria para provar sua inocência --como o
Dr. Kimble, acusado do assassinato de sua mulher em "O Fugitivo", série
televisiva dos anos 1960, que o paciente não conhecia, mas da qual eu me
lembrava bem (o filme homônimo, que retomou a história, só chegou em
1993).
<br />
<br />
O medo de meu paciente encontrou um terreno fértil na minha desconfiança
anarquista dos poderes constituídos. Ainda hoje, a ideia de ser a
vítima indefesa da Justiça de um Estado não me faz rir.
<br />
<br />
Por causa disso, custei para assistir ao filme "A Caça", de Thomas
Vinterberg. Sabia que era imperdível, mas tentava evitar o mal-estar que
me produziria o espetáculo do sofrimento de Lucas, injustamente acusado
de abusar sexualmente de uma criança.
<br />
<br />
Ora, ao longo do filme, ri repetidamente, e não foi "de nervoso". Os
outros espectadores devem ter achado que havia um louco na sala. Mas era
incontrolável: a incompetência da diretora da escolinha, do psicólogo
que vai "ajudá-la" e dos pais eram verídicas, terrificantes e
criminosas, mas estúpidas a ponto de ser cômicas.
<br />
<br />
O filme, aliás, deveria ser matéria de ensino nas faculdades de
psicologia e nas escolas de polícia, com o pedido de que os alunos
reparem os erros primários de educadores e outros adultos.
<br />
Em tese, deveríamos ter aprendido alguma coisa com tragédias jurídicas
dos anos 1980 e 1990, em que crianças foram sugestionadas e manipuladas
por pais e autoridades a ponto de formular coletivamente fantásticas
acusações de abuso.
<br />
<br />
Houve as crianças "lambendo manteiga de amendoim no sexo da professora",
na Wee Care Nursery School, em Nova Jersey, e a "Kombi-motel na
escolinha do sexo", na Escola Base, em São Paulo.
<br />
<br />
Desde então, em alguns lugares do mundo, foi criada uma especialidade
acadêmica em interrogatório de menores supostamente abusados.
Aconselha-se que o interrogatório seja sempre por uma pessoa só (e
filmado usando um espelho falso). Pede-se um teste específico que
verifique o entendimento pela criança da relação entre verdade e
mentira.
<br />
<br />
O entrevistador não deveria ter NENHUM conhecimento prévio da acusação. O
uso de bonecos para mostrar como foi o abuso é considerado
perigosamente lúdico. Enfim, a preferência é para entrevistas
rigorosamente estruturadas, com perguntas preestabelecidas e, portanto,
menos sugestivas.
<br />
<br />
Mesmo assim, ainda hoje, muitos textos básicos sobre interrogatório de
crianças começam com a observação de que elas são relutantes a falar de
abuso sexual. Só depois, e nem sempre, observa-se que, às vezes, as
crianças se servem de acusações de abuso como meio de expressão: por
exemplo, para assinalar aos adultos que elas podem ser desejáveis ou,
justamente, para se vingar de um adulto que não foi seduzido por elas.
<br />
<br />
Não sei o que acontece, hoje, nas nossas delegacias especializadas, mas,
de qualquer forma, nossa cultura é destinada a manipular a denúncia
infantil de abuso.
<br />
<br />
Negamos a sexualidade infantil e idealizamos a inocência (e a
"sinceridade") das crianças: só nos resta linchar os supostos abusadores
antes que os detalhes dos casos nos revelem que a infância não é aquela
terra dos anjos com a qual insistimos em sonhar.
<br />
<br />
No filme (e na vida real), é proposta aos pais uma lista de sintomas que
indicariam que uma criança está sendo exposta a um trauma.
<br />
<br />
É fácil imaginar os efeitos da lista nos pais, assim como é fácil
entender sua inutilidade: a sexualidade não é o efeito de um
desenvolvimento interno e autógeno, ela é sempre efeito de traumas.
<br />
<br />
A menina de "A Caça" não foi abusada pelo homem que ela acusa, mas não
lhe faltam traumas com os quais (graças aos quais?) "crescer". Trauma é a
própria rejeição por Lucas, que lhe faz inventar que Lucas a deseja.
Trauma é a pornografia no iPad dos amigos do irmão. Trauma é o
questionamento pela corte de idiotas que a interrogam e sobre quem,
manifestamente, ela deve se perguntar: mas o que será que eles realmente
querem de mim?alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-26756048378118452622013-05-09T02:43:00.000-07:002013-05-09T02:43:16.184-07:00Campos e a homossexualidade<br />
<div class="kicker blue">
<b><i>Como reagir ao anúncio que seu filho é gay? Eu optaria pela indiferença --se possível, não fingida</i></b></div>
<br />
Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia decretou que os psicólogos não devem propor curas para a homossexualidade, visto que a homossexualidade não é um transtorno mental. O deputado João Campos (PSDB-GO) não concorda; ele acha que o CFP não pode "restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional".<br />
<br />
O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), paradoxal presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, colocou o projeto de Campos na pauta de ontem (8/5) da dita comissão.<br />
<br />
Na última hora, a pedido de Henrique Alves (PMDB-RN), presidente da Câmara, a pauta foi suspensa.<br />
<br />
Existe uma longa e sinistra história das terapias que pretendem "curar" os homossexuais, ou seja, "reorientar" ou "converter" sua sexualidade --sinistra, digo, pela violência dos remédios propostos sem fundamento clínico algum (castração, ablação do clitóris, eletroconvulsoterapia etc.).<br />
<br />
No Irã de hoje, por exemplo, os homossexuais (que, segundo o governo, não existem) não são perseguidos se eles aceitarem uma cura que consiste na mudança forçada de sexo (engraçadamente, a charia local parece proibir a homossexualidade, mas tolerar o transexualismo).<br />
<br />
Vamos ao último capítulo dessa história, no Ocidente. Em 2001, Robert Spitzer, psiquiatra respeitado, juntou, num relatório, 200 casos de "conversão" de indivíduos "altamente motivados" (nenhum dos quais tinha sido paciente dele). O estudo parecia documentar a possibilidade de reorientar alguém sexualmente. Durante uma década, discutiu-se sobre a validade dos dados recolhidos por Spitzer.<br />
<br />
Resultado: no ano passado, Spitzer, professor emérito da Universidade Columbia, publicou uma carta aberta na qual ele declara que seu estudo não provava que uma terapia, seja ela qual for, pudesse permitir mudar a orientação sexual de alguém e que não havia como saber se as declarações dos indivíduos entrevistados para o estudo eram confiáveis e não autoenganos ou simplesmente mentiras.<br />
<br />
Ele concluía: "Peço desculpas a qualquer pessoa gay que perdeu seu tempo e sua energia passando por algum tipo de terapia de conversão porque acreditou que eu tivesse demonstrado que a terapia de conversão funcionaria".<br />
<br />
As terapias de reorientação ou conversão, hoje, são defendidas só por associações ou indivíduos inspirados por uma condenação moral ou religiosa da homossexualidade.<br />
<br />
Essa condenação é tão legítima quanto qualquer crença, mas ela não pode oferecer uma "cura" em nome de uma disciplina clínica. Em outras palavras, qualquer um, padre, pastor ou charlatão, pode inventar um exorcismo para desalojar o demônio do corpo dos homossexuais. Mas o médico e o psicólogo não vendem exorcismos.<br />
<br />
Em suma, sem a intervenção de Henrique Alves, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara teria desperdiçado seu tempo (e nosso dinheiro). Passemos a outra questão.<br />
<br />
Recentemente, o pai da cantora Katy Perry, pastor evangélico, perturbado porque a filha canta uma música sobre beijar outra garota, declarou que Katy é filha do diabo.<br />
<br />
A estupidez dos outros é refresco. Mas resta que, para muitos pais, não é fácil decidir como reagir ao anúncio de que seu filho ou sua filha é gay.<br />
<br />
Sabemos que mandar o filho ou a filha para uma cura de conversão não é uma boa ideia. Em compensação, alguns pais "modernos", para evitar o ridículo do pai de Katy Perry, são tentados por uma aceitação festiva, eventualmente fingida. Como se situar nesse arco, entre "você é doente" e "que maravilha!"?<br />
Eu optaria por uma espécie de indiferença --se possível, não fingida.<br />
<br />
Tanto a aceitação festiva quanto a maldição empurram o jovem para uma reação em que ele dará a sua orientação sexual o valor de uma identidade, como se gritasse "olha, mamãe, sou gay", quer seja para desafiar os pais e o mundo, quer seja para ganhar seu aplauso.<br />
<br />
De fato, a orientação sexual de um indivíduo não precisa ser um traço relevante de sua identidade. Em geral, quando ela se estabelece como tal, é de maneira reativa.<br />
<br />
No caso da homossexualidade, isso é inevitável por causa da resistência social que a homossexualidade encontra. Se identificar como homossexual é uma maneira de se impor e lutar. E haverá homossexuais "assumidos" e militantes até que não haja mais Campos e Felicianos.<br />
<br />
Agora, os heterossexuais assumidos e militantes são tão reativos quanto os homossexuais. Só que, hoje, os heterossexuais não reagem contra nenhuma discriminação; talvez eles estejam reagindo contra a única homossexualidade que os ameaça: a que eles reprimem neles mesmos.<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-36179807078180460232013-05-02T04:49:00.000-07:002013-05-05T04:52:51.812-07:00Depois de maio<b><i>Por sorte, não perdi "Depois de Maio", de Olivier Assayas. </i></b><br />
<br />
Nas últimas semanas, eu tinha visto o trailer repetidamente, e imaginava que o filme me aborreceria com um amontoado de chavões ideológicos, ou seja, daquelas frases que, em Maio de 1968, estofavam nossos peitos e, hoje, são inertes, quase desprovidas de sentido.<br />
<br />
<br />
Ora, tanto na nossa vida quanto na história coletiva do século 20 e 21,
Maio de 68 e os anos 1970 foram muito mais do que as convicções e as
palavras de ordem da luta política.
<br />
<br />
Claro, na época, nada nos parecia mais importante do que o sucesso ou o
fracasso daquelas convicções. Mas fazer o quê? Foi assim: saímos à rua
para fazer uma revolução e acabamos fazendo outras, que não eram
previstas, mas talvez fossem melhores do que a que tínhamos planejado.
<br />
<br />
Não estou falando da revolução nos costumes e na tolerância das
diferenças. Falo de outra revolução ainda, que, nos últimos anos,
começou a ser contada, indiretamente, nos filmes que tratam de Maio 68.
<br />
<br />
Os melhores, para mim, eram "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci, e
"Amantes Constantes,", de Philippe Garrel. Agora há "Depois de Maio", de
Olivier Assayas, que não é apenas o filme sobre Maio que mais me tocou
até hoje. É também um dos filmes (sobre Maio ou não) que mais me tocaram
nos últimos anos.
<br />
<br />
Assayas é mais jovem do que eu. Eu tinha 20 anos em 68; ele tinha 13.
Mas ambos fomos jovens nos anos 1970 na França; eu estava, por exemplo,
nas manifestações de setembro de 70, durante a greve de fome de Alain
Geismar.
<br />
<br />
Há uma pergunta que se colocam quase todos os que viveram "de dentro"
Maio 68 e os 1970: o que eu fiz que, assim como eu sou hoje, eu não
faria? E ter me transformado, isso é bom ou ruim?
<br />
<br />
No filme "Depois de Maio", é citado um grande poeta beat dos anos 1950.
Em "Gasoline", de Gregory Corso, há um poema ("Tenho 25 Anos"), em que,
depois de evocar os poetas que morreram jovens (Shelley, Chatterton,
Rimbaud), Corso declara que ele odeia os velhos poetas, "especialmente
os que se retratam" e que contam sua juventude sussurrando: "Eu fiz
aquilo então, mas isso foi então".
<br />
<br />
Desses velhos poetas, Corso quer arrancar a língua fora, para que parem de se desculpar.
<br />
Será que sou um desses velhos poetas? Vistos de hoje, aqueles dias me
parecem uma comédia de erros? E, se não foram, qual foi seu valor?
<br />
<br />
É que aqueles dias e anos inventaram um novo hedonismo da vida (que
talvez já tenha sido perdido, de novo): era um prazer de viver, mas
cuidado --levando a vida extremamente a sério. Esse prazer tinha a ver
com o quê?
<br />
<br />
Por exemplo, com uma custosa fidelidade ao desejo da gente, que fosse de ser pintor, militante ou perdido nas drogas.
<br />
<br />
Ou ainda, com uma extraordinária densidade cultural, uma raiva de ler e
estudar, como se colocar as questões certas fosse a condição para viver a
vida intensamente.
<br />
<br />
Em 1970, num seminário de literatura inglesa contemporânea, na
Universidade de Genebra, cada estudante foi convidado a apresentar um
autor preferido. Escolhi Gregory Corso. No meio da exposição, me
empolguei e confesso que atribui a Corso, como se fossem dois versos de
um poema dele, as primeiras linhas (memoráveis) de um romance de
espionagem de Len Deighton, que eu acabava de ler.
<br />
Por sorte minha, ninguém parecia conhecer nem Corso nem Deighton, e não fui desmascarado.
<br />
<br />
O começo de "An Expensive Place to Die", de Len Deighton ("O Preço da
Morte", Nova Fronteira), tinha se tornado meu hino pessoal à vida que se
justifica por si só, pela aventura que ela é.<br /><br />
Deighton começa assim: "The birds flew around for nothing but the hell
of it" (o sentido é: os pássaros voavam pelo céu pelo puro prazer de
voar --mas em inglês é muito melhor).
<br />
<br />
O filme de Assayas fala do prazer da vida levada a sério em duas
sequências magníficas e surpreendentemente longas: a abertura, com os
estudantes fugindo de um ataque da polícia, e uma pichação noturna,
também com fuga dos estudantes perseguidos pelos vigias.
<br />
<br />
Nessas cenas, há o fôlego dos estudantes e dos policiais, que correm, há
o fôlego do cineasta que consegue manter a sequência, há o fôlego dos
espectadores e há, enfim, mais um fôlego, do qual talvez todos
precisemos: é o fôlego de se levar a sério, ou seja, por exemplo, de
ousar ir às ruas, pelo prazer de declarar o que a gente pensa,
desafiando o medo.<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-19565636966693524082013-04-21T02:30:00.000-07:002013-04-21T02:30:00.264-07:00Jovens delinquentes <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgXd2Xqmx0gt6ehS_gVSXB9jPL7Wdy053xkbNR_glmq8WAwYaXcsLZl_Lk20Pogo5tlOz_qibIPEgvzXo4rDBEulIqjFk1t1w_0eYkW77IOcj5t6j247Od5eaGH6JakNZ3vgJxtcTS4FP8F/s1600/calligaris.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgXd2Xqmx0gt6ehS_gVSXB9jPL7Wdy053xkbNR_glmq8WAwYaXcsLZl_Lk20Pogo5tlOz_qibIPEgvzXo4rDBEulIqjFk1t1w_0eYkW77IOcj5t6j247Od5eaGH6JakNZ3vgJxtcTS4FP8F/s1600/calligaris.jpg" height="178" width="400" /></a></div>
<br />
<b><i>As crianças são más por natureza; às vezes, elas melhoram crescendo, pois a cultura pode civilizá-las </i></b><br />
<br />
Na noite de terça-feira passada (dia 9), em São Paulo, Victor Hugo Deppman, estudante de 19 anos, foi assassinado. As câmeras mostram que ele entregou seu celular, e o assaltante o matou sem razão, com um tiro na cabeça.
O criminoso se entregou à polícia declarando que faltavam dois dias para ele completar 18 anos. Com isso, pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), aos 20 anos e 11 meses no máximo, ele voltará a circular. A gente não pode nem deixar anotado o nome do assassino, para mantê-lo afastado de nossas vidas futuras: por ele ser menor, seu anonimato é preservado.<br />
<br />
É assim que protegemos o futuro do criminoso, para que, uma vez regenerado pela mágica de três anos de internação (alguém acredita?), ele possa facilmente reintegrar a sociedade e ser um cidadão exemplar, nosso vizinho.
Obviamente, nos últimos dias, multiplicaram-se os pedidos de revisão do próprio ECA. Marcos Augusto Gonçalves (na Folha de segunda) observou que, na boca dos políticos, esses pedidos escondem décadas de descaso em matéria de segurança pública. Concordo. Mas, como não sou político, não vou deixar de discutir, mais uma vez, o estatuto do menor.<br />
<br />
Por exemplo, sou a favor de baixar a maioridade penal, drasticamente, como acontece no Reino Unido, no Canadá, na Austrália, na Índia, nos Estados Unidos etc. --sendo que, na maioria desses lugares, o juiz tem a autonomia para decidir por qual crime um menor de 12 ou dez anos será, eventualmente, julgado como adulto.
Hélio Schwartsman (na página 2 da Folha de sexta passada) aconselhou prudência: seria melhor não "legislar sob forte impacto emocional" e, sobretudo agora, confiar apenas nas "considerações racionais". Ele quase me convenceu, mas...<br />
<br />
1) Penso isso há muito tempo.<br />
<br />
2) Se deixássemos de agir sob impacto emocional, nunca nada mudaria. Por exemplo, o conselho de esperar para que as emoções esfriem é o argumento dos fabricantes de armas a cada vez que, nos EUA, um exterminador invade uma escola e o Congresso propõe leis de controle das armas. Os fabricantes de armas querem que esperemos para quê? Pois é, para que a gente se esqueça e se desmobilize.<br />
<br />
3) Conheço só uma consideração racional a favor da maioridade penal aos 18 anos, e ela não é boa: o córtex pré-frontal (zona do cérebro que controla os impulsos) não está totalmente desenvolvido na infância e na adolescência.
Tudo bem, se aceitarmos essa consideração, deveríamos aumentar seriamente a maioridade penal, pois o córtex pré-frontal se desenvolve até os 25 anos ou além. Além disso, deveríamos julgar como menores todos os adultos impulsivos, que nunca desenvolveram um córtex pré-frontal "satisfatório".<br />
<br />
4) As outras "considerações racionais" (que deveriam prevalecer sobre o impacto das emoções) são apenas disfarces de emoções especificamente modernas que, à força de serem compartilhadas, se tornaram chavões ideológicos.
Três deles são corolários de nossa "infantolatria", ou seja, da paixão narcisista que nos faz venerar crianças e jovens porque, graças a eles, esperamos continuar presentes no mundo depois de nossa morte.<br />
<br />
Primeiro, queremos que as crianças nos apareçam como querubins felizes como nós nunca fomos e nunca seremos. Por isso, preferimos imaginar que os jovens sejam naturalmente bons. Quando eles forem maus, atribuímos a culpa à sociedade e a nós mesmos. Portanto, não podemos puni-los, mas devemos, isso sim, nos punir.
Tendo a pensar o contrário: as crianças podem ser simpáticas, mas são más (briguentas, possessivas, invejosas, mentirosas, ingratas etc.); às vezes, elas melhoram crescendo, ou seja, a cultura pode civilizá-las (ou piorá-las, claro).<br />
<br />
Segundo, adoramos acreditar que sempre podemos mudar (para melhor, claro): apostamos que a liberdade do indivíduo permita qualquer reviravolta --até a salvação eterna pelo arrependimento na hora da morte. A possibilidade de os criminosos (ainda mais jovens) se redimirem confirma nossa crença querida.<br />
<br />
Terceiro, acreditamos também na fábula da reciprocidade amorosa: quem ama será amado. Se forem bem tratados e se sentirem amados e respeitados, os jovens se emendarão. É só confiar neles, deixá-los impunes e lhes oferecer castiçais de prata, como o padre que presenteia Jean Valjean.
Meus amigos, "Les Misérables" é lindo e comovedor, mas é um romance, ok? Na outra noite, no bairro do Belém, teria sido melhor que aparecesse Javert. alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com13tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-19263156368545212092013-04-12T06:15:00.001-07:002013-04-12T06:19:28.329-07:00Mulheres infelizes<b><i>François Mauriac publicou "Thérèse Desqueyroux" (Cosac Naify) em 1927; o
romance foi um sucesso e, provavelmente, valeu ao seu autor o prêmio
Nobel.</i></b><br />
<br />
A história é levada para o cinema (pela segunda vez) por Claude
Miller, com o título, no Brasil, de "Therese D." (para que ninguém se
atrapalhe com a pronúncia).
Tolstói publicou "Anna Karenina" (Itatiaia) entre 1873 e 77. O romance é
levado para o cinema (pela sexta vez) por Joe Wright, com o título
original.
<br />
<br />
Gustave Flaubert publicou "Madame Bovary" (Penguin Companhia e outras
editoras) em 1857. O romance foi levado oito vezes para o cinema.
<br />
No Rio e em São Paulo, ainda é possível assistir a "Anna Karenina", de
Joe Wright, e a "Therese D.", de Claude Miller, no mesmo cinema.
<br />
<br />
Depois disso, recomendo se enfiar na cama com uma cópia de "Madame
Bovary" e ler até o amanhecer. Ou, então, na mesma cama, assistir a um
DVD de "Madame Bovary" na versão de Vincente Minnelli (1949
--inesquecível Jennifer Jones perdida em devaneios) ou na de Claude
Chabrol (1991).
<br />
<br />
Receio que a versão de Jean Renoir, de 1933, tenha envelhecido, mas que cada um escolha.
<br />
É sábio juntar as três histórias? Em termos; se você for um homem
casado, prudência: afinal, trata-se de três mulheres infelizes com o
marido, que é provedor, fiel, gentil e insosso.
<br />
<br />
Para mim, a modernidade poderia (ou deveria) começar, exemplarmente, com
essas três histórias de insatisfação feminina, ou seja, com a
descoberta de que as mulheres têm sonhos e devaneios que vão além de um
marido devoto, de uma família e de uma vida ao abrigo da necessidade
--em outras palavras, com a descoberta de que existe um desejo feminino.
<br />
<br />
Claro, talvez alguns homens prefiram pensar que o desejo feminino seja
apenas uma necessidade do capitalismo moderno. As mulheres insatisfeitas
seriam as consumidoras deslumbradas, perdidas pelos grandes magazines,
das quais a sociedade de consumo precisa. É o que deixa esperar "O
Paraíso das Damas", de Emile Zola, de 1882-83, (Estação Liberdade).<br />
<br />
Mas o desejo feminino é mais do que isso, e sua aparição implica uma
séria crise masculina. No fundo, trata-se de uma descoberta só: as
mulheres têm desejos, e os homens não fazem suas companheiras tão
felizes quanto eles imaginam ter feito a felicidade de suas mães
(repito: IMAGINAM).
<br />
<br />
Não é por acaso, aliás, que, nos três romances, a maternidade não faz a
felicidade das mães. A descoberta do desejo feminino acompanha a
descoberta da inadequação e da insuficiência dos homens, como maridos e
também como filhos.
<br />
<br />
Para Anna Karenina e para Emma Bovary, outros homens do que seus maridos
se tornam desejáveis. Mas são todos medíocres (Vronsky como Rodolphe,
como Léon).
<br />
Tanto Anna quanto Emma são julgadas por seus narradores. As duas acabam
mal, e talvez essa punição final de mulheres e mães "indignas" tornasse
os romances aceitáveis (embora os dois tenham escandalizado seus
contemporâneos).
<br />
<br />
Thérèse é mais moderna. À diferença de Emma, ela é uma verdadeira
leitora, não uma vítima de romances melados; por isso mesmo, ela não
conhece a raiz de sua insatisfação com a vida que lhe cabe.
<br />
<br />
Como a gente, Thérèse não sabe o que quer. E ela não sonha propriamente
com outro homem: ela é mais profundamente infiel e traidora do marido,
pois ela sonha com algo maior do que um amante, ela quer algo que ela
não saberia dizer sem citar "Os Frutos da Terra", de Gide, ela quer uma
outra intensidade da vida.
<br />
SPOILER: pule este breve parágrafo se você não conhece a história. No
fim do romance (e do filme), Thérèse não será punida pela infidelidade
de seu desejo, ao contrário, ela parece se transformar na nova mulher do
século 20, livre e urbana.
<br />
<br />
Mauriac era cristão e tradicionalista. Em 1935, ele não se aguentou e
escreveu a continuação de "Thérèse Desqueyroux", "La Fin de la Nuit" (o
fim da noite), em que Thérèse acaba pior do que suas antecessoras, Emma e
Anna.
<br />
<br />
O jovem Sartre defendeu Thérèse, acusando Mauriac de julgar, perseguir e
condenar a própria personagem que ele tinha criado, ou seja, de não
respeitar a liberdade de Thérèse Desqueyroux, sua adorável criatura.
Concordo com Sartre.
<br />
<br />
Fato curioso, tanto "Anna Karenina" quanto "Therese D." foram
maltratados por críticos que respeito. Os dois filmes têm méritos
diferentes ("Anna Karenina", em particular, é genial no conceito e na
arte), mas talvez eles tenham mesmo um "defeito" comum: contam histórias
que não acalentam os ouvidos masculinos.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-84636353179982457622013-04-04T03:05:00.002-07:002013-04-04T03:05:29.774-07:00As vidas que deixamos de viver<br />
<div class="kicker blue">
<b><i>As crianças nunca são medíocres ou preguiçosas, elas só estão desperdiçando seu "incrível potencial"</i></b></div>
<br />
Quase sempre, quando encontramos alguém que nos encanta, começamos por
lhe contar nossa vida e expor nossos projetos -pois é possível que, para
um casal, compartilhar planos seja mais importante do que cada um
conhecer e entender o passado do outro.<br />
<br />
Em suma, a gente se apresenta ao outro como numa entrevista de emprego,
dizendo o que fizemos e o que esperamos. Afinal, somos uma mistura da
vida vivida com o futuro sonhado, não é?<br />
<br />
Acabo de ler o último livro de Adam Phillips, psicanalista inglês que é
um dos autores que mais me estimulam a pensar: "Missing out: In Praise
of the Unlived Life", (Farrar, Straus and Giroux) (perder: elogio da
vida não vivida -"missing out" é perder no sentido em que você chega
atrasado na festa e pergunta: perdi alguma coisa?).<br />
<br />
Justamente, à história passada e aos sonhos Phillips acrescenta mais um
ingrediente que nos define: o conjunto das vidas que deixamos de viver
-porque não foi possível, porque alguém nos impediu, porque ficamos com
medo, porque escolhemos outro caminho, porque a sorte não quis.<br />
<br />
Algumas vidas não vividas são alternativas descartadas pela inércia da
nossa história ou porque o desejo da gente é dividido, e escolher
implica perder o que não escolhemos.<br />
<br />
Outras são acasos que não aconteceram (é possível passar pela vida sem
encontrar ninguém ou encontrando muitos, mas todos na hora errada).<br />
<br />
Também, mais dolorosamente, as vidas não vividas são caminhos pelos
quais não ousamos nos enveredar (na inscrição para o vestibular, na
decisão de voltar de um lugar onde teríamos começado outra vida, nos
conformismos de cada dia).<br />
<br />
Essas vidas não vividas podem nos enriquecer ou nos empobrecer. Elas nos
enriquecem quando integram nossa história como tramas alternativas de
um romance, incluídas no rodapé da edição crítica.<br />
<br />
Melhor ainda, como tramas alternativas às quais o autor renunciou, mas
que ele se esqueceu de apagar inteiramente: o herói não vai mais para
África no capítulo dois, mas eis que, no capítulo sete, aparece um
africano que ele conheceu antes, mas que não se entende de onde vem, a
não ser que a gente leia aquela parte do dois que foi abandonada.<br />
<br />
Aqui, um conselho: é útil frequentar as vidas não vividas de nossos
parceiros (para evitar surpresas desnecessárias, como a chegada de
personagens que não fazem parte nem do passado nem dos sonhos do outro,
mas das vidas às quais ele achava ter renunciado).<br />
<br />
Agora, as vidas não vividas podem sobretudo nos empobrecer, levando-nos a
viver num eterno lamento por algo que não nos foi dado, que perdemos ou
do qual desistimos. Esse, aliás, é o futuro que estamos preparando para
nossas crianças.<br />
<br />
Uma das razões pelas quais as vidas não vividas condenarão as crianças
de hoje à sensação de desperdício é a popularidade do mito do potencial.
Alguém não está se tornando tudo o que esperávamos? Que pena, com o
potencial que ele tinha...<br />
<br />
De onde vem a ideia de que nossas crianças seriam dotadas de disposições
milagrosas e que o maior risco seria o de elas desperdiçarem o que já é
seu patrimônio?<br />
<br />
O potencial das crianças modernas tem duas propriedades: ele é genérico
(ou seja, não é fundado em nenhuma observação específica, é uma espécie
de a priori: criança tem grande potencial, em tudo) e ele deve dar seus
frutos espontaneamente, sem esforço algum da parte da criança.<br />
<br />
Nossos rebentos são dotadíssimos para esporte, desenho, criação, música,
ciência, estudo, línguas estrangeiras etc. E, se os resultados
escolares forem péssimos, as crianças nunca são preguiçosas, elas só
estão desperdiçando seu "incrível potencial". Há uma cumplicidade de
todos ao redor dessa ideia.<br />
<br />
Os pais querem que as crianças sejam tudo o que eles não conseguiram ser
na vida. Pior, eles querem que as crianças cumpram essa missão sem
esforços, por milagre (o milagre do "potencial").<br />
<br /> Os professores acham no potencial uma maneira maravilhosa de assinalar
que fulano é medíocre sem atrapalhar o sonho dos pais da criança, os
quais podem seguir pensando que seu filho leva notas infernais, mas vale
a pena insistir (e pagar a escola mais cara) porque ele tem um
potencial extraordinário.<br />
<br />
Quanto aos filhos, acreditar em seu próprio "potencial" é uma maneira
barata para se sentir especial, apesar de resultados pífios. Problema:
na hora, inevitável, do fracasso, quem aposta no seu potencial conhece a
sensação especialmente dolorosa de ter traído a si mesmo (ou seja, ao
seu "potencial").<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-14520582745530607842013-03-29T00:47:00.001-07:002013-03-29T00:54:25.304-07:00Papa vai, papa vem<b><i>Não é muito importante que a igreja se modernize, pois seus fieis já estão se modernizando há tempo </i></b><br />
<br />
Quando eu era criança, meu pai deixava que minha avó cuidasse de minha
formação religiosa. Ela comungava todos os domingos. Querendo seguir seu
ritmo, eu me preparava confessando-me no sábado, no fim da tarde. Mas
eis que, na noite de sábado para domingo, um pensamento ou um sonho
vagamente impuros, uma irritação, um palavrão me convenciam: eu já tinha
perdido a pureza garantida pela absolvição de poucas horas antes.<br />
<br />
Conclusão: eu precisava de uma nova confissão antes da missa de domingo.
Às vezes, não tinha mais como, e eu renunciava a comungar.<br />
<br />
Enquanto isso, eu constatava que minha avó não se confessava nunca -e
olhe que, naquela época, ninguém falava em "absolvição geral" ou em
"confissão uns aos outros": a única confissão que valia era a pessoal,
com um sacerdote.<br />
<br />
Tudo bem, minha avó era (ou parecia) idosa e bem-comportada. Mas, mesmo
assim, eu não entendia: para mim, sem confissão (recente e por um
sacerdote) não havia como acreditar no perdão divino. Criei coragem e
perguntei. Ela disse que pecava pouco e, de qualquer forma, tratava do
assunto diretamente com Deus. Rezo para que esse deslize herético tenha
sido tratado com indulgência quando ela se apresentou no céu.<br />
<br />
Seja como for, foi graças a essa avó muito católica que descobri
precocemente o charme e alcance profundo da Reforma protestante. Ou
seja, apesar da reação do Concílio de Trento com seus decretos
disciplinares, seu índice dos livros proibidos e sua reorganização da
Inquisição (hoje Congregação para a<br />
<br />
Doutrina da Fé, da qual, aliás,
Bento 16 foi prefeito antes de ser papa), apesar de tudo isso, o
espírito da Reforma protestante ganhou corações e mentes dos católicos
-se não de todos, de muitos, a começar por minha avó.<br />
<br />
Consequência: tornou-se cada vez mais possível e frequente que alguém se
considere católico praticante e decida por si o que é pecado e o que
não é, num diálogo privado com Deus, sem desprezar nem a igreja nem o
papa, mas sem depender deles.<br />
<br />
Conheço numerosos católicos devotos que se casaram, se divorciaram,
casaram-se novamente (no civil), não confessam a sacerdote algum o
"adultério" no qual eles vivem (segundo a igreja), não se arrependem e
comungam, a cada missa, alegremente, considerando-se absolvidos
diretamente por Deus.<br />
<br />
Às vezes, um pároco conhecido lhes recusa a comunhão; pois bem, mudam de
igreja ou, então, esperam para comungar quando viajam e encontram, no
exterior ou num lugar remoto do país, uma igreja onde ninguém saiba de
sua vida no "pecado".<br />
<br />
É fácil encontrar católicos dando provas da mesma liberdade de
pensamento em matéria de camisinha e de anticoncepcionais, de
homossexualidade e mesmo de aborto.<br />
<br />
Por causa desses "novos" católicos (nem tão novos assim, se minha avó
estava entre eles), contemplo com um pouco de tédio as especulações mais
ou menos esperançosas sobre o rumo que o novo papa imprimirá à igreja.
Será que isso ou aquilo vai ser reconhecido ou permitido? E os padres,
eles poderão se casar?<br />
<br />
Como se já não houvesse padres que, em segredo
(de polichinelo) e sem a autorização romana, casam e seguem
administrando os sacramentos para sua comunidade, a qual os aceita,
satisfeita.<br />
<br />
Em suma, para uma parte dos católicos (que é difícil medir, mas que é,
no mínimo, uma boa minoria), a pauta dos comentários destes dias é
irrelevante. Para esses católicos (que, sem se dar conta, foram
conquistados pela modernidade da Reforma), o diálogo íntimo e livre com
Deus está acima da opinião do papa, do pároco e da Congregação para a
Doutrina da Fé.<br />
<br />
Alguns deles acabam se tornando anticlericais: acham que o que importa é
a mensagem cristã e o resto (a igreja) não passa de folclore, pompa,
glose e vida institucional. Outros continuam gostando do ritual e de
"seus" padres, embora considerem que a igreja militante é uma
assembleia, não uma falange a mando de seus oficiais.<br />
<br />
Se esses católicos forem o futuro do catolicismo (um futuro que já
começou), a igreja de amanhã será variada e plural. Haverá católicos
condenando o aborto em qualquer situação e haverá outros admitindo o
aborto nas situações em que lhes parece justificado aos olhos de Deus. E
eles conviverão na mesma igreja.<br />
Ou seja, não é muito importante que a Igreja Católica se modernize. Pois
seus fieis já estão se modernizando há tempo, optando pela liberdade de
sua consciência, sem deixarem de ser católicos.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-36890454510719376032013-03-21T10:42:00.000-07:002013-03-21T10:42:01.339-07:00Fugir de casa<br />
<div class="title">
<i><b>Hoje, depois de 50 anos, vendo "A Busca", senti o que foi a dor de meus pais quando eu fugi de casa</b></i></div>
<br />
ANTES DE mencionar "A Busca", de Luciano Moura, eu devo me declarar
impedido: por razões anteriores e exteriores ao filme, serei parcial.<br />
<br />
Primeiro. Tenho uma tremenda admiração pela roteirista do filme, Elena
Soarez -ela criou, com Cao Hamburger, o seriado "Filhos do Carnaval"
(HBO), que ainda me força a ficar acordado quando esbarro numa reprise
noturna.<br />
<br />
Segundo. Desde "Central do Brasil", de Walter Salles, sou especialmente
sensível às corridas território brasileiro adentro, atrás de um pai de
verdade (eventualmente, marceneiro).<br />
<br />
Terceiro e mais importante. Como o jovem Pedro no filme de Moura e com a mesma idade dele, eu fugi de casa.<br />
<br /> Por que Pedro foge? Difícil dizer. Talvez seja por causa da recente
separação dos pais. Talvez seja porque o pai (Wagner Moura) não enxerga
mais o filho, que está crescendo e tem paixões próprias. Ou talvez seja
porque fugir de casa, algum dia, é necessário para todos -e tanto faz
que isso aconteça realmente ou de maneira figurada.<br />
<br />
Por que eu fugi? Mesma perplexidade: uma namorada distante, a vontade de
cruzar fronteiras por minha conta, a ambição de provar que podia
sobreviver sem a ajuda de ninguém... As razões que eu enumeraria naquela
época e que poderia enumerar hoje não me bastam. Quanto mais me esforço
para encontrar uma resposta, menos entendo: eu gostava dos meus pais e
do lar no qual crescia com eles.<br />
<br />
Ou seja, Pedro não me explicou minha fuga. Em compensação, pela primeira
vez depois de 50 anos, num cinema da Gávea, eu senti o que deve ter
sido a dor de meus pais, quando eu sumi. No desespero do pai de Pedro
correndo atrás do filho, Brasil afora, vi o drama do meu pai. A comoção
foi um arrependimento? Não pelo que fiz e que faria de novo, mas, sim,
pela dor que causei, embora talvez fosse inevitável.<br />
<br />
Lembrei-me claramente de uma manhã muito cedo, em Londres, quando meu
pai, cansado, bateu na porta do apartamento que eu dividia com um amigo e
do qual ele tinha conseguido o endereço numa penosa investigação entre
meus conhecidos, em Milão.<br />
<br />
Não houve nenhum abraço especial. Ele pediu que eu voltasse, porque,
disse, minha mãe não aguentava minha ausência e a falta de notícias. Ele
nem mencionou seu próprio sofrimento. E não perguntou por que eu tinha
fugido de casa.<br />
<br />
Aceitei voltar para tranquilizar minha mãe. Mas prometi que eu fugiria
de novo, assim que pudesse. E foi o que aconteceu: fui para casa e fugi
de novo.<br />
<br />
Muitos meses depois, quando voltei de vez, tampouco conseguimos falar
das razões do que tinha acontecido -talvez porque, no fundo, não
houvesse razões, além da banalidade do processo de crescer, de
destacar-se dos pais, de encontrar uma voz própria, fora do coro.<br />
<br />
Nesse processo, aliás, surgem motivações genéricas suficientemente
poderosas para que mal seja necessário procurar "causas" na
singularidade dos pais ou dos filhos. Dois exemplos.<br />
<br />
1) Os pais nunca nos dão tudo (nem quando são loucos a ponto de querer
nos fartar). Mesmo assim, durante um tempo absurdamente longo, o que
temos e esperamos vem só deles. Na adolescência, começamos a desejar
coisas que eles não conseguiriam nos dar nem se quisessem nos ver
eternamente satisfeitos. No entanto, como eles sempre foram responsáveis
por nossas satisfações, agora eles nos parecem ser responsáveis por
nossas frustrações.<br />
<br />
2) Stanley Cavell, um grande filósofo norte-americano, num ensaio de
1987, observou que todos nós sempre resistimos a deixar que os outros
nos transformem, e isso acontece, ele propôs, porque temos uma memória
viva (e talvez ressentida) de quanto fomos transformados por alguns
outros no começo de nossa vida.<br />
<br />
Essa intuição de Cavell pressupõe uma mágoa para com os pais pelo
próprio peso que eles tiveram na nossa infância -uma mágoa fundamental,
só por eles terem criado e moldado a gente.<br />
<br />
Obviamente, essa mágoa, que animaria a rebeldia adolescente, é, de fato,
mais uma marca dos pais. Pois mesmo os pais mais invasivos nunca deixam
de sonhar com a autonomia dos filhos. Hostilizamos os pais e fugimos
deles porque ELES mesmos querem nos ver livres e não gostam que se
prolongue a influência que eles tiveram e têm sobre nós.<br />
<br />
Ironia: quem deseja que fujamos de casa são nossos pais. E fugindo, realizamos um desejo deles.<br />
<br />
Claro, o outro desejo deles seria que ficássemos em casa para sempre.<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-28470492842376910182013-03-13T23:56:00.002-07:002013-03-13T23:56:44.158-07:00O uso reto do corpo<br />
<div class="kicker blue">
<b><i>E, para Feliciano, será que a boca foi feita para ser invadida pela língua do outro, no beijo?</i></b></div>
<br />
Em tese, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados (CDHM) luta para que cada cidadão e cada grupo de cidadãos
possam exercer plenamente sua diferença (claro, à condição de que essa
diferença não atrapalhe a liberdade dos outros).<br />
<br />
Parece lógico que a comissão seja presidida por um espírito libertário.
Isso não exclui pastores, padres, imames e moralistas rigorosos, à
condição de que, por cultura, experiência de vida e qualidades morais
excepcionais, eles saibam colocar a liberdade dos outros antes de suas
próprias convicções.<br />
<br />
Esse não parece ser o caso do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), pastor
evangélico, que acaba de ser eleito presidente da CDHM. Na notável série
de suas declarações boçais citadas nestes dias, minhas preferidas são:
1) "Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é
fato."; e 2) "O reto não foi feito para ser penetrado -não sou contra o
homossexual, sou contra o ato homossexual."<br />
<br />
1) No texto bíblico que eu li, Cam zombou do pai Noé, o qual condenou
Cam e sua descendência à servidão. Mais tarde, os defensores da
escravatura decidiram que Cam era o antepassado dos africanos e se
serviram dessa história para justificar a posse e o comércio de
escravos.<br />
<br />
Terminar a evocação de um relato bíblico com um "isso é fato" já é
ingênuo. Terminar da mesma forma a revisão do relato bíblico proposta
pelos defensores da escravatura é para além de ridículo.<br />
<br />
Feliciano, formado em teologia, talvez leia a Bíblia no grego da
Septuaginta e no hebraico do texto massorético. Eu me viro em grego
antigo, mas, por hábito, leio a Bíblia no latim de São Jerônimo ou no
inglês do rei James. Será que ele tem acesso a fontes que eu ignoro?<br />
<br />
2) Cada deputado recebe uma verba considerável para que possa opinar com
conhecimento de causa. Mas Feliciano parece não saber que uma
porcentagem substancial de homossexuais não gosta de sexo anal,
enquanto, inversamente, o sexo anal faz parte das fantasias e das
práticas sexuais de muitos homens e mulheres heterossexuais. Isso, sem
entrar no vasto capítulo das penetrações (fantasiadas ou reais,
solitárias ou não) com objetos inanimados ou outras partes do corpo.<br />
O deputado Feliciano poderia se corrigir, generalizando: "hétero ou
homo, tanto faz: o reto não foi feito para ser penetrado". Eu entenderia
melhor.<br />
<br />
Mesmo assim, fico curioso. Será que, para o deputado Feliciano, as mãos
foram feitas para carícias, solitárias ou não, recíprocas ou não? E como
fica a boca? Sem pensar muito longe, será que ela foi feita para ser
invadida pela língua do parceiro ou da parceira?<br />
<br />
O deputado Feliciano poderia se entrincheirar atrás da ideia de que tudo
o que não serve para a reprodução deveria ser banido do sexo. É uma
opinião difícil de ser sustentada, pois, justamente, somos os únicos
mamíferos cujo desejo sexual não depende nem um pouco da fertilidade da
fêmea e, portanto, da reprodução. Mas é uma opinião respeitável e não
incompatível com a presidência da CDHM, à condição de ser, para o
próprio Feliciano, apenas uma opinião.<br />
<br />
Em outras palavras, o deputado Feliciano tem o direito de ser
impenetrável, para maior glória divina. Que diga, então, que SEU reto
não foi feito para ser penetrado, e ninguém protestará.<br />
<br />
Imaginemos que eu faça parte de um culto satânico que só permite atos
sexuais que desprezem a finalidade reprodutiva, e isso justamente para
contrariar um eventual plano divino. Ou imaginemos que eu pense,
simplesmente, que o melhor uso do meu corpo é o prazer e o gozo.<br />
<br />
Será que Marco Feliciano, presidente da CDHM, vai defender meus
direitos? Se a resposta não for um sim retumbante, a CDHM deve trocar de
presidente.<br />
<br />
Agora, quem colocou o deputado Feliciano na presidência da CDHM? Seis
deputados se retiraram assim que Feliciano foi eleito; entre eles,
Domingos Dutra (PT), Luiza Erundina (PSB) e Jean Wyllys (PSOL). Mas,
apesar do gesto dos seis, quem entregou a comissão ao PSC e a Feliciano
foi a base aliada do governo.<br />
<br />
A presidente Dilma disse que, nas eleições, "a gente faz o diabo" -ou
seja, qualquer aliança vale para ganhar. De fato, nas eleições, a
maioria de nossos políticos supostamente laicos e progressistas não
fazem o diabo, fazem o santinho. Para conquistar votos fundamentalistas,
beijam anéis e frequentam cultos; no fim, eles recompensam, de alguma
forma. Por exemplo, com comissões.<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-10893156242433589562013-03-07T04:36:00.001-08:002013-03-07T04:36:52.346-08:00Dilemas e cartilhas<br />
<div class="kicker blue">
<b><i>Nada mais pueril do que a certeza moral. A maturidade deveria ser o tempo da incerteza</i></b></div>
<br />
Na coluna da semana retrasada, "Para que serve a tortura?" (www.migre.me/dwB4Y), propus um dilema moral. Uma criança sequestrada está num lugar onde ela tem ar para pouco tempo. O sequestrador não diz onde está a criança. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?<br />
<br />
Entre os muitos leitores que me escreveram, menos de 10% entenderam que eu estaria promovendo o uso da tortura; mesmo esses, em sua maioria, usaram o dilema para pensar (com seus botões) no que eles fariam.<br />
<br />
Na semana passada, na Folha, Vladimir Safatle e Marcelo Coelho entenderam que meu dilema favorecia a tortura. No domingo, Hélio Schwartsman tentou colocar alguma ordem nessa cacofonia.<br />
<br />
Pena que nem Safatle nem Coelho fizeram o único exercício que um dilema moral pede: o de pensar nos termos que ele propõe. Muito pior: ambos declararam que não gostam de dilemas. Caramba!<br />
Tentando não ser chato para quem não seguiu a controvérsia, aqui vai:<br />
<br />
1) Dizer que você é contra a tortura porque ela não funciona é como dizer que a gente não deve assaltar o vizinho porque ele não tem dinheiro no bolso.<br />
<br />
2) Duvidar que a tortura funcione é um pouco covarde para com os milhares de sujeitos, mundo afora, que foram forçados a entregar um nome ou a assinar uma confissão e carregam, por isso, cicatrizes mais profundas das que ficaram em seu corpo -sobre isso, leia-se "Exílio e Tortura", de Marcelo e Maren Viñar (ed. Escuta).<br />
<br />
3) Para nos induzir a pensar, um dilema moral deve nos empurrar para uma posição diferente da de nossos princípios. Exemplo: o primeiro dilema de Kohlberg é sobre alguém que precisa de remédios para o filho e só pode consegui-los assaltando a farmácia. Esse dilema vale apenas para quem considere que assaltar é errado.<br />
<br />
4) Nota: Lawrence Kohlberg é o piagetiano que pesquisou a formação e as estruturas do pensamento moral. Ele inventou e experimentou uma educação moral pela prática dos dilemas (que eu saiba, é o único projeto de educação moral que não se pareça com uma doutrinação). Sugestão: antes de falar de dilemas, ler as obras principais de Lawrence Kohlberg -no mínimo, os "Essays on Moral Development".<br />
<br />
5) Um dilema nunca é um modelo para situações parecidas, pois a vida real é sempre mais complexa. Mas o dilema é o formato padrão da experiência moral moderna, na qual o que é justo é decidido não por conformidade a uma regra, mas por nós, incertamente.<br />
<br />
6) A infância é a idade tentada pelas cartilhas e pelos catequismos, até porque é a época em que os representantes das certezas mais tentam arregimentar as crianças -nos Balilla, na Hitler-Jugend, na Unión de Jóvenes Comunistas etc. Não tem nada mais pueril do que uma certeza moral. A maturidade é (ou deveria ser) a época da incerteza e dos dilemas.<br />
<br />
7) O dilema estimula a moralidade porque nos encoraja a não escolher por respeito a supostos princípios ou por medo de uma punição. Para Kohlberg (e para mim), seja qual for a escolha, escolher pelo foro íntimo é sempre mais moral do que escolher por obediência a uma cartilha.<br />
<br />
8) A modernidade se pergunta quem é o homúnculo que pilota nosso foro íntimo. Alguns, de Kant a John Rawls, apostam num homúnculo formal, parecido em todos nós, de maneira que seja garantida a existência de uma cartilha moral universal.<br />
<br />
Outros (com os quais me dou melhor) acham que quem escolhe são os indivíduos concretos, em toda sua miséria. Há, aliás, uma certa grandeza humana na desproporção entre o caráter "indigno" do que nos motiva e o caráter eventualmente grandioso e generoso de nossos atos.<br />
<br />
Explico: um sujeito concreto não tem os direitos humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso, porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi torturado pelos pais. Etc. Etc.<br />
<br />
10) Safatle chamou sua coluna "Questão de Método". Li "Questões de Método", de Sartre, 47 anos atrás. E ainda me lembro da lição: o recurso aos princípios esconde as particularidades concretas.<br />
<br />
11) Em qualquer momento histórico, entre os homens de bem, que resistem ao totalitarismo do momento, pode haver homens atormentados por dilemas e também portadores de cartilhas opostas às dos opressores.<br />
Mas, em qualquer momento histórico, entre os opressores e os torturadores, só há portadores de cartilhas.<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-81360021252250206642013-02-28T02:49:00.004-08:002013-02-28T02:49:54.964-08:00Yoani e as falsas alternativas<br />
<div class="kicker blue">
<i>Para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos</i></div>
<div class="kicker blue">
<br /></div>
Deveríamos recusar todas as alternativas -sempre, por princípio. Imagine
que alguém diga "Se você pega o preto, perde o branco, e, se você pega o
branco, perde o preto" e insista: "Então, qual será? Preto ou branco?".
Quase sempre, eu responderia que existem, no mínimo, 50 tons de cinza e
imediatamente devolveria a pergunta: "Por que razão escusa você tenta
me acuar a escolher entre preto e branco?".<br />
<br />
Somos crédulos, queremos acreditar que, a cada encruzilhada, exista
sempre uma saída mais malandra, pela qual nos daremos bem. Em sua
maioria, as alternativas nos seduzem e funcionam, justamente, quando
elas exaltam nossa falsa fé em soluções que não sejam totalmente
perdedoras.<br />
<br />
Jacques Lacan, o grande psicanalista francês, para ilustrar nossa
"alienação" diante das "escolhas forçadas" (palavras dele), recorria ao
exemplo do assaltante que nos mandaria decidir: "A bolsa ou a vida!".<br />
<br />
Basta pensar um instante para constatar que a alternativa é furada,
visto que, se eu decidir ficar com a bolsa, não vou perder só a vida
-vou perder também a bolsa, pois o assaltante não vai deixá-la com meu
cadáver.<br />
<br />
De maneira tristemente engraçada, a outra possibilidade é igualmente
furada no Brasil. Aqui, se escolhermos ficar com a vida e entregarmos a
bolsa com docilidade, há uma boa chance que mesmo assim o assaltante nos
mate, pegando, com a bolsa, nossa vida também.<br />
<br />
Em suma: escolha zero. No exterior, "A bolsa ou a vida!" significa
"Passa a bolsa, e ponto". E, no Brasil, considere-se sortudo que não
signifique "Passe a bolsa E a vida, E ponto" -como dizem os bandidos,
"Você perdeu geral".<br />
<br />
O exemplo de "A bolsa ou a vida" sugere (com pertinência) que qualquer
um que tente nos impor uma escolha forçada seja provavelmente um
bandido, interessado sobretudo em afirmar e consolidar seu poder sobre
nós.<br />
<br />
A política, na segunda metade do século passado, alimentou-se de uma
alternativa desse tipo, uma alternativa bandida e falsa, segundo a qual
deveríamos escolher entre, de um lado, as ditas liberdades burguesas
(liberdade de opinião, de culto, de ir e vir pelo mundo, de ter nossa
privacidade respeitada etc.) e, do outro lado, uma nova justiça social,
que acabasse com miséria e fome.<br />
<br />
Eu mesmo já pertenci a essa bandidagem. Quando me mostravam que os
países ditos socialistas esmagavam as liberdades básicas, eu respondia
"E a liberdade de não morrer de fome, hein?". Como se, para se livrar da
fome, renunciar às liberdades burguesas fosse o preço necessário e,
portanto, aceitável, se não módico.<br />
<br />
Isso aconteceu, entre outras coisas, porque não escutei direito ao meu
pai. Giustizia e Libertá (justiça e liberdade) era o nome do movimento
no qual ele se reconhecia, nos anos 1930. Era um movimento socialista,
antifascista e anticomunista, para o qual justiça e liberdade não podiam
constituir uma alternativa.<br />
<br />
Em geral, quem nos diz que só teremos liberdade sem justiça é um
aproveitador econômico e social (quer ser livre de perseguir seus
interesses sem ter que se preocupar com os outros). E quem nos diz que
só teremos justiça sem liberdade é um aproveitador político (quer que
abandonemos nossas liberdades de modo que ele possa se eternizar no
poder sem oposição). Essas duas espécies de aproveitadores se valem.<br />
<br />
A alternativa "liberdade ou justiça" é tão falsa quanto "a bolsa ou a
vida". Em particular, a troca da liberdade pela justiça produziu mundos
sem liberdade (isso era previsto) e (isso não era) totalmente injustos,
corrompidos por burocracias apenas interessadas em se manter no poder.<br />
<br />
Ora, na ocasião da chegada ao Brasil da blogueira cubana Yoani Sánchez,
houve pessoas para ressuscitar essa falsa alternativa: como pode ela
criticar a falta de liberdade em Cuba, quando o regime acabou com a fome
na ilha?<br />
<br />
O fato é que, para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos.
<br />
<div class="star">
-
</div>
Nota. Muitos leitores debateram comigo por e-mail a coluna da semana
passada, "Para que serve a tortura?". Ontem, Marcelo Coelho, em sua
coluna nesta página, comentou meu texto e o tema. Anteontem, Vladimir
Safatle, na página 2 da <b>Folha</b>, fez a mesma coisa sem citar minha coluna (sei lá por quê). Seja como for, contribuirei ao debate na próxima quinta.<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-85028451103925930902013-02-22T01:15:00.000-08:002013-02-22T01:15:05.783-08:00Para que serve a tortura?A tortura tem, no mínimo, três fins não excludentes: 1) tortura-se pelo prazer enjoativo de quem tortura ou de quem assiste à tortura; 2) tortura-se para que um acusado confesse seu crime; 3) tortura-se para que um acusado revele a existência de um complô, os nomes de seus cúmplices etc.<br />
<br />
Será que a tortura consegue tudo isso? 1) Para satisfazer o desejo doentio do torturador, a tortura funciona, sempre. 2) A Igreja Católica, por séculos, torturou pecadores para que admitissem seus pecados e, sobretudo, torturou heréticos para que confessassem suas teologias desviantes.<br />
<br />
Essa tortura era tão violenta quanto a que fora praticada contra cristãos na época das perseguições, mas o desfecho era diferente. Os mártires cristãos eram torturados para eles renunciarem à religião, e, às vezes, se abjurassem, o suplício era suspenso. Os heréticos eram torturados pela Inquisição para confessarem sua heresia, mas, em geral, a "confissão" não evitava uma morte excruciante.<br />
<br />
Será, então, que a tortura funciona para arrancar confissões? Se você for pai, faça a experiência. Seu filho (ou filha) fez uma besteira comprovada, sem sombra de dúvida, mas você não se contenta em aplicar uma punição e quer que a criança confesse. Se ela reconhecer sua culpa, aliás, a confissão valerá como uma atenuante, enquanto que, se ela insistir em negar o que fez, a mentira será infinitamente mais repreensível do que a besteira inicial.<br />
<br />
Sugestão diferente: se você soube que seu filho ou sua filha fez algo que não devia, diga no que foi que errou, deixe pouco espaço de discussão e dê a punição adequada. Depois disso, amigos como antes. Quase sempre, quando uma confissão é exigida, as crianças mentem com obstinação diretamente proporcional à de seu acusador.<br />
<br />
Elas fogem assim de uma humilhação radical, em que renunciariam à sua própria subjetividade: desistiriam de ter segredos e aceitariam que a versão do acusador substituísse a versão que elas gostariam de contar como sendo a história delas. Claro, se você insistir, ameaçando a criança com punições cada vez mais requintadas, a criança talvez "confesse", mas a confissão será apenas um ato de desistência, em que mesmo o inocente se dirá culpado do jeito que o acusador pede.<br />
<br />
Em suma, a tortura para obter confissões é um desastre. Há uma certa beleza moral nesse fracasso: a tortura seria inútil, não ajudaria a chegar à verdade. Ou seja, existe um justificativa prática, "racional", para aboli-la, além do horror que ela inspira em qualquer um (salvo, obviamente, em torturadores, inquisidores ou deuses vingativos). 3) Infelizmente, esse argumento "racional" só se aplica à tortura que tenta extirpar a confissão do acusado.<br />
<br />
Quanto ao uso da tortura para obter informações sobre cúmplices, paradeiros escondidos, complôs etc., vamos ter que encontrar razões puramente morais para bani-la, pois, constatação desagradável, ela funciona. O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os "interrogatórios" brutais do agente Jack Bauer, na série "24 Horas", funcionam.<br />
<br />
E, de fato, como lembra "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.<br />
<br />
Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa --se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade.<br />
<br />
Para se declarar contra o uso da tortura no caso deste filme, alguém talvez invoque a moral kantiana e o dever de tratar os homens como fins e não como meios. A esse alguém, proponho um exemplo politicamente mais neutro, parecido com aqueles dilemas morais cuja prática (como descobriu um grande psicólogo, Lawrence Kohlberg) talvez seja a melhor forma de educação moral.<br />
<br />
Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o que?<br />
<br />alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-22992155568688840572013-02-14T11:10:00.000-08:002013-02-18T11:10:34.399-08:00Saudade de ideias perigosas No meio do Carnaval, para decidir meu voto (por correspondência) nas eleições políticas italianas, conversei por telefone com meu irmão, que vive em Milão.<br />
<br />
A meu ver, em qualquer ocasião, deveria votar só quem vive na sociedade que será modificada pelo resultado da eleição. Como italiano vivendo no Brasil, eu deveria votar no Brasil, e não na Itália.
Seja como for, meu irmão e eu concordamos.<br />
<br />
Votaríamos para obter resultados parecidos:
1) resistir ao populismo regionalista da "Lega Nord" (que tem um discurso do tipo: mandemos embora os estrangeiros e voltemos a falar dialeto, tudo dará certo se ficarmos entre nós);
2) resistir ao populismo do Movimento Cinque Stelle, cinco estrelas (seu animador, Beppe Grillo, nos faz pensar na Itália das comédias de Lina Wertmüller --o país do qual fugi);
3) apoiar a centro-esquerda (sem nem pensar que o Partito Democratico seja herdeiro do antigo partido comunista, no qual militei --essa lembrança teria semeado a discórdia entre nós);
4) não reprovar o trabalho de saneamento básico feito pelo primeiro ministro Monti;
5) impedir a volta de Berlusconi.
Fato notável, desde os anos 1990, meu irmão e eu conseguimos conversar de política.<br />
<br />
A razão é simples: nem eu nem ele defendemos mais grandes ideias. Acabou a época de Marx contra Adam Smith, Gramsci contra Luigi Einaudi etc. Estamos prontos para uma democracia em que não se enfrentam projetos de sociedade, só questões concretas, em referendo: você é a favor ou contra o casamento gay? A eutanásia? A pesquisa com células-tronco?
Também nestes dias recebi o e-mail pelo qual Marina Silva convida para um encontro, em Brasília, do qual deve sair um novo "instrumento político" (ninguém quer mais falar em partido, é compreensível).<br />
<br />
As palavras finais do convite vão na direção da política concreta que me permite conversar com meu irmão: "Podemos contribuir para recuperar o espaço da política para a prática do bem comum, do serviço, da afirmação dos direitos e deveres da cidadania. Podemos contribuir para democratizar a democracia".
É uma esperança e tanto. E aprovo que a política seja uma arte de pensar o concreto, e não um debate ou conflito de ideias e ideais. Mas não deixo de sentir saudade.
Dei-me conta disso ao assistir ao extraordinário "O Amante da Rainha", de Nikolaj Arcel.<br />
<br />
Contrariamente a Luiz Felipe Pondé, em sua última coluna, o que me tocou não foi a história de amor, mas a lembrança de uma época em que havia livros proibidos, porque sua leitura ameaçava transformar o mundo.
Rousseau não é meu iluminista preferido, mas, para o bem ou o mal, é um dos pilares do pensamento moderno. Em 2009, um bonito exemplar da primeira edição do "Contrat Social" (Amsterdam, 1762) custou quase US$ 50 mil (R$ 100 mil).
Logo após sua publicação, em vários lugares da Europa, o mesmo exemplar custava infinitamente menos, mas saía mais caro: guardar o livro na estante de casa podia valer uma estadia na prisão, ou coisa pior.
<br />
<br />
Nas partes do mundo que me são familiares (a Europa e as Américas -sobretudo a do Norte), faz apenas algumas décadas (não mais do que isso) que não há livros cuja posse seja comprometedora --algumas décadas que os governos deixaram de se preocupar com a difusão de opiniões "subversivas".
Nasci na Europa depois do fim do fascismo e do nazismo. Não vivi na América do Sul durante as ditaduras militares. Por sorte, fui só turista na Espanha franquista e no Portugal salazarista --nunca tive que viver lá. Sorte maior ainda, nunca tive que passar mais de duas ou três semanas do outro lado da Cortina de Ferro ou em países comunistas da Ásia ou da América Central.
O mesmo vale para Estados confessionais.<br />
<br />
Em conclusão, nunca vivi debaixo de governos que temessem a difusão de ideias a ponto de tentar impedi-la à força.
Mesmo assim, desde o começo da modernidade até poucas décadas atrás (até a queda do Muro de Berlim?), os livros eram tratados como armas potencialmente perigosas. Enquanto hoje, no fundo, eles e suas ideias parecem, antes de mais nada, indiferentes.<br />
<br />
O que aconteceu?
Foucault responderia, provavelmente, que a grande estratégia do poder contemporâneo é a permissividade: se é permitido dizer tudo e qualquer coisa, por que discutir, por que lutar por qualquer ideia? Fale e deixe falar. Não é?alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-18446268710001886242013-02-07T03:36:00.000-08:002013-02-07T03:36:13.034-08:00As regras do bem viver<br />
<div class="kicker blue">
<i>A polidez excessiva é diretamente proporcional à violência do desejo que ela mascara e contém</i></div>
<br />
Um pré-adolescente me contou que ele sempre deixa as mulheres passarem
primeiro nas portas, nas catracas e em todos os limiares da circulação
social, segundo ele foi instruído pelos pais e pelos avós.
<br />
<br />
No entanto, esse gesto cavalheiro é acompanhado por um pensamento que
ele não consegue evitar e que, um dia, ele receia, poderia explodir como
um grito indomável, impossível de ser mais uma vez reprimido.
<br />
<br />
Deixo você imaginar as consequências que esse grito teria, pois, a cada
vez que ele, nobremente, estende a mão para convidar uma mulher (moça ou
idosa, tanto faz) a passar antes dele, o que insiste na sua mente é a
frase: "Empina a bunda, sua vaca!".
<br />
<br />
Não acho estranho: as boas maneiras existem, provavelmente, para
reprimir pensamentos, condutas e desejos, que, se liberados, tornariam
desagradável a nossa convivência social.
<br />
<br />
Não conheço estudos sobre o costume de deixar as mulheres passarem
primeiro. Algumas más línguas dizem que nasceu como uma precaução
masculina, caso houvesse assassinos esperando o homem do outro lado da
porta. Outras más línguas afirmam que era um jeito de os homens
controlarem as mulheres, pois, se elas fossem autorizadas a ficar atrás,
fugiriam na primeira ocasião.
<br />
<br />
No que me toca, aprendi que a mulher deve passar sempre antes do homem,
salvo na descida de uma escada, quando o homem, indo na frente, tapa a
perspectiva inconveniente de quem, a partir do piso inferior, procurasse
olhar por baixo da saia da mulher. Esse deve ser um preceito recente,
de quando as saias se encurtaram, mas a própria regra de deixar a mulher
passar primeiro tampouco é antiga.
<br />
<br />
Seja como for, há uma distância notável entre, no meio de um saque,
jogar a mulher em cima do ombro e levá-la embora, para estuprá-la mais
tarde, com calma (quem sabe, entre amigos) e, no extremo oposto, abrir a
porta para a mulher passar primeiro. Como ilustra a dificuldade do
jovem que mencionei, a polidez excessiva é diretamente proporcional à
violência do desejo que ela mascara e contém.
<br />
<br />
Em suma, as regras de boas maneiras podem parecer risíveis e são quase
sempre hipócritas, mas, justamente por isso, elas são úteis e
necessárias -porque não poderíamos conviver sem repressão e hipocrisia.
<br />
<br />
Norbert Elias escreveu "O Processo Civilizador" (Zahar) em 1939. Pobre,
exilado em Londres no momento da maior barbárie do século 20, Elias
procurou e encontrou a origem da subjetividade e da liberdade modernas
logo nos tratados de boas maneiras.
<br />
<br />
Isso porque as regras de etiqueta nos ensinam a domesticar os impulsos
mais perigosos e, mais ainda, porque a preocupação com o olhar do
vizinho de mesa nos obriga a sermos minimamente graciosos.
<br />
Chato? Talvez. Mas a novidade moderna é que a elegância é uma qualidade
social permitida a todos -basta querer. Se o requisito é a elegância (e
não a nobreza, que não depende da gente), qualquer um pode ter o que
precisa para ser convidado a qualquer jantar.
<br />
<br />
Engraçado: criticamos as aparências e a etiqueta como se fossem
leviandades, sem pensar que seu triunfo nos libertou das barreiras
intransponíveis de uma divisão social decidida pelo berço no qual cada
um tinha nascido.
<br />
<br />
Parêntese: estou lendo "Consider the Fork: A History of How We Cook and
Eat" (pense no garfo: uma história de como cozinhamos e comemos, Basic
Books), de Bee Wilson, que conta muito bem como fomos transformados pela
evolução dos costumes de cozinha e de mesa.
<br />
<br />
Enfim, estava no meio dessas reflexões quando, sábado passado, fui
assistir a "As Regras da Arte de Bem Viver na Sociedade Moderna", de
Jean-Luc Lagarce, no Sesc Ipiranga, em São Paulo (imperdível, e atenção:
só nos próximos três sábados, às 19h30). A atuação de Lorena da Silva é
perfeita. E o texto, francamente engraçado, é uma pérola de
inteligência.<br />
<br />
Lagarce nos lembra os usos e costumes dos rituais da vida, do nascimento
até a morte, passando por batismo, casamento, bodas de prata etc. Ele
escreveu "As Regras" em 1993, dois anos antes de morrer de complicações
relacionadas à Aids; pelo destino que o espreitava, ele poderia ter sido
sarcástico com a suposta "frivolidade" de nossos rituais. Mas ele tomou
outro caminho: ele fez, sim, que as regras básicas de nossa etiqueta
nos parecessem estranhas e eventualmente hipócritas, mas sem que a gente
perdesse de vista que elas são a própria trama de um mundo que amamos
-e do qual ele já devia sentir saudade.<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-57853445621506007972013-02-03T03:44:00.000-08:002013-02-03T03:44:10.098-08:00"Amor" letal<br />
<div id="articleDate">
<b><i>Algumas reflexões depois de assistir a "Amor", de Michael Haneke.
</i></b></div>
<div id="articleDate">
<br /></div>
<div id="articleDate">
Adolescente, eu já achava bizarra a certeza com a qual alguns amigos se
expressavam: "Se eu ficar 'assim'", diziam, "eu me mato na hora. E, por
favor, se eu não me matar, seja generoso comigo, mate-me você".</div>
<br />
O "assim" que justificava tamanha convicção dependia de relatos,
leituras e filmes --ia desde uma impotência sexual talvez passageira
(mas que parecia acabar com o charme da vida) até a condição
terrificante do protagonista de "Johnny Vai à Guerra", livro e filme de
Dalton Trumbo: o soldado Joe, sem braços, sem pernas, sem rosto, parece
ser apenas uma carne disforme, enquanto a mente dele continua
funcionando.
<br />
<br />
Eu não concordava com a certeza suicida de meus amigos; imaginava que,
antes de decidir me matar, seria bom experimentar minha nova condição
durante um tempo. Afinal, em geral, as imperfeições nunca impediram os
humanos de viver --ao contrário.
<br />
<br />
Na época de minha adolescência, não dispúnhamos do exemplo do físico
Stephen Hawking ou de Christy Brown, o protagonista de "Meu Pé
Esquerdo", de Jim Sheridan. Em compensação, um amigo de meus pais,
severamente inválido, disse-me, uma vez: "Você, por exemplo, não pode
voar como as aves e é desafinado como um sino quebrado; ou seja, tem
coisas que não pode fazer, e você vai procurar o valor de sua vida em
outras coisas, que você pode fazer. Comigo não é diferente".
<br />
<br />
Entendi. Mas me sobrou um certo medo (justamente, pela leitura precoce
de "Johnny Vai à Guerra"): poderia acontecer que, de imediato, por causa
de um acidente cerebral ou, sei lá, de um incidente de carro, eu me
encontrasse numa condição na qual eu não quisesse viver de jeito nenhum e
na qual eu não tivesse sequer a capacidade material e mental de pôr fim
à minha vida ou de pedir para um próximo que ele me ajudasse a morrer.
<br />
<br />
Anos atrás, conheci alguém realmente preocupado (muito mais do que eu)
com essa eventualidade. Ele envelheceu desesperado, oscilando entre o
medo de se matar cedo demais, quando ainda poderia viver um tempo que
valesse a pena, e o perigo de esperar além da conta e decidir sair de
cena quando ele não tivesse mais condição de se matar ou de pedir a
alguém que o matasse.
<br />
<br />
O mesmo alguém se consolava pensando assim: no caso extremo em que eu
não pudesse mais pedir, quem me ama (ou melhor, quem amava aquela pessoa
que eu era antes) saberá decidir que eu, embora impedido de me
manifestar por minha invalidez, não estou querendo mais viver. Nessa
situação, para quem me ama (ou amava, que seja), me ajudar a morrer
seria um gesto de amor.
<br />
<br />
Pois é. Não é tão fácil assim nem tão claro. Na sua coluna de sexta
passada, Barbara Gancia escreveu, com razão, que "o fardo de cuidar dos
idosos tornou-se um dos maiores dramas da atualidade". Os avanços da
medicina fazem que, hoje, sejam cada vez mais numerosos os que cuidam de
próximos que sobrevivem transformados pela idade, pela invalidez ou
pela demência. E sobrevivem, muitas vezes, tanto irreconhecíveis quanto
incapazes de reconhecer os que cuidam deles. Perguntas básicas.<br />
<br />
1) Será que o outro que nós amávamos, se ele pudesse escolher, toparia viver como ele está agora?
<br />
<br />
2) Será que o ser do qual cuidamos hoje é o mesmo que nós amávamos antes
do acidente, da invalidez ou da demência? Se ele não for o mesmo, será
que esse "novo" ser não tem seus próprios critérios do que é uma vida
que valha a pena de ser vivida --critérios diferentes dos do nosso amado
de antes?
<br />
<br />
3) Difícil continuar amando alguém que não nos reconhece mais. Mas será
que por isso o deixaríamos morrer --por ele não ser mais aquele ou
aquela que amávamos?
<br />
<br />
4) Por que sempre chega um dia em que ninguém aguenta mais cuidar? É
porque o custo (em todos os sentidos) é excessivo e queremos recuperar
nossas vidas? Ou é porque é quase impossível fazer o luto de um amado
que já se foi, mas continua de corpo presente?
<br />
<br />
Acontece que alguém se suicide depois de ter matado um amado inválido e
demente, de quem não consegue mais cuidar. É mais que uma maneira de
evitar a culpa: renunciando a viver sem você, confirmo que foi por amor
que matei você --ou melhor, que matei o desconhecido que tinha tomado
seu lugar.
<br />
<br />
Pois é, foi mesmo por amor que matei você? Ou por vingança, por você ter me deixado sozinho?
<br />
<br />
Seja como for, fica confirmado, embora num sentido inabitual, que o amor resiste dificilmente ao tempo.<br />
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-40477714238707929872013-01-25T23:37:00.005-08:002013-01-25T23:37:57.922-08:00Atores famosos no palcoPassei um mês em Nova York --escrevendo, lendo e frequentando teatros,
cinemas e galerias. Aproveitei para ver ao vivo alguns atores de cinema
ou de televisão. Por que eu não estaria a fim de "conhecer os corpos" de
atores que dão vida a ficções que me tocam?<br />
<br />
No teatro, nunca desdenho uma primeira fileira, de onde é fácil ouvir a
respiração e enxergar as gotas de suor e de saliva que constituem, para
mim, o charme da presença material, física do ator.
Vi Jessica Chastain (a imperdível protagonista de "A Hora Mais Escura",
de Kathryn Bigelow, que estreará em 15 de fevereiro), David Strathairn e
Dan Stevens (o Matthew Crawley de "Downton Abbey" --agora no GNT),
todos em "The Heiress" ("A Herdeira"), de R. e A. Goetz, no Walter Kerr
Theatre. E vi Scarlett Johansson em "Cat on a Hot Tin Roof" ("Gata em
Teto de Zinco Quente"), de Tennessee Williams, no Richard Rodgers
Theatre.<br />
<br />
Ao entrarem no palco, os atores eram recebidos por aplausos que sustavam
a ação: afinal, o público estava lá para vê-los. Mas, fora essas breves
suspensões, todos eles seguiam o que é hoje um padrão de atuação: uma
sólida quarta parede. Explico.
No teatro, o palco é delimitado por três paredes, a quarta sendo a que
está faltando, de modo que a plateia possa enxergar a ação. Os atores
podem aproveitar dessa abertura para interagir com o público (lembrando
assim a todos que se trata de uma peça) ou, no extremo oposto, agir como
se eles estivessem sozinhos, entre quatro paredes.
<br />
<br />
Hoje, em regra, o ator (ainda mais se for de cinema) tende a atuar
assim, entre quatro paredes, como se não houvesse câmera nem plateia. A
ponto que uma cumplicidade com o público parece intencional --um jeito
de transgredir o padrão dominante, de nos fazer rir ou de nos distanciar
da história representada.
<br />
<br />
A experiência foi diferente quando fui ver Al Pacino em "Glengarry Glen
Ross", de David Mamet, no Schoenfeld Theatre. Aqui, a atuação de Al
Pacino era um grande aparte endereçado ao público. Mesmo nos diálogos
com os outros atores, ele olhava e falava para nós.
<br />
<br />
Não vou me queixar de que, num diálogo comigo (e 800 outros, claro), ele
usasse as manhas de Michael Corleone, Frank ("Perfume de Mulher") ou
Lefty ("Donnie Brasco"). Afinal, eu estava lá para isso, não é?
<br />
No Brasil, também, já vi atores famosos do cinema e da televisão atuando
no teatro. Nunca vi um deles dar uma de Al Pacino e quebrar a quarta
parede para oferecer ao público um banho de presença estrelada.
<br />
Em compensação, fico quase sempre com a impressão de que, no Brasil, os
atores mantêm uma conexão com a plateia que abre uma fresta na famosa
quarta parede.
<br />
<br />
É óbvio que não estou me referindo a peças nas quais, de maneira
intencional, os atores interagem com a plateia como se não houvesse
quarta parede. É óbvio também que não estou falando de rupturas
escrachadas da quarta parede, como, sei lá, apartes ou piscadinhas
engraçadas para o público.
<br />
<br />
Ao contrário, gostaria de descrever (mas não consigo) uma impressão
sutil de que os atores, aqui no Brasil, atuam PARA mim. Ou seja, que a
presença da plateia pesa no que acontece no palco.
<br />
<br />
Se essa minha impressão capta alguma realidade, qual seria uma origem
possível do fenômeno? É difícil superestimar a importância da telenovela
na cultura nacional (e, por consequência, na formação dos atores). Ora,
há uma especificidade da novela que dota a quarta parede de uma leve,
mas constante transparência. Qual?
<br />
<br />
A novela é escrita enquanto está sendo gravada e vai ao ar --ela é um
pouco herdeira da "commedia dell'arte", uma gloriosa forma de teatro em
que os atores improvisavam a partir de uma sinopse.
<br />
<br />
A primeira consequência disso é que, na novela, como em nenhum outro
gênero, a relevância de um personagem e seu destino na história podem
depender da recepção que o público lhe reserva.
<br />
<br />
O ator sabe que, se seu personagem conquistar o público (pelo bem ou
pelo mal), ele ganhará relevância nos capítulos seguintes (um personagem
pode ser secundário na sinopse e se tornar central ao longo da novela).
Ou seja, o caráter inacabado do texto impõe ao ator uma tarefa que
corrói a opacidade da quarta parede: a tarefa de ser especialmente
apreciado (gostado ou odiado, tanto faz).
<br />
<br />
Em suma, talvez a telenovela, por sua relevância e por essa sua
caraterística, produza, entre nós, atores particularmente atentos ao
retorno da plateia. Não sei se é um bem ou um mal.alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2561636833702878765.post-60259965040093211802013-01-17T23:23:00.000-08:002013-01-19T23:23:47.506-08:00Loucos e adolescentes suicidas<br />
<h1 style="background-color: white; color: #222222; font-family: arial, sans-serif;">
<span style="font-size: 15.555556297302246px;"><i>Nos EUA, desde o massacre na escola primária Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, o debate não para: quem mata, as armas ou os homens? </i></span></h1>
<div style="background-color: white; color: #222222; font-family: arial, sans-serif; font-size: 15.555556297302246px;">
Obviamente, quem mata são homens com armas --e é mais fácil controlar as armas do que controlar os homens, os quais são bastante imprevisíveis.</div>
<div style="background-color: white; color: #222222; font-family: arial, sans-serif; font-size: 15.555556297302246px;">
<br />Para a NRA (Associação Nacional dos Rifles), ao contrário, as armas não seriam problema à condição de que elas não caíssem nas mãos de malucos. Como evitar que isso aconteça? O presidente da associação propõe a criação de uma lista nacional das pessoas que, em algum momento da vida, precisaram de atendimento em saúde mental. Os que estivessem nessa lista seriam barrados na hora de adquirir uma arma.<br />
<br />
Não se sabe se a lista incluiria só os que recorreram a psiquiatras e a medicações ou também os que recorreram a um psicoterapeuta (sem contar os que pediram ajuda a padres, pastores, rabinos e outros "sábios").<br />
<br />
Mesmo supondo que se trate só dos pacientes medicados, imagine as consequências. Dez anos atrás, você ficou triste porque perdeu o emprego, e um médico (talvez desavisado) quis ajudar e lhe prescreveu antidepressivos (que, aliás, provavelmente não serviram para nada). Pois bem, desde então, você está na tal lista nacional (a qual, não se iluda, não será consultada só quando você pedir para adquirir uma arma).<br />
<br />
Anos atrás, psicoterapeuta nos EUA, eu atendia pacientes que tinham direito ao reembolso da terapia pelo seu seguro de saúde, mas que preferiam pagar meus honorários de seu bolso: eles não queriam que ficasse registrado em lugar algum que eles tinham precisado de assistência em saúde mental --achavam que essa "fraqueza" mancharia seu currículo. Essa preocupação me parecia descabida, mas talvez eles tivessem razão.<br />
<br />
Recorrer à psicoterapia e à medicação psiquiátrica se tornou banal. Isso não é só consequência de diagnósticos e prescrições apressados, mas também de uma mudança na ambição da psiquiatria e da psicologia clínica, que querem, como a medicina, cuidar da gente, ou seja, exercer seu poder sobre nossas vidas.<br />
<br />
Em vários casos, a nova versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5), da Associação Americana de Psiquiatria, prevista para este ano, baixa o limiar do que pertence à patologia, designando como transtornos --passíveis de cuidado médico e psicológico-- afetos, pensamentos e humores que, até hoje, eram considerados parte da experiência humana normal.<br />
<br />
Em outras palavras, somos cada vez mais considerados como "doentes" (e convidados a procurar tratamento) por uma psicologia e uma psiquiatria que não param de definir nossa "normalidade" --com as melhores intenções.<br />
<br />
Isso é bom ou ruim? Nem sempre é fácil responder. Eis um exemplo, complicado.<br />
Acabo de ler uma pesquisa sobre suicídio na adolescência, de Matt Nock (professor de psicologia em Harvard) e outros, publicada em 9 de janeiro no "JAMA Psychiatry", o Jornal da Associação Médica Americana on-line (íntegra:<a href="http://migre.me/cNp2O" style="color: #1155cc;" target="_blank">http://migre.me/cNp2O</a> ).<br />
<br />
Numa amostra de mais de 6.000 adolescentes de 13 a 18 anos, os pesquisadores acharam que 12% pensaram em suicídio de maneira consistente e continuada --as meninas mais do que os meninos: entre elas, 6% fizeram planos de suicídio e 5% tentaram se matar. Esses números não destoam de minha experiência, tanto de clínico como de ex-adolescente, mas, claro, preocupam.<br />
<br />
No entanto, a repercussão do estudo é devida a outro dado: como o "New York Times" destacou, segundo a pesquisa, mais da metade dos adolescentes suicidários tinham recebido algum tipo de tratamento antes de planejar ou mesmo tentar o suicídio.<br />
Receávamos que nossos adolescentes não tivessem acesso ao tratamento do qual precisam, mas o problema, aparentemente, é que os tratamentos não estariam funcionando direito. Claro, é preciso aperfeiçoá-los, estender seu alcance etc. Mas será que nossos tratamentos não funcionam ou será que estamos esperando deles o impossível?<br />
Mal precisa dizer que devemos evitar que os adolescentes se suicidem. Por outro lado, é raríssimo que alguém atravesse a adolescência sem pensar, de vez em quando, que o futuro poderia não valer a pena.<br />
Seria fácil, mais uma vez, designar esse pensamento normal como transtorno e, para curar alguns adolescentes, pretender curar a adolescência, tentando tirar dela aquela dor de viver que, bem ou mal, a define.</div>
alamhttp://www.blogger.com/profile/14817155611392814251noreply@blogger.com0