quinta-feira, 29 de julho de 2010

Eu sou atriz pornô, e daí?


É uma ideia antiga: uma mulher, se ousa desejar, só pode ser "a puta", com a qual tudo é permitido


RESISTI A pedidos e pressões para que comentasse o caso do goleiro Bruno. Não gosto de especular sobre investigações inacabadas ou acusações ainda não julgadas.

No entanto, especialmente nos crimes midiáticos, sempre há fatos e atos que merecem comentário e que não dependem da culpa ou da inocência de suspeitos ou acusados.

Por exemplo, durante a investigação sobre a morte de Isabella Nardoni, o fato mais interessante era a agitação da turba: diante da delegacia de polícia, os linchadores pulavam e gritavam indignados só quando aparecia, nas câmeras de TV, a luz vermelha da gravação.

Há turbas parecidas no caso do goleiro Bruno. E, além das turbas, também alguns delegados de polícia parecem se agitar especialmente quando as câmeras estão ligadas, o que, provavelmente, não contribui ao progresso das investigações.

Mas o que me tocou, nestes dias, foi outra coisa. Segundo o advogado Ércio Quaresma Firpe, que defende o goleiro Bruno, a polícia estaria investigando um crime inexistente, pois Eliza Samudio estaria viva e se manteria em silêncio e escondida pelo prazer de ver o Bruno acusado e preso. Para perpetrar essa vingança, aliás, Eliza não hesitaria em abandonar o próprio filho de cinco meses.

É uma linha de defesa que faz sentido, visto que, até aqui, o corpo de Eliza não apareceu. Mas o advogado Firpe, para melhor transformar a vítima presumida em acusada, tentou apontar supostas falhas no caráter de Eliza soltando uma pérola: "Essa moça", ele disse, "é atriz pornô".

Posso imaginar a expressão que acompanhou essa declaração: o tom maroto que procura a cumplicidade de quem escuta, uma levantadinha de sobrancelhas para que a alusão confira um valor especialmente escuso à letra do que é dito.

Estou romanceando? Acho que não. De mesa de restaurante em balcão de bar, já faz semanas que ouço comentários parecidos, de homens e mulheres, mas sobretudo de homens: Eliza Samudio era "uma maria chuteira", uma mulher fácil.

Será que essas "características" de Eliza absolvem seus eventuais assassinos? Claro que não, protestariam imediatamente os autores desses comentários. Mas o fato é que suas palavras deixam pairar no ar a ideia de que, de alguma forma, a vítima (se é que é vítima mesmo, acrescentaria o advogado Firpe) fez por merecer.
Pense nos inúmeros comentários sobre o caso de Geisy Arruda, aluna da Uniban: tudo bem, os colegas queriam estuprá-la, isso não se faz, mas, também, como é que ela vai para a faculdade com aquele vestidinho curto e tal?

No processo contra um estuprador, por exemplo, é usual que a defesa remexa na vida sexual da vítima tentando provar sua facilidade e sua promiscuidade, como se isso diminuísse a responsabilidade do estuprador. Isso acontece até quando a vítima é menor: estuprou uma menina de 12 anos? Cadeia nele; mas, se a menina se prostituía nas ruas da cidade, é diferente, não é?

Diante de um júri popular, essas considerações funcionam, de fato, como circunstâncias atenuantes: talvez estuprar "uma puta" não seja bem estupro.

Em suma, quando a vítima é uma mulher e seu algoz é um homem, é muito frequente (e bem-vindo pela defesa) que surja a dúvida: será que o assassino ou o estuprador não foi "provocado" pela sua vítima?
Atrás dessa dúvida recorrente há uma ideia antiga: o desejo feminino, quando ele ousa se mostrar, merece punição. Para muitos homens, o corpo feminino é o da mãe, que deve permanecer puro, ou, então, o da puta, ao qual nenhum respeito é devido: uma mulher, se ela deseja, só pode ser a puta com a qual tudo é permitido (estuprá-la, estropiá-la).

Além disso, se as mulheres tiverem desejo sexual próprio, elas terão expectativas quanto à performance dos homens; só o que faltava, não é? Também, se as mulheres tiverem desejo próprio, por que não desejariam outros homens melhores do que nós?

Seja como for, para protestar contra a observação brejeira do advogado Firpe, mandei fazer uma camiseta com a escrita que está no título desta coluna. Mas o ideal seria que ela fosse adotada pelas mulheres. Podem mandar fazer, sem problema; o advogado Firpe não tem "copyright" da frase.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Dois jeitos de viajar


Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos


NO FIM da adolescência, eu não queria mais viajar com meu pai, pois gostávamos de viajar de jeitos diferentes. Eu entendia essa diferença pensando nos estilos opostos de George Byron e John Ruskin, dois grandes amantes de Veneza.

Byron dedicou a Veneza o quarto canto de "Childe Harold's Pilgrimage" (a peregrinação do cadete Harold), cujos primeiros versos, "Parei em Veneza, sobre a Ponte dos Suspiros etc.", ainda são declamados por hordas de jovens românticos, quando olham para a dita ponte.

O curioso é que, em "Childe Harold", Veneza é apresentada como uma ruína solene e grandiosa. De fato, Byron não tinha interesse algum pela arquitetura e pelas artes. Ele gostava de acumular experiências e tolerava os monumentos apenas se eles fossem animados por uma boa história.

Byron ficou em Veneza de 1816 a 1819, primeiro nas Frezzerie, no apartamento de um alfaiate de cuja mulher ele era o amante, logo, a partir de 1818, num palácio, onde acumulou bichos exóticos, carnavais e gonorreias. Mais próximo de sua real experiência veneziana, Byron escreveu "Beppo" (Nova Fronteira), que é um extraordinário e divertido poema narrativo.

Ruskin, 30 anos mais tarde, encontrou uma Veneza totalmente desertada pelos restos da festa do século 18. De qualquer forma, já por índole, Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos.

Todos nós, quando viajamos, somos um pouco Ruskin e um pouco Byron. Mas meu pai era mais Ruskin, e eu, mais Byron.

Ora, acabo de voltar de Veneza e, no último dia, tive um encontro do qual Byron teria gostado (Ruskin também, só que menos).

Sou um leitor das aventuras de Corto Maltês, os quadrinhos de Hugo Pratt (em português, pela Pixel). No fim de "Favola di Venezia", Pratt, perdido num emaranhado de personagens e situações, declara que existem, em Veneza, "três lugares mágicos e escondidos: um está na calle do Amor dos Amigos; outro, perto da Ponte das Maravilhas; o terceiro, na calle dos Marranos, perto de San Geremia no Gueto".

Quando os venezianos estão em apuros, eles procuram esses lugares secretos e, "abrindo as portas que estão no fundo dos pátios, vão-se embora para lugares lindíssimos e para outras histórias". Corto Maltês bate numa porta e diz: "Sou Corto Maltês, deixo esta história e peço para entrar numa outra, num outro lugar". Pronto, ele começa uma nova aventura.

Um propósito de minha estadia veneziana era de encontrar os três lugares. Deixando de lado a calle dos Marranos (que não consigo identificar), entrei em todos os pátios nos arredores da Ponte das Maravilhas e do Ramo do Amor dos Amigos. Mas como saber quais eram as portas mágicas?

O livro "La Guida di Corto Maltese alla Venezia Nascosta" (o guia de C. M. à Veneza escondida), de G. Fuga e L. Vianello (Rizzoli, existe também em inglês), é perfeito para passear por Veneza num estilo mais Byron que Ruskin. Mas a leitura não me ajudou a encontrar as portas.

Finalmente, na tarde de sábado passado, na livraria AcquaAlta, na Longa Santa Maria Formosa, conversei com um senhor de barba branca, que estava folheando uma aventura de Corto Maltês. Imaginei que ele pudesse ter sido um amigo de Pratt, dos anos 1970, companheiro das noites no restaurante Graspo de Uva.

O fato é que ele se lembrava da história dos três lugares de Veneza e, quando lhe perguntei se ele saberia indicar as famosas portas, ele me respondeu: "A mim me parece" (é assim que fala um veneziano) "que, se você as procura, é que você já as encontrou". E logo ele se foi.

Como interpretar essa frase a la Pascal? Entendi assim: se eu acreditava numa ficção a ponto de procurar os lugares que ela inventa, eu não precisava de mais nada para passar de uma história a outra. Pois o segredo é inventar.

Pensei que Ruskin teria gostado da ideia de procurar os lugares mencionados por Pratt, mas só Byron teria aberto as portas. Ele, aliás, não parava de abrir portas e fugir para novas histórias. Vai ver que, em Missolonghi, quando sumiu, aos 36 anos, combatendo pela independência da Grécia, ele não morreu, apenas abriu mais uma porta. E foi para outra.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Preços e valores



O que vale mais: um acessório produzido em série ou uma edição do "Orlando Furioso" de 1565?
QUANDO PASSO por Veneza, sempre visito a livraria antiquária Linea d'Acqua, na calle della Mandola, uma das últimas que sobram na cidade.

Não sou mais colecionador (vendi minha biblioteca quando deixei os EUA, em 2004), mas os livros antigos continuam sendo, para mim, uma fonte de prazeres sensoriais e intelectuais. Gosto de manuseá-los e gosto de conversar sobre edições, encadernações etc.

Passei um tempo com Luca Zentilini, o livreiro de Linea d'Acqua, examinando dois livros.
Um era a primeira edição de "The Stones of Venice", de Ruskin: três volumes, publicados entre 1851 e 1853, in-oitavo, na encadernação original da editora. Não faltava nenhuma das numerosas pranchas (muitas aquareladas) que reproduzem os desenhos arquitetônicos originais de Ruskin.

"As Pedras de Veneza" (Martins Fontes) tornou-se e continua popular (em todas as línguas) numa versão reduzida, que permite levar o volume consigo na mala. Mas, cuidado, o livro não é apenas um extraordinário guia de viagem, é também das grandes obras do século 19.

A edição original, nunca reimpressa, foi de menos de mil exemplares. Quantos desses conjuntos de três volumes ainda existem?

O outro livro que Zentilini me mostrou era a edição de Francesco Franceschi do "Orlando Furioso", de Ludovico Ariosto. Quem não conhece essa maravilhosa edição, de 1565, veja uma página em http://migre.me/Ue6o. O exemplar era perfeito, com todas as gravuras.

O livro de Ruskin custava 2.000 (R$ 4.450). A edição de 1565 do Ariosto custava o dobro.

Caros? Sim, certo. Só que, não muito longe de Linea d'Acqua, na calle Larga 22 Marzo, não faltam clientes para vestidos ou acessórios produzidos em série, que custam tanto quanto um Ariosto de 1565, se não mais.
Justamente, foi no começo do século passado que as bibliotecas começaram a ser dizimadas por seus próprios donos. Arrancar páginas de um livro antigo acaba com a integridade da obra (e também com seu valor de revenda), mas, convenhamos: páginas emolduradas podem ser mostradas, ostentadas. Ou seja, uma gravura na parede vale mais que um livro com todas suas gravuras, fechado, na estante.

Em Verona, na via Dietro San Sebastiano, há uma alfaiataria e camisaria napolitana (na Itália, isso é um pleonasmo: em alfaiataria, napolitano significa tradicional).

O alfaiate me explicou que propõe dois tipos de camisa, ambas nos mesmos algodões "doppio ritorto". O tipo mais barato é confeccionado a máquina, salvo, "obviamente", para a costura que segura a manga à camisa e que deve sempre, imperativamente, ele explicou, ser feita a mão, sob pena de uma "desconfortável rigidez".

O outro tipo de camisa é inteiramente costurado a mão, o que garante uma mobilidade e um caimento que uma camisa costurada a máquina nunca terá. Pois bem, o preço de uma camisa costurada a mão é de 100 (R$ 222).

Enquanto o alfaiate napolitano e eu levávamos essa conversa na alfaiataria deserta, a via Mazzini, a poucos metros de lá, estava abarrotada de turistas comprando camisas mais caras, fabricadas nos quatro cantos do Oriente e, às vezes, em tecidos sintéticos duvidosos.

Perguntei ao alfaiate por que, ao seu ver, os clientes preferiam as lojas da via Mazzini ao seu ateliê. Ele respondeu, com sabedoria certa.

Primeiro, há a necessidade da satisfação imediata: o consumidor quer pagar e levar para casa (nada de encomendar, tirar as medidas do corpo, esperar a primeira e a segunda prova etc.).

Segundo, e mais importante, os produtos das lojas da via Mazzini têm algo que suas camisas e seus ternos não têm. Imaginei que ele fosse me confessar alguma inferioridade de seus artefatos, mas ele acrescentou apenas: "Os produtos da via Mazzini têm uma marca, uma marca que todas as pessoas reconhecem".

P.S.: Para Clóvis Rossi e os amigos que pediram que comentasse a derrota de seleção. Depois do jogo contra a Holanda, postei isto no meu Twitter (@ccalligaris): 1) às vezes a gente ganha, às vezes não; 2) ganhar não é um direito natural nem adquirido; 3) o Brasil é mais do que uma seleção de futebol.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Toy Story"



O filme me deixou com saudade da fantasia livre e maluca que organizava meus jogos de criança

Assisti a "Toy Story 3" na quinta passada. Era noite, e, na sala, só havia adultos, que saíram todos comovidos, sorrindo e fungando. Talvez nosso envelhecimento se pareça um pouco com o destino dos brinquedos abandonados pelas crianças que se tornam grandes.

Por exemplo, quando os filhos não brincam mais conosco, antes de tomar o caminho do sótão-asilo ou o do lixão-cemitério, sonhamos com a possibilidade de sermos, durante um tempo, brinquedos para nossos netos. Bem como os protagonistas de "Toy Story 3".

O filme me deixou também com saudade da fantasia livre e maluca que organizava meus jogos de criança. Inevitavelmente, acabei pensando nas gerações de brinquedos que me acompanharam na infância.
Quando meus pais morreram, eu morava longe, e meu irmão se ocupou de esvaziar o apartamento de nossa infância.

Foi assim que ele adentrou sozinho pelos dois imensos closets da sala, que nós chamávamos de "cavernas de Ali Babá" e que continham, entre inúmeras outras coisas, nossos brinquedos aposentados.

Meu irmão decidiu transferir esses sobreviventes para sua casa e, ao pedir meu consentimento, mencionou os mais valiosos, o trem elétrico, os soldadinhos de Fort Apache. Quanto aos outros, eu imaginava que ele os doaria ou descartaria.

Nada disso. Nestes dias, passando duas semanas na Itália, com "Toy Story" na lembrança, explorei, pela primeira vez, um armário de três portas que está no corredor do apartamento veneziano que divido com meu irmão.

Encontrei nossos velhos jogos de sociedade, quebra-cabeças, um "Pequeno Químico", um porta-aviões sem aviões, caminhões, robôs etc. Enfim, atrás desse amontoado, esbarrei num helicóptero, bem guardado em sua caixa original, com um ar de novo. Desse brinquedo me lembrei perfeitamente.

No dia de Natal, meu irmão e eu acordávamos pelas quatro da manhã, ansiosos para conhecer, enfim, nossos presentes, todos embrulhados embaixo da árvore. Abríamos os pacotes e brincávamos sozinhos, antes de meus pais acordarem.

Vencidos pelo cansaço, voltávamos para cama levando os brinquedos dos quais mais tínhamos gostado e que dormiriam conosco mais uma hora ou duas.

No Natal dos meus sete ou oito anos, eu ganhei um helicóptero. Não era teleguiado (era o começo dos anos 50), mas voava. Sim senhor, voava mesmo. Ele era ligado por um cabo a um comando mecânico (não elétrico): ao girar (freneticamente) uma manivela, o movimento era multiplicado e transmitido até às pás do rotor, de forma que, efetivamente, o helicóptero se levantava até o braço da gente cansar.

Amei o helicóptero. Amei a sensação de que ele voava não por alguma mágica, mas pelo meu esforço. Brinquei com ele mais ou menos uma hora, até que, inexplicavelmente, ele quebrou; eu acionava a manivela, ouvia um ruído de engrenagens infelizes, e as pás permaneciam paradas.

Não tenho como reconstruir exatamente a cadeia de meus pensamentos; só sei que o que prevaleceu não foi a pena pela perda do brinquedo novo, mas uma espécie de sentimento protetor. Explico.

Eu não sentia culpa (tinha brincado do jeito que era mesmo para brincar com o helicóptero), mas não aguentava a ideia de que meus pais tivessem notícia da morte precoce de seu presente, que, certamente, eles tinham escolhido com carinho e pago com esforço. Em suma, eu precisava proteger os meus pais.

Não disse nada; coloquei o helicóptero de volta na caixa e o levei para a cama comigo. Quando acordei, não sei como, consegui convencer a todos de que aquele era meu presente preferido, por isso eu não queria que outros brincassem com ele, nem meu irmão e ainda menos os sobrinhos convidados para o almoço de Natal.

Milagrosamente, mantive essa ficção durante os dias seguintes: adorava o helicóptero, e ninguém podia tocar nele.

De fato, ninguém nunca mais brincou com ele. Eu tampouco, é claro; brincar com ele quebrado teria sido revelar minha mentira.

E agora o helicóptero está aqui, na sua caixa de origem -símbolo de minha vontade sofrida e um pouco louca de fazer e proteger a felicidade de meus pais.

Tem cara de novo, mas é um pouco tarde para invocar a garantia.