quinta-feira, 9 de dezembro de 1999

Invenções para policiar a vida



Na fila do "check-in" da American Airlines em Boston, vejo um funcionário rindo dos esforços de um passageiro brasileiro que coloca na balança suas malas enormes. Eu mesmo ironizo a mania sacoleira dos brasileiros, mas ele, o funcionário, não pode. Fede a xenofobia.

Chego, portanto, ao balcão um pouco irritado. Sou atendido mediocremente, como de costume. Manifesto minha insatisfação. Uma supervisora aparece do nada para anunciar que, se eu ficar nervoso, ela me diagnosticará com "air rage", a raiva do ar, e impedirá meu embarque.

A raiva do ar é uma das últimas maluquices da psicopatologia comportamental americana.
Eis o fenômeno: a United Airlines, por exemplo, registrou 404 incidentes de raiva do ar em 1996 (o dobro de 1995). Como qualquer criança sabe, quanto mais reconhecida for a entidade raiva do ar, tanto mais episódios serão registrados. Além disso, a incidência estatística é insignificante.

Os comportamentos de raiva vão desde a gesticulação de um agitado até a tentativa de abrir uma porta no meio do vôo.

Ora, alguém pode ficar nervoso em um avião e beber (ou não) por mil razões subjetivas: tem fobia de espaços fechados ou medo de avião, está indo a um enterro, está se afastando dos que ama ou então duvida que esteja sendo esperado. De jeito análogo, há pessoas que enfartam durante um vôo e as circunstâncias da viagem podem ser patógenas. Mas ninguém sonha em inventar uma nova entidade em cardiologia: o infarto aéreo.
Por que essa diferença entre enfartes e raiva? Simples: os infartos não podem ser reprimidos, os comportamentos podem. A invenção de entidades psicopatológicas a partir de puras descrições comportamentais está sempre a serviço de uma paixão de policiar a vida.

Numa sociedade democrática moderna, o policiamento que funciona melhor é terapêutico-higienista. Pois ele faz apelo a valores reconhecidos como objetivos: bem-estar e saúde. Também assegura a paz das consciências: somos livres, pois apenas regulamentamos doenças e reprimimos por generosidade samaritana. Começa assim: há coisas proibidas porque são nocivas. Acaba assim: há coisas que são ditas nocivas para serem proibidas.

A patologia inventada é sempre um puro comportamento. A singularidade concreta de cada vida e situação é negada. Pois, neste caso, a verdadeira patologia é o transtorno da ordem.
A ordem, aliás, consegue ficar fora de discussão: se as companhias aéreas não encurtassem o espaço para as pernas, se servissem uma comida decente, se o atendimento em terra fosse correto, os passageiros ficariam mais felizes e menos tensos.

No fim dos anos 60, quando a antipsiquiatria dinamitou as portas dos asilos e pediu que a população cuidasse de seus doentes mentais, temíamos que a repressão, expulsa pela porta, voltasse pela janela. Ou seja, que o mundo se transformasse em enfermaria e o povo todo, em enfermeiro. Pois bem, está acontecendo nos Estados Unidos.

A coisa também é negócio. Sugestões aos jovens psicólogos. Primeiro: conseguir um doutorado respeitado. Segundo: reparar um fenômeno que possa ser objeto de repressão e litígio. Por exemplo: brigas de família na cozinha. Nomear a síndrome (em inglês) "kitchen rage", a raiva da cozinha; publicar em uma revista acadêmica uma pesquisa com o número absoluto de acidentes anuais nas cozinhas americanas; abrir uma página interativa na Internet sobre o tema; e convidar pessoas a abrir grupos de discussão.

Em dois anos, vocês serão a autoridade incontestada em matéria de raiva da cozinha. Poderão viver dos honorários de expert (irão pelos tribunais desculpando criminosos da cozinha). Também venderão franchising para móveis de cozinha, panelas e alimentos (produtos aprovados para prevenir a raiva). Vocês serão ricos e não terão de se meter com os problemas subjetivos de pacientes - que é uma coisa complicada. Por outro lado, graças a vocês, o primeiro sujeito que quebra um prato será generosamente medicado ou internado, sem que ninguém tenha de se interrogar sobre por que o sujeito pirou.

Sugestão para a Prefeitura de São Paulo: do mesmo jeito, convencer os paulistanos que sua irritação no trânsito é efeito da raiva de trânsito. Nada a ver com questões de circulação, transporte etc.

Não sei se a supervisora da American Airlines era uma leitora de psicobabaquices populares ou se passou por um treinamento específico que a introduziu à besteira psicopatológica americana deste fim de século. Quase telefonei para o serviço ao cliente da American Airlines para saber. Mas fiquei com medo de ser diagnosticado como um dos primeiros casos de raiva telefônica.
Post-Scriptum: segunda-feira, de novo, um jovem de 13 anos saiu atirando, no Estado de Oklahoma. Até aqui, quase sem exceções, medidas repressivas e controladoras são apresentadas como formas de pensamento. Estou esperando o cretino que vai nomear uma síndrome da raiva escolar, graças à qual será possível reprimir ainda mais crianças e adolescentes, sem remorso. Depois estranham que alguém saia atirando...