quinta-feira, 2 de janeiro de 2003

Comilanças, bebedeiras e outros excessos

A comida tradicional das festas de Natal não é arrebatadora: o peru assado é quase sempre seco, e o presunto, por caramelizado que seja, continua sendo um presunto. Apesar disso, no dia seguinte, ressoa uma litania: comi demais, extrapolei, a partir de amanhã meus nomes são esteira e regime.

Alguns festejam duas vezes: na véspera é o jantar da família e, no dia de Natal, é o almoço na casa dos sogros ou dos pais. A 12 horas de distância, encaram os mesmos pratos; a repetição deveria sugerir moderação. Nada disso, os excessos se repetem.

Para quem sofre de distúrbios alimentares, é um momento trágico. Uma bulimia que parecia curada pode despertar na camaradagem da mesa: "Todos comiam, eu também comi até não poder mais. Depois, fui para o banheiro e forcei o vômito. Voltei para a mesa, comi de novo... fazia anos que isso não me acontecia".

Às vezes, a mesa é puxada por um irmão ou um primo comilões que lideram o abarrotamento. Outras vezes, é a solicitude de uma mãe para quem o apetite dos comensais é a prova certeira do amor.

Mas os casos que me interessam hoje são aqueles em que nenhum comensal, quando senta na mesa, quer comer demais. Ninguém é um glutão, e nenhuma mãe abusiva enche os pratos. Apesar disso, todos acabam amaldiçoando seus próprios excessos e sonhando com a mágica do bicarbonato.

Histórias parecidas acontecerão de novo no fim do ano. Apesar de a bebida ser eventualmente péssima, muitos beberão mais do que queriam e começarão o ano praguejando contra a noite anterior.

Em suma, regularmente escuto sujeitos que se perguntam por quais forças misteriosas foram possuídos naquela infausta mesa em que ninguém queria comer e beber tanto. A cada vez, lembro-me das experiências que David Myers, um psicólogo social americano, realizou no final dos anos 70. Myers quis entender os mecanismos pelos quais pequenos grupos de pessoas chegam a decisões e condutas comuns.

Ele descobriu o seguinte. Quando, num pequeno grupo, existem opiniões diferentes, o grupo pode, é claro, quebrar. Você quer comer carne, eu sou vegetariano e Fulano está de jejum: desistiremos de almoçar juntos, cada um volte para sua casa. Mas, se o grupo não quebrar, se conseguir estabelecer um projeto comum, é bem provável que um acordo seja encontrado ao redor de uma posição MAIS extrema do que a posição de qualquer membro do grupo.
Ou seja, você quer comer uma picanha inteira, eu quero comer uma fatia transparente de lombinho, ele mal aguenta o cheiro da comida, e acabaremos todos comendo um boi inteiro. A tendência é que a unanimidade se faça graças a uma escolha radical que nem existia antes de o grupo concordar.

Para quem acredita no poder da razão discursiva para resolver conflitos, as pesquisas de Myers são uma pedra no sapato (ou no estômago).

Elas se aplicam a casos menos engraçados do que comilanças e bebedeiras. Imagine (é só um exemplo) três jovens que, de noite, passeiam pelas ruas de Brasília. Eles encontram um índio que dorme debaixo de um abrigo de ônibus. Um dos jovens acha que é melhor deixar o homem tranquilo e seguir em frente, outro acharia graça em dar um susto no índio gritando no seu ouvido de repente e o terceiro gostaria de dar-lhe uma ducha com um balde de água gelada. Seria razoável que os três negociassem uma espécie de média, ao redor da posição do segundo, não é? Pois é, as experiências de Myers mostram que eles tenderão a concordar em dar um banho não de água gelada, mas de gasolina, e em tocar fogo no homem. Como é possível? Por que o grupo não é um lugar de debate racional ou razoável?

Em qualquer grupo, grande ou pequeno, a coesão e, portanto, a sensação de pertencer ao conjunto são as coisas mais gratificantes para os membros. No caso, uma escolha extrema oferece uma grande consistência de grupo. Encontraremos nossa unidade por sermos os empanturrados, os doentes de amanhã de manhã ou, mais radicalmente, os cúmplices de um assassinato.

Além disso, num grupo pequeno, a corrida para a liderança é, por assim dizer, inflacionária. Imaginemos "A", "B" e "C" querendo festejar. "A" propõe que se coma peixe e carne; se "B" concordar, "C" não vai contentar-se com a posição de terceiro aderente. Ele proporá que se coma peixe, carne e ovos fritos. "A", para manter a liderança, aceitará com entusiasmo, mas agregará a salada de batatas. Como "B" resistiria à tentação de propor um antepasto? Não é uma discussão: é um pôquer em que todos seguem aumentando as apostas até a catástrofe final, gastrodigestiva ou outra.

A idéia de que agiríamos como sujeitos racionais está em baixa. Em 2002, um psicólogo, Daniel Kahneman, ganhou o Prêmio Nobel de Economia por mostrar que nosso comportamento econômico não é racional.

Também, fora as comilanças, há suficientes mortos e feridos pelo mundo afora para lembrar que os mecanismos de nossa vida de grupo são imperiosos, exigentes e pouco razoáveis.
Para o Ano Novo, talvez seja prudente contar menos com a razão e mais com a boa vontade dos indivíduos.

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