domingo, 5 de junho de 1994

Lula como Antígona

O candidato portou-se como a personagem grega diante da lei


É frequente que se ironize sobre o legalismo da sociedade norte-americana. Eu mesmo, nesta coluna, já comentei que os EUA poderiam estar evoluindo para uma forma de desagregação social onde uma multiplicidade de separatismos declarados (étnicos e sexuais) só se relacionariam por uma minuciosa contabilidade jurídica de perdas e danos. Este panorama é parcial e só indica uma tendência.

Mesmo assim, ele representa uma solução –e não necessariamente a pior– ao destino normal de nossa cultura. A liberdade dos indivíduos implica a renúncia ao patrimônio comum de ideais, memórias e crenças que permitia a existência de coletividades. Este patrimônio aparece aos indivíduos como a carga pesada de uma tradição que deve ser recusada para que se afirme a liberdade. Se precisarem de valores, os indivíduos preferem valores fundados no real dos corpos (a cor da pele, o sexo), valores que não devem a ninguém.

Corolário desta situação cultural próprio ao Ocidente: as leis que regram nossas relações sociais são necessárias se imprescindíveis, mas sempre opináveis. Não se fundamentando em uma tradição coletiva eventualmente sagrada, elas aparecem como simples prescrições cuja autoridade vale só até prova do contrário.

E esta prova está ao alcance de cada um, pois nosso foro íntimo está acima da lei. Para o membro de uma sociedade tradicional, desrespeitar uma lei é uma tragédia subjetiva que nada tem a ver com nossa desenvoltura quando decidimos que é melhor e mais justo queimar um sinal vermelho do que ser assaltado, ou então sonegar renda do que pagar um imposto que achamos iníquo.
Mas o caminho é longo, vai de um mundo onde as leis da polis coincidiam com os valores da comunidade, ao nosso mundo, onde se apagam os valores simbólicos comunitários e as leis se opõem ao julgamento de cada um.

Nem está certo que este caminho tenha sido inteiramente percorrido. Duas figuras são tradicionalmente exemplares de seus percalços: Sócrates e Antígona.

Sócrates enfrenta uma condenação à morte que julga injusta. Incompreensível para nós, ele prefere aceitar sua própria execução do que comprometer a lei, fundamento simbólico da pólis. Antígona também enfrenta a morte, mas como preço que está disposta a pagar para obedecer a uma lei (a de sepultura dos mortos) que ela situa acima das leis da pólis.
Lula, declarando: "entre a lei e a coisa justa e legítima, eu sempre disse que o justo e legítimo é muito mais importante", deu uma de Antígona moderna.
Porque será que sua afirmação produz indignação?

Ao final, estamos todos convencidos da supremacia do que é justo sobre o que é legal. Ninguém, no mundo moderno ocidental, confunde as leis com valores absolutos que, aliás, nossa cultura dispensa. Ao contrário, o nosso individualismo submete a lei à constante apreciação de nosso tribunal interior. O que é legal não vale por si, deve ter nossa aprovação.

Sem isso, que indivíduos seríamos? Qual seria nossa diferença dos membros subservientes de uma comunidade tradicional? O hiato entre a lei e nosso foro íntimo, é, aliás, o que faz que nossa cultura tenha história. Quando há discordância entre os dois, eis que pega a faísca da mudança social.
Mas resta saber de onde se autoriza a justiça em nome da qual julgamos a lei de todos os dias. Antígona, filha de uma sociedade ainda tradicional, vivia pelo menos uma tragédia clara, entre leis da pólis e Lei superior da tradição.

Mas, para nós, indivíduos sem tradição, qual tribunal –fora a inspiração de nossa singularidade– pode sentar em nossa consciência, quando julgamos a lei? Sensivelmente, estamos dispostos a aceitar que cada um desrespeite a lei por seu interesse particular (à condição que isso não comprometa nossa liberdade). Mas nos incomoda muito mais que este o faça em nome de um princípio moral superior, pois este ameaçaria nossa liberdade.

Assim, embora com mau gosto, FHC, respondendo a Lula, pode evocar Hitler e Collor: se sairmos do amparo da legalidade, estamos expostos ou ao capricho de um interesse particular (Collor) ou a uma trágica volta, totalitária e necessariamente farsesca, da sociedade tradicional (Hitler).

Ora, nossa modernidade mais recente oferece duas soluções para definir um tribunal interior que não seja nem o interesse particular nem a farsa totalitária. A primeira pretende que haveria uma definição abstrata do homem que poderia se situar acima das leis: são os direitos humanos. Mas a questão não é simples: se os direitos humanos são nosso patrimônio simbólico, eles são a forma sub-reptícia de uma tradição que deveríamos recusar em quanto tal. Por isso os reduzimos ao mínimo e tentamos pateticamente fundamentá-los como simples expressão, não cultural, mas natural das necessidades de nossos corpos. Em uma recente entrevista (Folha, 03/04/94) Umberto Eco se fazia porta-voz desta tendência: "É possível constituir uma ética sobre o respeito pelas atividades do corpo: comer, beber, urinar, defecar, dormir, fazer amor, falar, ouvir, etc.". É a moral do não quero saber o que é certo ou errado, só quero que todos tenham arroz, pinico e camisinha.

O outro recurso, que interessa mais aqui, consiste em delegar à própria história, que vamos inventando, a tarefa de fundamentar nossas escolhas, apostando que nossa história de indivíduos se constitua em uma sorte de patrimônio não de tradição (que não queremos), mas pelo menos de experiência. Ela seria assim o horizonte comum necessário ao diálogo onde os princípios morais, superiores às leis, se decidiriam segundo as lições do passado.

Porque não? O problema é que nossa cultura não é só a da renúncia ao patrimônio simbólico da tradição. Ela é também a do esquecimento da história, do patrimônio de experiência. O indivíduo não quer ser livre só da lei tradicional da comunidade, ele quer ser livre também de seu passado.
Estávamos, aliás, acostumados a pensar que, no mundo ocidental, pelo menos na Europa ainda tivesse a esperança de substituir a tradição esquecida pelas lições do passado. Mas Berlusconizou; um ex-camisa preta de República de Saló ascende a um cargo de governo, o próprio primeiro-ministro declara que o fascismo "tinha traços racistas" (sic) etc. Sem esquecer a valsa de ex-stalinistas ou tzaristas iluminados no leste. No Brasil, aliás, a memória é curtíssima. Se precisar, é só considerar as alianças feitas pelos dois candidatos à presidência que lideram as pesquisas.

Assim talvez, a escolha norte-americana mereça mais atenção e menos ironia. Pois –ao que parece– não há mais alimento para continuar acreditando que as experiências do passado sejam uma referência moral comum. Resta então que não há sociedade dos indivíduos possível sem o respeito minucioso e forçado das leis da polis, que são, em nossa cultura, as únicas leis. É normal, certo, em nome do que é justo, querer mudá-las, mas na falta de um critério comum do que é justo, as próprias leis devem regulamentar sua mudança. Salvo processo revolucionário: mas quem topa?