sábado, 4 de julho de 1998

SEARLE

A linguagem como ação


Há quem diga que Searle é um homem de direita. Em 70 escreveu "The Campus War" ("A Guerra no Campus"), uma análise impiedosa do funcionamento do movimento estudantil, na qual, por exemplo, já suspeitava que o radicalismo estivesse se tornando um estilo de vida. Mais tarde, foi um dos primeiros a se opor à ação afirmativa e ao multiculturalismo triunfante. Mas, cuidado, o aparente conservador é um democrata intransigente.
Estudante em Wisconsin, Searle foi secretário do grupo Estudantes contra McCarthy e, voltando de Oxford para os EUA, fundou em Berkeley o Movimento da Liberdade de Palavra. No começo dos anos 60 -quando o poderoso Comitê das Atividades Antiamericanas apavorava a todos- esta postura foi notável, sobretudo para um jovem professor que ainda não era titular -e que, aliás, não tinha nenhuma simpatia socialista ou comunista.
Na França dos anos 70 -junto a "Como Fazer Coisas com Palavras", de Austin- o livro de Searle -"Atos de Palavra"- foi uma espécie de lufada de ar no clima estruturalista vigente. Searle propunha pensar a linguagem como comportamento e ação -a frase sendo o ato humano elementar. Sua descrição do que significa falar era mais convincente que o "Curso de Linguística Geral" de Saussure. E nos deixava com a suspeita de que uma parte ampla de nossas construções psicológicas fosse decorrente de invenções forçadas por um entendimento insuficiente da prática linguística.
Mas se delineou uma falsa alternativa entre acreditar -por exemplo, com Lacan- que somos efeitos, e não agentes da linguagem, ou então adotar uma visão do sujeito como intencionalidade consciente -e abandonar portanto os fundamentos da psicanálise. De fato, a concepção da intencionalidade em Searle está longe de ser inconciliável com uma concepção complexa da subjetividade. Algo disso aparece na entrevista.
A verdade é, para Searle, sempre decidida pela adequação de nossas descrições à realidade. A questão é mais delicada, obviamente, do que aparece na entrevista. Ela se complica quando se trata de descrições que não concernem à realidade exterior, por exemplo, proposições de juízos abstratos ou de qualidade. Mais delicada ainda é, a meu ver, a contradição entre o caráter convencional e cultural de nossas descrições e a idéia de uma realidade que, para ser medida da verdade, deveria ser independente delas. Mas admiro o fundo de bom senso na posição de Searle: uma espécie de aceitação do realismo espontâneo de nossa experiência cotidiana.
Com toda sua simpatia pela ciência, Searle nunca se tornou positivista. Sua ironia em relação às posições dos cientistas-filósofos como Edward Wilson é explícita. E é famosa sua crítica sobre a idéia de que os computadores possam reproduzir uma inteligência humana. Justamente no livro que sai agora no Brasil, Searle retoma e completa seu "argumento do quarto chinês". É a história do homem que recebe um texto em chinês e, com a ajuda de regras fixas de correspondência, reproduz o texto em uma outra língua. Ora, mesmo se esse texto conseguisse manter a significação do original, será que o homem estaria traduzindo?
Do mesmo modo, os computadores podem imitar o pensamento, mas não pensar, pois são máquinas sintáticas, sem semântica. A este argumento antigo, Searle acrescenta hoje a idéia de que o computador só pensa do ponto de vista de um observador, quando um homem pensa do seu próprio ponto de vista. Há, em Searle, um cuidado constante com o caráter original e irredutível da experiência humana da subjetividade (e não só da consciência).
Enfim, importa assinalar que Searle é um analista imprescindível das construções sociais. Sua explicação das formações simbólicas (sobretudo modernas, contratuais) em "A Construção da Realidade Social" é das melhores que conheço.


Entrevista

da Redação

Leia a seguir entrevista concedida pelo filósofo John Searle à Folha em seu escritório na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), onde leciona.

Folha - Como você resumiria sua trajetória desde "Speech Acts" (Atos de Fala)?
John Searle -
Hoje me parece que meus dez livros são partes de um único projeto que emerge só aos poucos. Eis o problema: como conciliar a concepção que temos de nós mesmos -como agentes conscientes e racionais- com um mundo do qual nos é dito que é feito de partículas sem espírito e sem significação? A questão de "Atos de Fala", meu primeiro livro, era uma variante deste problema maior. A pergunta, na época, era a seguinte: como é possível que eu produza estes barulhos com a boca e eles acabem sendo entidades significativas? Como se passa do som à significação? Respondendo a esta questão, eu tive que recorrer a uma série de aparatos mentalistas.
Estava assim contraindo uma dívida que algum dia teria que pagar. Precisava explicar o que é um desejo, uma promessa, um medo... Assim, depois de "Atos de Fala" escrevi um livro sobre a "Intencionalidade", em que tentei analisar estas noções. Isso me levou a toda uma série de debates sobre a natureza da mente. Depois, como a mente cria a sociedade, quis me perguntar de que modo pessoas que agem de concerto criam um mundo social objetivo. É a "Construction of Social Reality" (A Construção da Realidade Social).
Folha - O livro que sai agora no Brasil, "O Mistério da Consciência", vale como uma espécie de introdução ao debate em curso sobre a questão das relações entre cérebro e mente, e apresenta, naturalmente, sua posição. Você não quer abandonar o materialismo, mas também não quer reduzir a consciência, ou seja, a consciência não pode ser negada como experiência original, mas, por outro lado, não há nada mais do que o cérebro. Portanto a consciência deve ser uma caraterística que emerge da atividade cerebral.
Searle -
Parte do problema neste debate é a oposição tradicional entre materialismo e dualismo. O materialismo é pensado de forma a excluir a possibilidade de um fenômeno mental irredutível (como a consciência) e o dualismo (de corpo e espírito) é geralmente usado para negar o materialismo. Eu penso que ambos de uma certa forma são verdadeiros, não são inconsistentes, e gostaria sobretudo de me livrar do vocabulário tradicional.
O mundo é composto de partículas físicas organizadas em sistemas, alguns sistemas são orgânicos e, entre estes, alguns são sistemas nervosos. Por sua vez, alguns destes comportam processos neuronais que produzem, em um nível mais alto, estados de consciência. A consciência então é uma faculdade emergente de certos sistemas biológicos. Disse tudo isso sem usar o vocabulário tradicional de materialismo e dualismo. Quero evitar esse vocabulário e dizer: a consciência é produzida por processos cerebrais e é ela mesma um certo nível de organização do cérebro.
Folha - É um bom caminho, aliás, para mostrar que não há necessariamente contradição entre biopsiquiatria e psicoterapia pela palavra. Sei que esta mesa é feita de moléculas, mas minha experiência continua sendo a de uma mesa de quatro pernas. Do mesmo jeito, mesmo se a consciência é um efeito do cérebro, a gente nunca vai se vivenciar como um sistema neuronal. Quando decido ir ao cinema, não tenho a experiência de meus neurônios disparando o título do filme que quero ver.
Searle -
Exatamente, não há nada de inconsistente em dizer que a consciência está inteiramente no nível dos neurônios, mas é a experiência que forma o conteúdo da consciência. Nenhum paradoxo: quando dirijo meu carro, não penso na oxidação de hidrocarbonetos etc. Simplesmente boto o pé. Trata-se de diferentes níveis de descrição. A consciência não é uma experiência de neurônios disparando (ou seja qual for a descrição mais adequada -talvez precise, no futuro, descer a um nível subneuronal). Ao mesmo tempo, em algum nível, o cérebro deve fornecer a explicação, porque o cérebro causa a consciência.
Folha - Agora gostaria de voltar ao começo de sua produção, "Atos de Fala". Por causa deste livro, eu sempre identifiquei você com a dita Virada Linguística (Linguistic Turn, movimento sobretudo anglo-saxão que situou a linguagem no centro da investigação filosófica). Com razão?
Searle -
Sim, absolutamente. Sou um filósofo da linguagem.
Folha - Mas, por alguma razão, no que concerne à concepção da verdade, você se tornou um representante do realismo contra a Virada Linguística. E defende a idéia de que a verdade depende da adequação à realidade, não é um critério intrínseco à linguagem.
Searle -
Sempre pensei que importava examinar a linguagem para descobrir mais coisas sobre a realidade que a linguagem representa. Uma maneira de chegar, por exemplo, à realidade da intencionalidade humana ou do comportamento humano é examinar a estrutura da linguagem que usamos para descrever as ações: voluntárias ou involuntárias, forçadas ou não etc. Mais importante ainda, a linguagem enquanto tal é um certo tipo de realidade. Em "Atos de Palavra" o projeto era examinar como a linguagem se relaciona com o mundo, e a intuição básica de qualquer teoria dos atos de palavra é que a unidade essencial na comunicação humana é o ato de palavra.
A linguagem é assim concebida como uma forma de comportamento humano, um comportamento intencional. Se a Virada Linguística significa examinar só a linguagem por si só e nada mais, não faço parte dela. Eu nunca pensei que a filosofia devesse se interessar inteiramente pela linguagem enquanto tal. Mas pensava, isso sim, que a linguagem, além de ser um campo de investigação autônomo, era um instrumento maravilhoso para analisar problemas filosóficos tradicionais.


Para Searle o pós-modernismo é um desastre da filosofia, uma verdadeira favela intelectual


Folha - Serei mais específico. No último livro de Richard Rorty, "Verdade e Progresso" ("Truth and Progress", Cambridge University Press), há um capítulo que discute um artigo seu de 92, em que, em nome do realismo, você criticava Rorty, Kuhn e Derrida. Para ser mais direto: não acredito que Derrida caiba neste grupo, mas é verdade que, por alguma razão, Rorty acredita que Derrida jogue no seu campo. De qualquer forma, o debate é entre concepção pragmatista e concepção realista da verdade. Para você o realismo não é pouca coisa; a segunda parte de "A Construção Social da Realidade", por exemplo, é consagrada ao realismo.
Você defende contra todos a idéia de que a verdade seja, possa e deva ser medida pela adequação à realidade. É surpreendente, pois você certamente seria o primeiro a dizer que a linguagem é a instituição fundamental, sem a qual nenhuma outra instituição seria possível. Como entender a noção de que qualquer coisa que a gente diga possa ser adequada à realidade enquanto tal? Se estamos sempre lidando com descrições, e as descrições, sendo linguísticas, são convencionais, como apreendemos a realidade em si?
Searle -
A resposta é muito simples. Algumas descrições são verdadeiras porque correspondem aos fatos. Digo: há uma árvore lá fora, e há uma árvore lá fora.
Folha - Há uma árvore porque você pode bater nela, cortá-la...
Searle -
Não, há uma árvore porque há uma árvore. Como é que eu acabo sabendo que há uma árvore é uma outra questão. Não devemos confundir a epistemologia de como descobrimos que há uma árvore com a ontologia, aquilo que existe. As descrições do mundo são articuladas por meio de frases em um vocabulário convencional, mas os fatos que correspondem a estas descrições não são convencionais.
Há água salgada no oceano Atlântico, ela estava lá anos antes que qualquer ser humano declarasse que havia água salgada no oceano Atlântico. Tínhamos que inventar um vocabulário para dizê-lo, mas o fato mesmo não depende de nosso vocabulário. O vocabulário é convencional, mas, uma vez que você tenha um vocabulário convencional, que haja ou não um fato no mundo que corresponda à sua declaração não é convencional.
Folha - Estamos acostumados a dizer que a realidade é composta de partículas. Isto é verdadeiro porque este é o tipo de descrição do mundo que é científica para nós. Duzentos anos atrás, teríamos falado de uma maneira completamente diferente. Por exemplo, em lugar de vermos a verdade em partículas mínimas, poderíamos pensar que ela está na ordem holística do universo. Qual é o fato que está por trás desta mudança? Naturalmente, há algum fato, não estamos discutindo que haja realidade.
Searle -
O ponto é que, avançando na ciência, mudamos nossa descrição, mas isso não coloca em causa a existência de uma realidade independente.
Folha - Concordo até aqui.
Searle -
Que a gente modifique, melhore nossas descrições, isto só faz sentido porque tentamos nos aproximar da verdade. E a verdade é uma questão de como nossas descrições correspondem a um fato.
Pergunta - Aqui já concordo menos. Há uma teleologia em sua posição, a idéia de um progresso de nossas descrições.
Searle -
Mas é assim. Sabemos muito mais do que nossos avós. Havia um tempo em que ninguém sabia das doenças produzidas por bactérias, e agora sabemos. E, por consequência, somos decididamente mais capazes de curar doenças do que no passado.
Folha - Justamente, este é um argumento pragmático. Aí concordaríamos.
Searle -
Ok, mas a utilidade pragmática deriva da correspondência aos fatos. Identificamos a bactéria da TB e por isso fomos capazes de agir utilmente. A utilidade depende da correspondência (e não vice-versa). É porque temos uma representação adequada de uma coisa que podemos agir do modo certo.
Folha - O pragmatismo diria apenas o inverso.
Searle -
Pior. Richard (Rorty) não quer falar da verdade. Segundo ele, não podemos dizer que a ciência nos permite fazer melhores predições porque o que ela diz é verdadeiro. Tampouco se pode dizer que é verdadeira porque permite melhores predições. Deveríamos simplesmente dizer que ela nos permite fazer melhores predições -ponto. O que "melhores" significa aqui, a não ser "correspondente aos fatos", não tenho a menor idéia.
Folha - Acho que, se Rorty não quer falar sobre a verdade, é porque receia que a verdade tenha dono. A idéia de deter a descrição verdadeira do mundo às vezes inspira pretensões delirantes. Veja o caso de Edward Wilson, o biólogo, que acredita ser possível deduzir até normas éticas a partir da descrição científica da realidade.
Searle -
Eu contestei Ed Wilson. Ele disse, por exemplo: estabelecemos em sociobiologia que o incesto é um mal. Eu mostrei que, mesmo em seus próprios termos, ele não estabeleceu nada disso. No melhor dos casos ele estabeleceu que o incesto que leva à gravidez é um mal, mas o pai que estupra sua filha usando métodos contraceptivos não vai de nenhuma maneira contra o que a sociobiologia pode estabelecer. A sociobiologia não mostra as coisas que Ed Wilson pretende.
Folha - O sonho dele (e de outros) é chegar a algum tipo de regulador ético que não seja convencional ou institucional.
Searle -
Ele está errado.
Folha - Mas não deixa de ser uma tendência forte. Entende-se por que: seria uma maneira de substituir Deus. Se pudéssemos deduzir princípios morais da ciência ou da biologia, seria um alívio.
Searle -
Mas em filosofia não estamos no negócio de oferecer conforto e alívio para ninguém.
Folha - Justamente, no último capítulo de "Atos de Fala", você abordava uma questão filosófica clássica: como deduzir o "dever" do "ser" (o "ought" do "is"). Sua posição era: é possível, mas há que se ter ao menos uma regra convencional, que deve ser acrescentada aos fatos; ou seja, só é possível na linguagem. Uma posição oposta à de Ed Wilson.
Searle -
Vejamos esta posição. Mostrei que a sociedade só funciona se as pessoas podem criar razões para agir independentemente de seu desejo. A instituição da promessa é um bom exemplo. Ao prometer que encontraria você aqui em meu escritório, criei uma razão de agir que permanece autônoma do meu desejo. Engajo-me em algo que eu poderia não estar a fim de fazer.
Agora, a obrigação de manter uma promessa não deriva da instituição da promessa. A maior parte dos comentadores deste capítulo pensou que eu estava dizendo que as regras constitutivas da linguagem (por exemplo, o engajamento produzido pelo ato de prometer) engendram as obrigações. Não é isso: o agente individual, prometendo, cria intencionalmente uma situação em que vai ter que fazer alguma coisa independentemente do desejo. A obrigação (moral) de respeitar a promessa é outra coisa e não depende da instituição da linguagem.
Naquele escrito, o que me importava era que temos instituições linguísticas que permitem aos indivíduos em sociedade conectar sua vontade. Uma sociedade não poderia funcionar sem isso. Porque, sem isso, a única maneira de predizer o comportamento das pessoas seria tentar adivinhar o que desejam, e isso não levaria a lugar nenhum. Deve haver um sistema para que eles possam agir segundo uma razão que não depende do que eles estão a fim em um dado momento.
Folha - Então não é possível deduzir normas éticas da instituição da linguagem.
Searle -
Não há nada na linguagem enquanto tal que garanta uma teoria em lugar de outra.
Folha - Talvez as questões propriamente éticas, em sua filosofia, dependam mais do que você chama de background -pano de fundo. Para explicitar este conceito, poderia situá-lo entre o que um antropólogo chamaria cultura e o que, na hermenêutica de Gadamer, seria o horizonte comum entre locutores? São conceitos que se sobrepõem?
Searle -
De qualquer forma, a ética é um pântano. Não é tão ruim quanto o pós-modernismo, que é um desastre, mas é uma área fraca da filosofia. Quanto ao background, minha concepção é a seguinte: o uso da linguagem depende de pressuposições implícitas, ou seja, depende de capacidades gerais, disposições, maneiras de comportamento, práticas culturais. A significação literal da proposição articulada pode ser interpretada só por meio deste background. O background não é exatamente a mesma coisa que os antropólogos chamam de cultura, porque muitos elementos do background são transculturais.
Se você lê em um livro que "comiam carne", sabe que comiam carne pela boca, não pelos ouvidos, e esta não é uma questão de cultura, mas de pressupostos comuns de background -neste caso, biológico. Mas atenção: não devemos pensar o background como um sistema de crenças. É algo que se situa antes da crença, é um conjunto de posições diante do mundo. São disposições, capacidades que as pessoas têm no trato com o mundo.
Folha - De maneira recorrente em sua obra, aliás, você evoca o inconsciente freudiano e contesta a idéia de uma intencionalidade inconsciente. Ora, muitos psicanalistas contemporâneos (eu me incluo entre eles) na verdade situariam o inconsciente, para usar seus termos, no background. Ou seja, como representações, pressupostos ou implicações que são evocados, ativados pelos atos de palavra, mas que não estão presentes na consciência quando o ato é produzido.
Searle -
Isto é interessante. A maneira como sempre interpretei Freud me mostrou que sua concepção do inconsciente era intencionalista, ou seja, concernia a crenças e desejos que as pessoas têm inconscientemente. Por isso, sempre pensei que meu ponto de vista era oposto ao de Freud.
Folha - Minha opinião é a de que a aparência de uma intencionalidade inconsciente é produzida a posteriori, pela interpretação. De fato, a intencionalidade é sempre consciente: o que acontece é que um background composto por memórias privadas, histórias de família, convenções sociais etc. intervém, atrapalhando o exercício intencional.
Searle -
Mas isto não é o que diz o texto de 1915 sobre o inconsciente.
Folha - Concordo, mas Freud produziu no mínimo duas metapsicologias. De qualquer forma, me parece que é do lado daquilo que você chama de background que se explica a relevância de qualquer terapia pela palavra.
Searle -
Certo. Parece-me, aliás, que muitas vezes o comportamento patológico das pessoas tem a ver não com alguma crença ou desejo inconscientes, mas com uma capacidade de background que é contraprodutiva, patológica.


A idéia de nação está acabando; o problema é que até agora não temos estruturas institucionais para substituir a nação-Estado


Folha - Você dizia que a linguagem como tal não carrega todas as complexidades de uma cultura (por exemplo, não implica as obrigações éticas), mas uma linguagem não deixa de representar uma cultura, pois as palavras valem como convenções sociais que são às vezes específicas da cultura que fala esta língua. Quais as consequências políticas disso, por exemplo, no que diz respeito ao debate entre integração ou preservação das diferenças culturais?
Searle -
Duvido que a gente consiga obter uma derivação estrita de minha filosofia para questões de política. No entanto há implicações gerais, embora não de natureza estritamente lógica. Se estou com razão a propósito da construção da realidade social, que é uma questão de aceitação ou reconhecimento (coletivos) de uma sequência de funções simbólicas, então parece que uma sociedade vai funcionar melhor se não for centrífuga. Ou seja, em uma nação como os EUA, se o foco primário de lealdade de grupo estiver relacionado com a nação, e não com grupos subsidiários.
Estamos hoje em um momento em que tem sucesso uma coisa chamada multiculturalismo, isto é, a idéia de que é necessário haver lealdade entre grupos étnicos específicos, mais do que com a mais larga unidade nacional. Eu acho que isso é uma péssima notícia. Duvido que -especialmente em tempos de crise, como em caso de guerra- um país como os Estados Unidos possa funcionar com focos de lealdade primária diferentes daqueles do Estado nacional.
Naturalmente, há uma outra questão: talvez a idéia de nação esteja acabando. Durante quase 700 anos as nações eram um foco primário da identificação de grupo. Talvez, com a unidade européia e com a concepção multiculturalista nos EUA, a nação-Estado esteja no fim. O problema é que até agora não temos estruturas institucionais para substituir a nação-Estado, nem organizações supranacionais (certamente, não as Nações Unidas), nem subsidiárias. Outra implicação de minha filosofia para a política.
Na "Construção da Realidade Social", mostrei que há realidades que são construídas socialmente, como dinheiro, governo, matrimônio etc.
Nos EUA há um caso muito interessante que não discuto no livro. A raça é largamente (embora não inteiramente) uma construção social. Não é uma questão de biologia. É evidente que, por não sabermos lidar com diferenças étnicas e raciais, fazemos de conta que são entidades biológicas, naturais, conquanto sejam construções sociais.
Folha - Qual é a sua visão da comunidade intelectual americana hoje?
Searle -
Houve um desastre: o advento de uma facção de filosofia anti-racionalista conhecida como pós-modernismo: é uma espécie de favela intelectual. Se tivesse cem anos pela frente, entraria para fazer a limpeza.
Folha - Quais são os nomes?
Searle -
Ok. Derrida, De Man. Não incluiria Foucault. Foucault era sobretudo um intelectual europeu tradicional que obedecia a um certo estilo francês. Mas incluiria o elemento radical do movimento feminista, as pessoas de filosofia da ciência que dizem que a ciência cria os fatos...
Pergunta - Kuhn faria parte disso?
Searle -
Ele deu conforto e tranquilidade para essas pessoas, mas não faz parte disso.
Folha - Diria a mesma coisa sobre Rorty?
Searle -
Um pouco mais. Rorty é um aliado deles, deu mais do que conforto. Acho que Richard não se sente muito bem na companhia de lésbicas radicais e desconstrucionistas, mas ele deve pensar que é uma maneira de atacar as coisas que ele quer atacar. Para ele, é uma aliança interessante. Diria que ele é um pós-moderno ambíguo, mas é definitivamente um aliado. Os pós-modernos são essencialmente uma coleção de anti-racionalistas e antiiluministas. Invadiram os departamentos de inglês, nos quais se passou a ler Derrida, Geoffrey Hartman, De Man... e nada de literatura.
Folha - Kuhn e Rorty certamente não compartilham sua posição realista em matéria de verdade. Mas não me parece que seja este o desastre. O desastre é que seus aliados desconstrucionistas se aproveitam disso para produzir uma descrição do mundo em termos exclusivamente ideológicos.
Searle -
Certo, é o que acontece. Quando me criticam, não criticam meus pensamentos, dizem: "Searle usa metáforas masculinas". "Searle encontra uma aporia burguesa que o leva ao falo-fono-logo-centrismo...". Não se interessam pelo conhecimento, em como conseguimos dar conta do mundo e em como ele funciona. E, para mim, este é o sentido de uma vida intelectual. (CONTARDO CALLIGARIS)

OBRAS DE SEARLE

O Mistério da Consciência
- Tradução de André Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle. Ed. Paz e Terra. Preço não definido.

Expressão e Significado -
Tradução de Ana Cecília G.A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia. Ed. Martins Fontes. 320 págs. R$ 22,50.

Intencionalidade -
Tradução de Julio Fisher e Tomas Rosa Bueno. Ed. Martins Fontes. 408 págs. R$ 27,50.
A Redescoberta da Mente -
Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira. Ed. Martins Fontes. 388 págs. R$ 27,50.

Em inglês:
The Construction of Social Reality - Free Press. US$ 17,50.

Speech Acts - Cambridge University Press. US$ 20,95


domingo, 14 de junho de 1998

A autoridade razoável



A justiça é sempre de natureza política e depende do quadro social em que age


CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Frequentemente nossa insatisfação com a administração da justiça se expressa da seguinte forma: a Justiça não consegue ser cega. Gostaríamos que nossos tribunais julgassem sem nenhuma consideração política.


Achamos injusto que a Justiça favoreça cidadãos de classes sociais privilegiadas. Achamos indigno que, por exemplo, no Brasil existam prisões diferenciadas para cidadãos com nível superior de estudos. Podemos achar injusto que a criminalidade de colarinho-branco seja menos severamente reprimida do que a violência desesperada da miséria. Reciprocamente, nos Estados Unidos de hoje, podemos achar injusto que o fato de se pertencer a uma minoria étnica ou social desfavorecida possa constituir uma espécie de desculpa. Assim como achávamos injusto que, no passado, pertencer à mesma minoria fosse, ao contrário, uma espécie de agravante.


Quando pensamos nos fundamentos de uma democracia moderna, imediatamente evocamos a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como uma condição não negociável. E esta exigência parece incluir a idéia de que a Justiça não deve nem pode ser expressão de vontades políticas.


Ora, Susan Estrich -advogada e professora de direito e ciência política na Universidade da Califórnia- acaba de publicar "Getting Away with Murder -How Politics is Destroying the Criminal Justice System" (Matando Impunemente -Como a Política Está Destruindo o Sistema de Justiça Criminal), Harvard University Press. O título é enganador: deixa supor que seja mais um livro preocupado com os efeitos maléficos da política na administração da Justiça. Um livro, em suma, que confirmaria tudo o que já pensamos.


Não é nada disso. Estrich constata que em uma sociedade ocidental moderna -salvo os que alimentam nostalgias para julgamentos divinos e santas inquisições- a fonte da autoridade da lei e de sua administração é a própria comunidade dos cidadãos. Ou seja, se em nossas sociedades é proibido matar, estuprar, roubar etc., isso não acontece porque essa foi a regra transmitida pelos antepassados ou por Deus. Acontece, ao contrário, por decisão política da comunidade. Idéias, valores, princípios morais e leis valem porque concordamos de alguma forma em sermos orientados e regidos por essas normas.


Esta primeira constatação, excessivamente banal, acarreta uma consequência: não faz sentido protestar contra a ingerência da política na administração da justiça, pois, em nossas sociedades, a justiça é de natureza política, já que a própria idéia do que seria justo ou não só vige graças ao acordo da comunidade política.


As imperfeições (ou pior) do sistema jurídico, portanto, não são devidas à iníqua invasão da política na esfera pretensamente purificada da lei. Não são contaminações da justiça por um corpo estranho. Ao contrário, lei e justiça são e só podem ser expressões políticas da vida social.
Um marxista não diria diferente, e acrescentaria que por isso mesmo o exercício da justiça é mais um teatro (falsamente neutro) onde se desdobra a luta entre classes. Mas uma liberal, como Estrich, acreditando nas virtudes da democracia, propõe, ao contrário, o silogismo seguinte: 1. Em uma sociedade moderna, a fonte de toda autoridade é a própria comunidade dos cidadãos; 2. O que é justo (e o que não é) depende da suposta vontade da comunidade; 3. Portanto, se a administração da justiça não funciona, isto não acontece por ela estar sendo "invadida" por considerações políticas, mas por algum fracasso da vida política da comunidade que deveria se expressar na sua capacidade de fazer justiça. Uma comunidade mais ou menos politicamente doente é incapaz de articular uma voz comum que sirva de fundamento à administração da justiça.


O problema da justiça no Brasil, por exemplo, não seria uma questão de separação insuficiente entre judiciário e legislativo ou executivo, mas uma expressão do fato de que a comunidade nacional está dividida, impedida de funcionar como comunidade. Se uma classe é privilegiada na administração da justiça, isto não manifesta sua usurpação do Judiciário, mas sim sua usurpação da comunidade.


As idéias de Estrich parecem particularmente evidentes em um sistema jurídico - como o americano - fundado na "Common Law", ou seja, onde distintamente o que tem valor de lei são em última instância as idéias compartilhadas (os "standards") da comunidade. Mas é fácil constatar que, mesmo os países de direito romano e napoleônico (como o Brasil), evoluem nesta direção por um caminho indireto, mas seguro. Pois acontece que o legislador é inevitavelmente chamado a atuar segundo os costumes comunitários.


Para medir os padrões comunitários em matéria de justiça, Estrich oferece um conceito interessante: "A pessoa razoável". Bem distinta do "ser racional", cujas ações corretas seriam decididas por princípios pretensamente deduzidos de alguma razão universal, a pessoa razoável é quem age de uma forma compatível com a comunidade e compreensível por ela. Uma comunidade (e portanto sua justiça instituída) decide o que é punível ou não, assim como o que pode ser considerado como uma circunstância atenuante ou agravante, a partir da idéia vigente da pessoa razoável.


Contrariamente ao ser racional, a pessoa razoável evolui no tempo. Por exemplo, 30 anos atrás, o homem razoável poderia aparentemente ser desculpado caso matasse sua mulher surpreendendo-a com um amante. A mulher razoável da mesma época não seria desculpada. Já hoje parece que, seja qual for seu sexo, a pessoa razoável é menos ciumenta. Mas o que mais importa é que, na evolução saudável da vida de uma democracia, a pessoa razoável deveria sobretudo se tornar cada vez mais representativa da comunidade em seu conjunto.


A pessoa razoável da Justiça americana, até os anos 60, era masculina e branca. Já hoje ela pode ser negra, hispânica, feminina. Portanto, a comunidade que achava razoável quem linchava um negro ou batia em uma mulher, pode hoje achar razoável a raiva do mesmo negro e desculpar Lorena Bobbitt, que cortou o pênis do marido. A pessoa razoável, em suma, vem a ser a unidade de medida da Justiça, se conseguir se tornar representativa do conjunto da comunidade.


Ora, as dificuldades da Justiça americana, seu vaivém às vezes cômico de decisões extremas e frequentemente compensatórias, derivam do caráter peculiar do projeto comunitário americano: compor e manter uma comunidade que reconheça e exalte todas as diferenças particulares. Os paradoxos deste projeto aparecem na administração da justiça, pois a "pessoa razoável" se torna um arlequim multicolor impossível de ser reconstituído, mesmo pela assembléia de 12 jurados. A Justiça aparece assim como o incerto teatro político de uma luta entre facções da comunidade.
No Brasil é outra história: faltam as condições básicas, materiais, de uma comunidade. As diferenças sociais fazem com que, para um adolescente filho de ministro, seja razoável atropelar, matar e omitir socorro, com a condição de que o morto seja um trabalhador passante -quando certamente não seria razoável que o dito trabalhador atropelasse e matasse um filho de ministro.
Segundo Estrich, o problema não é de má administração da justiça. Ao contrário, por nossa vida política e social, temos a justiça que merecemos.

domingo, 1 de fevereiro de 1998

Crise mostra descompasso entre mídia e público


A sexo-crise da Casa Branca entra em sua segunda semana. Seja qual for sua conclusão, ela poderá passar para a história como um extraordinário descompasso entre a mídia e seu público.
A mídia norte-americana continua pressupondo uma reação de indignação que seus ouvintes e leitores manifestamente lhe negam.


Jornalistas de todas as orientações ostentam um tom fustigador, mas -nas pesquisas quantitativas como nas conversas de esquina- o público responde que, para essa história, não dá a menor bola: o uso do membro presidencial concerne ao presidente, a sua mulher e, eventualmente, a paixões paralelas, se existirem.


Até os adversários políticos tradicionais preferem se abster a pedir uma indignação que não é o sentimento popular.


Só reagem os raivosos profissionais, que desde sempre alimentam alguns talk-shows de rádio num constante e paranóico descontentamento ou colocam bombas nas clínicas de aborto (e que mal representam 10% dos americanos).


Em breve, tudo indica que, se o presidente for culpado de uma aventura com uma estagiária, ninguém se importa. Agora, se for provado que ele tentou obstaculizar a Justiça, induzindo Monica Lewinsky a mentir, poderemos nos indignar, mas o risco é quase nulo, pois nas próprias gravações das conversas telefônicas de Monica com Linda Tripp, ela afirma que não foi aconselhada a mentir.


A mídia internacional globalmente caiu na armadilha de tomar o evento montado pela mídia americana como expressão de uma voz popular que, de fato, está ausente.
Conclusão (viva as banalidades!): denuncia-se ou ironiza-se o pretenso "puritanismo" americano. Não podia dar mais errado, pois a história indica, ao contrário, que a mídia americana presumiu um puritanismo do público, que desta vez faltou à chamada.


Procura-se então uma explicação simples e alternativa. Mais um lugar comum: o americano, além de puritano, se presume que seja pragmático, ou seja, cínico. Conclusão: as pessoas não se indignam porque com Clinton a economia está dando certo, e o bolso fala mais alto do que a moral. Será? Ou será que algo mudou enfim -e radicalmente- na maneira americana (e não só americana) de pensar e viver a política?


A situação atual é um bom teste para verificar essa hipótese. Na terça, o presidente Clinton proferiu o tradicional discurso sobre o Estado e a União. Logo após o discurso, sua popularidade disparou para perto dos 70% (sondagem da CNN). Por quê?


Foi um discurso de política pós-moderna: nenhuma proposta radical, nenhuma grande oposição ideológica, nem mesmo a procura de zonas de conflito com a oposição republicana. Ao contrário, na enumeração dos sucessos de seu governo, o presidente sublinhou os resultados que foram efeito de acordos e esforços bipartidários.


Nas propostas, ele planejou gastar (democraticamente), mas respeitou a oposição se engajando a não se endividar (republicanamente). Evitou ventos ideológicos e avançou esparadrapos sociais pontuais, possíveis e concretos.


Se houve um apelo ideal, foi à esperança genérica de construir uma comunidade mais apaziguada e justa, de reinventar uma idéia de bem comum no respeito das diferenças da sociedade americana e global.


Este ideário básico pode parecer piegas e talvez seja. Mas o que importa é que ele está em perfeita consonância com o clima do momento. É este o ideário da geração que hoje lidera a opinião pública: os baby-boomers, influenciados pelos anos 70, revoltados ou revolucionários arrependidos, tolerantes, multiculturalistas, vagamente libertários, cuidadosos de seu conforto, mas bem intencionados socialmente, nostálgicos e sedentos de vida comunitária, anti-racistas, desconfiadíssimos de oposições ideológicas abstratas e partidárias (nas quais acreditaram no passado) e geralmente menos hipócritas do que seu predecessores.


O pano de fundo atual é uma mudança da política como disciplina e exercício, pela qual hoje a moda não é o conflito, mas a convivência. O novo urbanismo americano propõe a fuga dos subúrbios e a volta aos centros urbanos, mais diversos. Ou então, negros -homens e mulheres- marcham sobre Washington não para pedir algo do governo, mas para proclamar seu engajamento em produzir uma vida melhor para todos. Ou ainda: assiste-se a um vasto "revival" do serviço comunitário e dos esforços caritativos.


No discurso, Clinton apresentou os sucessos da redução dos subsídios a pobres e desempregados como sendo antes de mais nada o efeito do heroísmo dos próprios desfavorecidos que conseguiram passar do cheque-subvenção ao cheque do salário.


Ele levou o Congresso inteiro a aplaudir de pé uma mulher do povo: heroína da nova comunidade americana. É isso que os baby-boomers esperam de seus políticos: que coordenem nossos esforços para criar uma vida melhor e que não nos azucrinem com princípios ou com estatuários exemplos de virtude.


Os feiosos de repente são os acusadores de Clinton, por parecerem (e provavelmente serem mesmo) perigosamente partidários. Kenneth Starr, o promotor nem tão independente assim, pertence a um escritório que defende os interesses das companhias de tabaco, é republicano militante e, antes de ser escolhido para sua função atual, se ofereceu espontaneamente para ser advogado de Paula Jones. O mesmo ou quase vale para Linda Tripp ou para sua agente literária. Eles aparecem vulgares, fora de moda, intolerantes.


Clinton, ao contrário, se beneficia da própria política que ele representa e promove. Em um clima onde a esperança é respeitar a diversidade sem perder a comunidade, onde portanto se promove a tolerância das diferenças de orientação sexual, como poderíamos contestar seu direito à Presidência por um presumido adultério oral?


O discurso de Clinton constituiu assim um exato a-propósito. Seu governo parece feita para os nossos tempos. Ele é um baby-boomer comum. Suas forças (poucos "a prioris" básicos humanitários, diálogo e conciliação) são nossas forças. Suas fraquezas (da carne) também são. Por isso é fácil atingi-lo, mas por isso mesmo não vai ser fácil afundá-lo, pois ele é o homem político de uma geração.


Retomando a questão levantada por Otavio Frias Filho em sua coluna de quinta passada -para descobrir quem quer a pele de Clinton, vale perguntar: além do interesse da mídia por qualquer história que levante poeira, quem quer hoje voltar a um clima interno e externo de Guerra Fria? Quem tem interesse em uma sociedade de oposições adamantinas?


Não sei, mas talvez a resposta seja só cultural: a geração de Woodstock chegou a sua maturidade e sabemos que, de regra, a passagem do poder de uma geração para outra nunca é pacífica.

domingo, 18 de janeiro de 1998

A geopolítica do prazer


Brasileiro assume a imagem de ardente para ocupar o lugar dos sonhos dos outros


O século 20, o século dos antibióticos, do telefone, do homem na lua etc., será também lembrado como o século do sexo. Alguns dirão que foi o século da liberação sexual. Outros que foi o século, não da repressão, mas da opressão sexual. Ambos terão razão.


Os comportamentos sexuais ficaram certamente mais livres. Na maior parte dos países ocidentais a lei hoje proíbe muito pouco: a violência contra menor de idade, o estupro, às vezes a prostituição e só. A medicina do século 19 travara uma guerra contra as condutas sexuais que não servissem à reprodução. Culminou com a monumental "Psychopathia Sexualis", de Krafft-Ebing, traduzida em todas as línguas, sabiamente guardada nas estantes mais inacessíveis das casas burguesas. Este catálogo tragicômico dos desvios de conduta sexual só serviu, neste século, para inspirar a masturbação de legiões de jovens ocidentais que nela aprenderam o que podia ser sexo.


A tentativa de patologizar as condutas sexuais veio morrer na praia da psicanálise. Mas morreu como? Foi uma troca pela qual a sexualidade se encontrou liberada para uma dupla condição: de se tornar, por um lado, objeto infinito de nossas preocupações e, por outro lado, uma obrigação. Começamos, assim, a trocar a repressão das condutas com a opressão produzida pelo imperativo de falar de sexo e sobretudo de sermos sexualmente felizes e satisfeitos. O verdadeiro doente sexual deste fim de século não é nem o impotente nem a frígida; a eles perdoa-se com comiseração. O verdadeiro doente sexual é o desinteressado.


A revolução sexual foi uma exacerbada necessidade de falar do sexo e de colocá-lo no centro de nossas vidas. Ou ainda uma idealização da sexualidade como via régia para ser feliz e, por consequência, uma inédita valorização de qualquer prática que acarrete a esperança de satisfação maior. Isto facilitou a vida dos praticantes que puderam aos poucos sair do armário e seduzir novos adeptos, mas não mudou a vida sexual da maioria. Só impôs a todos um mandato de satisfação sexual: goze!


O retrato da sexualidade brasileira oferecido pela pesquisa do Datafolha confirma e se insere neste rápido diagnóstico da sexualidade ocidental no fim de século. Por exemplo, a maioria dos brasileiros parece topar a idéia que a principal função do sexo seja o prazer e não a reprodução. Resta que, com isso, o sexo se torna facilmente uma função obrigada do prazer. O que pode ser no mínimo incômodo.


Ginga
Um dado marcante da pesquisa é a discordância entre a opinião que os entrevistados têm de si e sua visão dos "brasileiros". "O brasileiro" é bem mais liberado sexualmente e interessado por sexo do que os brasileiros entrevistados.


A situação evoca singularmente minha adolescência na Itália: o país inteiro aparecia como um maníaco "latin lover", engomando cabelos para seduzir turistas austríacas, alemãs ou suecas que invadiam nossas praias na esperança de saborear o macho italiano.


As duas situações -Itália e Brasil- permitem uma explicação comum: as misérias históricas e sociais produzem uma dificuldade de identificação nacional. Portanto, torna-se bem-vindo, como modelo de identidade, o cartão-postal segundo o qual somos todos gingões, interessadíssimos por bunda, ou mulatas prestes a ser arpoadas na praia do Arpoador.


A defasagem entre exotismo sexual nacional e sexualidade vivida poderia, assim, ser colocada na conta do subdesenvolvimento: uma comunidade nacional pouco valorizada na praça global aceita com complacência qualquer imagem positiva. Frequentemente o que lhe é proposto é uma vinheta de desbunde que se origina em uma forma domesticada de racismo. Os outros nos concebem como seres animalescamente entregues a desejos ardentes ("trepa com eles/ elas que é bom e barato, mas não faz negócio que é outra história"). Assumimos este cartão-postal que passa a ser nossa própria imagem, porque -o sexo sendo um ideal global moderno- somos seduzidos pela ilusão de ocupar assim o lugar dos sonhos dos outros.


Em suma, a idealização sexual parece se distribuir geopoliticamente, obedecendo às facilidades do turismo sexual norte-sul mais do que ao espírito nacional dos prestigiados.


Mas não é só isso. De fato, é provável que, se a mesma bateria de questões fosse repetida em outros contextos nacionais e culturais, o resultado -embora talvez menos contrastado- seria o mesmo. Ou seja, os entrevistados se diriam menos interessados por sexo do que o grupo nacional ou cultural ao qual pertencem tomado coletivamente. Eles reconheceriam, assim, ao mesmo tempo sua realidade sexual, mas também a pregnância coletiva do ideal moderno de felicidade e satisfação sexual. A prova disso, por exemplo, está na inevitável associação da alegria da festa com o gozo sexual. Sem isso, a farra não tem graça e, logicamente, a farra acompanhada por esta obrigação perde graça. Os beijos de fim de noite na Oktoberfest têm o mesmo gosto de vômito de cerveja do que na praça Castro Alves.


Dois países
Na descrição de sua vida sexual efetiva, os brasileiros se revelam simpaticamente banais.
Mágica demonstração da sinceridade dos entrevistados, a duração das relações coloca todos de acordo: meia hora basta. A grandíssima maioria se diz satisfeita e está feliz com seu parceiro para quem dá nota alta. A metade acha bom uma vez por semana. Muitos praticam sexo oral e anal, mas não sempre, ou seja, não como fins em si. Pouquíssimos parecem precisar da ajuda de bebida, drogas, revista ou vídeo eróticos etc.


Surge da pesquisa a imagem de um país surpreendentemente conservador. Com exceção da masturbação e das relações antes de casar, que estão liberadas, a opinião dos brasileiros em matéria de homossexualismo, aborto, prostituição e virgindade é careta.
A isso se acrescenta que só uma minoria parece ter acesso a suas próprias fantasias e uma persistente maioria (silenciosa) responde à questão sobre as 14 práticas sexuais com um abstrato e árido "nunca fantasiou".


No entanto, uma leitura mais cuidadosa dos números revela um divórcio entre os entrevistados, segundo níveis de instrução e de renda. Não estou me referindo ao fato previsível de que as pessoas mais instruídas se mostrem mais esclarecidas e tolerantes. Bem mais interessante, os mais desfavorecidos parecem transar um pouco mais frequentemente, mas sem fantasia (papai-e-mamãe todo dia é a imagem caricatural -o que poderia explicar, aliás, a maior fertilidade). Os ricos e instruídos, ao contrário, talvez transem menos, mas fantasiam bem mais.


Ao que parece, nossos filhos estão na escola para perder a inocência reprodutiva e parte de sua potência sexual natural, tornando-se masturbadores cheios de idéias. É a degenerescência das classes médias e altas. A ela responde o pobre e ignorante, próximo do bom selvagem, fiel à fisiologia, que prefere coito sem rendas e bordados.


Por esta diferença estereotipada, confirma-se que o imperativo que coloca o sexo no centro de nossas vidas e preocupações como fonte obrigatória de nossa satisfação é eminentemente cultural. Quanto mais somos expostos à cultura de massa (o que é o caso das classes médias e altas), tanto mais o sexo importa para nós.


Ora, por um lado, quem procura sua felicidade no sexo estará disposto a testar modalidades originais. Por outro lado -e mais importante-, a cultura é o reservatório das fantasias sexuais. A diferença apontada pela pesquisa justamente mostra que a configuração de uma fantasia sexual não é tanto o efeito de circunstâncias de vida. As fantasias são sugeridas pelo imaginário cultural. Elas são induzidas. A variedade de suas formas e sua relevância na vida sexual crescem com a cultura do sujeito.


Tirem disso as consequências que quiserem segundo seu ponto de vista moral -desde um pedido de censura até a defesa da Internet em cada sala de aula.


Santo Graal
Como era previsível, as mulheres gozam menos do que os homens (só 31% têm orgasmo garantido). Desde os anos 70, com o famoso "relatório Hite" (Shere Hite, "The Hite Report - A Nationwide Study of Female Sexuality", MacMillan, Nova York, 1976), o imperativo social de fazer gozar as mulheres é palavra de ordem.


O gozo feminino tornou-se o Santo Graal moderno. Todo mundo procura, ninguém sabe onde está e, mesmo quando acontece, a gente se pergunta se foi mesmo. As mulheres, em suma, são as mais oprimidas pela obrigação de gozar e, enfim, se sentir satisfeitas. Pois, por elas não disporem de ejaculações que confirmem o fato, o gozo das mulheres foi aparentemente escolhido como símbolo social do gozo ao qual todos aspiramos e que ainda nós não conseguimos. Uma carga pesada.

Nota: Com relação às 14 práticas sexuais, mulheres parecem fantasiar menos do que homens. Salvo no caso de fazer sexo com dois ou mais homens, em que são majoritárias. O psicanalista deve assinalar um detalhe que a pesquisa necessariamente negligencia: as mulheres não fantasiam menos, mas de uma maneira diferente que dificilmente se enquadra nos enunciados de cenários (sejam 14 ou mil).