quinta-feira, 29 de setembro de 2005

É possível estar mal e pensar direito?

Uma das questões mais interessantes da psicologia das últimas décadas é a seguinte: em que medida o sofrimento psíquico de um sujeito deve ser relacionado com um defeito de sua percepção e de seu entendimento do mundo? Obviamente, a pergunta é relevante só quando o sofrimento é uma condição severa e duradoura.

Tomemos, por exemplo, a depressão, um estado patológico que, em princípio, não nos torna delirantes nem alucinados. "Ser" depressivo (diferentemente de "estar" deprimido) significa passar, ao longo da vida, por vários episódios de depressão profunda e sofrer de uma constante dificuldade em encontrar a vontade de viver.

Pois bem, será que ser depressivo implica (como causa ou como efeito) um erro de percepção e de pensamento? Qualquer terapeuta gostaria que fosse assim: bastaria corrigir o erro e, com isso, quem sabe a depressão fosse "curada". Se você é depressivo e enxerga o mundo como a brincadeira sádica de um deus maléfico, talvez você seja vítima dessa visão "errada". Ao corrigi-la com as palavras certas, a gente transformaria seu humor de vez, faria de você outra pessoa. Mas sobra a pergunta: será mesmo que, por você ser depressivo, sua percepção do mundo está errada?

Em 1979, foi publicada uma experiência (Abramson e Alloy, "Journal of Experimental Psychology", vol. 108, nº 4), na qual dois grupos de sujeitos (os deprimidos e os "saudáveis") deviam descobrir se suas ações tinham ou não alguma influência sobre uma lâmpada que, de fato, se acendia e se apagava ao acaso. Os não-deprimidos, apesar dos desacertos, concluíram que suas ações eram eficazes. Os deprimidos concluíram (corretamente) que suas ações não tinham eficácia nenhuma e que não havia como fazer a cabeça da maldita lâmpada.

Para alguns críticos, a experiência demonstrava apenas o pessimismo dos deprimidos. Mas resta que, no caso, a conclusão dos deprimidos foi certeira; portanto caberia salientar o extravagante otimismo que extraviou os não-deprimidos e constatar o realismo dos deprimidos. Aliás, a questão levantada pela experiência de 79 entrou para a história da psicologia como problema do "realismo depressivo" (há novas experiências publicadas no recente vol. 134 do "Journal of Experimental Psychology").

O interesse desse debate não é só clínico. Acaba de sair um livro imperdível, "Lincoln's Melancholy: How Depression Challenged a President and Fueled His Greatness" (a melancolia de Lincoln: como a depressão desafiou um presidente e alimentou sua grandeza), de Joshua Wolf Shenk.

Shenk se baseia nos relatos dos que foram próximos de Abraham Lincoln para confirmar que ele foi clinicamente deprimido durante a vida toda. Logo, o autor se pergunta se essa depressão grave e crônica constituiu um impedimento ou se, ao contrário, foi uma vantagem na conduta do presidente americano durante a Guerra de Secessão.

Ora, Shenk argumenta de maneira convincente que a depressão de Lincoln foi responsável por suas qualidades de estadista. A seguir, alguns exemplos:

1) A depressão clínica é sempre acompanhada por um intenso processo de pensamento: reavaliação contínua da realidade, dúvidas sobre a ação certa, exame constante de consciência e por aí vai. Esse processo leva o sujeito a um conhecimento especial das contradições de sua própria alma e da dos outros. Na vida pública, isso permite negociar sem desprezo pela parte adversa.

2) O deprimido que ultrapassa suas crises sem sucumbir tem, em regra, a coragem e a capacidade de encontrar motivações sem recorrer a grandes princípios (o que pediria um entusiasmo que é impossível na depressão). Lincoln, embora convencido de que a abolição da escravatura fosse moralmente correta, nunca invocou a certeza de que Deus estaria do seu lado, mas alegava (inclusive por escrito) que, quanto a Deus, cada lado podia considerá-lo seu aliado. É uma outra qualidade crucial para a vida pública, a não ser que a gente prefira entregar as rédeas do governo a iluminados e fundamentalistas.

3) A adversidade, para o deprimido, é, por assim dizer, natural (nada existe sem antagonismo). Deparar-se com oposição e derrota é, para ele, uma travessia normal. O resultado é a perse- verança.

Recentemente, uma psiquiatra (Kay Redfield Jamison, "Touched with Fire: Manic Depressive Illness and the Artistic Temperament", tocados pelo fogo: a doença maníaco-depressiva e o temperamento artístico) mostrou que uma cura apressada da depressão nos privaria de inúmeros talentos artísticos e literários. Shenk estende o mesmo princípio a uma figura política; ele mostra que, no caso de Lincoln, a depressão não foi "uma falha de caráter que desqualificaria a liderança de um sujeito". Longe de comprometer o pensamento e as decisões do presidente, ela foi o traço de caráter que fez dele o estadista lúcido e necessário num momento sombrio da história de seu país.

Em suma, muitas aventuras dolorosas da mente são partes da subjetividade de quem sofre e, às vezes, partes irrenunciáveis, cuja "cura" deixaria o mundo mais pobre e mais estúpido.

quinta-feira, 22 de setembro de 2005

Luxo e avareza

Gilles Lipovetsky, em "O Luxo Eterno" (Companhia das Letras), observa que o luxo está se tornando mais democrático. A razão que ele propõe é a seguinte: hoje, o luxo não consistiria mais em consumir de maneira extravagante ou em acumular bens caros e raros, mas em nos permitirmos experiências intensas e extraordinárias ou, então, em tratar de nossa saúde.

De fato, os objetos de luxo estão se tornando um pouco bregas. É cafona servir de cabide a uma coleção de roupas assinadas e mesmo carregar ostensivamente uma carteira de grife (se essa foi a única coisa que a gente conseguiu comprar).

O estilo despojado parece ser uma marca de elegância mais certeira do que uma cuidadosa combinação de vestuário e acessórios. É porque o despojamento transmite a mensagem seguinte: "Eu não perco tempo me olhando no espelho e verificando se estou vestido "direito'; meus interesses são outros". Ou seja, você deambula pelos shopping centers ao passo que eu levo minha calça surrada pelas estradas do mundo: meu luxo é que vivo de verdade, enquanto você passa de pose em pose.

Como exemplos dessa nova concepção do luxo, Lipovetsky lembra o caso do homem que pagou 22 milhões para passar uma semana na estação espacial internacional e, mais geralmente, invoca o enorme mercado da saúde e da forma. Ele conclui que não anelamos mais adquirir e ostentar bens; preferimos nos dar o luxo de viver experiências extremas e de cuidar de nosso bem-estar físico e psíquico. Ou seja, o luxo hodierno seria uma questão de vivências: velejar pelo cabo de Boa Esperança, comer vegetais orgânicos, freqüentar uma academia, um spa ou um psicanalista.
É um progresso? Lipovetsky parece pensar que sim, visto que, segundo ele, as novas práticas do luxo teriam um valor intrínseco e não só ostentatório: treino ou viajo para meu próprio bem ou para meu prazer, não para merecer a consideração ou suscitar a inveja dos outros. O novo luxo não estaria a serviço da divisão social entre os que têm e os que não têm; ele estaria a serviço da fruição da vida. Legal, não é? Pois é, eu não estou muito convencido disso.

O luxo atual, por mais que pareça consistir em vivências e cuidados de si, continua a serviço das aparências. Por exemplo, o despojamento, do qual falei antes, fomenta uma indústria de paramentos: é possível comprar uma calça velha muito mais cara do que seu equivalente novo de fábrica, e a prática de aventuras extremas talvez propague uma mensagem parecida com a dos jeans rasgados: "Veja como vivo intensamente". Do mesmo jeito, o cuidado com a forma talvez seja, antes de mais nada, uma preocupação com as formas: "Veja meu corpinho". Mas isso é o de menos.

O que me inquieta mais, no novo luxo, é sua avareza. Explico.

Uma boa parte de nossos cuidados com a forma alvejam a preservação de nossas forças, de nossa juventude e, enfim, da duração de nossa vida: paradoxalmente, trata-se de um luxo em que gastamos para poupar.

Quanto à paixão por experiências extremas, impressiona-me o caráter marginal e extraordinário das experiências: elas são interrupções na vida de cada dia, momentos de férias.

O pretenso luxo das vivências é quer seja uma defesa contra o desgaste de nossas energias, quer seja uma válvula de escape.

Em suma, talvez estejam em vigor ideais novos (o ideal da aventura e o do cuidado de si), diferentes do antigo ideal do luxo, em que vislumbrávamos os apetrechos necessários para parecermos chiques, ricos e famosos. Mas esses novos ideais se limitam a alimentar uma eterna preparação física e psíquica (os atos ficam para amanhã) ou, então, realizam-se em momentos de evasão. É como se, sonhando em ser exploradores e viajantes, encontrássemos nossa "satisfação" fazendo as malas ou sendo turistas de vez em quando.

Alguém dirá: qual é o problema? Será que deveríamos abandonar casa, trabalho, filhos e família para procurar aventuras mirabolantes e, sobretudo, permanentes? Nada disso.

A questão é esta: como foi que nossa experiência cotidiana se empobreceu a ponto de passarmos nosso tempo nos preparando para 15 dias por ano de pseudo-aventuras de férias obrigatórias? Como aconteceu de o "luxo" deixar de ser uma forma suntuosa de gastar a vida e se tornar uma forma de poupá-la em vista de eventuais escapadelas no fim do ano ou nos feriados?

As novas formas do luxo, apontadas por Lipovetsky, sugerem que estamos vivendo na impressão de uma mediocridade crônica, treinando e poupando forças para um "alhures" geográfico e temporal.

Ora, o verdadeiro luxo das vivências consistiria em viver não na espera ou no treino, mas aqui e agora, com toda a intensidade possível.


Neste ano, no Brasil, foram publicados três livros de Lipovetsky: "A Era do Vazio " (que é de 1983), "A Sociedade Pós-Moralista Crepúsculo do Dever" (que é de 1992) e "O Luxo Eterno" (que é de 2003 e reúne dois ensaios, um de Lipovetsky e outro de Elyette Roux). Além disso, acaba de sair "A Invenção do Futuro", debate organizado por Miguel Reale Jr. e Jorge Forbes, com a participação de Lipovetsky.

quinta-feira, 15 de setembro de 2005

Antes sós do que (mal) acompanhados?

Acontece nestes dias, em Bento Gonçalves (RS), o quarto Congresso Brasileiro de Dinâmica Interpessoal, organizado pela Sociedade Brasileira de Dinâmica dos Grupos. Fui convidado a palestrar na abertura, e a ocasião me levou a refletir um pouco sobre grupos e indivíduos.

A literatura é o grande repertório moderno dos ideais, dos sonhos e mesmo dos pensamentos morais. O primeiro romance desse repertório é um sonho de solidão: "Robinson Crusoé", de Daniel Defoe, publicado em 1719. Desde então, a história do homem que sobrevive numa ilha deserta continua nos interessando (a título de exemplo, houve as versões literárias de Coetzee, "Foe", e de Michel Tournier, "Sexta-Feira ou a Vida Selvagem", e, recentemente, o filme de Robert Zemeckis, "Náufrago"). Detalhe: na ilha deserta, estamos dispostos a encontrar ao menos um semelhante, Sexta-Feira, mas à condição de que seja claramente um subordinado.
Visto esse precedente literário inaugural, não é estranho que sejamos criados, em geral, na desconfiança de tudo o que é grupo.

Há dois provérbios que me acompanham desde a infância: "Antes só do que mal acompanhado" (ou seja, sempre melhor sozinho) e o ditado italiano "Chi fa da sé fa per tre" (quem faz sozinho faz por três). Este último, aliás, instilou-me uma antipatia pela pedagogia do trabalho em grupo, e isso atrapalhou a carreira escolar de meus filhos, pois nunca parei de suspeitar que, se João ou Maria viessem "para estudar junto com eles", seria só bagunça ou perda de tempo.

É claro, havia também o provérbio que diz que "a união faz a força". Mas faz a força a que preço? Naqueles dias, a história recente dizia que a massa era poderosa e irresistível, mas irremediavelmente burra e cruel. Meus pais tinham conhecido os 20 anos do fascismo italiano e assistiam ao desastre do socialismo real, manifesto (para quem quisesse ler e ouvir) desde os anos 50. Não seria no Brasil de hoje que eles seriam desmentidos: partidos e movimentos, sobretudo quando têm uma forte coesão, parecem ser sempre piores do que as pessoas que os compõem.

Mais tarde, consagrei minha tese de doutorado a esta pergunta: como é possível que homens quaisquer, como você e eu, sejam levados a funcionar como o braço armado de genocídios e extermínios que repugnariam a suas consciências se eles agissem sozinhos? Cheguei a uma conclusão que tento resumir: não é por medo de punições nem por convicção ideológica. É porque, para o sujeito moderno, tanto a dúvida sobre quem ele é quanto a incerteza sobre o que ele quer da vida são fardos imensos. Ele pode ser levado, portanto, a sacrificar sua individualidade à condição de que o grupo lhe ofereça a ilusória impressão de "saber" quem ele é e quais são suas tarefas. Um homem qualquer pode colocar fogo numa sinagoga repleta ou despedaçar nenês contra uma parede para ganhar o "conforto" de sentir-se parte eficiente de um grupo.

A desconfiança dos grupos não se desmentiu quando me ocupei um pouco da função da turma e da gangue (sobretudo adolescente) na violência criminosa. Por caminhos psicológicos um pouco diferentes, aqui também o grupo potencializa o que há de pior em alguns de nós. Sentir-se reconhecido pelos "compadres" é uma razão suficiente para esquecer-se de inibições e freios morais básicos. Os quatro rapazes que, em 1997, em Brasília, queimaram vivo o índio Galdino, tomados um a um, nunca teriam perpetrado aquele horror.

Aparte: a sedução do grupo não constitui um atenuante. Ao contrário, a covardia que leva alguém a trocar sua humanidade pelo conforto coletivo é, a meu ver, uma agravante.

Dos grupos só se salvaria, em princípio, a família: já em 1812, o alemão J.D. Wyss publicara "Os Robinsons Suíços", em que transformava a gloriosa solidão de Robinson Crusoé no ideal da vida familiar numa ilha deserta. A idéia alimentou um seriado televisivo americano nos anos 60. Na mesma linha e época, a família de "Perdidos no Espaço" chamava-se Robinson. Mas, desde os anos 70, a antipsiquiatria inglesa (Laing, Cooper, Esterson) mostrava que a família era a fonte originária do sofrimento neurótico e da loucura.

Em suma, durante os dois últimos séculos, inventamos utopias coletivas, mas elas devoram nossa liberdade; sonhamos com o calor do lar, mas ele parece ser responsável por muitos de nossos males. Atrás da "união que faz a força", paira o medo (justificado) de que, nessa união, nossa singularidade perca o melhor de si. E, atrás do sonho de Robinson, paira o pavor (também justificado) de uma solidão sem conforto.

Para lidar com esse paradoxo, quando sou chamado a "ajudar" grupos em dificuldade (famílias e casais), adoto um pequeno artifício: em vez de explorar as falhas (ou seja, em vez de perguntar o que cada um estima estar perdendo por causa da relação), tomo, às vezes, o caminho oposto e pergunto o que cada um estima estar ganhando na convivência com o outro.

É pouco, mas é um jeito de as pessoas se lembrarem de que, apesar de todos os pesares, vale a pena pagar um preço para elas não viverem sozinhas. Claro, depende do preço.

quinta-feira, 8 de setembro de 2005

Nova Orleans e a confiança básica no mundo

Duas ou três vezes por ano, o prédio onde moro fica sem energia por um tempo. Apesar desses cortes, previstos ou imprevistos, não vivo num suspense energético: sigo esticando o dedo para chamar o elevador, convencido de que, lá em cima, alguém me ama. Sem isso, como aceitaria viver no décimo primeiro andar?

Karl Jaspers, o filósofo alemão, dizia que a ciência pede ao usuário uma espécie de fé. De fato, podemos não saber como funcionam o telefone, a televisão, o cabo, mas acreditamos no seu funcionamento.

Para os psicanalistas, essa fé na ciência e na técnica é parte de uma disposição mais geral: a "confiança básica no mundo". Ela acompanha cada sujeito que viu a luz num ambiente que o acolheu com carinho e simpatia. Suponhamos: ninguém nos chutou quando estávamos no desamparo da primeira infância; quando chorávamos, alguém comparecia (mesmo que fosse para nos enfiar uma chupeta na boca quando, na verdade, precisávamos que trocassem a fralda). Em regra, os que tivemos essa sorte (a grande maioria dos humanos) continuamos pensando durante a vida toda que os outros e o mundo nos querem bem.

Conseqüência: podemos viver na Califórnia, embora esteja certo que a região será devastada por um terremoto; podemos viver numa cidade como Nova Orleans, abaixo do nível do mar, protegida apenas por diques antiquados; podemos viver em andares altos, fora do alcance de qualquer escada de bombeiros.

A confiança básica no mundo é também um alicerce da ordem social, pois ela vale como um lembrete permanente que diz: há alguém que cuida, alguém que se importa. Nos termos de nossa infância: os adultos voltarão para nos dar comida e ainda para verificar se a gente se comporta direito.

Não há pesquisas que meçam o número de interrupções da energia elétrica que é necessário para que eu pare de confiar na Eletropaulo. Em compensação, existe a teoria das janelas quebradas, que, nos anos 90, revolucionou nossas idéias em matéria de manutenção da ordem social (George Kelling e Catherine Coles, "Fixing Broken Windows", arrumando janelas quebradas). Experiência básica em psicologia social: se abandono um carro num bairro de classe media, ele será depenado só depois de oito semanas. Se, antes de abandoná-lo, aplico algumas boas marteladas nos faróis e na lataria, ele será depenado em três dias. Outra: num metrô coberto de grafite a criminalidade é muito mais alta do que no mesmo metrô se ele for lavado e limpado a cada noite.

Por quê? Os faróis quebrados e os grafites assinalam que ninguém se importa. E, se ninguém se importa, tudo é permitido. Será que isso basta para entender as rondas armadas de malfeitores e vigilantes em Nova Orleans?

O prefeito da cidade tentou explicar a onda de saques por indivíduos e gangues lembrando que, além dos serviços básicos, também parou de funcionar o comércio de droga, o que teria deixado alguns sujeitos bem "nervosos". É verdade: faz parte da confiança básica acreditar que o traficante da esquina estará lá de novo amanhã. Mas, para explicar o acontecido, não é preciso recorrer à falta de droga (ou de nicotina).

Em Nova Orleans, a ruína da confiança básica foi brutal: o telefone emudeceu, a força acabou, o celular perdeu o sinal, e ninguém respondia aos gritos de ajuda.

Ora, para alguns, abriu-se assim um tempo de desespero. Para outros, a constatação de que "ninguém se importa" foi sedutora e esperada. Nada de estranho nisso: afinal, saquear lojas de armas e circular pelas ruas à procura de comida, de água, de gasolina e de outros humanos que possam ser aterrorizados é o roteiro de numerosas narrativas populares.

Pense nos filmes da tríade de Mad Max, em "O Mensageiro" e "O Segredo das Águas", em "Fuga de Los Angeles" ou "Fuga de Nova York", ou no romance "The Stand" ("A Dança da Morte"), de Stephen King. Pense em videogames como "Duke Nukem" ou "Doom".

Não conheço um adolescente que, em alguma vez, não tenha sonhado com a destruição do mundo (o mundo em que confiamos) e com a aventura de um recomeço radical.

A primeira tarefa é sempre a de armar-se, porque, num universo zerado, não vale o prestígio dos anos ou da experiência, do saber ou do dinheiro: a autoridade é justamente reduzida à sua expressão mais simples e mais facilmente contestável, que é a força.

Qual é o charme desse momento do lobo?

Acontece que o amor que nos acolhe no mundo, instituindo nossa confiança em "alguém que cuida", torna-nos devedores ou, no mínimo, reféns de um passado que é a história dos outros que já estavam lá e nos receberam. Por isso a catástrofe que acaba com nossa confiança no mundo é a última fronteira da autonomia: se não há mais alguém que cuida, ninguém nos antecede, ninguém está acima da gente: somos livres como só pode ser livre quem não tem história.

É a versão extrema do mito, moderno e banal, do "self-made man", o homem que não precisa de ninguém.

Aposto que, nas ruas de Nova Orleans, há alguns desapontados com a volta gradual a um mundo "confiável".

quinta-feira, 1 de setembro de 2005

"2 Filhos de Francisco" e meu gosto pela música sertaneja

Confesso que sempre gostei de música country.

Na trilha sonora da minha infância, na Itália do começo dos anos 50, destacavam-se duas músicas do grande Roy Acuff: "Night Train to Memphis" (o trem noturno para Memphis), que é uma invitação à viagem, e "That's what Makes the Jukebox Play" (é isto o que faz tocar a jukebox), que é uma arranca-lágrimas. Penei para transcrever as letras; depois disso, cantava junto (para desespero de meus familiares).

Mais tarde, gostando do cinema western, fui tomado de paixão por Gene Autry. Traduzir western por bangue-bangue é péssimo: na temática western, como na country, o que importa não são os tiros, mas a vontade de colocar o pé na estrada, as insídias do caminho (bandidos, neve e sol do deserto) e, é claro, a saudade.

Depois de um período em que preferi a canção italiana e o pop, descobri Bob Dylan, em 1964, com "The Times They Are A-Changin'" (os tempos estão mudando), primeiro hino da contracultura. Bob Dylan não é só um cantor country, mas foi graças a ele (e a James Taylor -"Sweet Baby James" ainda é um de meus discos preferidos) que voltei à minha paixão da infância. Desde então, sou fã de Willie Nelson.

Logicamente, uma vez instalado no Brasil no fim dos anos 80, a música sertaneja me conquistou. Mas meu gosto era inconfessável: nos meios que eu freqüentava, escutar Leandro e Leonardo e, logo depois, Zezé di Camargo e Luciano era considerado um sinal de extrema vulgaridade musical. Minha simpatia pelo country americano era aceitável, mas gostar dos sertanejos nacionais, isso era outra história.

Ora, o Brasil, que eu saiba, é o único país que produziu e produz uma música country (a sertaneja) que rivaliza com o country norte-americano. Há razões para isso: o tamanho e a diversidade do território (que ainda comporta áreas selvagens), o passado bandeirante, a origem de larga parte do povo na saudosa viagem do imigrante e a urbanização acelerada, que acarreta uma brutal mobilidade geográfica e social (mais viagens e mais saudades). Esse repertório temático country encontrou, no Brasil, o gênio musical que todos verificam na riqueza da MPB.
Aposto que, se nossas duplas sertanejas cantassem em inglês, elas triunfariam em Nashville como triunfam em Barretos. Mas sempre encontro alguém para me "explicar" que a música sertaneja é "caipira", ou seja, não toca aquelas cordas universais do sentimento que fazem a grandeza do country americano.

Pois bem, os que acreditam na "inferioridade" da música sertaneja deveriam assistir a "2 Filhos de Francisco", o esplêndido filme de Breno Silveira.

A história de Zezé di Camargo e Luciano não é apenas comovedora: ela é a quinta-essência do espírito country (ou sertanejo, tanto faz). Há a roça da infância, que, na saudade da lembrança, aparece como paraíso perdido, embora fosse pobre e obcecada pela vontade de ir embora (é o desejo "louco" de Francisco para seus filhos). Há, na dureza da vida, o constante consolo da música, não como ocasião de devaneio, mas como vontade de dar à experiência a intensidade de um vibrato. Há a estranheza do encontro com a cidade, a dor de uma mudança que troca a miséria tranqüila do campo pela inquieta miséria urbana. Há a errância do menestrel pelo mundo, que cobra um preço, às vezes, fatal. Há a dificuldade de amar e a obstinada permanência dos afetos básicos, familiares.

Em suma, a história da dupla é um repertório quase completo dos temas de sempre da música country, que canta os sentimentos dos desterrados, ou seja, de todos nós, que vivemos na viagem entre a saudade e a esperança.

Mais uma questão: na história de Zezé e Luciano, é crucial o desejo de Francisco que os filhos se tornassem músicos e que a música os levasse longe, na vida e no mundo. É um pai que tem precedentes ilustres -entre eles, o pai de Mozart, o qual tinha uma vantagem: podia pagar as aulas para o filho. Francisco trocou um porco, uma colheita, sei lá quantos queijos e seu revólver por um violão e uma sanfona para os filhos. Será que ele era "doido", como pensava o sogro?

Em geral, não se aconselha os pais a terem um desejo tão definido sobre o futuro dos filhos. No entanto, o drama de muitos pais é que não conseguem transmitir aos filhos nem sequer a capacidade de desejar (seja lá o que for). E o fato é que Francisco conseguiu passar sua paixão para Mirosmar (Zezé), Emival e Welson (Luciano). Foi um fardo para eles? Pois é, desejar não é de graça.

Enfim, é banal ler, em textos de auto-ajuda, que, à força de desejar, a gente consegue: quem não larga o osso é recompensado um dia. Aviso: não é verdade. A "loucura" de Francisco e a paixão que ele transmitiu a seus filhos não garantiam nada: eles poderiam fracassar. A intensidade do desejo não leva necessariamente ao sucesso.

Mesmo assim, há uma boa razão para desejar com força: quase sempre, quem não se atreve a querer "doidamente" sofre da única culpa que a gente nunca se perdoa, a culpa de não ter ousado viver segundo nosso desejo.