Domingo assisti a "Deus É Brasileiro", de Cacá Diegues. Na porta do cinema, por telefone, um amigo tentava me dissuadir de entrar, por princípio. Seu preconceito contra filmes brasileiros deve ser parecido com o sentimento que, na minha adolescência, em Milão, me fazia detestar o cinema italiano, sobretudo as comédias. A maioria dos filmes me apresentava uma imagem da Itália que não tinha nada a ver com minha vida e meus problemas de jovem de classe média urbana. E essa imagem me cobria de uma espécie de vergonha. Parecia-me que a cultura nacional transformava nossos atrasos em risadas e em falsa glória. Um pouco como se resistíssemos à modernização recorrendo ao grotesco de nossa miséria e apresentando-o ao mundo para que achasse graça.
Em suma, entendo o preconceito do meu amigo, mas espero que, graças a esta coluna, ele veja o filme de Cacá Diegues. Eis a história: Deus procura um santo para quem ele possa entregar as rédeas durante suas férias. Ele viaja por Pernambuco, Alagoas e Tocantins com a ajuda de um jovem borracheiro endividado e de uma moça que quer ir embora para São Paulo. Homenagem aos atores: Antônio Fagundes voltará à minha memória a cada vez que, no futuro, me endereçar a Deus, Wagner Moura tem uma carga de simpatia despachada, e Paloma Duarte é o próprio enigma feminino, entre a amorosa, a santa e a possível prostituta.
À vista do resumo, meu amigo resistirá, pretextando que não quer descobrir o Brasil num passeio pelo Nordeste. Acrescentará que tem pouca simpatia pelo ufanismo: não tolera a junção da idéia de que Deus seria brasileiro com imagens de pobreza. Deve recear a mesma coisa que eu detestava no cinema italiano da época: a transformação da miséria num pitoresco exótico que definiria o país.
Mas o filme de Cacá Diegues não é nada disso. Saí do cinema comovido e alegre, não por ter descoberto sei lá qual Brasil, mas por ter encontrado o deus certo: vi o filme como uma obra de teologia (claro, sem as aporrinhações do gênero).
O Deus brasileiro é narcisista, capaz de ternura, irascível e, sobretudo, perdido e impotente diante da complexidade do mundo. Anota num caderno as coisas tortas que ele gostaria de endireitar, mas é óbvio que são apenas detalhes: o emaranhado de dor, santidade, feiúra e bondade não deixa espaço para uma reforma total. Aliás, talvez esse emaranhado constitua, em sua complexidade, a graça do mundo.
Aparece assim uma divindade para os dias de hoje, o Deus do qual precisamos, não como recurso, mas como modelo. Pois, embora seja cheio de si, ele encarna uma qualidade da razão que está fazendo falta: a humildade.
Nos últimos tempos, somos agredidos pelas prepotências assertivas. Os debates nacionais e internacionais tornaram-se vulgares pela simplificação, que é efeito da soberba.
Exemplifico. Ouço os que dizem que o programa Fome Zero resolverá os problemas da miséria no país e no mundo, como se não fosse um gesto generoso entre outros. Também ouço os que, nos desacertos do programa e em seu valor de propaganda, encontram o argumento decisivo contra o espírito do novo governo. Ouço os que levantam o punho declarando que Lula mudará a estrutura social e econômica do país. Ouço também os que apontam para a alta dos juros e declaram que não mudará nada. Ouço os pacifistas que acreditam cegamente no poder da razão diplomática e não pegariam as armas contra monstro nenhum. Ouço também os que pedem guerra para resolver logo um conflito que, de qualquer forma, nos espreita. Ouço os que são convencidos a agir só por razões sublimes e acusam Bush de agir por interesse. Também ouço os que acreditam que os EUA sejam o porta-estandarte do Iluminismo. E não há diálogo.
Ora, quem não tem um conhecido que vocifera sua opinião antes de saber qual é o tema da conversa? Podemos generosamente reconhecer que o tal conhecido é frágil a ponto de gritar para convencer-se de que ele existe.
Mas admitimos dificilmente que esse conhecido é nossa caricatura. Opinar sem escutar nem os interlocutores nem a complexidade do mundo é esporte de massa. Narcisistas, cronicamente dependentes do olhar dos outros, somos todos frágeis. E escondemos nossa fragilidade atrás de convicções cortantes. Somos as vítimas perfeitas das sondagens de opinião: você é contra ou a favor? A resposta certa seria, quase sempre, "Não sei". Mas pouco importa a questão em pauta, a urgência é afirmar que somos alguma coisa: pertencemos aos "contra" ou aos "a favor".
Talvez o Deus de Cacá Diegues tenha descido à Terra para lembrar à gente que ele mesmo não entende quase nada de como anda o mundo e, sobretudo, não faz milagres. Nisso ele é como a gente. Mas, à diferença de nós, consegue ser narcisista e inseguro a ponto de pagar quem o elogia, sem por isso se consolar com certezas fictícias. Nisso ele merece ser Deus.
PS: Falando em milagres, houve, na segunda-feira, a entrevista de Paul Singer na Folha. Se todos conseguíssemos adotar seu estilo, o mundo seria um bocado melhor.
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