Em outubro passado, foi publicado nos EUA "The Emerging Democratic Majority" (a maioria democrata emergente), de J. Judis, R. Teixeira e R. A. Teixeira.
Os autores prometem que, a curto prazo, os EUA serão um país progressista: nas próximas décadas, o Partido Democrata governará incontestado. Para chegar a essa conclusão, eles recortaram o país em "ideópoles", grupos definidos pelas idéias que neles prevalecem. Logo, mostram que os grupos em que dominam as idéias próprias aos eleitores democratas crescem demograficamente mais que as "ideópoles" republicanas. Por exemplo, cresce a população hispânica, aumentam as mulheres que trabalham, assim como cresce o número de cidadãos que passam por uma universidade. E esses grupos tendem a pensar como democratas. Rapidamente, eles constituirão uma maioria esmagadora.
Gosto da previsão, mas as idéias que supostamente definem os eleitores como democratas me inspiram um vago mal-estar. Identifico-me com muitas delas, compartilho-as, acho-as importantes, mas elas não definem exatamente uma escolha política.
Para explicar minha perplexidade, recorro a uma história que foi evocada várias vezes no debate ao redor do livro. Em 1996, a campanha pela reeleição de Bill Clinton se serviu de uma sondagem peculiar. Para saber como os eleitores votariam, eram colocadas cinco perguntas: 1) Você pensa que a homossexualidade seja moralmente errada? 2) Você faz uso pessoal de pornografia? 3) Você consideraria com desprezo alguém que tivesse uma relação extraconjugal? 4) Você acredita que o sexo antes do casamento seja moralmente errado? 5) A religião é importante na sua vida? Quem respondia "não" a todas as perguntas, exceto a segunda, era um eleitor de Clinton. Quem respondia "sim" a todas e "não" à segunda era um eleitor de Bob Dole.
As respostas eram um indicador de voto mais confiável do que a posição econômica e social do eleitor. Conclusão possível: o que domina a vida política americana, hoje, não seriam nem as diferenças de posses e lucros nem os projetos contrapostos de organização política, mas as opções morais.
Cuidado: não se trata de uma anomalia dos eleitores americanos. Estamos um pouco no mesmo barco. Por exemplo, eu sou favorável à liberalização do aborto; no mínimo, não quero que a prática seja acessível apenas a quem pode pagar por baixo da mesa. Ora, se pudesse escolher entre um partido progressista que não se preocupasse com isso e um partido centrista que defendesse a liberalização, em quem votaria? Situação parecida para um católico progressista: se seu partido de esquerda preferido promovesse a liberalização, ele, oposto ao aborto, talvez votasse com os conservadores.
Se essa não for uma aposta significativa para você, substitua a liberalização do aborto por qualquer coisa que seja central na sua vida privada: o acesso à pornografia, a existência de bares gay ou de clubes de swing, a prática de suas fantasias sexuais preferidas etc. E veja se isso não seria, para você, uma razão de decidir seu voto.
Em suma, Judis, os Teixeiras e os conselheiros de Clinton se serviram de um fato cultural que é, hoje, comum: nossas escolhas políticas dependem bastante de opções morais na esfera da vida privada. Votamos e militamos por motivações, em grande parte, íntimas e subjetivas: a generosidade, a vontade de gozar do jeito que gostamos e por aí vai.
Durante as últimas quatro décadas, essa mudança apareceu como uma conquista. E foi mesmo. Desde os anos 60, as escolhas da vida privada invadiram os debates de política pública; não é mais possível fazer política sem levar em conta as exigências da intimidade. Aliás, pode-se argumentar que o último grande projeto político (o socialista) dançou porque, onde se realizou, não quis escutar essas exigências.
Sem nenhuma ironia, eu consideraria politicamente progressista um governo que transformasse o Ibirapuera numa cópia (melhorada) do Bois de Boulogne, com cantos reservados para os prazeres noturnos ao ar livre de cada gosto. Mas seria estranho que essa consideração resumisse minha orientação política. Cadê as idéias sobre, sei lá, a organização do trabalho, a propriedade, as decisões coletivas, as responsabilidades e as recompensas sociais?
O que aconteceu com nossa capacidade de inventar projetos propriamente políticos?
A resposta habitual é, de fato, uma constatação do triunfo do liberalismo: o modelo dominante funciona, não há outro projeto. Portanto, vamos aprimorá-lo com enfeites de sentimentos e tripas.
Poderia concordar. Mas sobra uma dúvida: talvez a explosão das exigências subjetivas seja responsável por nossa crescente incapacidade de pensar propostas propriamente políticas.
Talvez ela nos obrigue a conceber a coletividade só a partir do indivíduo. Talvez, em suma, o triunfo contemporâneo da subjetividade tenha produzido um eclipse da razão política.
P.S.: Michel Foucault dizia que os discursos da liberação certamente libertam, mas também renovam (e aprimoram) a máquina do poder.
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