quinta-feira, 30 de junho de 2011

Passeatas diferentes




Por que alguém desfila para pedir não liberdade para si mesmo, mas repressão para os outros?


DOMINGO PASSADO, em São Paulo, foi o dia da Parada Gay.
Alguns criticam o caráter carnavalesco e caricatural do evento. Alexandre Vidal Porto, em artigo na Folha do próprio domingo, escreveu que, na luta pela aceitação pública, "é mais estratégico exibir a semelhança" do que as diferenças, pois a conduta e a aparência "ultrajantes" podem ter "efeito negativo" sobre o processo político que leva à igualdade dos homossexuais. Conclusão: "O papel da Parada é mostrar que os homossexuais são seres humanos comuns, que têm direito a proteção e respeito, como qualquer outro cidadão".
Entendo e discordo. Para ter proteção e respeito, nenhum cidadão deveria ser forçado a mostrar conformidade aos ideais estéticos, sexuais e religiosos dominantes. Se você precisa parecer "comum" para que seus direitos sejam respeitados, é que você está sendo discriminado: você não será estigmatizado, mas só à condição que você camufle sua diferença.
Importa, portanto, proteger os direitos dos que não são e não topam ser "comuns", aqueles cujos comportamentos "caricaturais" testam os limites da aceitação social.
Nos últimos anos, mundo afora, as Paradas Gays ganharam a adesão de milhões de heterossexuais porque elas são o protótipo da manifestação libertária: pessoas desfilando por sua própria liberdade, sem concessões estratégicas. É essa visão que atrai, suponho, as famílias que adotam a Parada Gay como programa de domingo. A "complicação" de ter que explicar às crianças a razão de homens se esfregarem meio pelados ou de mulheres se beijarem na boca é largamente compensada pela lição cívica: com o direito deles à diferença, o que está sendo reafirmado é o direito à diferença de cada um de nós.
O mesmo vale para a Marcha para Jesus, que foi na última quinta (23), também em São Paulo. Para muitos que desfilaram, imagino que a passeata por Jesus tenha sido um momento de afirmação positiva de seus valores e de seu estilo de vida -ou seja, um desfile para dizer a vontade de amar e seguir Cristo, inclusive de maneira caricatural, se assim alguém quiser.
Ora, segundo alguns líderes evangélicos, os manifestantes de quinta-feira não saíram à rua para celebrar sua própria liberdade, mas para criticar as recentes decisões pelas quais o STF reconheceu a união estável de casais homossexuais e autorizou as marchas pela liberação da maconha. Ou seja, segundo os líderes, a marcha não foi por Jesus, mas contra homossexuais e libertários.
Pois é, existem três categorias de manifestações: 1) as mais generosas, que pedem liberdade para todos e sobretudo para os que, mesmo distantes e diferentes de nós, estão sendo oprimidos; 2) aquelas em que as pessoas pedem liberdade para si mesmas; 3) aquelas em que as pessoas pedem repressão para os outros.
O que faz que alguém desfile pelas ruas para pedir não liberdade para si mesmo, mas repressão para os outros?
O entendimento trivial desse comportamento é o seguinte: em regra, para combater um desejo meu e para não admitir que ele é meu, eu passo a reprimi-lo nos outros.
Seria simplório concluir que os que pedem repressão da homossexualidade sejam todos homossexuais enrustidos. A regra indica sobretudo a existência desta dinâmica geral: quanto menos eu me autorizo a desejar, tanto mais fico a fim de reprimir o desejo dos outros. Explico.
Digamos que eu seja namorado, corintiano, filho, pai, paulista, marxista e cristão; cada uma dessas identidades pode enriquecer minha vida, abrindo portas e janelas novas para o mundo, permitindo e autorizando sonhos e atos impensáveis sem ela. Mas é igualmente possível, embora menos alegre, abraçar qualquer identidade não pelo que ela permite, mas por tudo o que ela impede.
Exemplo: sou marido para melhor amar a mulher que escolhi ou sou marido para me impedir de olhar para outras? Não é apenas uma opção retórica: quem vai pelo segundo caminho se define e se realiza na repressão -de seu próprio desejo e, por consequência, do desejo dos outros. Para se forçar a ser monogâmico, ele pedirá apedrejamento para os adúlteros: reprimirá os outros, para ele mesmo se reprimir. No contexto social certo, ele será soldado de um dos vários exércitos de pequenos funcionários da repressão, que, para entristecer sua própria vida, precisam entristecer a nossa.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Drogas e gravatas




Concordo com o projeto de descriminalizar o consumo de maconha, mas o uso da erva não é sempre inócuo


NA TERÇA, 14 de junho, a Folha publicou, na Primeira Página, as imagens de um homem de paletó e gravata que comprava e fumava um cachimbo de crack, numa rua do centro de São Paulo.

No último domingo, Suzana Singer, ombudsman do jornal, em sua coluna, perguntou: "Por que aFolha decidiu expor dessa forma um suposto viciado?". A Secretaria de Redação respondeu: "A política do jornal vinha sendo não resguardar a identidade dos usuários de crack em locais públicos. Não vimos motivo para alterarmos o padrão porque a personagem, desta vez, vestia paletó e gravata".

Em suma, a reportagem queria mostrar que "o fenômeno do crack não se confunde com a pobreza e não atinge apenas moradores de rua". A reportagem notava, aliás, que, entre os "usuários eventuais, que vão à região para fumar uma pedra", há até "senhores com cerca de 60 anos vestindo terno".

De repente, dei-me conta de que, ao longo dos anos, vi dezenas de fotografias de drogados errando pela cracolândia, mostrados sem disfarce, mas não tenho memória de seus rostos. É como se eles não fossem indivíduos -apenas genéricos "noias", como eles são chamados pelas ideias paranoicas que os acometem. No entanto, o engravatado da foto de terça-feira era diferente: ele era reconhecível, singular -talvez porque sua aparência deixava supor que ele não tivesse se transformado (ainda?) num noia.

O crack é hoje o protótipo da droga que leva rapidamente à perdição. Será que a foto do engravatado mostra que existem usuários de crack que não se tornam noias? Será que é possível um uso lúdico do crack?

Não sei dizer, mas, ao ler as memórias de Bill Clegg, "Retrato de um Viciado Quando Jovem" (Cia. das Letras), qualquer leitor pode sentir quase na pele a prepotência com a qual a fissura se instala ao centro da vida de um usuário de crack, por mais engravatado que seja.

O texto é comovedor, pela ingenuidade do viciado e de nós, leitores, que, como o viciado, inevitavelmente, a cada vez, acreditamos que ele voltará à sua vida depois de só mais um cachimbo. Comovedor e também exasperante: como é que o cara não consegue se controlar e conciliar sua vida amorosa e profissional com uma tragada de vez em quando? "Segura tua onda, rapaz", a gente fica a fim de gritar.

Trivialidade: a virulência da fissura, assim como a natureza da dependência, é diferente para cada droga. Engravatado à parte, o crack transforma quase imediatamente seus consumidores em adictos, enquanto há pessoas que, durante a vida toda, fumam só um cigarro ou um baseado por semana.

Outra trivialidade: talvez tão importante quanto as qualidades específicas de cada droga seja o fato de que, por alguma diferença de personalidade e disposição, há usuários que se perdem na toxicomania e outros que parecem nunca correr esse risco.

A clínica com adolescentes me ensinou isto: em geral, quem se vicia não é tanto quem acha sua vida dolorosa ou injusta, mas quem a acha chata, ou seja, quem não consegue se interessar por sua própria vida.

É possível se drogar porque a vida já é uma festa, e, quem sabe, com mais uma bola, ela se torne mais alegre. Essa conduta é sempre menos nociva da que consiste em drogar-se pela incapacidade de achar graça na vida que se tem. Quem se droga porque acha a vida chata tende a trocar a vida pela droga.

Nos últimos dias, fala-se muito da descriminalização da maconha. Estreou "Quebrando o Tabu", de Fernando Grostein; houve a intervenção de Fernando Henrique Cardoso (que é, aliás, âncora do filme de Grostein), e houve a liberação das marchas da maconha pelo STF. Vários leitores pediram que expressasse minha opinião.

Aqui vai: concordo com o projeto de descriminalizar o consumo de maconha, mas discordo de quem afirma que qualquer uso de maconha seria inócuo. Nos adolescentes, por exemplo, um consumo diário e intenso (solitário, já de manhã) é frequentemente o sinal de uma depressão que é MUITO difícil vencer, uma vez que ela se instala.

Entendo que alguém, mofando num tédio mortal (e inexplicado), chegue à conclusão de que a vida sem maconha é uma droga. Mas, infelizmente, em regra, a droga aprofunda o vazio que ela é chamada a compensar ou corrigir. Ou seja, talvez a vida sem maconha seja uma droga, mas a maconha sem vida também é.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Por que acaba um casal?




Nossa cultura romanceia o namoro, mas imagina o casamento como se fosse uma "tumba do amor"


NO DOMINGO passado, Dia dos Namorados, um amigo mandou flores para sua mulher com este bilhete: "Posso ser seu namorado ou continuo sendo apenas seu marido?".
A frase foi bem recebida. É que, para nós, "namorado e namorada" pode ser muito mais do que "marido e mulher". Em regra, nossa cultura romanceia o namoro, mas imagina o casamento como uma tragicômica "tumba do amor".
Na última sexta, na Academia de Ideias de Belo Horizonte, durante um bate-papo com João Gabriel de Lima sobre meu último livro, ao falar de amor e casais, eu propus o seguinte: 1) todos tendemos a amarelar diante de nosso próprio desejo; 2) o casamento nos permite acusar alguém de nossa própria covardia -assim: eu quero fazer isso ou aquilo, mas tenho preguiça e medo; por sorte, agora que me casei, posso dizer que desisto porque assim quer minha parceira; 3) um casal, para valer a pena, não deveria servir para justificar as desistências de nenhum de seus membros; ao contrário, ele deveria potencializar os sonhos e os desejos de cada um dos dois.
Uma mulher me lembrou, com razão, que até esse tal casal que vale a pena pode acabar. E perguntou: por quê?
Existe uma sabedoria popular resignada sobre a duração de um casal. Os sentimentos do namoro viveriam, no casamento, uma decadência progressiva inelutável. E os casais continuariam unidos mais por inércia do que por gosto.
Alguns dizem que a rotina e a proximidade desgastam os sentimentos. Ou seja, o apaixonamento sempre é fruto de alguma idealização, e de perto ninguém parece ideal por muito tempo. Será que o remédio seria manter a distância para não enxergar as falhas do outro?
Respondo: amar não significa não enxergar os defeitos do outro, mas achar graça neles. Uma amiga perde um celular por semana; ela sabe que uma relação amorosa está acabando no dia em que seu homem, em vez de achar graça na sua desatenção, irrita-se com seu descuido.
Outros acusam o tédio. A novidade (valor mor da modernidade industrial) seria o ingrediente essencial (e, por definição, efêmero) do casal feliz. Ou seja, felizes são só os recém-casados.
Respondo: todos nós, neuróticos, amamos a repetição e a praticamos com afinco. A rotina, portanto, não deveria nos afastar do amor.
Volto, portanto, à pergunta: por que um casal acaba? Levantei a questão no Twitter, e @M_Angela_ Jesus me escreveu que, segundo Anaïs Nin, os casais não morrem nunca de morte natural, mas por falta de cuidados, de atenções e de esforços.
A citação me levou a pensar nos meus próprios casamentos fracassados; não cheguei a resultado algum, salvo o fato de que não deveríamos chamar necessariamente de fracasso um amor que acaba; erigir a duração em valor é uma ideia perigosa, que pode transformar separações bem-vindas e necessárias em processos laboriosos e infinitos.
No meio dessas reflexões, no domingo, fui assistir a "Namorados para Sempre", de Derek Cianfrance, que me tocou fundo, por ser justamente a história de um amor que não é mais possível. Isso, sem que os protagonistas consigam saber por que "não dá mais": nenhum deles é o vilão da crise, e nenhum deles é capaz de dizer o que está errado e deveria mudar para que o casal tivesse uma chance.
A julgar pela idade aparente da filha, o casal do filme dura há mais ou menos cinco anos. Em cinco anos, os namorados que, no primeiro encontro, haviam dançado e cantado na rua, cheios de alegria e de encantamento, transformaram-se num casal de estranhos que se encaram antes de se enxergar.
O que aconteceu? Não há resposta. Essa é a força do filme, que acua cada espectador a se perguntar o que foi que aconteceu a cada vez que ele ou ela amou, e o amor se perdeu.
Não é preciso que haja discordância brutal, traição ou desamor para que um casal se perca. Claro, é sempre possível racionalizar e apontar causas: no caso do filme, ao longo dos cinco anos, talvez ela tenha "crescido" profissionalmente (como se diz) e alimente agora ambições que ele não pode compartilhar porque, para ele, o casamento e a filha continuam sendo as únicas coisas que importam. Pode ser.
Mas talvez o fim de um amor seja um fenômeno tão misterioso quanto o apaixonamento. Talvez existam duas mágicas opostas, igualmente incontroláveis, uma que faz e outra que desfaz. 

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Síndrome de Fukushima


A realidade dos dias de hoje é uma meleca maluca: quando você aperta a mão, ela foge entre os dedos


EM 12 e 13 de junho, os italianos votarão, num referendo, a favor ou contra o uso da energia nuclear.

Portanto, em Veneza, na semana passada, o assunto corria pelas ruas. Tanto mais que, entre as possíveis sedes de uma usina nuclear, há Chioggia, numa das duas entradas da laguna, a 20 km da Piazza San Marco.

Por um momento, imaginei um futuro em que hordas de turistas deambulariam pelos "campi" da cidade de macacão branco e capacete de astronauta. Não é novidade: também já imaginei como seria fazer esqui náutico nas águas de Angra vestindo o mesmo macacão e o mesmo capacete.
Em Veneza, durante a Bienal, é frequente que casas e comércios vazios hospedem uma obra ou uma exposição. Num desses espaços, bem perto de um estande da campanha antinuclear, visitei "Memory of Books" (memória de livros), de Chiharu Chiota, uma artista japonesa que mora na Alemanha.

A obra apresenta um escritório, com cartas e livros cobertos por uma gigantesca teia de aranha: é como se enxergássemos nossa vida (inclusive os esforços de nosso pensamento) na nostalgia, depois de nosso sumiço da face da terra, pessoal ou coletivo.
Veja em http://migre.me/4JyrK.

Bom, esse era meu estado de espírito quando assisti à primeira palestra de "The State of Things" (o estado das coisas), uma série de conferências que é uma das contribuições da Noruega à Bienal de Arte. Na introdução, Marta Kuzma, diretora da entidade norueguesa que se ocupa de arte contemporânea, falou da "síndrome de Fukushima" como traço específico de nossa época. Logo, tomou a palavra Jacques Rancière, filósofo francês que aprecio e leio; o título da conferência era "In What Time Do We Live?" (em que tempo vivemos?). Rancière falou muito rapidamente e num inglês de sua invenção própria (ao menos foneticamente). Não entendi nada, mas acabei gostando, justamente porque não foi uma palestra, foi uma performance artística, uma demonstração lúdica de que nosso melhor pensamento, diante da complexidade do tempo em que vivemos, não passa de uma agitação sonora no dia depois da queda de Babel.

De repente, a expressão de Marta Kuzma me pareceu adquirir um novo sentido. A síndrome de Fukushima não designa os problemas dos quais padeceríamos por escolher o nuclear; ela designa a condição geral de nossos esforços discursivos e intelectuais (e também de nossa ação, claro) num mundo que apresenta sempre (e no mínimo) a mesma complexidade do acidente da usina nuclear japonesa.

Você se lembra da valsa de notícias e explicações depois do acidente? Teve um reator que vazou, mas está contido; não, parece que tem outro que está pior; por sorte, o resfriamento está funcionando; não, não está; a população não corre perigo; a população está sendo evacuada; não tem vazamento; só tem um pouco de radiações na terra ao redor da central; tem também nos legumes; tem no mar; não foi o terremoto, foi o tsunami; não foi o tsunami, foi o terremoto; é Tchernobil, de novo; não, é mais tipo Goiânia etc.

Certo, houve uma vontade de não alarmar excessivamente as populações, quem sabe negando a gravidade do que estava acontecendo, mas não acredito em nenhum plano explícito de ocultação. A ideia de um complô do silêncio seria, aliás, uma grande consolação, pois, se houvesse complô, haveria um desvendamento possível da verdade dos fatos e das responsabilidades. Quem dera.

De fato, a dificuldade contemporânea (mas que eu não trocaria por nenhuma volta ao passado) não é tanto o silêncio imposto (de fora ou de dentro) quanto o excesso de variáveis. E quanto maior for o número de variáveis que contam na nossa visão da realidade, tanto mais vão será o trabalho de entender e inventar conceitos.

"Conceito", aliás, vem do latim "cum capio", que sugere a ideia de conseguir pegar várias coisas ao mesmo tempo, num punho. Talvez a culpa seja nossa, por querermos e sabermos levar em conta demasiados fatores (ingredientes?) na hora de entender e decidir, mas o fato é que a realidade contemporânea se parece com uma meleca maluca: quando você aperta a mão, ela passa entre os dedos e foge da presa.

É isso que fiquei com vontade de chamar de síndrome de Fukushima, o efeito de uma complexidade (nas coisas e na gente) que pode transformar os discursos teóricos em performances sonoras.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Mas isto é arte?




Chegamos à Bienal nos perguntando se "aquilo" é arte, mas nos museus nos sentimos em santuários


SÁBADO, DIA 4, abre as portas a 54ª Bienal de Arte de Veneza. Gosto do clima cultural antes da abertura (nos jornais, na televisão e nos bares de Castello vingam as polêmicas sobre os curadores, os artistas convidados etc.). Em compensação, na cidade, a abertura é uma chatice: sentados às mesas dos restaurantes mais luxuosos ou plantados na popa das lanchas que servem de táxi, aparecem de repente centenas de personagens que talvez sejam artistas, curadores e intelectuais do mundo inteiro -mas acontece que, para ter cara de artistas, curadores etc., eles se esforçam tanto que parecem ser figurantes pagos por uma agência de turismo local.

Enfim, fico em Veneza até amanhã. E voltarei em julho, quando, passada a primeira semana de glamour, tanto a Bienal quanto as numerosas paralelas estarão abertas e quase desertas -até novembro.

Não sei mais quantas Bienais de Arte de Veneza visitei. Tudo indica que a deste ano será boa, mas, agora, o que me interessa é este fato, que se repete a cada dois anos: nos dias antes de a mostra abrir, a imprensa italiana descobre as primeiras obras que chegam à cidade e sempre pergunta: "Mas, afinal, isto é arte?".

Claro, ninguém consegue responder, nunca. E eu acho ótimo que seja assim.

Corajoso, o crítico Achille Bonito Oliva (no jornal "La Repubblica" de 28 de maio) propôs um catálogo de sugestões ou critérios, que me inspiraram alguns comentários.

1. "É preciso chegar diante da obra desarmados, ou melhor, com um preconceito favorável." A sugestão me fez pensar, paradoxalmente, no excesso de preconceito favorável com o qual, em regra, nós nos aproximamos da arte "clássica". Enquanto entramos numa Bienal perguntando, irônicos, se "aquilo" é arte, entramos nos museus como se fossem santuários. No entanto, há muitas obras dos últimos seis séculos que são formalmente falidas e triviais pelo tema.

Gostaria que, na hora de visitar um museu, a gente pudesse deixar nosso preconceito favorável no vestiário e evitar se extasiar quando não há por quê. No museu da Accademia, na semana passada, uma mãe exasperada tentava incutir respeito (não apreciação: respeito) a um menino de sete anos que achava aquilo tudo muito chato; a cena acontecia diante de uma medíocre crosta do século 17. Não seria mau se nós mesmos aprendêssemos a entrar nos grandes museus (que às vezes são apenas museus grandes) com a irreverência de uma criança que não está a fim de ser entediada.

2. "A arte é forma... Se ela precisa de demasiadas explicações, de legendas, a obra faliu." Aplaudo: gosto de enriquecer minha experiência lendo sobre a de outros diante da mesma obra, mas a obra que PRECISA de um modo de uso é fracassada.

3. "A arte deve pensar o mundo", sugere Bonito Oliva. Concordo, mas sempre parecemos oscilar entre dois estereótipos: o do crítico e o do jornalista.
O estereótipo do crítico prefere ser incompreensível, talvez por medo de simplificar e reduzir.

O estereótipo do jornalista, preocupado com o conforto de seus leitores, resume a obra ao óbvio. Exemplo. Jennifer Allora e Guillermo Calzadilla, artistas norte-americanos, propõem (no pavilhão dos EUA) um tanque de guerra de cabeça para baixo com, em cima, uma esteira sobre a qual correrão (na abertura, suponho) os membros do time de atlética dos EUA.

Já houve jornalistas para decretar que a obra denuncia a guerra e propõe o esporte como alternativa. Caramba! Só para começar: talvez a obra afirme que guerra e esporte são misérias (ou glórias) comparáveis, duas faces da mesma medalha. E que tal se a denúncia dissesse que o horror da guerra não é muito pior do que o domínio exercido sobre nós pela ditadura higienista do corpo em forma?

Bonito Oliva conclui dizendo que "a arte é o domingo da vida", porque representa a suspeita de uma outra beleza, a esperança de um desconcerto. Por isso mesmo, preferiria dizer que a arte é o sábado da vida -na espera de domingos, que sempre decepcionam um pouco.

Enfim, a modernidade (é o que mais gosto nela) é a época da dúvida como valor. Ter uma conduta moral, para nós, significa não parar de se perguntar o que é justo e o que é errado. Da mesma forma, apreciar nossa arte talvez signifique não parar de se perguntar: "Será que isto é arte?".