domingo, 28 de dezembro de 2003

O governo somos nós

Acabou o primeiro ano do novo governo, e quase ninguém está satisfeito com a situação do país. No entanto, fato curioso, o governo mantém o mesmo índice de aprovação do primeiro trimestre.
Certo, a gestão é criticada, mas a forma básica de grande parte das críticas recorrentes é peculiar. Numa estranha frente unida (que vai da esquerda militante até a direita conservadora, incluindo os que aprovam a gestão), muitos acusam o governo de não fazer o que ele se propunha fazer. Ou seja, apontando contradições entre o espírito do projeto e a realidade da política econômica e social, essas críticas não adotam a forma usual: "Vocês não fazem o que nós gostaríamos". Mas afirmam: "Vocês não fazem o que vocês mesmos gostariam".

O sentido das queixas é diferente segundo a proveniência. Por exemplo, a extrema esquerda exige uma fidelidade absoluta à promessa de justiça social, a esquerda moderada pede apenas um maior respeito dessa promessa na hora dos compromissos necessários e os conservadores agitam a contradição entre promessa e realidade para desacreditar o governo ("Eles enganaram vocês: dobram-se às necessidades do neoliberalismo pior que a gente e distribuem ilusões como pães quentes"). Mas, além das diferenças, a forma é a mesma. O governo não é acusado de defender interesses escusos que tornariam nossa vida miserável.

Ele é acusado de ser, de alguma forma, infiel a si mesmo. Nisso, as ditas críticas ao governo federal se parecem com nossa autocrítica mais banal.

Afinal, somos constantemente divididos entre uma aventurosa vontade de mudança e escolhas conformistas que são as nossas, mas que nos frustram e com as quais não concordamos. Ou, então, entre grandes princípios nos quais acreditamos firmemente e comportamentos que adotamos (com uma certa vergonha) para proteger nossos interesses.
Quero justiça social já, mas não sou nenhum São Francisco, e a simples redistribuição não resolveria nada. Quero reforma agrária já, mas meu sítio é produtivo e, de qualquer forma, não basta assentar famílias; seria preciso criar uma rede de cooperativas, e isso é complicado.
Quero uma sociedade igualitária, mas três salários mínimos para a faxineira não tem como; se eu for obrigado a dispensar seus serviços, não vai ser pior?

Para explicar a dissonância entre nossos anseios e nossa realidade, acusamos a dureza impiedosa do mundo: gostaríamos de ser generosos e revolucionários, mas, se fôssemos, a realidade nos atropelaria. A desculpa não é maquiavélica. De fato, o mundo não é mole: ele nos força a desistir do que nos parece certo e racional em favor do que é apenas razoável.

Em geral, aguentamos os compromissos aos quais nos resignamos graças a um reforço retórico, a uma dose extra de declarações de intenções e de princípios.

Somos todos (ou quase) José Dirceu ou Palocci na hora dos apertos do fim do mês. Somos todos (ou quase) Lula na hora de declarar guerra à fome ou ao desemprego e de chorar evocando o homem do lixão que come melancia descartada.

Exatamente como o governo, quando apresentamos nossa face ao mundo (e a nós mesmos), esquecemos nosso pragmatismo (ele nos é imposto, não é bem "nosso") e nos imaginamos e proclamamos grandiosamente generosos, embora impedidos.

A oscilação entre entusiasmos revoltados e inércia conformista é uma herança de nossa adolescência. Tivemos que decidir (e talvez estejamos eternamente decidindo) se, para nos tornarmos adultos, é melhor imitar os genitores, sacrificando nossa individualidade, ou contrariá-los, encontrando a prova de nossa autonomia na decepção e no desespero dos pais.
A solução mais popular consiste em tomar o caminho de uma "normalidade" que nos garante algum conforto e que corrigimos com sobressaltos de rebeldia espetacular.

Por exemplo, estudo, sei lá, direito constitucional, mas, à noite, saio na balada com os Gaddafis da vida. Por mais que estejamos infelizes com a situação, o governo atual nos satisfaz, não por suas realizações, mas porque ele encena nossas próprias contradições.

É um conforto constatar que as mulheres e os homens que elegemos se dobram às mesmas necessidades que nós acusamos de frear nossos impulsos generosos e libertários.

Claro, a contradição não nos deixa tranquilos. Na hora dos compromissos, somos atormentados pela voz da consciência. Talvez por isso surja uma simpatia quase unânime (inclusive nas fileiras da direita) pelos excluídos e demissionários do PT.

Aproveitamo-nos dessa ocasião para tomar as dores de nossa parte rebelde. Podemos torcer por nossas Heloísas Helenas e nossos Gabeiras internos sem risco algum, pois o governo (e não nós) se encarrega de silenciá-los e, portanto, leva a culpa.

A mesmice social-democrata não satisfazia nosso anseios radicais de mudança e de justiça. Um regime que seguisse só esses anseios seria provavelmente catastrófico.
O governo do PT inventa uma nova fórmula, adequada à nossa divisão subjetiva: a social democracia neoliberal com retórica radical da esperança.

Estamos insatisfeitos com o governo assim como estamos insatisfeitos com nossas próprias contradições. E o governo está próximo do povo como nunca, pois, pela felicidade da nação, ele é nosso retrato.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

É Natal

Os primeiros Natais de minha infância foram momentos encantados. Ou, ao menos, é assim que me lembro deles.

No dia 24, de tarde, cada escrivaninha e console da casa era levado para a sala de jantar e servia para encompridar a mesa, de maneira a acomodar os 20 e tantos familiares e amigos de sempre. Logo começava a preparação do peixe. Meu irmão e eu ajudávamos meu avô na tarefa selvagem de tirar a pele das enguias, que eram o prato tradicional e que nenhum de nós gostava de comer. Antes de ir para a cama, nós, as crianças, preparávamos, perto da árvore, uma mesinha: um copo de vinho branco, um prato com uma fatia de bolo e um pequeno guardanapo. No chão da entrada, colocávamos uma bacia com água e outra com duas ou três cenouras. O bolo e o vinho eram para o menino Jesus. A água e as cenouras eram para a mula que o carregava.

Acordávamos de madrugada, pela ânsia de ver os presentes e de constatar a mágica passagem do menino Jesus. A casa estava deserta, os presentes brilhavam embaixo da árvore, o copo de vinho tinha sido em parte (só em parte) bebido, a fatia de bolo tinha sido mordida, assim como as cenouras. Havia, sempre, em algum lugar do corredor, uma poça: a mula, coitadinha, tinha feito xixi. Da porta de entrada até a árvore, espalhava-se um rasto de folhas e pétalas de flores, que, aparentemente, o menino Jesus deixava atrás de si, por onde passasse.

Não sei por que, na nossa família, era o menino Jesus, e não Papai Noel, que trazia os presentes. A coisa era ainda mais curiosa por meu pai ser declarada e ferozmente ateu. E minha mãe o acompanhava.

Menino Jesus ou não, era bom fazer de conta: o ritual era um segredo de família que celebrava o milagre de estarmos juntos. Também era um alívio constatar que nem todos os presentes vinham de meus pais. E era gostoso acreditar numa certa benevolência do mundo ou de seu criador: havia ao menos um dia no ano em que, indo para a cama cedo e forçando-se a fechar os olhos, alguém, no meio da noite, faria o necessário para que acordássemos felizes.

Houve Natais em que o encanto se perdeu. Num deles, bem perto da meia-noite, morreu de repente o pai de meu melhor amigo. Meu pai saiu correndo com sua bolsa de médico; a festa parou. Nós descobrimos que, às vezes, não só a mula, mas o próprio menino Jesus se esquecia (de alguém, no caso). Os presentes, na manhã seguinte, estavam lá; mas eu não sabia o que fazer com eles. Também estava lá Alessandro, meu amigo do peito, órfão.

E houve outros Natais em que explodiram brigas de família incompreensíveis (para nós). Um tio que saiu batendo a porta porque não gostou do lugar que sua mulher ocupava na mesa ou uma nora que não se dava com a sogra. Esperávamos demais e, à força de querer (e simular) harmonia para a família e o mundo inteiro, vivíamos decepções fellinianas se algum detalhe atrapalhasse o cartão-postal natalino.

Mais tarde, chegaram os anti-Natais da adolescência. Eram proclamações indignadas contra a família. Valia qualquer coisa para contrariar o espírito dos Natais da infância: Natal numa boate? Natal num prostíbulo? Natal jogando pôquer num boteco?

Ou, então, eram proclamações políticas: Natal numa célula de militantes, Natal com amigos e companheiros, sem festa, sem árvore e cheio de conversas sobre as armadilhas "alienantes" do consumo.

Alguns anos atrás, no dia 25, acordei muito cedo, embora soubesse que ninguém viera, no meio da noite, depositar presentes embaixo da árvore. O apartamento estava deserto, todos dormiam ainda. Atravessei a sala assim como costumo dormir, de camiseta, sem pijama. Olhei com carinho para os restos do jantar da noite anterior e liguei a máquina do café. Não sei por que, achei graça enfiar na cabeça um chapéu de Papai Noel que estava em cima da mesa. Logo fui buscar o jornal na porta de casa, caso ele já tivesse chegado.

Por precaução pudica e por preguiça de vestir uma calça ou mesmo uma cueca, tentei inventar um jeito de apanhar o jornal sem impor minha nudez aos (improváveis) vizinhos que estivessem circulando pelo prédio às 6h do dia de Natal. Ajoelhado, abri a porta e estendi o braço; o jornal estava lá, mas longe demais. Insinuei o ombro na abertura, mas não bastou. Avancei mais, sempre ajoelhado, até que, empurrado pela própria porta, que é comandada por uma mola que a fecha automaticamente, estava mais fora do que dentro do apartamento. Por sorte, o batente não fechou atrás de mim. No instante em que, enfim, coloquei a mão no jornal, escutei um barulho. Levantei os olhos: bem na minha frente, um vizinho, também ajoelhado e seminu, era vítima da mesma manobra. Ficamos imóveis um longo momento, até que, de jornal na mão, desejei-lhe "feliz Natal" e recuei.

Cinco minutos depois, sentado contra a porta fechada do meu apartamento, ainda estava rindo, constatando que, durante esse estranho encontro, ficara não só meio nu, de camiseta, mas também de chapéu de Papai Noel.

É um bom retrato de meus Natais de hoje. O chapéu representa uma certa fé no ritual que afirma a permanência dos afetos familiares e das amizades, mas sem esquecer que o espírito de Natal não ganha das notícias do dia (o jornal na mão) nem dos desejos que nascem abaixo da cintura (às vezes estamos sem cueca).

Feliz Natal a todos.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2003

Quem julgará Saddam Hussein?

Resumo alguns sentimentos modernos em matéria de justiça.

O julgamento que conta é o de nossa consciência. A prova disso: fazemos, desde o século 17, uma bela diferença entre o que é legal e o que é justo. Condenados por excesso de velocidade na Dutra, entendemos que 130 km/h seja ilegal, mas nós conhecemos as razões de nossa pressa e só nós sabemos se, ilegal ou não, nossa velocidade era justa ou injusta.

As coisas eram mais simples quando, nem tanto tempo atrás, achávamos que a decisão podia ficar na mão de um Deus que se expressaria publicamente. Acusados, caminharíamos sobre a brasa e seríamos inocentados se nossos pés não queimassem.

Também devia ser mais simples quando podíamos delegar a justiça (não apenas a legalidade) a um sábio, príncipe ou representante de Deus, ao qual reconheceríamos o poder de proclamar, incontestado, se somos culpados ou inocentes.

Esses recursos não valem para quem, como a gente, erige o foro íntimo em corte suprema.
Ora, tantas cortes singulares e inevitavelmente contraditórias não poderiam regrar eficazmente nossa vida social; nos resignamos, portanto, a um compromisso: consideramos justo e toleramos que um júri de outros humanos (cujo foro íntimo seria comparável ao nosso) escute as acusações e os argumentos de defesa e, assim, nos condene ou nos inocente.

Detalhe crucial: os sentimentos que acabo de resumir são uma realidade cultural. Valem para nós, ocidentais e modernos, que 1) damos sentido ao mundo a partir de certezas (ou dúvidas) subjetivas e 2) acreditamos que todos os homens sejam nossos semelhantes.

Essas considerações teriam sido pouco relevantes no processo de Nuremberg. Os nazistas eram tão ocidentais e modernos quanto nós. Ou seja, foi-lhes imposta uma justiça nos moldes da cultura da qual eles também eram o produto. O mesmo vale para o processo em curso contra os responsáveis por crimes contra a humanidade na Bósnia.

A expressão "crime contra a humanidade", aliás, tem um duplo sentido. Designa um crime tão abominável que a humanidade inteira é ferida pela crueldade dos atos. Mas designa também e talvez sobretudo um crime contra a idéia de humanidade, ou seja, contra a idéia de que, além ou aquém de nossas diferenças religiosas, nacionais etc., somos semelhantes, membros de uma mesma espécie. Perseguir, exterminar uma população por sua diferença significa negar a existência da comunidade dos humanos, quebrar um pressuposto que talvez seja a melhor conquista de nossa cultura.

Pode-se dizer que um tribunal de "pares" julgou os nazistas porque quebraram uma regra da cultura à qual eles mesmos pertenciam. O mesmo vale para Milosevic e companhia.

A história de Saddam Hussein talvez seja um pouco diferente. O Iraque é uma criação da cultura ocidental: esquecidos de que a comunidade da espécie humana é uma invenção cultural, os ocidentais acreditaram que na Mesopotâmia, no caso, seria possível a coexistência, numa mesma nação, de diferenças étnicas (árabes e curdos) e religiosas (sunitas e xiitas).

Saddam topou o mandato, mas não seu pressuposto. Governou sua "nação" como um chefe tribal, ou seja, exclusivamente em prol de sua família e de sua tribo, a minoria sunita. Reprimiu e exterminou xiitas e curdos. Perseguiu os opositores como se não fossem gente. É um crime contra a idéia de humanidade. Mas esse crime vale na consciência ocidental moderna. Será que é essa a consciência de Saddam?

Não tenho nenhuma compaixão. Quer a gente condene ou não a intervenção americana no Iraque, não derramo lágrimas por um tirano. Desejo-lhe o destino que desejo a todos aqueles que ameaçam o que nossa cultura inventou de melhor.

Mas acho desastroso que esqueçamos o seguinte: a Justiça que o condenará não será uma Justiça absoluta, que não existe, mas a nossa, ocidental e moderna. O tribunal que se reunirá para julgá-lo será uma emanação de nosso expansionismo cultural. Não lamento que seja assim. Mas lamento que possamos, como acredito que acontecerá, negar mais uma vez a diferença e o conflito cultural que se expressarão no julgamento.

Gostaria, em suma, que nossa cultura abandonasse sua extraordinária pretensão de ser não uma cultura, mas a voz de alguma "natureza humana".

Ao que parece, os atos de Saddam serão avaliados por um tribunal iraquiano. Isso satisfaz nosso sentimento de justiça, pois ele será julgado por um júri de seus "pares" e "semelhantes", não é? Mas pense bem: num eventual júri iraquiano, sentarão xiitas (que, para Saddam, são uma "tribo" oposta e, portanto, menos "humana" do que a sua) e curdos (que, para ele, devem ser uma sub-raça exterminável com a mesma emoção que nós sentimos ao erradicar o mosquito da dengue).

O Ocidente verá, nesse julgamento, a obra de uma Justiça imemorial e universal. O acusado verá apenas um conciliábulo de inimigos que têm o direito de dispor de sua vida não em nome da Justiça, mas em nome da força, ou seja, por ele ter sido derrotado.

Aposto que manterá a expressão perdida do chefe tribal desfilando acorrentado atrás do Exército vencedor.

E, falando em expressão, a cara de Saddam descabelado e barbudo, de olhar apagado, enquanto um médico de luvas de látex examinava seus dentes e repartia seus cabelos procurando lêndeas e piolhos, parecia estranhamente familiar. Era o protótipo do mendigo árabe nas ruas de Paris.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

Conselhos para encontrar um amor no verão

A cada ano, inelutavelmente, quando o verão se aproxima, a imprensa nos propõe pautas animadas por uma questão recorrente: como encontrar um amor (ou vários) neste verão?

Não são apenas incitações festivas a libidinagens estivais. Às vezes, aliás, elas são acompanhadas de conselhos para prolongar as paixões de verão e, quem sabe, transformá-las em amores eternos enquanto durem.

Seja como for, é aceita universalmente a idéia de que o verão seria a melhor estação para achar os parceiros ou as parceiras que fizeram falta no inverno.

Claro, durante as férias, todos têm mais tempo e disponibilidade para dedicar-se a essa tarefa. Mas a razão principal que faria do verão a estação dos namoros parece ser outra: no verão, a gente tira a roupa (ao menos em parte) e sai da toca. É o momento de ver e ser visto, de escolher e ser escolhido.

Deve ser por isso que uma parte relevante dos conselhos para um verão namoradeiro são, de fato, sugestões estéticas: como perder aqueles cinco quilos em três semanas, como achatar o estômago, como esculpir os abdominais, como tornear as pernas e arrebitar as nádegas, como conseguir um bronzeado natural e dourado, qual maquiagem usar na praia, como escolher a sunga ou o biquíni certos, como desembaraçar o cabelo depois da água salgada, como vestir-se nas baladas da noite e por aí vai.

Por que não? Afinal, para encontrar um namoro, é preciso seduzir, não é?

Certo, mas não deixa de me surpreender que os conselhos para encontrar companhia sejam quase sempre dicas para nossa aparência. Ou seja, a vontade de achar alguém com quem valha a pena ficar (ao menos um pouco) se traduz em anseios narcisistas. Saímos à procura de um outro para beijar e acabamos embaciando o espelho.

Poderia ser engraçado, se não fosse triste e regular, na volta das férias, o catálogo das decepções. Não havia ninguém que valesse a pena. Ou, se havia, não vi. Quer dizer, havia um cara que não parava de olhar, mas eu não devolvia, claro. Quando levantou e veio na minha direção, abracei-me à minha amiga: "Fala, fala, pelo amor de Deus, faz de conta que estamos num daqueles papos que não dá para interromper". Ou, então, havia, sim, aquela mulher que passava a cada dia na frente da varanda, mas eu ia lhe dizer o quê? "Com licença, minha senhora, estou sozinho e a fim de companhia"?

As praias e os calçadões dos balneários se transformam em arenas de um estranho jogo do desencontro: muitos convergem proclamando planos de amores e conquistas, todos desfilam para que os olhares cruzados confirmem a força de atração de seu "look", mas poucos se permitem um gesto que poderia alterar a máscara que eles compuseram para seduzir.

A razão dessa situação é simples. É possível que cuidemos de nossa imagem na intenção de agradar ao outro, mas esse cuidado é um obstáculo a qualquer encontro ou relação. A perfeição almejada e arvorada como instrumento de sedução seria inevitavelmente comprometida se revelássemos nosso desejo. A arma da sedução (minha imagem malhada, bronzeada e produzida para seduzir) me reserva uma sina de solidão, pois ela pede também que, sendo perfeito ou perfeita, eu mostre ao mundo que não preciso de ninguém.

A mulher que receia parecer atrevida ou pouco pudica, o homem que teme mostrar-se babaca de tanto carente são vítimas do mesmo impasse narcisista: as condições para eles serem desejáveis incluem a impávida demostração de que nada lhes falta.

Em suma, o narcisismo, querendo tornar todos (ou quase) desejáveis, impede a todos de desejar.
Pensando bem, como estação dos namoros, seria preferível contar com o inverno. Quem sabe, na penumbra de um bar, protegidos por casacos e cachecóis, a gente se esqueça um instante dos requisitos da fachada sedutora, baixe a guarda e consiga confessar faltas, desejos e vontades.
Uma lembrança. Aos 16 ou 17 anos, não me lembro direito, passei uma semana de férias em Rimini, na Riviera Adriática. Éramos um pequeno grupo de moços sedentos de aventuras, depois de um inverno de aulas de grego e latim. Todos imaginávamos e antevíamos paixões avassaladoras. Mas só um de nós as vivia: Jimmy, um jovem que nós não achávamos nem grande sedutor nem especialmente bom de papo, voltava a cada dia, ou melhor, a cada noite, para a pensão com uma companheira. O grupo reagiu desdenhosamente: afinal, as moças não eram aquelas deusas com as quais sonhávamos. Mas logo quisemos saber o segredo de Jimmy.

"Qual é o truque, o que você faz?" Jimmy explicou: ele abordava, sistematicamente e sem hesitar, todas as moças e as mulheres que lhe parecessem minimamente agradáveis. Claro, frequentemente a coisa não dava em nada. Ele era, cotidianamente, ignorado ou rechaçado 20, quiçá 30 vezes; para a população feminina do balneário, devia ser um estorvo, mas sempre havia ao menos uma para abrir o sorriso e aceitar um convite. Ficamos estupefatos: o segredo era que Jimmy não tinha medo de uma recusa, nem vergonha de seu desejo. Para ele, simplesmente, as feridas do amor-próprio contavam menos do que sua vontade de não ficar só.

quinta-feira, 27 de novembro de 2003

Em defesa de Michael Jackson

A mídia do mundo inteiro encheu as telas de nossos televisores com Michael Jackson acusado de praticar atos lascivos contra uma criança. Vimos o cantor preso, algemado e solto após pagar uma fiança de US$ 3 milhões.

O procurador, Tom Sneddon, declarou que interrogará as crianças que frequentaram a casa de Michael Jackson nos últimos anos, ou seja, pediu mais denúncias. Psiquiatras e psicólogos compareceram para nos explicar que um pedófilo vive na Terra do Nunca e faz de conta que é Peter Pan para aproximar-se de suas vítimas inocentes.

Tudo isso num clima quase festivo. A ponto de, na CNN, os próprios jornalistas se interrogarem: mas o que há com Michael Jackson (e conosco), que não conseguimos relatar os fatos sem cair na piada? Não encontraram resposta, mas tiveram a decência de perguntar.
Faz muitos anos que rimos de Michael Jackson.

No começo, era por sua transformação. Ele se parecia cada vez mais com o Peter Pan de Walt Disney, que, como se sabe, é branco. Rimos dele como rimos da mulher que passou por não sei quantas plásticas para ter as proporções da boneca Barbie. É o riso nervoso que surge quando nos lembramos de algo que nos concerne e que preferiríamos esquecer. No caso, a mulher-Barbie e Michael Jackson são nossa caricatura, pois, em alguma medida, sofremos do mesmo mal deles: queremos sempre ser outros.

Também rimos de Michael Jackson porque decidiu que seu sítio seria a Terra do Nunca (onde todos ficam eternamente crianças) e decorou sua casa como uma loja de brinquedos. Quando ele se casou com a filha de Elvis Presley, foi comentado que a idade mental dos dois juntos não fazia um adulto. Quando ele escolheu sua enfermeira como segunda mulher (e mãe de seus filhos), ironizamos que, na idade mental dele, só podia casar-se com quem cuidava de seus dodóis, ou seja, com uma mãe.

Como o próprio Michael Jackson disse, ele quer recuperar uma infância que não teve. Mas, por exemplo, o ano de meus 51 anos foi péssimo. Nem por isso tento recuperá-lo. A vontade de reviver uma infância perdida só surge numa cultura em que a felicidade das crianças é a fantasia de todos.

Como a infância é nosso protótipo forçado de felicidade, Michael Jackson quer ser criança. E, como vive num mundo racista, acha melhor ser criança branca. Engraçado? Pode ser, mas, de novo, o riso é nervoso.

Em 1993, o cantor foi acusado de molestar um menino de 12 anos. Ele preferiu entregar uma bolada de dinheiro a encarar o risco de um processo. Hoje, surge uma nova acusação análoga e outras espreitam. Duas observações.

O procurador Sneddon sabe que, na Califórnia, a exploração da prostituição é um crime grave. Houve pais e mães que, durante dez anos, conhecendo o episódio de 1993, mandaram seus rebentos para a Terra do Nunca, porque era "legal" que conhecessem o cantor ou (mais provável) na esperança de cobrar, mais tarde, alguns milhões como preço de seu silêncio. Ser cafetão ou cafetina de suas próprias crianças não dá cadeia?

Em boa clínica, é pedofílica uma fantasia (realizada ou não) na qual um adulto envolve uma criança em práticas sexuais que a criança não entende. É crucial, nessa fantasia, a diferença de saberes: a criança pratica ou sofre atos cuja significação sexual lhe escapa. É dessa desproporção que o pedófilo goza. Pedófilo exemplar é aquele padre do Estado de Massachusetts que mandava um menino satisfazê-lo oralmente, explicando-lhe que essa era a santa comunhão.

Não sou o psicoterapeuta de Michael Jackson. Mas os psiquiatras e psicólogos televisivos
também não são. E tudo indica que, nas festinhas de dormir todos juntos na Terra do Nunca, não se trata de pedofilia. Deviam acontecer coisas impróprias: toque aqui, que toco lá, mostre lá, que mostro aqui, iiiii!, vamos dar beijo de língua. Ou seja, entre os lençóis de Jackson, devia acontecer o que pode acontecer quando crianças se amontoam numa cama sem que haja adultos por perto.
Pelo que sabemos, Michael Jackson não é um pedófilo, mas uma criança que eventualmente brinca com o faz-pipi (o seu e o dos amiguinhos).

Obviamente, essa distinção não tem valor (nem deve ter) aos olhos da lei: o cantor tem 45 anos, e, portanto, suas brincadeiras, se confirmadas, constituem um abuso. Mas, quanto ao diagnóstico clínico, seria bom que os colegas televisivos se contivessem. A não ser que eles, sabendo que o povo gosta de assistir à queda de um astro, queiram liderar um linchamento.

Voltemos ao riso. Por que, de novo, desta vez, Michael Jackson suscita a hilaridade nervosa? É que ele nos lembra algo que, apesar de Freud, muitos ainda querem esquecer: existe uma sexualidade infantil. Na Terra do Nunca, brinca-se também com o faz-pipi. Que horror.

Alguém perguntará: por que defender um "babaca" como Michael Jackson? De fato, sua figura, por trágica que seja, me inspira pouca simpatia, e não sou fã de sua música. Mas, no meio de uma onda repressora e hipocritamente moralista que se expande pelos EUA afora, ao escutar a raiva fria do procurador Sneddon, lembrei-me de um breve texto, que aprendi do meu pai e que é de Martin Niemoller, um pastor que sobreviveu aos campos nazistas: "Primeiro, eles vieram pegar os comunistas, mas eu não era comunista e não falei nada. Depois, vieram pegar os socialistas e os sindicalistas, mas eu não era nenhum dos dois e não falei nada. Logo vieram pegar os judeus, mas eu não sou judeu e não falei nada. E, quando vieram me pegar, não sobrava mais ninguém que pudesse falar por mim".

quinta-feira, 20 de novembro de 2003

Os loucos, os delinquentes e a arrogância da razão

No dia 10, foram encontrados os corpos de Liana Friedenbach e Felipe Caffé.

Durante toda a semana, amigos e leitores me interpelaram, pedindo que refletisse sobre o assassinato ou que me pronunciasse sobre as questões que ele levanta. Sou a favor da pena de morte ou contra ela? E a redução da maioridade penal?

Digo logo: sou contra a pena de morte, mas não porque acredite que a prisão possa reformar os assassinos de Liana e Felipe. Meu tênue argumento é o seguinte: prefiro manter nossa diferença. Eles matam, nós não matamos; somos diferentes deles.

Quanto à redução da maioridade penal, posso concordar com a maioria dos brasileiros, pela razão que já expus: minha fé na possibilidade de reeducar é limitada, seja qual for a idade do assassino. A adolescência é uma invenção cultural graças à qual nossa sociedade prolonga o tempo de "formação" de seus membros até os 20 anos. Essa convenção social não demonstra que a adolescência seja uma época em que um sujeito estaria mais disposto a ser reformado.
Mas, no fundo, pouco me importa debater essas questões. Tampouco estou a fim de encontrar explicações psicológicas ou históricas e sociais pelos atos dos algozes de Liana e Felipe.

Muitos comentários que li e escutei nos últimos dias me inspiram uma vaga desconfiança, pois me parecem sobretudo manifestar que não sabemos aceitar a radical alteridade do mal.
Nos últimos 30 anos, nossa razão produziu um enorme esforço de compreensão do gesto criminoso. Bibliotecas inteiras explicam (sem justificar, mas explicam) a crueldade do assassino ou a violência do estuprador: é a culpa dos genes, das infâncias infelizes, das injustiças sociais. As explicações celebram a engenhosidade de nossa razão e alimentam seu otimismo arrogante: repararemos as injustiças, compensaremos com carinho pedagógico as infâncias infelizes, curaremos os estorvos genéticos. O mal, em suma, é uma anomalia que entendemos e que, portanto, saberemos corrigir.

Talvez esteja na hora de duvidar dessa perigosa arrogância de nossa razão. E de aceitar que há loucuras e há crueldades que escapam ao nosso entendimento e que não podemos emendar.
Primeiro, as loucuras. Em outubro, a Human Rights Watch, uma ONG pela defesa dos direitos humanos, publicou um relatório sobre a doença mental nas prisões americanas, "U.S. Prisons and Offenders with Mental Illness" (Prisões dos EUA e Delinquentes com Doença Mental, acessível on-line, http://www.hrw.org/reports/2003/usa1003/).

Constata-se o seguinte: nos EUA, há mais "doentes mentais" nas prisões do que nos (periclitantes) hospitais psiquiátricos. O editorial da Folha de 10 de novembro salientava os resultados da pesquisa.

Essa situação (que não deve ser muito diferente no Brasil e, em geral, no mundo ocidental) é um efeito da arrogância de nossa razão.

Desde o começo dos anos 60, a instituição psiquiátrica de internamento foi desmantelada, por duas razões, à primeira vista, ótimas. Os progressos da farmacologia levavam a esperar que os pacientes mais graves seriam contidos pelos remédios. Ao mesmo tempo, o clima da época era de otimismo subjetivo: nenhum transtorno resistiria ao diálogo e à inclusão generosa. O presidente Kennedy, em 1963, ao assinar a lei que instituía os centros comunitários de saúde mental, afirmava que a segregação seria substituída "pelo calor da comunidade cuidadosa e capaz". Quer fosse pela química, quer fosse pelo carinho, ninguém ficaria a ver ou a alucinar navios.

Aconteceu, ao contrário, que as ruas das grandes cidades se povoaram de figuras errantes, à deriva, miseráveis ou ameaçadoras.

Claro, nos EUA como alhures, faltaram os investimentos em centros comunitários etc. Mas resta que as duas esperanças, da farmacologia e da mão estendida da comunidade, manifestavam a mesma vontade de negar a existência de transtornos, de sofrimentos ou simplesmente de configurações da personalidade que podem ser inconciliáveis com a convivência social.

A prisão toma conta, hoje, dos sujeitos que não soubemos disciplinar nem à força de drogas nem à força de palavras e gestos de inclusão.

Vamos às crueldades. A prisão moderna nasceu do mesmo devaneio da razão que fechou o hospital psiquiátrico.

Vale a pena revisitar "Vigiar e Punir", de Michel Foucault. Dois séculos atrás, decidimos que não era o caso de infligir suplícios públicos aos criminosos, até porque o espetáculo poderia nos enternecer. Afinal, a modernidade nos convida a reconhecer em cada homem nosso semelhante: como não ter compaixão pelos açoitados, queimados e desmembrados em praça pública? Melhor guardá-los num lugar fechado e apostar que a disciplina da prisão, a longo prazo, os reeducará e os tornará aptos a voltar ao nosso convívio. Tanto mais que o projeto de reformar seus espíritos confirma nossa idéia de que, no fundo, somos todos humanos.

As boas intenções morreram na praia. A prisão deveria celebrar a onipotência da razão mostrando a prodigiosa mudança dos extraviados, que reencontrariam seu caminho. Só mostrou nossa capacidade de isolar os delinquentes. Alguém tem uma proposta melhor?

Talvez a gente invente um dia soluções diferentes para as crueldades que não podem conviver conosco. Só espero que as invenções futuras não sejam ditadas pela arrogância pedagógica de nossa razão.

Pois há formas de loucura que a razão não pode conter. E há formas de ódio que a razão não pode reeducar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2003

"O Presente" do MixBrasil

Começa hoje, em São Paulo, o festival de cinema MixBrasil. Na sua programação, será apresentado "The Gift", "O Presente", documentário de Louise Hogarth.

É uma obra enxuta e corajosa.

Eis o fato: na comunidade gay, sobretudo entre os jovens, a prática do sexo seguro está declinando, e aumenta o número de novas contaminações pelo vírus da Aids.
Podemos culpar as campanhas públicas de prevenção: será que não foram (não são) claras? Será que, não querendo assustar, foram omissas? Ou será que pediram demais e produziram cansaço? Depois de décadas em que até o sexo oral era "proibido" sem preservativo, talvez as pessoas achem na contaminação um pretexto para, enfim, transar livremente.

Podemos culpar o sucesso dos remédios antivirais que produziram a ilusão de que a Aids seria uma doença crônica controlada, sem perigos maiores. Hogarth mostra propagandas na imprensa americana em que os remédios anti-Aids são promovidos à força de imagens de sujeitos soropositivos francamente desejáveis. A realidade é outra: o tratamento está longe de ser definitivo, é penoso e tem riscos e sequelas.

Podemos culpar a própria comunidade. Como conta no documentário o jovem Doug, é mais fácil se sentir "in" sendo um garoto muito "cool" que transa sem perguntar e sem exigir camisinha.
Mas o impacto do filme vem de outra constatação: a contaminação pelo vírus da Aids se tornou para alguns, se não para muitos, um atrativo propriamente erótico. O "barebacking" (cavalgar sem sela, termo que designa a transa anal sem camisinha) não é efeito de um descuido acidental num transporte de paixão. Tampouco se trata de um erotismo de roleta-russa, em que o risco apimentaria os encontros. Ao contrário, a contaminação é procurada como se fosse a fonte de um gozo específico.

Desde o fim dos 90, a (crescente) comunidade de "barebackers" criou um código próprio. "O presente", "the gift", é a contaminação. Há os "bugchasers" (os caçadores de bicho, o bicho sendo o vírus da Aids) e os "giftgivers" (os doadores, que oferecem o presente). Há as "conversion parties": as festas de conversão em que um soronegativo convida uma série de soropositivos a penetrá-lo e contaminá-lo. "Charged" ou "loaded cum" é o esperma que contém "o presente".

No começo dos anos 80, na comunidade gay, circulou brevemente a proposta de tatuar os soropositivos, de forma que seus parceiros fossem imediatamente informados e tomassem as precauções necessárias. A idéia foi recusada como forma abjeta de discriminação. A ironia é que, hoje, a tatuagem volta, mas não como marca de exclusão. Ao contrário, o símbolo convencional que designa o perigo biológico de contaminação é tatuado por sujeitos soropositivos perto do púbis como um incentivo sexual. Pela mesma razão, alguns escrevem no bíceps "HIV-poz".

Outros escrevem "HIV-neg" e saem à caça do vírus para poder, enfim, barrar o "neg".

Quando começou a epidemia de Aids, minha preocupação não era só com a contaminação. Atormentava-me a perspectiva de que, para uma ou várias gerações de jovens, gays ou não, a vida sexual viesse a ser um pesadelo. Receava que a necessidade de preservar a vida acabasse com o sexo. Ou seja, que o risco epidêmico forçasse o desejo a obedecer estritamente à finalidade da reprodução: transem só para fazer filhos e casem virgens.

Mas isso não aconteceu. A preservação da vida, por mais que seja o valor dominante da sociedade moderna, não arregimentou o sexo. Durante duas décadas, inventaram-se jeitos, carinhos, situações e palavras que, mesmo evitando o risco, não desvirtuassem completamente o desejo.

Aparentemente isso não foi suficiente. Sobra hoje uma revolta que não é só contra os limites impostos pela epidemia de Aids.

Os "barebackers" proclamam que existe um presente mais importante que o famoso presente da vida. Mas eles não são apenas apóstolos da morte. Para entender sua escolha, é preciso considerar que, em nossa cultura, o ideal do bem-estar, da prevenção e de uma longa existência saudável se tornou princípio ético preponderante.

É nesse quadro que os "barebackers" descobrem e procuram um gozo desesperado no próprio ato de comprometer a vida.

Se não fosse pela vontade de festejar a abertura do festival MixBrasil e de comentar "O Presente", a coluna de hoje seria sobre "Matrix Revolutions". O curioso é que, no fundo, os "barebackers" são filhos da mesma revolta que anima Neo, Trinity & co. Eles querem transar fora da matriz: "de verdade".

PS:
1) O filme de Hogarth e esta coluna não tratam de uma realidade exótica da Costa Oeste dos EUA ou de Nova York. Escrevo na segunda, dia 10 de novembro. Às 22h em ponto, entro na primeira sala "Gays e Afins São Paulo", no bate-papo do UOL. Um internauta propõe o seguinte apelido: "Sem Camisinha/Ativo". Você acha o quê? É uma informação marginal ou o essencial da fantasia sexual proposta?

2) "O Presente" (62 min.) será apresentado sexta, dia 21, no Centro de Testagem e Aconselhamento de Santo Amaro, SP; sábado, 22, e domingo, 23, no Centro Cultural Banco do Brasil. O festival, como é de costume, viaja: em Brasília, o filme passará nos dias 1º/12 e 4/12 e, no Rio, no dia 11/12.

quinta-feira, 6 de novembro de 2003

Quem matou Sylvia Plath?

Está em cartaz nos EUA "Sylvia", o filme de Christine Jeffs que reconstitui os anos produtivos e finais da vida de Sylvia Plath, a poeta americana que se tornou famosa depois de seu suicídio, em 1963. A data de estréia no Brasil ainda não é conhecida.

Resumindo: Sylvia, jovem bostoniana de classe média, órfã de pai desde os oito anos, estudante brilhante, ganhou uma bolsa para uma pós-graduação em literatura na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Lá, em 1956, encontrou Ted Hughes, jovem poeta inglês. Casaram-se e viveram seis anos oscilando entre os Estados Unidos e a Inglaterra, atrás de empregos e inspirações. Uma filha nasceu em 1960, e um filho, em 1962.

Nesse período, Ted Hughes publicou, ganhou prêmios e consolidou sua fama de poeta. Para Sylvia, escrever era mais difícil, e a coisa piorou com o nascimento dos filhos. Quando, em 1960, ela publicou seu primeiro livro, "The Colossus", só houve uma resenha.

No meio disso, Ted Hughes, embora apaixonado por sua mulher, arrumou uma amante. Talvez Sylvia fosse "intensa" demais. Talvez, simplesmente, ele gostasse de pular a cerca: era o que Sylvia (frágil, possessiva e ciumenta) pensava.

Em 1962, o casal separou-se. Sylvia passou o inverno europeu sozinha com os filhos, em Londres, escrevendo como nunca. Em fevereiro de 1963, não aguentou mais e abriu a torneira do gás.
Quem matou Sylvia Plath? O filme evita atribuir o malogro de Sylvia a algum agente maléfico, seja o marido infiel, seja a fria mãe da poeta. Também não se aventura no terreno minado da psicopatologia. Sylvia carregava consigo um passado de depressões e de tentativas de suicídio, mas é tarde para entrevistar Ruth Beutscher, a psiquiatra que repetidamente tentou ajudá-la. E, mesmo que fosse possível, nada prova que ela teria uma resposta.

Ficamos com a visão tocante de uma infelicidade angustiada e intolerável que está ao alcance de todos: um desespero que, num canto mais ou menos recôndito da mente, cada um poderia despertar e alimentar.

Quando Sylvia morreu, a colega Anne Sexton, que era mestre em cinismo amargo, comentou: "Escolha boa para a carreira". Claro, não acho que o suicídio de Sylvia Plath tenha sido maquiavélico. Mas o ato foi mesmo um sucesso profissional e amoroso.

Como efeito do suicídio de Sylvia, o marido foi condenado a tomar conta das crianças que durante anos tinham absorvido muitas das energias da poeta enquanto Ted escrevia e palestrava. O suicídio também transformou Ted Hughes (que, dos dois, era, até então, o poeta de sucesso) em revisor e editor dos manuscritos inéditos de sua mulher, a começar por "Ariel", que Sylvia deixou em cima da mesa de trabalho. Até 1963, talvez alguns soubessem que Ted Hughes, poeta inglês, era casado com uma americana "bonitinha" que também escrevia poesia. No fim dos anos 60, qualquer um que gostasse de literatura sabia que Sylvia Plath era uma grande poeta e, se alguém evocasse o nome de Ted Hughes, seria por ele ser "o marido de Sylvia Plath".

Sem discutir a qualidade da produção de Sylvia, o fato é que o suicídio lhe conferiu uma extraordinária credibilidade. É assim: se ela se matou, supõe-se que, em seus versos, haja algo forte, perigoso de tão verdadeiro. Ou seja, nós, leitores, validamos espontaneamente o argumento costumeiro de qualquer adolescente que ameace se suicidar: aí, na frente de meu cadáver, vocês vão ter que me levar a sério.

Sem suicídio, talvez Sylvia Plath fosse mais um nome nas antologias de poetas americanas da segunda metade do século 20.

Confesso que nunca fui um grande fã de sua poesia. Se tivesse que escolher uma poeta americana da mesma época, preferiria certamente Anne Sexton.

Só que Anne Sexton, delirante, detestando os efeitos da thorazine em seu corpo, também se suicidou, embora mais tarde, em 1974.

Como fica? Poeta boa tem que se matar?

Nada disso. Há uma longa lista de excelentes poetas americanas do século 20 que não se mataram: Adrienne Rich, Muriel Rukeyser, May Swenson, Denise Levertov, Elizabeth Bishop (minha preferida é Adrienne Rich, de quem recomendo "An Atlas of the Difficult Life"). Ora, com a exceção de Bishop (conhecida no Brasil porque viveu muitos anos em Petrópolis e traduziu poetas nacionais para o inglês), só leitores patenteados de poesia conhecem os nomes dessa lista. Enquanto muitos, se não todos, ouviram falar de Sylvia Plath e Anne Sexton.

Parece que a radicalidade da escolha suicida funcionou, para nós, como uma garantia de alguma qualidade de seus textos. Apostamos que sua poesia lide com uma questão crucial também (se não sobretudo) porque elas se mataram.

Ora, a questão mais importante talvez não emane de suas obras, mas de nossa reação a suas mortes. É a seguinte: em qual sensação constante de inautenticidade e de falsidade vivemos para que o suicídio nos apareça facilmente como o sinal de que alguém levou a vida a sério?

Estranho paradoxo: o suicídio funciona como prova da "autenticidade" de quem se matou. Mas que existência é a nossa, se, para nós, a morte pode ratificar a qualidade da experiência de uma vida?

quinta-feira, 30 de outubro de 2003

Dramas e tragédias

No fim de semana passado, em São Paulo, fui ao teatro duas vezes.

No sábado, assisti a "4.48 Psicose" de Sarah Kane. É o monólogo final da escritora e dramaturga inglesa, que, após tê-lo escrito em 1998, suicidou-se com determinação (primeiro as pílulas, logo, tendo sido salva a tempo, a forca definitiva). Nelson de Sá montou o texto como uma peça a duas vozes (quase três), nos subterrâneos do Sesc Belenzinho, dentro de um enorme tanque cilíndrico que desce no chão. O quadro é perfeito: o fundo do poço.

A fala de Sarah é impactante por ser exata. Tem as duas caraterísticas essenciais de qualquer drama subjetivo: irredutível e cruelmente trivial.

Enquanto Sarah articula sua demanda de amor impossível, na parede circular do tanque aparecem rostos, bulas de remédios e imagens do mundo lá fora. Para quem se engaja (e quem não se engaja?) no caminho do drama subjetivo, a realidade é moída e aspirada na direção de um ralo que é o próprio umbigo do sujeito. Não há história que valha, nem coletividade; nada além de uma contabilidade de dores e remédios, na qual a gente sempre sai perdendo.

Não seria mal se Sarah, tomada por uma repentina paixão montanhesca, pudesse escalar as paredes do cilindro bem na hora em que elas mostram as piores convulsões de nosso mundo. Quem sabe, ela conseguiria, com unhas e dentes, inserir seu drama na tragédia humana. E, assim, salvar-se.

Entre drama e tragédia oscilamos o tempo inteiro. Pedimos que a tragédia (o destino que nos quer frágeis e mortais, a natureza que nos castiga, a história que nos atropela) não apague nossos pequenos dramas (e eu, nisso tudo, ninguém dirá o que eu passei?). E pedimos também que a tragédia dê a nossa vida uma dignidade e um sentido que se perdem nos dramas. É o que deseja, caricaturalmente, um pai, quando, perplexo diante da dor amorosa de um filho ou de uma filha adolescente, exclama: "E a Somália? E o câncer?".

Mas o balanço normal de nossa época é: drama 3, tragédia 0. Pior: em regra, quando tentamos atenuar a miséria subjetiva fazendo apelo à história e à coletividade, que a afogariam em valores e sentidos mais amplos, esquecemos a tragédia. Preferimos acreditar em ficções gloriosas e amanhãs que cantarão: corra atrás de uma bandeira e esqueça.

Estava com essas reflexões quando, no domingo, fui assistir (mas por que esperei tanto?), no Teatro Oficina, a "Os Sertões - O Homem 1ª Parte - Do Pré-Homem à Revolta". É o segundo dos quatro momentos que Zé Celso decidiu consagrar a uma encenação de "Os Sertões". Corresponde à parte do livro em que Euclydes da Cunha apresenta as origens do homem americano e brasileiro, especialmente do sertanejo.

Foi uma das experiências teatrais mais fortes e comovedoras de minha vida. Na lembrança, se compara a uma noite de 1969, quando Luca Ronconi montou o "Orlando Furioso" de Ariosto na praça do "duomo" de Milão.

A analogia é sentimental. Não sei se eram mesmo anos difíceis para a Itália, mas sei que eu vivia num furor abstrato, inconformado com o país que não mudava. Olhava ao redor de mim e não reconhecia uma nação à qual valesse a pena pertencer. Apenas conseguia falar com quem pensasse exatamente como eu: estava a fim de ir embora. Naquela noite de 69, estava encerrado na massa que enchia a praça, todos olhando para o céu: no ar, acima de nós, máquinas e atores transformavam o texto mais bonito da Renascença numa extraordinária festa popular. De repente, ser italiano parecia ter sentido. Não pela festa, mas pela dignidade de uma história e de uma cultura compartilhadas.

Ao assistir à peça do teatro Oficina, a emoção foi a mesma. Mais forte, na verdade. A construção do brasileiro segundo Zé Celso é uma aventura feroz, carnal e amorosa. Pesa sobre ela o prognóstico ameaçador das teorias raciais nas quais Euclydes da Cunha acreditava: que futuro nos reserva a "inferioridade" do mestiço? Pesa a diversidade extrema: como conviverão mulato, cafuzo, sertanejo, português, gaúcho, bandeirante paulista e por aí vai? Pesa o passivo das violências sobre os corpos e as almas, da escravidão, dos estupros e dos extermínios. Mas a própria qualidade trágica da história faz a grandeza e a alegria selvagem desta improvável comunidade de destino.

Sem ficções gloriosas ou promessas de amanhãs cantantes, o "O Homem - 1ª Parte" proclama a dignidade do ser brasileiro. É a tragédia que redime os dramas subjetivos que nos chamam para o fundo do poço.

No fim, paramos na calçada para tomar uma cerveja e medir a relação entre a história que acabávamos de reviver e, lá em frente, o começo do Minhocão, símbolo da dureza urbana do Brasil de hoje. Enquanto conversávamos com um dos atores, Ricardo Bittencourt, um jovem aproximou-se para elogiá-lo. Carioca, estava de passagem por São Paulo, pois acabava de chegar ao país depois de dois anos trabalhando no exterior. Com os olhos molhados de lágrimas, batia a mão no coração: "Obrigado, obrigado, entrei no teatro meio por acaso, que loucura, logo hoje acabo entendendo por que voltei ao Brasil". Ganhou um abraço.

"O Homem - 1ª Parte" fica em cartaz, no teatro Oficina, aos sábados e domingos, só mais duas semanas, até 9 de novembro.

"4.48 Psicose" está em cartaz aos sábados e domingos, no Sesc Belenzinho, até 7 de dezembro.

quinta-feira, 23 de outubro de 2003

Solidões voluntárias

Muitos anos atrás, em Paris, um amigo, jovem psiquiatra, trabalhava nos serviços de assistência pública. Ele fazia visitas domiciliares a alcoólatras severamente marginalizados. O propósito não era curá-los de seu alcoolismo (o otimismo tem limites). Tratava-se sobretudo de verificar e melhorar, se possível, as condições de higiene e saúde dos sujeitos visitados.

É preciso lembrar que os edifícios parisienses de classe média que foram construídos no fim do século 19 comportavam, em regra, um sótão, dividido em cubículos de mais ou menos dez metros quadrados. Havia uma privada comum para o andar, nunca um banheiro completo. Eventualmente, em cada cubículo, havia um lavabo. Esses espaços eram os quartos de serviço dos apartamentos do prédio.

A partir dos anos 50, o trabalho doméstico mudou: sumiram, ou quase, os empregados que residiam no trabalho. Os quartinhos tornaram-se habitações para estudantes ou para pessoas de baixíssima renda. Hoje, juntados e reformados drasticamente, eles compõem apartamentos procurados por charme e vista.

Um dia, na lista das visitas que ele deveria efetuar, meu amigo encontrou dois endereços no último andar, o sótão, do mesmo prédio.

No primeiro cubículo, ele se deparou com um colchão infecto, garrafas vazias ou quebradas no chão, um cheiro miasmático e uma mesa encostada na parede. Um homem estava sentado à mesa, bebendo.

No segundo cubículo, a cena era idêntica. Só que, à mesa encostada na parede, estava sentada, e bebendo, uma mulher.

Os cubículos eram contíguos, e as duas mesas situavam-se cada uma de um lado da mesma divisória. De forma que, se não fosse pela parede, o homem e a mulher pareceriam estar sentados frente a frente, na mesma mesa.

Meu amigo não era ingênuo a ponto de imaginar que a solidão fosse a razão do alcoolismo de seus dois "pacientes". Pensou apenas que, retirando a parede, mesmo que eles não desistissem da empresa metódica de beber até desmaiar, ao menos eles beberiam juntos. Não seria melhor?
Essa imagem ficou comigo como um protótipo do enigma da solidão apesar da proximidade. Lembro-me dela cada vez que ouço alguém se queixar da dor de estar sozinho.

Uma mulher, por exemplo, quando o marido se ausenta por uma viagem de negócios, se entrega a orgias de comida e vômito. É um efeito, ela acusa, do abandono, por temporário e justificado que seja.

Um homem, quando a mulher visita a família num outro Estado, vira a noite na frente do computador, oferecendo-se como escravo passivo nos bate-papos gay. Ele se odeia por isso e também culpa o abandono temporário.

Não é difícil constatar que o dito abandono é quase sempre um pretexto. Ou seja, uma maneira de justificar pela ausência do outro a volta insistente de uma fantasia, de uma paixão ou de uma prática da qual o sujeito preferiria se ver livre.

É uma dinâmica que atrapalha e pode destruir um casal. A presença do outro é desejada, de fato, porque freia os impulsos aos quais a solidão nos entregaria. Logo, o outro é secretamente detestado por ser aquele ou aquela que nos impede de gozar como gostaríamos.

O engraçado é que, na maioria dos casos, não seria impossível revelar ao outro nosso "segredo" (que, aliás, provavelmente ele já conhece). Ele talvez aceitasse e mesmo se fizesse cúmplice de nossas pequenas ou grandes loucuras solitárias.

Mas a revelação demora ou não acontece. Nenhum dos dois quer renunciar não tanto a sua fantasia privada, mas a seu segredo, ou melhor, à idéia de preservar um segredo. Calam-se para proteger um espaço íntimo, ao abrigo da relação.

Quando um parceiro não pode aproveitar a viagem do outro, a luta pelo segredo toma outras formas. Não são necessariamente traições, mas pequenas mentiras. Há a mulher que alega um falso horário de expediente para ganhar tempo e tomar um drinque cotidiano de solteira no balcão de um bar do centro. Há o homem que alega sobrecarga de trabalho para passar horas, depois do jantar, trancado no "office" de casa, mesmo que seja para idiotizar-se à força de paciências.

Talvez essas escolhas sejam restos inevitáveis do passado: afinal, a descoberta do prazer foi, para muitos, solitária. E um dos atrativos da masturbação na adolescência é justamente de ser secreta: tempos e pensamentos subtraídos à presença estafante dos pais na vida dos jovens.

Além disso, o óbvio: somos filhos de uma cultura que exalta a autonomia do indivíduo. Na hora de apostar nossas fichas numa relação, como não sucumbir à tentação de guardar uma ou duas no bolso para jogar sozinhos, mais tarde, enquanto o outro dorme?

Moral da história: não basta abater paredes para estar em companhia.

P.S.: Agradeço um leitor, Wander Cortezzi, que me fez prontamente notar que, na coluna da semana passada, o título da edição brasileira do best-seller de Mitch Albom não é "A Última Grande Conversa", mas "A Última Grande Lição". Peço desculpa; devo ter errado por contaminação, pois o livro é composto pelas conversas do autor com Morrie, seu ex-professor que está morrendo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2003

A vida faz sentido? A) Muito B) Nenhum C) Um pouco

Escolha uma resposta. Provavelmente, se você quiser deixar uma boa impressão, marcará a primeira opção. Com razão, pois, ao que dizem, o sentido nos faz bem e a falta de sentido nos deprime e angustia.

Mitch Albom é o autor de um best-seller de auto-ajuda que foi traduzido em 30 línguas e, de 1997 a 2001, ficou no primeiro lugar da lista dos livros mais vendidos nos EUA: "Tuesdays with Morrie" (publicado em português como "A Última Grande Conversa").

Ele acaba de publicar um novo livro que também se instalou no primeiro lugar dos mais vendidos nos EUA: "The Five People You Meet in Heaven" (as cinco pessoas que você encontra no Paraíso). É a história de Eddie, empregado da manutenção de um parque de diversões, que, aos 83 anos, morre num acidente e descobre que o primeiro estágio do Paraíso consiste em encontrar cinco pessoas que, de perto ou de longe, foram parte de sua vida. Diz a primeira: "Cada um de nós esteve na sua vida por uma razão. Na época, você podia não conhecer essa razão, e, por isso existe o Paraíso, para compreender sua vida na Terra". "É o maior presente que Deus pode lhe oferecer: entender o que aconteceu em sua vida, ter uma explicação. É a paz que você estava procurando." A recompensa por nossas atribulações será descobrir que elas faziam sentido, pois nada aconteceu por acaso, nenhum gesto foi à toa.

Em suma, não só sobreviveremos a nossa morte (o que já é bom), mas nossas vidas, por fajutas que sejam, são necessárias no grande esquema do mundo. Portanto, se você está resfriado e de cama, não é o caso de maldizer sua sorte; de fato, os vírus que infestam seu nariz foram desviados até lá para poupar a vida de uma criança carente e desnutrida que teria sucumbido ao ataque. Vamos ver quem explica por que um relâmpago, no domingo passado, logo em Bikoro, no Congo, matou 11 crianças e deixou 25 em coma.

Peço desculpa; é fácil ironizar. Na verdade, tenho simpatia pelo pequeno livro de Albom. Ele trará a milhões de pessoas um instante de sossego: a sensação de que seu esforço de viver não é fútil e de que o descaso do mundo para com suas existências é apenas aparente. Pois seríamos todos, de alguma forma, necessários aos olhos de uma razão superior: nenhuma vida, por miserável ou triste que seja, é desperdiçada.

Eddie, por exemplo, pensava assim: "Eu não era nada. Não consegui nada. Estava perdido". No encontro final, ele descobre que seu percurso de derrotas e renúncias obedecia a um desenho secreto que lhe é, enfim, revelado.

Em 1933, Arthur O. Lovejoy fundou a história das idéias com uma série de palestras proferidas em Harvard e publicadas sob o título "The Great Chain of Being: A Study in the History of an Idea" (A grande cadeia do ser: um estudo na história de uma idéia). Lovejoy reconstruía, de Platão ao romantismo, as vicissitudes do sonho humano de completude e continuidade, ou seja, de uma ordem racional em que nada seria arbitrário, casual ou contingente, de um mundo em que a questão do "porquê" seria legítima e sempre encontraria, mais cedo ou mais tarde, uma resposta satisfatória.

Ele reconhecia que a fé numa racionalidade do mundo permitiu o nascimento da ciência, mas acrescentava que esse sonho grandioso esbarra numa dificuldade. Por mais que acreditemos que alguma razão governa o mundo, resta que esta história teve um começo: o Big Bang ou a decisão divina de criar, por serem obras do acaso ou da liberdade do criador, escapam à razão que explicaria o Universo.

Do mesmo jeito, podemos aceitar a perspectiva de morrermos um dia, pois nossa morte não é incompatível com a idéia de que tudo tenha sentido. Aqui Ablom ajuda. Mas, em regra, achamos intolerável pensar que, como prometem os astrônomos, daqui a alguns bilhões de anos, o Universo acabará. Dar sentido a uma vida que termina é possível. Dar sentido ao fim de toda vida já é outra história.

Seja como for, o livro de Albom integra a nobre tradição descrita por Lovejoy. Desde Platão acreditamos que, como é dito a Eddie, uma explicação nos dará a paz que estamos procurando. Dar sentido ao mundo e à nossa existência seria, em suma, a condição de uma tranquila e boa saúde mental.

Pequeno problema: depois de quase 30 anos de prática clínica, ainda não sei direito se o que produz mais estragos numa vida é a falta ou o excesso de sentido. O que é pior, por exemplo? A convicção de que nossos atos de hoje confirmam inevitavelmente nosso passado, a ponto de configurar um destino, ou a sensação de sermos apenas um encontro fortuito de células, palavras e paixões?

O verdadeiro drama é que permanecemos na alternativa entre uma leveza intolerável e a procura de um sentido global. Como se os gestos e as escolhas de cada dia nunca se justificassem por virtude própria. Como se o sentido não pudesse ser uma invenção limitada, pontual e modesta. Como se apostar numa ordem do mundo fosse mais fácil que acreditar, simplesmente, no que a gente faz.

quinta-feira, 9 de outubro de 2003

Para Diane Arbus


Entre 25 de outubro e 8 de fevereiro de 2004, o Museum of Modern Art de San Francisco oferece "Diane Arbus: Revelations". É a maior retrospectiva realizada até hoje da obra de Diane Arbus, a fotógrafa nova-iorquina que, entre 1959 e 1971, jogou seu olhar inigualável e inquietante sobre a modernidade urbana. O catálogo é publicado pela Random House.

Complemento indispensável, no museu de arte do Mount Holyoke College (Massachusetts) está aberta até 7 de dezembro a exposição: "Diane Arbus: Family Albums" (catálogo pela Yale University Press).

Nota: existe uma boa biografia de Diane Arbus, escrita por Patricia Bosworth, "Diane Arbus: a Biography".

Durante os anos 50, Diane e o marido, Allan Arbus, foram fotógrafos de moda para a "Vogue" e a "Glamour". Era, aparentemente, um pequeno conto de fadas: uma infância privilegiada na Park Avenue, um casamento feliz aos 18 anos, duas filhas adoráveis e o sucesso.

No fim da década, o cartão-postal rachou: o casal separou-se e Diane, lutando contra episódios depressivos, foi fotografar o mundo do outro lado do espelho. Começou a frequentar os circos ambulantes, o show de "freaks" (monstros) que ainda existe no parque de atrações de Coney Island, em Brooklyn, e outro que funcionava na esquina da rua 42 com a Broadway, entre sex shops e prostitutas.

Uma década de retratos começou assim, com Presto, o comedor de fogo, Jack Drácula, o homem tatuado, Gregory Ratoucheff, o anão russo, Moondog, o percussionista de rua cego, Seal-Boy, o menino-foca sem braços. Logo foi a vez de travestis, transexuais, sadomasoquistas e adeptos do suingue: à primeira vista, um catálogo da marginalidade destoante.

Diane, o equipamento pesado a tiracolo, tornou-se uma figura familiar das ruas e dos porões nova-iorquinos.

Entre 1959 e 1967, ela manteve uma amizade telefônica com um grande escritor, Joseph Mitchell. Dele, a Companhia das Letras traduziu recentemente "O Segredo de Joe Gould" (leia assim que puder; também assista ao maravilhoso filme homônimo, de 2000, de e com Stanley Tucci). Mitchell, que escrevia para "The New Yorker", é um extraordinário cronista do cotidiano, um passeante à escuta dos derrotados: desde Joe Gould, o alcoólatra sem-teto decidido a registrar todas as palavras humanas numa "História Oral" do mundo, até Olga, a mulher barbuda que queria ser estenógrafa.

Mitchell e Diane Arbus nunca se encontraram, embora deambulassem pelas mesmas ruas, um com caneta e bloco no bolso e a outra com Rollei e Leica no pescoço. Mas falavam por telefone longa e regularmente.

Numa dessas conversas, Diane explicou seu interesse pelos "freaks": "As pessoas atravessam a vida com medo de ter uma experiência traumática. Os "freaks" já nasceram com seu trauma. Passaram no teste da vida. Eles são aristocratas".

Numa outra conversa com Mitchell, ela afirmou que fotografar o estranho era uma maneira de administrar sua própria melancolia. Como? Em cada retrato de "freak", contemplamos o mistério da existência de quem carrega consigo, na excentricidade de seu corpo ou de seus desejos, uma promessa de exclusão feroz. O "freak" ergue-se diante da câmara, risonho ou doloroso, num desafio: persiste na vida, embora conheça dos outros sobretudo a curiosidade impiedosa, fascinada ou horrorizada.

Ele é um protótipo de herói moderno porque sabe como ninguém que a insistência dos olhares não é cura para a solidão.

Diane conhecia esse suplício. Dramaticamente insegura quanto à apreciação de sua obra, procurava na promiscuidade das esquinas o exemplo corajoso dos sobreviventes do deserto urbano. Durou um tempo.

No fim, queixava-se: por que Allan e ela, mesmo separados, não continuariam juntos como irmãos, num vínculo que nunca poderia ser rompido? O laço de sangue parecia-lhe ser o último reduto em que, para poucos próximos, não seríamos "freaks".

De fato (é esse o interesse da exposição de Mount Holyoke), no final dos anos 60, Diane começou a fotografar famílias "comuns": instantâneos de papai, mamãe e molecada ao lado da árvore de Natal, na beira da piscina, no sofá da sala. Mas sua própria arte destruía sua esperança: inexplicavelmente, o olhar de Arbus descobre o "freak" em qualquer um. Os álbuns de família revelam que a solidão e o estranhamento assombram o aparente aconchego do lar.

Repetidamente, durante a década de sua produção, Diane fotografou um homem de dois metros e meio que sofria de uma doença óssea, Eddie Carmel, o gigante judeu. Os retratos não a satisfaziam. Enfim, pensou ter "conseguido": é a famosa fotografia do gigante, na sala de casa, ao lado dos pais, ambos de tamanho normal. Anunciou a Mitchell: "Sabe como cada mulher grávida tem o pesadelo de que o filho poderia ser um monstro? Acho que consegui fotografar esse pesadelo na cara da mãe que olha para o filho, lá em cima, e parece pensar: "Meu Deus, isso não!'".

Nem o olhar de uma mãe ampara o "freak" contra sua monstruosidade. E somos todos "freaks".
Em 1971, aos 48 anos, Diane deitou-se na banheira, tomou barbitúricos, cortou os pulsos e nos deixou mais sozinhos do que já éramos.

quinta-feira, 2 de outubro de 2003

Ostentação

Não conseguirei responder a todos os leitores que me escreveram comentando a coluna da semana passada. Peço desculpas e agradeço pelos dissensos, pelas observações e pelos parabéns.

Várias mensagens levantam uma mesma questão. Num país em que tantos batalham com as necessidades básicas, Marta Suplicy organizou uma grande festa e escolheu um vestido de noiva que custou R$ 6.000: não é um tapa na cara do povo?

Alguns acrescentam: conhecemos famílias de pequena classe média que, na hora de uma filha casar, gastam um dinheiro que dotaria o novo casal de um apartamento próprio. Mas, mesmo que, em proporção, Marta e Luis Favre tenham gastado razoavelmente, será que eles não têm um dever de pudor e austeridade?

Só posso fornecer elementos para pensar: que cada um responda.

Vamos com ordem: a riqueza moderna é sempre, de alguma forma, ostentada. A regra é a seguinte: as diferenças sociais não dependem mais do berço em que nascemos. Elas são "só" econômicas. O "só" significa que não é impossível atravessá-las. Imaginemos que, para jantar no Fasano, eu precise gastar meu salário mensal. Em compensação, garantem que não serei barrado na porta nem pelo meu nome nem pela cor da minha pele. Resta-me (dizem) dar duro, ter sorte e "crescer".

Pergunta: uma vez que eu dispusesse do dinheiro, por que não fritaria frugalmente dois ovos em casa? E, se quisesse um risoto com trufas, por que não chegaria ao restaurante pela porta dos fundos, de preferência sem fotógrafo?

Acontece que a organização social moderna não consiste apenas em substituir a nobreza do sangue pelo volume da carteira. Nosso status não é uma qualidade intrínseca nem de nosso ser nem de nossas posses: ele depende do olhar dos outros.

Portanto guardar riqueza no silêncio de um cofre não basta mais: integrar uma classe social implica exibir o padrão de consumo esperado. Uma extravagância narcisista toma conta de nossa subjetividade por ser necessária ao nosso funcionamento social: é preciso alimentar um crescimento econômico infinito, fomentando a inveja que dá fôlego à corrida de todos. Sem extravagância, acaba a sociedade de consumo.

Vontade de dizer: e daí? Que acabe. Infelizmente, a sociedade de consumo é preferível a um regime tradicional de castas, que manteria todo o mundo cravado no lugar em que viu a luz. Em suma, console-se: folheando "Caras", estaríamos no melhor dos mundos possíveis.

Há dois argumentos contra o bom funcionamento desse sistema no Brasil.

O primeiro constata que as diferenças sociais são grandes demais. Para quem está na miséria, a riqueza ostentada não é uma promessa. Ela funciona como a pompa que, na antiguidade, era a marca distintiva das castas superiores. Em vez de olhar para trono e cetro para se lembrar de quem é o rei, olhe para meu carro e minhas quatro suítes, saiba quem manda aqui e não espere chegar perto. A diferença excessiva produz exclusão: os ricos são tão distantes de mim que não reconheço, entre nós, comunidade nenhuma. Sou de outra tribo; os privilegiados são uma força estrangeira de ocupação. Sobra aos vira-latas procurar restos no lixo ou ir à luta; não na vida, mas com um berro na mão.

O segundo argumento completa o primeiro. Apesar da mobilidade social efetiva, a sociedade brasileira sofre de arcaísmo: pouco mais de um século de modernidade não foi suficiente para eliminar o espírito da escravatura. De novo: olhe para o luxo dos donos e aprenda que você é de outra raça.

Os tempos mudam. Pobre e negro já pode usar o elevador social. Um dia, milhões de brasileiros sairão da miséria que os exclui. Aos poucos, o sentimento de uma comunidade de destino prevalecerá sobre os restos da escravatura. Pode ser. Mas, por enquanto, vivemos uma época de transição. Somos modernos e consumimos ostentando, mas, pela ostentação, mantemos diferenças sociais arcaicas.

Nesse ínterim, qual é o "bom uso" dos prazeres? Qual é a ostentação que não produz exclusão?
A resposta não está nos números. Se R$ 6.000 para um vestido de noiva é demais, quanto seria o certo: R$ 2.000? Vá saber.

Há dois critérios frágeis.

O primeiro é a intenção: quem consome está aproveitando a vida e ostentando por acidente (aceitável) ou está gozando da ostentação que impõe aos outros o espetáculo de seu poder (inaceitável)?

O segundo é o bom gosto: numa sociedade organizada pelas aparências, critérios estéticos podem regrar as escolhas morais.

Na Inglaterra do começo do século 19 (também época de transição), surgiu o movimento dândi. Os dândis são lembrados como desvairados obcecados por sua aparência, mas tiveram uma função modernizadora crucial: substituíram o privilégio do sangue pelo privilégio da elegância (acessível a qualquer um que a ela se dedicasse). Se um judeu, como Disraeli, pôde se tornar ministro da rainha Vitória, foi também por ele ser um dândi.

Ora, Beau Brummel, supremo árbitro do dandismo, perdia horas na frente do espelho, cuidando de sua aparência. Mas, antes de se aventurar pelas ruas de Londres, submetia-se a um teste. Ficava um tempo na esquina. Se ninguém o notasse, se ele passasse despercebido, considerava que estava pronto e bem vestido.

quinta-feira, 25 de setembro de 2003

Marta Suplicy e Luis Favre: por que tanta zombaria?

Desde o começo do namoro de Marta Suplicy e Luis Favre, em 2001, é fácil ouvir comentários zombadores. O casamento, no sábado passado, reavivou a produção.

Espírito partidário à parte, qual é a origem dessa reprovação, engraçada ou raivosa que seja?

1) Em 2001, Marta tinha mais de 50 anos, era ex-deputada federal, prefeita, casada com um senador da República. Por seu trabalho passado, ela representava também um certo ideal de sabedoria nas coisas do amor.

Ora, quem é mais velho, nos governa e parece mais sábio que a gente é automaticamente colocado, por nossa imaginação, na categoria dos "adultos", inaugurada pelos pais que tivemos ou teríamos gostado de ter. E, banalmente, as crianças não gostam que os pais se separem. Por exemplo, temem ser abandonadas: se eles pensam em seus amores, como é que vão se ocupar direito da gente?

Tradução dessa preocupação infantil, desde 2001 vozes nos bares e nos jantares paulistanos perguntavam: enfim, Marta vai governar ou namorar?

2) A idéia de que governar e namorar sejam alternativas excludentes se apóia também na convicção de que o poder deve ter um preço. Quer governar? Tudo bem, mas esqueça amores e paixões, deixe para depois, sacrifique-se.

É uma convicção que nos consola. Pois confirma que há uma razão pela qual não somos prefeitos, presidentes, governadores ou mesmo vereadores; é porque preferimos cuidar da vida: namorar, por exemplo.

O governante infeliz apazigua nossa culpa cívica. E o governante que não pretende desprezar seus sentimentos está querendo demais.

Marta, porta-voz há tempos do direito à busca da felicidade privada, não tinha como namorar de fininho. Declarou que uma prefeita feliz governa melhor. Muitos teriam preferido ouvir que governar custa caro e implica a renúncia aos prazeres do amor.

3) Os compromissos, a distância geográfica, o momento inoportuno, tudo conjurava, na história de Marta e Luis Favre, para que fosse sensato desistir. Eles escolheram um caminho árduo.
As histórias de amor dificílimas, a gente adora no "Aguenta Coração", do Faustão, em que elas valem como fragmentos de novela, ficções com as quais sonhar. Muito mais difícil é apreciá-las na realidade.

Em geral, em matéria de amor, somos ousados apenas nos devaneios literários. Consequência: a história real de Marta e Luis suscita nostalgias de paixões renunciadas, levanta a inveja de quem não sabe ou não soube ousar.

4) Em 2001, ouvi dizer: "Se ela não fosse prefeita, o cara nem a cumprimentaria". Favre seria um caçador de dote político, interessado no cargo de "príncipe consorte". No domingo passado, um taxista comentou: "Se Marta não se reelege, o homem cai fora".

De fato, o futuro político de Marta não depende de sua reeleição. Mas o que importa aqui é a idéia de que Favre estaria gostando da prefeita, e não da Marta.

É uma velha história: imaginamos que deveríamos ser amados por alguma essência de nosso ser. E amar "de verdade" seria gostar do outro, mesmo que ele não tivesse a profissão, o lugar social e a história que o tornaram quem ele é.

Como Favre amaria uma Marta "essencial", que não é prefeita, não foi deputada, não foi sexóloga e não fez uma escolha política na contramão de seus privilégios de nascença? Quem seria essa pessoa? Reciprocamente, como Marta amaria um Favre "essencial", que não seria franco-argentino e ex-trotskista?

Não somos essências, mas pacotes complexos. Amamos e somos amados com as mãos cheias das tralhas que acumulamos em nossas vidas prévias.

5) O comentário segundo o qual Favre desejaria não Marta, mas a prefeita, também subentende que Marta não seria desejável. O que é curioso: afinal, talvez Favre seja um "gato", mas Marta é uma mulher bonita.

Claro, vale o preconceito trivial sobre sexo depois dos 50, que não é muito diferente da expectativa de que a mãe (ainda mais a avó), não podendo ser virgem, seja casta.

Mas não é só isso. A idéia de que a prefeita não seria amável como mulher está a serviço de outro preconceito, segundo o qual a feminilidade não condiz com a autoridade de quem governa.
Acontece assim que, quando Marta escolhe uma roupa, uma maquiagem ou um corte de cabelo, chega o deboche: a prefeita é uma perua.

Perua seria a mulher que só pensa em agradar ao desejo masculino. A denominação satisfaz a boa consciência machista, pois parece inspirada por um feminismo militante: olhe só, debochamos da feminilidade "alienada" das mulheres que se enfeitam.

Nota: uma parte relevante do movimento feminista (as "pro-sex feminists") reivindica os apetrechos tradicionais da feminilidade. É um jeito de afirmar que a mulher liberada não precisa ser passiva e recatada nem vergonhosa de seu desejo ou de sua vontade de ser desejada. Ou seja, nem sempre a cinta-liga é marca de domínio.

Em suma, se Marta escolhe uma roupa sexy de Nina Ricci para seu casamento, é peruagem? Ou é possível que uma mulher seja prefeita sem deixar de ser feminina?

Enfim, a Marta Suplicy e a Luis Favre, sem ironia, desejo um casamento feliz.

quinta-feira, 18 de setembro de 2003

Schwarzenegger governador da Califórnia

Muitos californianos não gostam de seu governador atual e querem removê-lo. Conforme a lei de seu Estado, eles apresentaram uma petição devidamente assinada por 12% dos eleitores. Portanto haverá um novo pleito (eventualmente com um atraso por razões técnicas).

Duas reflexões: uma sobre os charmes da democracia direta e outra sobre os comentários humorísticos ou indignados, pelo mundo afora, contra a candidatura do ator Arnold Schwarzenegger ao governo da Califórnia.

Quem não gosta de um pouco de democracia direta? Não seria uma boa se os mandatos fossem condicionais? Sem esperar as próximas eleições, a gente despediria os representantes que não fazem o que prometeram. Além disso, seria ótimo, de vez em quando, dispensar qualquer mediação e legiferar por referendo.

É uma idéia simpática e perigosa. No caso, o atual governador da Califórnia, Gray Davis, foi eleito porque, em sua maioria, os cidadãos da Califórnia gostavam de seu programa. Mas, logo, os mesmos cidadãos decidiram por referendo que os impostos estaduais nunca aumentariam. Conclusão: Davis ficou de babaca, com um programão e sem fundos para realizá-lo.

Seria como se todos esperássemos que Marta Suplicy limpasse São Paulo como se fosse uma mesa cirúrgica, mas pudéssemos decretar que não haveria imposto para a coleta do lixo nem aumento do IPTU.

Há uma inegável sabedoria no sistema representativo ordinário. Por exemplo, ele leva em conta nossa dificuldade crônica em pagar o preço de nossos desejos. Na vida cotidiana, isso nos paralisa (por exemplo: quero casar, mas preciso de absolutamente todas as gavetas da cômoda e detesto toalha molhada). Na vida política, a coisa não é diferente.

Mas vamos a Schwarzenegger. Entre os candidatos do Partido Republicano (que não é minha preferência no espectro político americano), ele não é o pior: é liberal em matéria de costumes e favorável ao aborto. Outro aspecto positivo: é um "self-made man"; fez sozinho e do zero não só sua fortuna mas também seu corpo. Além disso, Schwarzenegger mostrou que ele pode ter idéias erradas, mas, ao menos, são as suas próprias. Casou-se com uma Kennedy e não aderiu ao Partido Democrata e às idéias do clã de sua mulher.

Como nada indica que o ator seja mais burro ou menos honesto que os outros candidatos, por que razão sua candidatura é objeto universal de gozação?

Schwarzenegger não é um político. Isso deveria torná-lo mais simpático. Em geral, nas democracias, os eleitores consideram os políticos profissionais uma espécie daninha que prolifera no interstício entre os cidadãos e o exercício do poder que deveria ser deles.

Curiosamente, os mesmos cidadãos também menosprezam o homem comum que se candidata a um ofício público. Ele é acusado, no mínimo, de inexperiência: seu mérito (de não ser um político profissional) é transformado em fraqueza. Paradoxal, não é?

Suspeito que a candidatura do cidadão comum nos incomode porque denuncia nosso absenteísmo. Insistimos na incompetência do homem da rua que se candidata porque queremos justificar nossa preguiça cívica.

Mas, no caso de Schwarzenegger, não se trata só disso. Há uma outra condenação: "Logo um ator! E de que filmes!". Alguns acrescentam: "Outro?", evocando Ronald Reagan (que também era ator). Essa lembrança confirma o preconceito. Afinal, quem diria: "Um advogado não, já tivemos Clinton"? Ou: "Um administrador de empresas não, já tivemos Bush"?

A ambivalência em relação aos atores é coisa antiga. Desde a aurora da modernidade, eles são esperados (enfim, alguém vem nos divertir um pouco) e receados: nômades e devassos, enchem de sonhos perigosos as cabeças de nossas crianças. Às vezes, aliás, eles as levam consigo, como Mangiafuoco, o dono do circo de "Pinocchio". Conclusão: no fim do século 19, em Manhattan, era complicado achar uma igreja que aceitasse enterrar os atores mortos em terra consagrada.
Claro, os atores nos enganam: passam a vida fantasiados, encarnando personagens que pouco têm a ver com quem eles são de verdade. Mas será que nosso vizinho faz diferente quando desfila com um carro emprestado como se fosse dele?

Somos todos atores: o culto das aparências é a chave que nos liberta do destino que nos seria reservado pelo passado e por nossas castas de origem. O aprendizado da vida social moderna é uma escola de recitação. Para confirmação, basta ler Balzac e Stendhal.

Se desprezamos os atores, é porque desprezamos a "mentira" de nossas vidas.

Mas há mais: os atores vestem a pele dos heróis de nossos sonhos. Amamos os heróis. Por isso mesmo não toleramos que os atores tenham vida própria, a não ser que seja uma continuação de nossos devaneios. Vale tudo: amores, divórcios, festas, doenças, bebedeiras e mesmo uma inusitada vida caseira. Única condição: que seja mantida a aura da estrela e do sonho.

Ora, o ato político, mais que qualquer outro, nos lembra de que há alguém atrás da máscara.
Lembra das pedras em Regina Duarte quando ela apareceu na propaganda de Serra? Não era apenas animosidade partidária. Era por ela ser atriz. A Viúva Porcina, namoradinha do Brasil, se preocupa com governo e eleições? É uma cidadã como a gente?

Schwarzenegger governador da Califórnia? O exterminador do futuro tomaria o poder, mas isso é o de menos. O problema é que, se Schwarzenegger se eleger governador, perderemos o exterminador.

quinta-feira, 11 de setembro de 2003

Fazer a coisa certa

Hoje é o segundo aniversário do ataque de 11 de setembro de 2001.
Nos primeiros dias após o atentado, a imprensa publicou os relatos dos parentes e dos amigos com quem as vítimas se comunicaram telefonicamente enquanto viviam sua última hora.

Mais tarde, vários sobreviventes escreveram suas memórias. O livro mais tocante talvez seja "Last Man Down: a New York City Fire Chief and the Collapse of the World Trade Center" (o último homem a descer: um chefe dos bombeiros de Nova York e o colapso do WTC), de Richard Picciotto (o oficial) e Daniel Paisner (o escritor que o ajudou na redação).

Recentemente, as autoridades do porto de Nova York tornaram públicas as gravações das chamadas que, na manhã do dia 11, foram recebidas e feitas pela central de segurança do World Trade Center. A imprensa americana reproduziu trechos.

Os livros e as dezenas de recortes de jornais e revistas estão em cima de minha mesa. No meio do luto e da tristeza pelas incertas sequelas do atentado, uma constatação salva o dia: é extraordinário como houve pessoas para fazer a coisa certa na hora do "vamos ver".
Há a força de espírito de muitas vítimas que, apesar da morte iminente, encontraram as palavras necessárias para que pudesse continuar a vida das pessoas amadas que lhes sobreviveriam. No último contato telefônico, esqueceram-se de seu desamparo para inventar um adeus que não condenasse o outro ao desespero.

E há mil gestos generosos que foram definidos como heróicos, mas que, no relato dos protagonistas, foram banais. O chefe Picciotto relata, por exemplo, sua subida à torre norte do World Trade Center e, sobretudo, sua descida. Depois do colapso da torre sul, ele mandou seus homens se colocarem a salvo e, com uma pequena tropa, continuou inspecionando cada andar para que ninguém fosse deixado para trás. Encontraram um grupo de inválidos que não podiam servir-se da escada. Começaram, então, a carregá-los, embora soubessem que provavelmente a torre na qual estavam também cairia, como aconteceu.

Picciotto foi encontrado horas mais tarde nos escombros, salvo milagrosamente por uma trave de sustentação que o abrigou.

Ora, ao ler essas histórias, sabemos imediatamente quem fez certo e quem fez errado.
Além disso, quem agiu "certo" não teve nem se deu o tempo de consultar princípios gerais ou modelos. Agiu sem hesitação e sem a consciência de um julgamento futuro em que ele poderia sair bem ou mal na foto.

O paradoxo moral que esses gestos "certos" nos propõem é o seguinte: existe, tanto nos protagonistas quanto em nós, leitores de suas gestas, um consenso imediato sobre o certo e o errado, e esse consenso não é propriamente o efeito de princípios comuns.

Claro, podemos adotar uma lista de preceitos morais instituídos: o decálogo, por exemplo. Mas logo estaremos discutindo infinitas exceções e casos particulares. Roubar é errado, mas o que pensar de Robin Hood? E a mãe que rouba uma laranja para o filho que morre de sede? Invejar é errado, mas quem dirá a diferença entre a inveja e a vontade de emular? Matar é errado, mas há a legítima defesa, a reação justificável e a eutanásia. E o que dizer do aborto? Desejar a mulher do vizinho é errado, está bem, mas e se o vizinho é um cão e a gente se apaixona?

A moral é um saber prático. Ao agir ou ao considerar as ações dos outros, sabemos o que é certo não tanto por referência racional a princípios gerais, mas porque compartilhamos experiências práticas parecidas. Se é que existe um fundo moral universal, ele não depende de um esforço racional, que seria o mesmo em todas as culturas; depende do fato de que, nas várias culturas, talvez se repitam formas básicas e comuns da experiência humana.

Os adolescentes têm razão quando acham ridículas nossas tentativas de lhes ensinar a moral à força de normas ou mesmo à força de exemplos, que, aliás, nunca se aplicam ao que eles estão vivendo. De qualquer forma, quando queremos ser exemplares, nossos atos perdem uma qualidade essencial: seu caráter espontâneo e imediato. Para transmitir algum senso moral, seria melhor simplesmente agir da maneira certa, sem fazer poses e sem recorrer a princípios.

Comecei esta coluna com o aniversário do 11 de Setembro, e eis que me ocorre mais um necrológio: poucos dias atrás, morreu Donald Davidson, aos 86 anos. Davidson era um dos maiores filósofos das últimas décadas (recentemente, em português, foi publicado "Ensaios sobre a Verdade"). Devemos-lhe uma crítica conclusiva (espera-se) do estilo racionalista cartesiano em matéria de pensamento e de busca da verdade.

Como é que, durante séculos, aceitamos como óbvio o "penso, logo existo", não sei. Mas, graças a Davidson, é possível entender que ninguém existe sozinho porque ninguém pensa sozinho. Está na hora de corrigir assim: "Converso com os outros, debato-me no mundo, logo existo". A verdade é fruto de encontros e diálogos concretos, não de deduções solitárias e abstratas.

Em matéria de moral, essa idéia é mais verdadeira ainda. Não há lições de moral nem exemplos ilustres. Só pessoas que, sem hesitar e sem saber por que, às vezes, fazem a coisa certa.

quinta-feira, 4 de setembro de 2003

Contas do passado e dificuldades do presente

Na última quinta-feira, comentei um processo que corre nestes dias nos EUA. Alguns cidadãos americanos negros e descendentes de escravos pedem reparação a companhias que lucraram com a escravatura.

Minha posição era a seguinte: simpatizo e aprovo, mas constato também que, em regra, as contas do passado atrapalham singularmente a vida de todos, a começar pela dos próprios credores e beneficiários.

Veja o que acontece em muitos divórcios. Mesmo que não haja bens para serem compartilhados, é frequente que os divorciados passem anos (se não o restante de sua existência) resmungando queixas. Eles desistem da vida para encarnar, aos olhos do mundo e aos seus próprios, a triste figura de quem foi injustiçado.

A razão dessa escolha é dupla.

Há a expectativa de que as feridas mostradas inspirem nos outros um carinho especial: tratem-me com cuidado, amem-me como um veterano inválido. Desastre: os interlocutores aguentam dificilmente, não por serem desprovidos de coração, mas porque são assim chamados à tarefa impossível de compensar perdas e dores e, portanto, confrontados com uma inevitável (e desagradável) impotência.

E há uma outra razão, mais decisiva. Nossa vida comporta sempre uma dose certa de frustrações. Atribuir falhas e malogros a uma causa definida é uma grande consolação. Não sei encontrar novos amigos e amores? É que sacrifiquei meus melhores anos a um casamento que me arrasou. Meu orçamento estoura a cada mês? É que o maldito (ou a maldita) foi embora com meu dinheiro. Não saio da depressão? É que o outro (ou a outra) levou consigo minha vontade de viver.

Vantagens presumidas e aparentes. As dores da vida me afligem, mas não são da minha conta. Meu (ou minha) "ex" é culpado (ou culpada), e todos os outros me devem comiseração e compensações.

Desvantagens efetivas. Os outros fogem de mim, eu fico só e parado (ou parada): a contabilidade do passado me impede de transformar a vida presente. A complacência com minhas condecorações de injustiçado ou injustiçada me distrai, permite que esqueça os estorvos de hoje, nos quais talvez eu pudesse intervir, se os reconhecesse.

Mas qual é a relação entre esse estado de espírito banal e as reivindicações de quem pede políticas que compensem o passado escravagista?

Uma analogia seria comprovada se ficasse claro que a atenção dada às contas do passado pode esconder outras iniquidades e contradições, cuja solução não depende de ressarcimentos.
Ora, a Century Foundation americana acaba de publicar a pesquisa "Socioeconomic Status, Race/Ethnicity and Selective College Admissions" (Status Socioeconômico, Raça/Etnia e Admissões Seletivas à Universidade; o texto é acessível no site da fundação, www.tcf.org).

Foram escolhidas as 146 universidades mais seletivas dos EUA, e a população americana foi dividida em três faixas: 50% de classe média, 25% de privilegiados e 25% de desfavorecidos.

Constatou-se que, nas ditas universidades, 74% dos estudantes provêm da faixa mais privilegiada da sociedade americana, que representa 25% da população. Inversamente, só 3% dos estudantes pertencem ao quarto mais pobre.

Fato crucial: essa desproporção não coincide com as disparidades relativas à raça ou à etnia. Negros e hispânicos constituem mais de um quarto da população americana. Nas universidades de destaque, os jovens dessas origens étnicas são, hoje, 12% do corpo estudantil. Num mundo ideal, sem racismo e sem passivo escravagista, sua percentagem deveria ser igual à da população negra ou hispânica (mais de 25%). Em suma, a discriminação e seus restos dividem pela metade o contingente dos estudantes negros e hispânicos.

Agora compare essa disparidade com a outra já mencionada: só 3% dos estudantes provêm do quarto menos favorecido da população.

Como tanto o grupo dos menos favorecidos quanto o dos negros e hispânicos constituem aproximadamente um quarto da sociedade americana, é legítimo surpreender-se com o seguinte: passeando pelos campi das melhores universidades, você tem quatro vezes mais chances de encontrar um estudante negro ou hispânico que de encontrar um estudante pobre.

Numa ótica liberal, uma composição do corpo estudantil que reflita a percentagem dos diferentes grupos sociais (étnicos e econômicos) é desejável. Pois as desigualdades produzidas por nossa organização social e produtiva são toleráveis e toleradas graças à promessa de que haja uma chance de mobilidade social aberta a todos. Por isso, consideramos justo que, no ensino superior, todos os grupos sociais sejam representados de maneira compatível com sua relevância numérica no conjunto da população.

Desse ponto de vista, a injustiça contra os pobres, na sociedade americana de hoje, é quatro vezes mais dramática que a injustiça contra minorias étnicas.

Por que, então, nos debates políticos e midiáticos, só se fala de ações afirmativas em favor de minorias étnicas?

Volte ao caso dos divorciados: contabilizar e mesmo compensar as dívidas do passado é mais cômodo do que encarar as contradições do presente.

quinta-feira, 28 de agosto de 2003

Danos, compensações e revolta

Exatamente 40 anos atrás, em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King Jr. pronunciou seu discurso mais famoso, "Eu Tive um Sonho", em que imaginava um mundo sem segregação racial.

Nestes dias, numa Corte Federal de Chicago, Illinois, EUA, uma dúzia de americanos de origem africana, descendentes de escravos, pedem reparação a algumas grandes companhias que, no século 19, lucraram com a escravatura. Trata-se de empresas que se serviram de trabalho escravo, financiaram outras que empregavam escravos ou faziam seguros para navios negreiros.
Como compensação, é pedido que elas reconheçam publicamente sua culpa e criem um fundo que proporcione e administre serviços de saúde, moradia e educação para a população afro-americana.

Deixando os argumentos legais aos advogados, como situar-se nessa história?
Um exemplo mencionado pelo "Boston Globe" de domingo passado: Hannah Hurdle Toomey, 71, do Estado de Illinois, narra que seu pai, Andrew Hurdle (morto em 1935), aos dez anos de idade, foi leiloado a um fazendeiro do Texas.

De fato, muitos afro-americanos contam um escravo ou uma escrava entre seus ascendentes próximos, a três gerações de distância. A coisa não pode ser diferente para os afro-brasileiros. Em suma, o dano da escravatura não é muito remoto. Faz sentido pensar que ele ainda acarrete efeitos na vida dos descendentes que hoje exigem reparação.

Além disso, tenho uma simpatia imediata por qualquer movimento que proponha ampliar os limites habituais da responsabilidade jurídica e moral.

Acho divertido (e violentamente subversivo) o projeto dos anárquicos americanos e canadenses que querem abolir a responsabilidade limitada, de forma que os acionistas de uma empresa sejam civil e penalmente responsáveis pelos atos da companhia da qual adquirem uma parte, por mínima que seja. Revolução moral: na hora de comprar ações, antes de consultar perspectivas e resultados financeiros, seria preciso debruçar-se sobre as consequências jurídicas das operações das empresas nas quais investimos nossa poupança.

Da mesma forma, acharia ótimo que quem roubasse dinheiro público respondesse, por exemplo, pelo homicídio culposo dos doentes e dos acidentados que seriam salvos caso a assistência sanitária dispusesse de meios melhores.

Em suma, simpatizo com a queixa de Chicago.

Ao mesmo tempo, impõe-se uma dupla constatação.

1) Encontro cada vez mais sujeitos que se proclamam injustiçados ou injustiçadas. Eles não inventam nada, alguma injustiça lhes foi feita mesmo: um sócio os arruinou, um cônjuge os traiu e abandonou, um pai os seviciou. O que distingue esses sujeitos não é o caráter excepcional dos maus-tratos que sofreram, mas o fato de que se definem pela injustiça da qual foram vítimas: nada os interessa, nada os mobiliza que não possa ser contabilizado como ressarcimento de perdas do passado.

Paradoxo: só pedem compensação, mas declaram que não há compensação que possa abolir o dano sofrido. Claro, se pudessem ser indenizados, deveriam mudar radicalmente seu jeito de ser, e ninguém gosta de abandonar sua neurose.

Os injustiçados são, desse ponto de vista, perfeitamente adequados aos tempos, ou seja, ao espírito da sociedade de consumo: na forma de dano irreparável, eles cultivam uma insatisfação que nada é capaz de esgotar, mas não param de acreditar que algum bem possa um dia compensar adequadamente suas perdas.

Quando aluga um amigo ou um terapeuta, o injustiçado encontra, geralmente, dois tipos de resposta. Um interlocutor pode tentar convencê-lo de que a falta (no caso, a injustiça sofrida) é, por assim dizer, originária, constitutiva do ser humano e da ordem do mundo: nada contrabalançará seu dano, mostre sua maturidade pela aceitação. Outro interlocutor o exorta a ir em frente: não pode recuperar sua fortuna ou a juventude sacrificada a quem não o amava? Pois é, coloque o pé no acelerador, toque uma música legal, esqueça o dano e console-se com o que vier.

Claro, nada funciona: a neurose do espírito dos tempos exige os dois termos, falha irreparável e espera de que algo compense.

2) Os movimentos que, desde os anos 60, vêm mudando a cara de nossa sociedade adotam frequentemente, nas últimas duas décadas, o estilo dos injustiçados: enveredam pela contabilidade impossível das reparações.

Não conheço os cidadãos que promovem a queixa de Chicago. Não sei se eles se percebem como injustiçados no sentido que especifiquei.

Mas penso no gesto de Rosa Parks, a costureira negra que, num dia de 1955, em Montgomery, Alabama, sentou-se nas fileiras do ônibus reservadas aos brancos e não quis mais se mexer. Ela não pedia compensação por danos sofridos nem, a bem dizer, lutava por um futuro diferente. A repercussão de seu ato (que iniciou o movimento americano dos direitos civis e convocou o jovem Martin Luther King para a luta) deve-se, provavelmente, ao fato seguinte: Rosa Parks não cobrou créditos passados nem futuros, apenas revoltou-se, ou seja, autorizou-se a viver o presente que queria e que lhe parecia justo. Com isso, transformou sua vida e o mundo.

quinta-feira, 21 de agosto de 2003

O casamento gay e a volta da intolerância



No fim de julho, o papa exortou os políticos católicos a combater qualquer lei que legalize a união de casais homossexuais. Os não-católicos, ele acrescentou, deveriam pegar carona com a Igreja de Roma para defender a "lei moral natural".

Quase simultaneamente, o presidente Bush declarou que casamento deve ser entre homem e mulher, embora lembrando que é preciso respeitar as escolhas amorosas de todos. Ele expressava assim a contradição de seu eleitorado, que é cristão e conservador, mas que é também americano, ou seja, não gosta que o Estado se meta na vida privada dos cidadãos.
Na semana seguinte, a Igreja Episcopal enfrentou uma ameaça de cisma ao aprovar a nomeação de um bispo assumidamente homossexual.

Eu imaginava que esses eventos despertariam debates adormecidos sobre a existência ou não de princípios morais "naturais", sobre o caráter laico do Estado etc. Aprestava-me a participar quando, no começo de agosto, foram publicados os resultados surpreendentes de uma pesquisa de opinião do instituto Gallup.

Resumindo: entre os americanos, houve um repentino declínio da aprovação da "agenda gay". Em maio passado, 60% dos americanos pensavam que as relações homossexuais deveriam ser legais; hoje, só 48% pensam assim. Desde 1997, uma maioria (crescente) de americanos afirmava que ser gay é "um estilo de vida aceitável". Hoje essa é a opinião de uma minoria. A queda não vale apenas para as fileiras conservadoras: quase um quarto dos democratas favoráveis à união civil gay mudou de opinião. O que aconteceu?

Primeira explicação: a idéia do casamento gay produz uma resistência particular. Por quê? O americano médio divorcia-se sem muita hesitação, mas, paradoxalmente, mais de 80% dos casais americanos confirmam sua união numa cerimônia religiosa. Ou seja, os casamentos acontecem e quebram-se segundo as variações das paixões e dos desejos, mas ninguém admite. Quase todos preferem continuar concebendo o casamento como sacramento eterno, orientado pelo projeto de criar filhos. Nesse contexto, a idéia do casamento gay (que é sempre efeito de uma escolha afetiva) é incômoda, pois desvenda uma verdade que vale para quase todos os casamentos modernos: eles são instáveis não por acidente, mas por essência, por serem cimentados mais pela precariedade dos sentimentos que por compromissos solenes e procriativos diante de Deus.

Segunda explicação. Nos últimos tempos, o estilo de vida gay triunfou na cultura popular americana. O canal de televisão a cabo Bravo propõe, com grande sucesso, o show "Queer Eye for a Straight Guy" (olhar homo para um cara hétero). A cada semana, cinco gays reorganizam a vida de um heterossexual: arrumam sua casa, sua aparência física, suas escolhas de indumentária, suas maneiras, ensinando-lhe "estilo, bom gosto e classe". Os gays se tornaram alvos privilegiados e explícitos de muitas propagandas por serem, em média, segundo as pesquisas de mercado, consumidores mais abastados e mais requintados que os heterossexuais. Quando a mídia recenseia a vida noturna e os prazeres do momento, as boates e os clubes gays lotam regularmente os primeiros lugares das listas.

Em suma, o universo gay está se tornando, na cultura popular, um ideal de hedonismo bem-sucedido: "Eles, sim, têm uma vida boa". Subentendido: não a gente. Quando, numa proposição que habita a mente do homem da rua, o sujeito é uma terceira pessoa do plural ("eles"), a paranóia nunca está longe.

É fácil objetar que há uma grande distância entre o ideal da vida gay, que assombra a cabeça dos heterossexuais, e a realidade do universo gay, que não é tão gaio assim. Além disso, o dito estilo de vida gay concerne a uma minoria de homossexuais, que talvez sejam fascinados pela imagem que lhes é proposta, como um espelho, pelos heterossexuais que os idealizam.

Mas não adianta objetar: há uma razão de fundo que alimenta a idealização coletiva do universo gay. Os homossexuais, reprimidos por causa de suas práticas sexuais, só puderam reivindicar respeito e liberdade constituindo-se como grupo definido por sua sexualidade sufocada.

Consequência: eles são o único grupo social que deve sua consistência a uma modalidade comum de desejo sexual. A coesão feminista das mulheres, por exemplo, é decidida pelo sexo biológico e pela discriminação comum no trabalho e na vida de família, não por uma preferência sexual. Travestis e transexuais se definem como grupos a partir da experiência comum de um desacordo entre seu sexo biológico e seu gênero, não por uma preferência sexual.

Por isso, por serem o único grupo social definido pela forma de seus prazeres, os homossexuais encarnam facilmente, aos olhos dos "normais", um ideal genérico de prazer sexual: "eles" ("à diferença de nós") ousam e sabem gozar.

É um privilégio duvidoso. Afinal, na Europa de 70 anos atrás, os judeus eram aqueles que, "à diferença da gente", ousavam e sabiam fazer dinheiro, não é?

Quem é idealizado por saber pretensamente, de uma forma ou de outra, aproveitar a vida, mais cedo ou mais tarde, acaba sendo apontado como o responsável por nossas privações. A lógica corre assim: eles sabem gozar, eles têm o prazer que não tenho, eles me privam. A idealização do gozo dos outros é, frequentemente, a antecâmara do ódio e da perseguição.

Escuto, nestes dias, aqui no Brasil, vozes pretensamente liberais contra o casamento gay. Comentam: "Eles querem casar? Mas que coisa mais careta! A gente esperava deles que fossem os porta-bandeiras da revolução sexual". É um jeito velado de dizer: já gozam mais que a gente, agora vão apoderar-se também dos modestos prazeres do lar, os únicos que nos sobram?