quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Aproveitar a vida e suas dores




Meu ideal não é a felicidade, mas a variedade e a intensidade das experiências, sejam alegres ou penosas


Com frequência, em conversas e entrevistas, alguém me pergunta o que penso da felicidade -obviamente, na esperança de que eu espinafre esse "ideal dominante" de nossos tempos.
Na verdade, não sei se a felicidade é mesmo um ideal dominante.


Claro, o casal e a família felizes são estereótipos triviais: "Com esta margarina ou com este carro sua vida se abrirá num sorriso de 'folder' ou de comercial". Mas ninguém leva isso a sério, nem os que declaram que tudo o que querem é ser felizes.


Se alguém levasse a busca da felicidade a sério, ele se drogaria, e não com remédios ou substâncias de efeito incerto e insuficiente: só crack ou heroína -tiros certeiros.


O que resta é a felicidade como tentação, como uma vontade de cair fora, compreensível quando a vida nos castiga muito. Fora isso, minha aspiração dominante não é a de ser feliz: quero viver o que der e vier, comédias, tangos e também tragédias -quanto mais plenamente possível, sem covardia.


Meu ideal de vida é a variedade e a intensidade das experiências, sejam elas alegres ou penosas.


Há indivíduos que pedem para ser medicados preventivamente, de maneira a evitar a dor de um luto iminente. É o contrário do que eu valorizo; penso como Roland Barthes: "Luto. Impossibilidade -indignidade- de confiar a uma droga -sob pretexto de depressão- o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma 'possessão' -uma alienação (algo que nos torna estrangeiros)- enquanto ele é um bem essencial, íntimo...".


O trecho está na pág. 159 de "Diário de Luto", que acaba de ser publicado em português (WMF Martins Fontes, excelente tradução de Leyla Perrone-Moisés).


São as fichas nas quais Barthes registrou sua dor entre outubro de 1977 (a morte da mãe) e setembro de 1979 (poucos meses antes de ele mesmo sofrer um atropelamento cujas consequências seriam fatais).


Logo nestes dias, um amigo meu, Paulo V., está perdendo seu pai. Ele me escreve, consternado, que "nada sobrará" do pai: uma cadeira vazia, gavetas de roupas e papéis e que mais? A lembrança se perderá com a vida do filho, que não lhe deu netos e de quem também nada sobrará. A resposta que encontro, para meu amigo, é uma questão: por que uma vida não se bastaria, mesmo que não sobre nada e, a médio prazo, ninguém se lembre?


Barthes se pergunta se ele estaria escrevendo "para combater a dilaceração do esquecimento na medida que ele se anuncia como absoluto. O -em breve- 'nenhum rastro', em parte alguma, em ninguém" (pág. 110). Mas suas anotações não são um monumento fúnebre para a mãe.


Para Barthes, escrever é o jeito de abraçar a experiência, de vivê-la plenamente. Ele se revolta contra as distrações e as explicações consolatórias dos amigos; recusa as teorias que lhe prometeriam um bom decurso de seu luto ("Não dizer luto. É psicanalítico demais. Não estou de luto. Estou triste") e foge, embora a contragosto, das crenças que apaziguariam a dor ("que barbárie não acreditar nas almas -na imortalidade das almas! Que verdade imbecil é o materialismo!").


Enfim, Barthes chega quase a recear que o luto acabe, como se, além da mãe adorada, ele temesse perder também, aos poucos, sua experiência dessa perda.


Meses depois da morte dos meus pais, havia momentos em que eu lamentava que meus afetos e pensamentos voltassem "ao normal", como se minha vida fosse mais pobre sem aquela dor. 

E havia outros em que, de repente, um detalhe me fisgava, até às lágrimas. Esses momentos eu acolhia com alegria.

Como Barthes anota, a dor do luto pode deixar de ser o afeto dominante, mas ela sempre volta, com a mesma força: "O luto não se desgasta porque não é contínuo" (pág. 92).

Falando em "detalhes" que fisgam, as anotações de Barthes reabriram a ferida de quando ele morreu, mais de 30 anos atrás.

De que sinto mais falta? Do timbre de sua voz e de duas coisas que, de uma certa forma, faziam parte do timbre de sua voz.

Sinto falta de seu gosto pela inconsistência das ideias e dos saberes ("proporcionalmente à consistência desse sistema, sinto-me excluído dele", pág. 73).

E sinto falta de sua coragem para falar a partir da singularidade de sua experiência, sem a menor pretensão de erigi-la numa generalidade que valha para os outros.

Em suma, sinto falta dele, mas não é só que eu sinto falta dele, é que ele, ainda hoje, faz falta.


Meus pais são bipolares




Hoje, a bipolaridade não é só um transtorno para alguns mas um traço da personalidade de todos nós


O termo "bipolar" se tornou corriqueiro na boca dos adolescentes. Não é que eles citem diagnósticos psiquiátricos, no estilo "sabe, minha mãe toma remédio porque os médicos dizem que ela é bipolar".
Nada disso; para eles, o termo é a descrição genérica de um estado de espírito dominado por altos e baixos radicais. Além disso, muitos adolescentes acham que, hoje, ser bipolar é a regra.
Não acho ruim que termos clínicos se vulgarizem e entrem na linguagem comum. Só me preocupa o fato de que, às vezes, psiquiatras e psicólogos adotam essa vulgarização, confundindo a tristeza banal com o transtorno depressivo ou, então, variações do humor banais com o transtorno bipolar.
Com isso, claro, a indústria farmacêutica faz a festa, pois vende antidepressivos a pessoas que estão apenas tristonhas ou morosas e estabilizadores do humor a pessoas que são apenas mais alegres pela manhã do que à noite. Seja como for, talvez os adolescentes tenham razão. Talvez a bipolaridade, além de um transtorno para alguns, seja hoje um traço da personalidade de todos nós. Por quê? Um pequeno desvio para responder.
Existe um grupo de trabalho encarregado de revisar o "Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais", cuja quinta versão ("DSM V") será publicada em 2013. Esse grupo manifesta periodicamente suas decisões e seus pensamentos no site www.dsm5.org. Foi assim que em 2010, se não me engano, soubemos que o "transtorno da personalidade narcisista" sumiria da próxima versão do "Manual". Tanto mais bizarro que, aos olhos de muitos (assim como aos meus), a personalidade narcisista, longe de estar extinta, é a que melhor resume a subjetividade contemporânea. Antes de defini-la, vamos ver quais foram as reações.
A más línguas observaram que sempre somem os transtornos contra os quais a indústria farmacêutica não tem remédios para vender (não existe pílula para transtorno narcisista, enquanto existem várias para bipolaridade e depressão).
Outros, considerando que o transtorno da personalidade narcisista coincidiria com o espírito de nossa época, acharam normal que ele não fosse mais considerado como uma patologia.
Enfim, muitos psicanalistas (sobretudo alunos de Heinz Kohut e de Otto Kernberg, grandes intérpretes do narcisismo) protestaram, e eis que, numa revisão de 21 de junho passado, o transtorno narcisista reapareceu no "DSM" (http://migre.me/5JNlu).
Em síntese, o narcisista não é, como sugere a vulgata do mito de Narciso, alguém apaixonado por si mesmo ou por sua imagem no espelho. Ao contrário, o problema do narcisista é que ele depende totalmente dos outros para se definir e para decidir seu próprio valor: ele se orienta na vida só pela esperança de encontrar a aprovação do mundo.
Infelizmente, nunca sabemos por certo o que os outros enxergam em nós. Às vezes, o narcisista se exalta com visões grandiosas de si, ideias infladas do amor e da apreciação dos outros por ele; outras vezes, ao contrário, ele despenca no desamparo, convencido de que ninguém o ama ou aprecia.
Ora, a modernidade é isso: um mundo sem castas fixas, onde cada um pode subir ou descer na vida justamente porque seu lugar no mundo depende da consideração (variável e sempre um pouco enigmática) que os outros têm por ele.
Ou seja, a modernidade nos predispõe a um transtorno narcisista permanente e, no coração dessa personalidade narcisista (sina de nosso tempo), há uma oscilação bipolar.
O adolescente tem razão: a bipolaridade talvez seja especialmente manifesta nos pais. Como disse, na sociedade moderna, só somos o que os outros reconhecem que sejamos, e os pais não são uma exceção a essa regra.
Nem lei simbólica, nem legado divino, nem provas genéticas bastam para me transformar em pai ou mãe de meus filhos. Hoje, para eu ser pai ou mãe, é preciso que os filhos me reconheçam como tal, ou seja, sem o amor e o respeito de meus filhos, eu não serei nem pai nem mãe.
Consequência: todo pai moderno é condenado à bipolaridade, entre a felicidade de ser genitor e uma consternadora queda do alto dessa nuvem. Se ele tenta educar, corre o risco de não ser mais amado e, portanto, de não ser mais pai.
Se desiste de educar para ser amado, corre o risco de não ser mais respeitado -ou seja, novamente, de não ser mais pai. É isso: os pais são bipolares.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Aproveitar a vida e suas dores




Meu ideal não é a felicidade, mas a variedade e a intensidade das experiências, sejam alegres ou penosas

Com frequência, em conversas e entrevistas, alguém me pergunta o que penso da felicidade -obviamente, na esperança de que eu espinafre esse "ideal dominante" de nossos tempos.
Na verdade, não sei se a felicidade é mesmo um ideal dominante.
Claro, o casal e a família felizes são estereótipos triviais: "Com esta margarina ou com este carro sua vida se abrirá num sorriso de 'folder' ou de comercial". Mas ninguém leva isso a sério, nem os que declaram que tudo o que querem é ser felizes.
Se alguém levasse a busca da felicidade a sério, ele se drogaria, e não com remédios ou substâncias de efeito incerto e insuficiente: só crack ou heroína -tiros certeiros.
O que resta é a felicidade como tentação, como uma vontade de cair fora, compreensível quando a vida nos castiga muito. Fora isso, minha aspiração dominante não é a de ser feliz: quero viver o que der e vier, comédias, tangos e também tragédias -quanto mais plenamente possível, sem covardia.
Meu ideal de vida é a variedade e a intensidade das experiências, sejam elas alegres ou penosas.
Há indivíduos que pedem para ser medicados preventivamente, de maneira a evitar a dor de um luto iminente. É o contrário do que eu valorizo; penso como Roland Barthes: "Luto. Impossibilidade -indignidade- de confiar a uma droga -sob pretexto de depressão- o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma 'possessão' -uma alienação (algo que nos torna estrangeiros)- enquanto ele é um bem essencial, íntimo...".
O trecho está na pág. 159 de "Diário de Luto", que acaba de ser publicado em português (WMF Martins Fontes, excelente tradução de Leyla Perrone-Moisés).
São as fichas nas quais Barthes registrou sua dor entre outubro de 1977 (a morte da mãe) e setembro de 1979 (poucos meses antes de ele mesmo sofrer um atropelamento cujas consequências seriam fatais).
Logo nestes dias, um amigo meu, Paulo V., está perdendo seu pai. Ele me escreve, consternado, que "nada sobrará" do pai: uma cadeira vazia, gavetas de roupas e papéis e que mais? A lembrança se perderá com a vida do filho, que não lhe deu netos e de quem também nada sobrará. A resposta que encontro, para meu amigo, é uma questão: por que uma vida não se bastaria, mesmo que não sobre nada e, a médio prazo, ninguém se lembre?
Barthes se pergunta se ele estaria escrevendo "para combater a dilaceração do esquecimento na medida que ele se anuncia como absoluto. O -em breve- 'nenhum rastro', em parte alguma, em ninguém" (pág. 110). Mas suas anotações não são um monumento fúnebre para a mãe.
Para Barthes, escrever é o jeito de abraçar a experiência, de vivê-la plenamente. Ele se revolta contra as distrações e as explicações consolatórias dos amigos; recusa as teorias que lhe prometeriam um bom decurso de seu luto ("Não dizer luto. É psicanalítico demais. Não estou de luto. Estou triste") e foge, embora a contragosto, das crenças que apaziguariam a dor ("que barbárie não acreditar nas almas -na imortalidade das almas! Que verdade imbecil é o materialismo!").
Enfim, Barthes chega quase a recear que o luto acabe, como se, além da mãe adorada, ele temesse perder também, aos poucos, sua experiência dessa perda.
Meses depois da morte dos meus pais, havia momentos em que eu lamentava que meus afetos e pensamentos voltassem "ao normal", como se minha vida fosse mais pobre sem aquela dor. E havia outros em que, de repente, um detalhe me fisgava, até às lágrimas. Esses momentos eu acolhia com alegria.
Como Barthes anota, a dor do luto pode deixar de ser o afeto dominante, mas ela sempre volta, com a mesma força: "O luto não se desgasta porque não é contínuo" (pág. 92).
Falando em "detalhes" que fisgam, as anotações de Barthes reabriram a ferida de quando ele morreu, mais de 30 anos atrás.
De que sinto mais falta? Do timbre de sua voz e de duas coisas que, de uma certa forma, faziam parte do timbre de sua voz.
Sinto falta de seu gosto pela inconsistência das ideias e dos saberes ("proporcionalmente à consistência desse sistema, sinto-me excluído dele", pág. 73).
E sinto falta de sua coragem para falar a partir da singularidade de sua experiência, sem a menor pretensão de erigi-la numa generalidade que valha para os outros.
Em suma, sinto falta dele, mas não é só que eu sinto falta dele, é que ele, ainda hoje, faz falta.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Meus pais são bipolares




Hoje, a bipolaridade não é só um transtorno para alguns mas um traço da personalidade de todos nós


O termo "bipolar" se tornou corriqueiro na boca dos adolescentes. Não é que eles citem diagnósticos psiquiátricos, no estilo "sabe, minha mãe toma remédio porque os médicos dizem que ela é bipolar".
Nada disso; para eles, o termo é a descrição genérica de um estado de espírito dominado por altos e baixos radicais. Além disso, muitos adolescentes acham que, hoje, ser bipolar é a regra.
Não acho ruim que termos clínicos se vulgarizem e entrem na linguagem comum. Só me preocupa o fato de que, às vezes, psiquiatras e psicólogos adotam essa vulgarização, confundindo a tristeza banal com o transtorno depressivo ou, então, variações do humor banais com o transtorno bipolar.
Com isso, claro, a indústria farmacêutica faz a festa, pois vende antidepressivos a pessoas que estão apenas tristonhas ou morosas e estabilizadores do humor a pessoas que são apenas mais alegres pela manhã do que à noite. Seja como for, talvez os adolescentes tenham razão. Talvez a bipolaridade, além de um transtorno para alguns, seja hoje um traço da personalidade de todos nós. Por quê? Um pequeno desvio para responder.
Existe um grupo de trabalho encarregado de revisar o "Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais", cuja quinta versão ("DSM V") será publicada em 2013. Esse grupo manifesta periodicamente suas decisões e seus pensamentos no site www.dsm5.org. Foi assim que em 2010, se não me engano, soubemos que o "transtorno da personalidade narcisista" sumiria da próxima versão do "Manual". Tanto mais bizarro que, aos olhos de muitos (assim como aos meus), a personalidade narcisista, longe de estar extinta, é a que melhor resume a subjetividade contemporânea. Antes de defini-la, vamos ver quais foram as reações.
A más línguas observaram que sempre somem os transtornos contra os quais a indústria farmacêutica não tem remédios para vender (não existe pílula para transtorno narcisista, enquanto existem várias para bipolaridade e depressão).
Outros, considerando que o transtorno da personalidade narcisista coincidiria com o espírito de nossa época, acharam normal que ele não fosse mais considerado como uma patologia.
Enfim, muitos psicanalistas (sobretudo alunos de Heinz Kohut e de Otto Kernberg, grandes intérpretes do narcisismo) protestaram, e eis que, numa revisão de 21 de junho passado, o transtorno narcisista reapareceu no "DSM" (http://migre.me/5JNlu).
Em síntese, o narcisista não é, como sugere a vulgata do mito de Narciso, alguém apaixonado por si mesmo ou por sua imagem no espelho. Ao contrário, o problema do narcisista é que ele depende totalmente dos outros para se definir e para decidir seu próprio valor: ele se orienta na vida só pela esperança de encontrar a aprovação do mundo.
Infelizmente, nunca sabemos por certo o que os outros enxergam em nós. Às vezes, o narcisista se exalta com visões grandiosas de si, ideias infladas do amor e da apreciação dos outros por ele; outras vezes, ao contrário, ele despenca no desamparo, convencido de que ninguém o ama ou aprecia.
Ora, a modernidade é isso: um mundo sem castas fixas, onde cada um pode subir ou descer na vida justamente porque seu lugar no mundo depende da consideração (variável e sempre um pouco enigmática) que os outros têm por ele.
Ou seja, a modernidade nos predispõe a um transtorno narcisista permanente e, no coração dessa personalidade narcisista (sina de nosso tempo), há uma oscilação bipolar.
O adolescente tem razão: a bipolaridade talvez seja especialmente manifesta nos pais. Como disse, na sociedade moderna, só somos o que os outros reconhecem que sejamos, e os pais não são uma exceção a essa regra.
Nem lei simbólica, nem legado divino, nem provas genéticas bastam para me transformar em pai ou mãe de meus filhos. Hoje, para eu ser pai ou mãe, é preciso que os filhos me reconheçam como tal, ou seja, sem o amor e o respeito de meus filhos, eu não serei nem pai nem mãe.
Consequência: todo pai moderno é condenado à bipolaridade, entre a felicidade de ser genitor e uma consternadora queda do alto dessa nuvem. Se ele tenta educar, corre o risco de não ser mais amado e, portanto, de não ser mais pai.
Se desiste de educar para ser amado, corre o risco de não ser mais respeitado -ou seja, novamente, de não ser mais pai. É isso: os pais são bipolares.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

De 11 a 15 de setembro de 2001




O terrorista é atormentado pela tentação de ser "convertido" pelo Ocidente e, por isso, já nasce derrotado



Em 2001, eu morava em Nova York, mas, na manhã de 11 de setembro, estava em São Paulo, atendendo no consultório. Alguém me telefonou dos Estados Unidos: "Ligue a CNN". Passei o dia diante da televisão.

Só levantava para me desculpar com os pacientes por não poder atendê-los naquele dia. Um amigo chegou depois da queda das torres e perguntou: "Você conhecia alguém que estava lá?". Ele me lembrou que eu respondi: "Todos, conhecia todos".

E era verdade: o engraxate, o garçom, o gestor de fundos da Cantor Fitzgerald, o bombeiro, o policial, o advogado, o segurança, a secretária, de todas as nações, fés e classes -eu era capaz de empatia com os sonhos de cada um deles: o imigrante sem documentos querendo "fazer a América"; o "senior partner" esperando pela aposentadoria; o jovem louco para fazer seu primeiro milhão; o outro que já o tinha feito e se perguntava se, casando, ele se mudaria para Westchester ou para Brooklyn Heights; o homem já maduro que acabava de decidir que, no dia de Ação de Graças, levaria o namorado para a casa dos pais, para explicar, enfim, que era homossexual e estava cansado de mentir.

Eles eram minha turma, eu era um deles, justamente pelas razões que os juntaram nas torres do World Trade Center: os anseios básicos da mente ocidental (o sonho de merecer a admiração ou, mais mesquinhamente, a inveja dos outros, a vontade sempre frustrada de não renunciar a suas paixões, a ambição, também frustrada, de escutar só seu nariz e seu foro íntimo).

Sentia culpa por não ter estado em Nova York, com eles, na hora do ataque. Pensava nas palavras de meu pai, quando, na Itália dos anos 70, ele tinha me acompanhado numa manifestação que talvez fosse alvo dos terroristas de direita. Ele tinha dito: "Não vamos deixar que eles influenciem nossa vida simplesmente porque acham que podem decidir o dia de nossa morte".

Se me lembro direito, embarquei no voo para o qual eu já tinha reserva, o AA 950 de sexta-feira, 14 de setembro, que foi o primeiro a sair de São Paulo depois do ataque. Houve aplausos na chegada, para agradecer à tripulação (a dos voos abatidos e a do nosso); lembro-me de que a tripulação nos aplaudiu de volta. Em Nova York, desci a pé ao sul da Canal Street.

Foi o começo de um velório coletivo que durou meses: noites passadas com desconhecidos, sobre a passarela da Chambers Street, olhando em direção ao marco zero e vendo os caminhões que, noite adentro, esvaziavam os escombros, subindo pela West Street. Pouco tempo depois do ataque, George Bush encorajou todo o mundo a fazer compras, "para sustentar a economia da cidade" -ridículo, mas era também um jeito de declarar que o atentado não alteraria nossa maneira de viver. A melhor resposta ao terror é não deixar que o medo nos modifique. Por isso protestei contra o uso da tortura e contra a prisão em Guantánamo -não por razões humanitárias, mas para não ser transformado pelo terror.

 Na segunda-feira seguinte, fui para Boston, de onde escrevi a coluna de 20 de setembro de 2001 ("De Onde Vêm os Terroristas"), na qual expressava ideias que se tornariam óbvias só bem mais tarde. "Os terroristas que atacaram o World Trade Center e o Pentágono viveram tempos longos no Ocidente. Frequentaram universidades e escolas de pilotagem. Não eram pastores descidos das montanhas. Os comentaristas estranham: 'Como é possível? Moraram entre nós durante tanto tempo e puderam fazer isso? Ou seja, será que nossa sedução não funcionou?'. Justamente: ela funcionou demais. A ponto de eles terem decidido destruir o objeto de seus desejos.

A interpretação política de seus atos será sempre insuficiente: as Torres Gêmeas, para eles, eram símbolos não tanto de poder quanto de tentação. Sua 'guerra santa' foi isso: mataram os infiéis nos quais receavam (e desejavam) se transformar. E mataram a si mesmos para nunca mais serem seduzidos." O terrorista é atormentado por uma tremenda tentação de ser "convertido" pelo Ocidente. Por isso o terrorismo nasce derrotado -por ser filho de uma inveja que só existe em quem já se vendeu ao suposto inimigo.

Em suma, os terroristas de hoje nos matam por raiva de quererem ser como a gente: traíram sua cultura e estão em busca de redenção.

Nota: o livro de A. Appadurai, que citei na semana passada, existe em português, "A Vida Social das Coisas" (Eduff).

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Grandeza das "futilidades"




Numa sociedade livre, as "futilidades" são gênero de primeira necessidade, parte da cesta básica

NO COMEÇO de agosto, jovens londrinos foram às ruas (e aos saques) apoderando-se de bugiganga eletrônica e roupa de marca; mencionei esse fato na coluna da semana passada.

Alguns leitores entenderam que eu desaprovava a revolta pela futilidade de seus motivos, um pouco como Luiz Felipe Pondé ao apresentar a turba como um recém-nascido MSI, Movimento dos sem iPad (na Folha de 22 de agosto).

Os mesmos leitores atribuíram aos manifestantes uma motivação "mais nobre". Por exemplo, @blogsessao, no Twitter, afirmou que os jovens não arriscariam suas vidas por bugiganga: eles deviam estar protestando contra desemprego, violência policial etc. -coisas mais sérias.

Pois bem, contrariamente a @blogsessao, acho que os jovens queriam mesmo os objetos que roubaram. E, contrariamente a Pondé (e também a @blogsessao), acho que os objetos que eles roubaram não têm nada de fútil: na modernidade, as aparências e os objetos de consumo são atributos constitutivos da subjetividade e da liberdade. Explico.

Até o século 18, um nobre poderia chegar a uma festa a pé e, mesmo assim, ele seria recebido com a honra devida à sua condição. Seus eventuais apetrechos (roupa, aparato) eram seu direito exclusivo (alguém que não fosse nobre não poderia usar os mesmos), mas a honra era devida ao seu berço, não ao seu aparato.
Hoje, chegando a uma boate, seu carro, seu estilo ou sua roupa podem fazer que você seja admitido ou barrado. Será que nos tornamos escravos dos objetos e do aparato?

Ao contrário, os objetos e o aparato são a condição de uma liberdade inédita, porque, hoje, ninguém será barrado na festa porque nasceu num berço humilde -só se ele tiver escolhido o aparato errado.

Alguém dirá que o aparato custa dinheiro: os direitos conferidos pela riqueza teriam substituído os conferidos por nascença. É possível, mas, em tese, todos podem enriquecer e, hoje, o estilo vale tanto quanto a riqueza (há festas nas quais só se entra de meia furada e calçado ortopédico velho).

Mas voltemos a algo que talvez não tenha ficado claro quando falei do aparato que era direito exclusivo do nobre. Com a modernidade, acabaram as leis suntuárias, que serviam para colocar ordem nos costumes e na sociedade. Por exemplo, as prostitutas deviam se vestir de um certo jeito -sempre, não só no exercício da profissão. E os artesãos e comerciantes não podiam imitar as vestimentas e os aparatos dos nobres. Desde a Idade Média, essas leis eram uma tentativa de a nobreza frear o consumo e o prestígio dos burgueses, que estavam ficando cada vez mais influentes. Ou seja, eram maneiras de resistir a um mundo em que o acesso ao poder não dependeria mais da nascença.

Em suma, objetos, aparato e aparências, em sua suposta futilidade, são a chave de nossa liberdade para circular na hierarquia social, entrar em grupos diferentes do grupo no qual nascemos.

Alguém dirá: tudo isso é muito bom, mas será que a necessidade não deveria ser mais importante do que as futilidades de aparato e aparência, por mais que elas nos prometam liberdade?

Nos anos 70, na Índia, numa campanha de controle da natalidade, os indigentes podiam escolher: em troca de sua esterilização, receberiam um saco de arroz ou um rádio de pilha. Muitos escolhiam o rádio (embora não tivessem chance alguma de, um dia, comprar pilhas novas).

Hoje, no Rajastão, entre os que aceitam a esterilização, são sorteados televisores, liquidificadores, motocicletas, e um Tata Nano, o carro mais barato do mundo ("BBC Mobile", 1/07/11).

Tenho carinho pelos indigentes que preferiam o rádio e hoje sonham com o carro: a cultura à qual pertenço começa quando ter desejos e ser reconhecido pelos outros se torna tão importante quanto silenciar o ronco da fome.

Conclusão: lugar de saqueador é na delegacia. Agora, quem rouba iPads não é mais culpado do que aquele que rouba pão, porque, numa sociedade livre, em que a vida depende tanto do olhar dos outros quanto de mil calorias diárias, as pretensas "futilidades" (objetos de consumo e de aparato) são gênero de primeira necessidade, parte da cesta básica.

Para ler mais: o clássico "The Social Life of Things", de A. Appadurai (Cambridge University Press). Acaba de sair o ótimo "Sumptuary Law in Italy 1200-1500", de C. Kovesi Killerby (Oxford).