quinta-feira, 14 de novembro de 2002

Suzane: pano de fundo

É sábado . Parece que, na cidade, só se fala da confissão de Suzane von Richthofen. Com o namorado e o irmão dele, ela levou a cabo o assassinato de seus pais, que se opunham ao namoro. Calma, não é necessário trancar os quartos; filhos e filhas não nos matarão nesta noite. Mas muitos pais se perguntam: a casa dos Richthofen era muito diferente da nossa?

À noite, vou ao shopping Frei Caneca, para assistir a "Madame Satã", e João, motorista do táxi Abreu que me leva, comenta sobre Suzane: "Matar os pais por causa do namorado é safadeza mesmo". Parece-lhe intolerável que a cumplicidade com namorados e amigos prevaleça sobre a aliança entre pais e filhos. Concordo, mas receio que a coisa não seja uma novidade.

Enquanto espero a hora do filme, erram pelos corredores do shopping vários grupos de adolescentes. São coesos, cada grupo tem um "look" próprio: um corte de cabelo, uma maneira de vestir as calças, um jeito de andar. Passam três meninos de oito ou nove anos, todos com um brinco na orelha direita. São graciosos, mas o que estão fazendo de noite, num shopping, sozinhos?

É uma banalidade: cada vez mais, na vida dos jovens, na escolha de suas condutas e na invenção de sua identidade íntima, os companheiros contam mais do que os pais. O pai de Suzane não gostou disso, reagiu e morreu coberto de razão, pois ficou demonstrado que as companhias de Suzane eram, bem como ele pensava, péssimas.

Em 1998, o livro de Judith Rich Harris "Diga-me com Quem Anda..." provocou um pequeno tumulto no mundo da psicologia. Rich Harris declarava que os jovens não são (mais) o efeito dos cuidados que receberam na sua primeira infância. Pouco importa que, com suas crianças, você seja carinhoso ou estupidamente ausente: de qualquer forma, a influência do grupo de amigos decidirá quem serão seus filhos. Os jovens se formam em relações horizontais, entre companheiros e iguais. As relações verticais, hierárquicas (com os pais e outros adultos dotados de autoridade), contam cada vez menos.

Não é de estranhar. A personalidade moderna vive numa permanente consulta ao olhar dos outros: existo porque os companheiros de meu grupo, os meus semelhantes, me aprovam e me tratam como um membro do bando. Devo quem eu sou a eles, não à bênção de alguém acima de mim. A cumplicidade e o mimetismo nas parceiradas são mais importantes do que os imperativos da autoridade.

Parêntese: essa mudança não se deu contra ou apesar dos adultos. Os pais de hoje preferem ser bem-vistos e amados por seus filhos a ser respeitados e obedecidos. Em suma, a subjetividade dos pais também mudou com a modernidade, e a família torna-se, aos poucos, uma parceria horizontal.

Ora, ser mais membro de seu grupo do que filho de seus pais acarreta algumas consequências, que constituem o pano de fundo do crime de Suzane & cia. Para quem prefere o grupo à hierarquia familiar, o que vem dos pais não tem valor simbólico. As interdições aparecem como a expressão de uma autoridade que se justifica só na violência; a reação, se acontecer, será também violenta. Da mesma forma, o que se espera que os pais transmitam não são princípios ou exemplos, apenas bens materiais: a herança é só grana.

Outra consequência é a urgência. As relações verticais ensinavam a pacientar: um dia, você subirá na hierarquia, será adulto e tomará nosso lugar. Mas, para quem vive de relações horizontais, não há nenhuma razão para esperar. Quem estiver me atrasando que saia do caminho.

A droga, além de reforçar a cumplicidade do grupo (à diferença dos babacas, nós sabemos o que é bom), satisfaz e encoraja a urgência do querer. Não espere, o futuro sonhado já está aqui, ao alcance da mão, tome.

Depois de assistir a "Madame Satã", na falta da Lapa carioca dos anos 30, vou a pé até a Boca do Lixo, para prolongar o prazer do filme. Numa lanchonete na esquina da Augusta com a Dona Antônia de Queiroz, participo de outra conversa sobre a confissão de Suzane. Uma figura saída do filme de Karim Ainouz exclama: "Coisa de louco, logo num bairro bom". Aparentemente, segundo ele, o crime contradiz a geografia da moralidade. Apesar de todas as revelações de Freud, a casa de família de classe média e de bairro bom continua aparecendo como o lugar do bem. E a Lapa ou a Boca do Lixo, como seus opostos.

Mas há crimes -quase sempre às escondidas, mas desta vez às claras- que nos lembram qual é o preço do bem-estar moderno, que é próprio das casas dos bairros bons. No caso, o preço é uma subjetividade sem mandato, que, para descobrir a que veio, só sabe entregar-se ao conformismo dos pequenos grupos e exigir satisfações imediatas.

Mais um detalhe: muitos acharam que, no enterro dos pais, Suzane fingiu seu choro e que seu pranto seria a prova de seu cinismo. Mas uma subjetividade sem mandato não precisa fingir. Basta-lhe conformar-se ao grupo, conquistá-lo. Na parceria dos enlutados, ao redor da fossa, a órfã inconsolável era uma identidade ideal. E Suzane, aposto, chorou de verdade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário