quinta-feira, 16 de janeiro de 2003

A guerra que vem

Não sei se a segunda guerra do Iraque acontecerá ou não. Soldados, aviões e navios saem para o Oriente Médio, e fala-se, aqui nos EUA, na possibilidade de instituir o alistamento obrigatório.

Embora o entusiasmo da população vacile um pouco, a oposição à guerra é fraca. O clima dominante é: "Pouco importa o que dirão os inspetores da ONU, agora é tarde para recuar. Depois pegaremos a Coréia do Norte".

Claro, os regimes do Iraque e da Coréia do Norte são odiosos. Mas duvido que o governo americano queira transformar os EUA em polícia do iluminismo político. Duvido ainda mais que essa seja a vontade do americano médio.

Claro, o petróleo iraquiano é uma isca apetitosa, mas a invasão produziria, no Oriente Médio, uma onda de ódio mais nociva do que a perda do dito petróleo. Além disso, os americanos achariam imoral, hoje, uma guerra justificada só por interesses econômicos.

No ideário americano, a democracia requer duas condições indissociáveis: autonomia e possibilidades ilimitadas de consumo. Só há democracia se vivemos num supermercado constantemente abastecido por uma infinidade de produtos e no qual circulamos, mercadorias entre as mercadorias, arriscadamente livres, vendendo nosso serviço ao melhor preço.

O anseio libertário repudia invasões e intromissões. Mas a necessidade de acesso infinito a bens de consumo pode exigir intervenções para que seja mantida a abundância, que é uma condição do ideal democrático. Ora, a penúria não é a situação do dia; o preço da gasolina continua igual.
Então por que a pouca resistência aos preparativos? Por que a guerra é popular?

A modernidade, no começo, era avara de identidades de grupo: a proposta era que cada um fosse simplesmente ele mesmo. A religião, o vilarejo, a classe social, em princípio, não contavam mais: você é mão-de-obra errante e vale por seu sucesso no supermercado da vida. Nessa nova imensidade, a referência nacional oferecia conforto.

Como se definiam as nações? Pela guerra. Quando sabemos quem odiamos e quem nos quer mal, pertencemos enfim a um grupo. As guerras nos fizeram franceses, ingleses, italianos etc., numa época em que as identificações coletivas perdiam sentido.

Queremos ser apenas membros da mesma espécie humana, e tanto faz que sejamos católicos ou muçulmanos, brancos ou morenos. Mas sentimos a nostalgia de um círculo mais restrito do que a humanidade. Para constituí-lo, nada melhor do que definir nosso grupo por seus inimigos.

Depois da Segunda Guerra Mundial e da catástrofe dos impérios coloniais, as nações começaram a definir-se por outros meios. Ainda existem coletividades reunidas pela guerra; a Bósnia e a Sérvia são exemplos recentes, e talvez o Iraque ou a Coréia do Norte sejam outros. Mas são fenômenos periféricos. As nações européias, em poucas décadas, perderam sua inspiração armipotente e encaminharam-se para uma identidade supranacional e pacífica. A União Soviética juntou a vocação guerreira às suas aspirações ideológicas; quando estas desmoronaram, sobrou uma Rússia decidida, aparentemente, a reinventar-se como nação animada por outra aspiração que não a guerra. A Austrália e o Canadá, há tempo, sustentam-se pelo projeto infinito de conquistar sua própria fronteira interna: o deserto ou o grande norte.

Das grandes nações modernas, só os EUA continuam sendo, propriamente, uma nação fascinada com sua própria belicosidade. Não é uma intenção expansionista, mas um traço identificador: ser americano é comprar brigas armadas, assim como ser brasileiro é desconfiar do Estado ou ser malandro.

Uma série de contingências históricas explicam essa particularidade: os EUA nasceram de uma revolução e se aperfeiçoaram numa série ininterrupta de conflitos. Em 1945, na hora em que derrotas ou vitórias demasiado custosas levavam outras nações a esquecer suas vocações combativas, os EUA festejaram uma vitória militar que coincidia com o triunfo mundial da liberdade.

Em suma, nos EUA, o apelo à guerra estimula diretamente um traço crucial do espírito nacional. Desculpe a irreverência: é como tocar axé num boteco de Salvador, todo mundo começa a se mexer.

É difícil que os americanos mudem, pois constatam que sua belicosidade alimenta os sonhos do mundo inteiro. Nas salas de cinema, a cultura guerreira dos EUA seduz as mesmas platéias que, eventualmente, descem às ruas protestando contra o militarismo "ianque". Os EUA são amados e odiados (ou seja, invejados) por serem a nação militar que muitos deixaram de ser e que outros querem e não conseguem constituir. Renunciar a definir-se pelo poder militar seria, para eles, abdicar de sua própria força de sedução.

Uma mudança na identidade americana talvez acontecesse se a nação se diluísse, um dia, num conjunto supranacional, como foi o caso dos países europeus. Ora, a Alca é apenas um acordo comercial. Mas talvez estivesse na hora de enxergar, entre as linhas das contas alfandegárias, a possibilidade de um sonho político. Afinal, a União Européia começou assim.

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