quinta-feira, 25 de abril de 2002

A fantasia do pedófilo

Em São Paulo, o pediatra Eugênio Chipkevitch é acusado de sedar dezenas de jovens pacientes para abusar sexualmente de seus corpos e gravar esses atos em vídeo. Nos EUA, descobre-se que, nos últimos anos, centenas de jovens sofreram abusos de padres católicos. E já aparecem outras denúncias no mundo inteiro.

1) A idéia de um padre ou de um pediatra pedófilos nos indigna. Ao abuso sexual soma-se a traição da confiança que os pais e os próprios jovens depositam nessas figuras. A indignação é justificada, mas a surpresa não. Os pedófilos preferem profissões que os coloquem em contato com crianças e numa posição de autoridade sobre elas: padres, pediatras, professores etc. Cuidado: a posição de autoridade não é apenas um jeito de facilitar a sedução, ela é uma parte integrante da fantasia pedofílica. Explico.

2) Uma psicologia clínica (que não seja grosseira) constata que a pedofilia não consiste apenas em gostar de crianças e adolescentes. O traço decisivo da fantasia pedofílica é a vontade de aproveitar-se da inocência ou da ignorância da vítima. O homem maduro que escolhe uma prostituta de 13 anos ou o jovem apaixonado que foge com uma menina de 14 (também apaixonada) talvez sejam pedófilos no sentido corriqueiro, mas não do ponto de vista clínico.

Quem é pedófilo clinicamente? A "Time", na semana de Páscoa, expunha o caso seguinte: anos atrás, padre Brett, de Stamford, Connecticut, convenceu o jovem Frank Martinelli a satisfazê-lo oralmente, explicando ao menino que era assim cumprida uma forma da santa comunhão. Essa é uma fantasia pedofílica: o gozo sexual confunde-se com o prazer de dominar o outro graças à sua ignara inocência. Do mesmo jeito, para o pediatra paulista, adormecer as vítimas não devia ser apenas uma facilitação ou uma maneira de garantir a impunidade. O fato de os jovens não saberem o que estava sendo feito com eles devia ser uma parte da fantasia. Aposto que o pediatra acharia pouca graça numa situação em que os jovens aceitassem transar com ele conscientes e de olhos abertos.

A idéia que excita o pedófilo é desta ordem: "Ele ou ela não sabem, não entendem o que lhes estou fazendo". A fantasia pedofílica não é tanto uma vontade de carne firme quanto o devaneio de um poder que conta com a infância ou a infantilidade de suas vítimas.

3) As reações da Igreja Católica são patéticas. Há a decisão de que não haja mais padres homossexuais. Ora, a escolha do sexo de nossos parceiros (que seja o mesmo que o nosso ou não) é independente das fantasias sexuais que nos excitam. É possível ser pedófilo, exibicionista, voyeur, coprófilo etc. sendo heterossexual ou homossexual.

Imaginemos que queiramos evitar empregar sadomasoquistas como, sei lá, enfermeiros. Sabemos que muitos heterossexuais se excitam com fantasias sadomasoquistas. Então, proibiremos a dita profissão aos heterossexuais?

4) Levanta-se, nesta ocasião, a questão do celibato: parece que, se os padres pudessem casar-se, não haveria pedófilos entre eles. Para defender o celibato facultativo, há ótimas razões, mas não essa. Mesmo uma mulher dedicada a produzir duas ou três ejaculações por dia em seu marido pedófilo, no melhor dos casos, conseguiria distraí-lo, eventualmente cansá-lo, mas não transformá-lo.

5) Calcula-se que, nas duas últimas décadas, a igreja americana tenha pago US$ 1 bilhão (sic) para silenciar as vítimas e evitar a propaganda negativa. Confrontada com os crimes de seus ministros, ela colocou sistematicamente seus interesses institucionais na frente do bem de seus fiéis. Não suspendeu os padres culpados, apenas os mudou de paróquia para evitar o escândalo. Preservou-se, em vez de preservar as crianças.

Com isso, a igreja perdeu sua autoridade moral. Será que o papa, quando se opõe ao uso da camisinha, quer minha salvação ou se lixa para a possibilidade de eu pegar Aids, com a condição de afirmar assim sua autoridade? Quando ele manda acreditar em sua infalibilidade, quer meu bem ou protege seu trono?

6) Mais uma observação destinada à hierarquia católica que resiste ao espírito do Concílio Vaticano 2º.

Talvez o tipo de relação infantilizante que a igreja ainda mantém com os católicos encoraje e autorize as fantasias pedofílicas de alguns de seus ministros. Afinal, o núcleo da fantasia do pedófilo se enquadra na tutela que a igreja se obstina a impor aos fiéis. A própria idéia de ela ser a depositária infalível de mistérios que só ela entende e administra evoca aquele "eles não sabem o que lhes estou fazendo" que está no centro da fantasia pedofílica.

Para lutar contra a pedofilia em suas fileiras, a igreja poderia começar por questionar-se. Por exemplo, ao abafar durante décadas a questão dos padres pedófilos, a hierarquia realizou ela mesma uma fantasia pedofílica com seus fiéis, pois, repito, a pedofilia não é só uma preferência por carne fresca. Ela é uma fantasia de poder sobre a inocência e a ingenuidade, um prazer de aproveitar-se de outros que se entregam e confiam, como crianças ignaras. Ou como fiéis.

quinta-feira, 18 de abril de 2002

Cuidado: o uso desse aparelho pode produzir violência

Na semana retrasada, a revista "Science" (n. 5.564, de 29/3) publicou o relatório de uma pesquisa coordenada por Jeffrey Johnson, da Universidade Columbia, em Nova York. O estudo mostra uma relação significativa entre o comportamento violento e o número de horas que um sujeito (adolescente ou jovem adulto) passa assistindo à TV. A pesquisa foi muito bem apresentada por Reinaldo José Lopes na Folha do dia 29/3, mas ela é suficientemente surpreendente para justificar mais uma reflexão.

No mesmo número de "Science", C. Anderson e B. Bushman, da Universidade de Iowa, assinam um artigo sobre os efeitos sociais da violência na mídia, constatando que todas as pesquisas consagradas ao tema confirmam a existência de uma relação entre violência real e violência midiática. Eles sublinham a relevância da nova pesquisa de Johnson, que demonstra os efeitos da televisão nos adolescentes e nos jovens adultos enquanto, em geral, as consequências da violência televisual são investigadas apenas nas crianças.

Também a pesquisa de Johnson, graças a sua duração, pôde contabilizar violências efetivas, e não só vagas agressividades. O tempo que os sujeitos passavam diante da TV aos 14 anos foi anotado e relacionado com violências físicas e criminosas cometidas aos 16 e aos 22. E o tempo que outros sujeitos passavam diante da TV aos 22 anos foi comparado com o número de atos violentos cometidos aos 30. Em ambos os casos, os resultados foram significativos. Tomemos o caso dos sujeitos que, aos 14 anos, não chegavam a assistir a uma hora por dia de televisão: poucos (menos de 6%) cometeram um ato violento contra outra pessoa aos 16 ou aos 22 anos. Mas esse percentual sobe para 22,5% entre os sujeitos que, aos 14 anos, ficavam na frente do televisor entre uma e três horas por dia.

Além disso, o relatório de Johnson afirma que variáveis como abuso infantil, renda familiar, nível de educação e patologia mental dos pais, violência no bairro etc. foram levadas em conta, mas não alteraram os resultados. Ou seja, a pesquisa estabelece uma causalidade própria da imagem televisual.

Anderson e Bushman, como disse, festejam a nova pesquisa. Mas há uma dificuldade: Johnson não leva em conta os diferentes programas aos quais assistiam os sujeitos investigados. Para quase todas as pesquisas da área, não é a televisão em si, mas a violência na televisão que produz violência na vida. Ora, a nova pesquisa afirma que o tempo passado assistindo à TV -SEJA QUAL FOR O PROGRAMA- aumenta as chances de ocorrerem comportamentos violentos. Como pode ser?

O próprio Johnson, entrevistado pela Folha, foi conciliatório e comentou que 60% dos programas da televisão contêm violência. Portanto as horas passadas na frente da TV seriam horas passadas assistindo à violência televisual. É uma extrapolação. De fato, os resultados da pesquisa dizem só que, até na adolescência e na idade adulta, assistir à TV é um indicador de violência futura, independentemente do programa. Um espectador pode curtir só a Xuxa, a Eliana e a "Casa dos Artistas", outro será fiel a Boris Casoy, Marília Gabriela e CNN, outro ainda escolherá os seriados mais violentos e qualquer coisa no estilo de "Aqui Agora". É intuitivo que essa última escolha possa tornar o espectador mais violento. Mas a pesquisa afirma que, além dessas diferenças, a simples quantidade de tempo passado diante da TV produz violência.

Do mesmo jeito, posso assistir à televisão porque não tenho amigos com quem sair ou então ver TV deitado entre irmãos e irmãs, enquanto toda a família brinca e comenta. No segundo caso, eu estarei mais sorridente, mas a pesquisa de Johnson sugere que, além dessa diferença, se mantém uma relação entre o comportamento violento e a quantidade de tempo passado na frente da televisão.

Pela pesquisa de Johnson, os televisores deveriam ser comercializados com um aviso, como os maços de cigarros: cuidado, a exposição prolongada à tela desse aparelho pode produzir violência.

Estranho? Nem tanto. É bem provável que a fonte de muita violência moderna seja nossa insubordinação básica: ninguém quer ser ou continuar sendo quem é. Podemos proclamar nossa nostalgia de tempos mais resignados, mas duvido que queiramos ou possamos renunciar à divisão constante entre o que somos e o que gostaríamos de ser.

Para alimentar nossa insatisfação, inventamos a literatura e, mais tarde, o cinema. Mas a invenção mais astuciosa talvez tenha sido a televisão. Graças a ela, instalamos em nossas salas uma janela sobre o devaneio, que pode ser aberta a qualquer instante e sem esforço.

Pouco importa que fiquemos no zapping ou que paremos para sonhar em ser policiais,
gângsteres ou apenas nós mesmos (um pouco piores) no "Big Brother". A TV confirma uma idéia que está conosco sempre: existe uma outra dimensão, e nossas quatro paredes são uma jaula. A pesquisa de Johnson constata que, à força de olhar, podemos ficar a fim de sacudir as barras além do permitido. Faz sentido.

quinta-feira, 11 de abril de 2002

"Os Diários da Babá" e a brutalidade das dondocas



A surpresa literária das últimas semanas, nos EUA, é "The Nanny Diaries": os diários de Nanny, em que Nanny é um nome próprio e também significa babá. Por simples boca-a-boca, o livro sumiu das prateleiras das livrarias e já integra a lista dos mais vendidos do "New York Times".
Trata-se de uma ficção, inspirada pelas experiências das duas jovens autoras, Emma McLaughlin e Nicola Kraus, que vivem em Nova York e, nos últimos anos, trabalharam como babás para mais de 30 famílias francamente ricas.

"Os Diários" são corrosivos. O objeto da sátira são as camadas mais privilegiadas da sociedade americana. Ou seja, aquele grupo rarefeito, cujos homens só falam por trás do "Wall Street Journal" e cujas mulheres podem e escolhem ser, propriamente, dondocas: elas não trabalham e, ao mesmo tempo, evitam rigorosamente todas as tarefas domésticas, inclusive qualquer ofício da maternidade (salvo o parto).

É possível que o livro, uma vez traduzido, seja menos exótico para o leitor brasileiro do que para o americano médio. Um exército de faxineiras, cozinheiras, arrumadeiras, motoristas, amas, babás etc. é indispensável para que existam mulheres ociosas de classe alta. Esse exército é mais acessível no Brasil do que nos EUA. Somos pobres: aqui a dondoquice é mais barata.
A dondoca do livro é a senhora X., mãe de Grayer (quatro anos). Ela consegue desrespeitar o horário de Nanny até no dia de sua formatura. Ela estende com desenvoltura as tarefas da babá, que acaba servindo de office-boy, com Grayer a tiracolo. Também, ela não sabe calcular direito o tempo que Nanny dedica a sua função e que, portanto, deve ser remunerado. Se lesse "Os Diários", a senhora X. não entenderia: como é possível que Nanny se queixe? Elas não eram amigas? E não é maravilhoso ocupar-se de uma criança como Grayer? Aqueles dias de 16 horas que Nanny passou brincando com o menino, no verão, não eram também férias? A senhora X. acharia que Nanny é ingrata, pouco dedicada.

Se a história acontecesse em São Paulo, provavelmente atribuiríamos os abusos ao abismo da diferença social e à famosa "familiaridade" cordial da elite brasileira. A babá -argumentaríamos- é abusada por ser socialmente uma "ninguém" e por ser, portanto, incluída na família que a emprega, como uma cinderela.

Mas a história acontece em Nova York. Nanny não é uma gata-borralheira. Ela é uma jovem universitária de classe média urbana: o dinheiro pode impressioná-la, mas não intimidá-la. Quanto à família, a de Nanny é bem mais sólida e acolhedora do que o lar dos X.

Por que, então, o trabalho doméstico pode ser igualmente abusivo tanto em São Paulo quanto em Nova York? A explicação parece estar com a dondoca. Ela não se dedica a produzir riqueza, que é a atividade graças à qual os homens, tradicionalmente, justificam seu afastamento das tarefas materiais necessárias para a vida (tipo: não sei nem semear, nem matar galinhas, mas trabalho na Bolsa e, assim, compro grão e galinhas mortas).

Ora, apesar de não trabalhar, a dondoca também recusa as tarefas básicas de manutenção e reprodução da vida, como preparar os alimentos e cuidar dos filhos. Com isso, ela sofre, como o mestre do qual fala Hegel, quando descobre que o escravo, por ser o único que trabalha, fica com os segredos da criação e da produção. Ela desespera-se diante de sua própria inépcia. E, no fundo, odeia seu exército de ajudantes (considerando-os sempre incompetentes), pois os culpa por ela ter perdido o controle sobre a casa. As dondocas brutalizam empregadas e outros fâmulos porque não toleram sua própria incapacidade de cozinhar ou arrumar. Brutalizam a babá ou a ama porque não toleram sua própria incapacidade de ser mãe. Assim: detesto você porque não sei preparar um sanduíche ou trocar uma fralda.

Mas o que faz a dondoca de Park Avenue todo santo dia? Como consegue não se ocupar nunca dos filhos? É preguiçosa? Será que corre de amante em massagista, procurando prazeres inconfessáveis? Nada disso. Ela é ocupada pela necessidade (crucial em seu mundo) de manter o status da família. A dondoca moderna trocou a tarefa de produzir e reproduzir a vida pela tarefa de produzir e reproduzir status. Sua responsabilidade é fazer que a família seja invejável. Nas Park Avenues do mundo, as dondocas devem saber sempre quais são, neste ano, os lugares certos para as férias, quais as lojas, as escolas, as amizades, os restaurantes, as lavanderias, as marcas que garantem a invejabilidade. É um tempo pleno.

Quanto aos filhos, os leitores dos "Diários" aprendem que eles interessam à mãe dondoca só na medida em que contribuem ao status da família. As dondocas não conhecem o cheirinho de cocô, não guardam na camisa os restos de vômitos repentinos, não passam noites medindo febres que nunca param. Das crianças, elas amam apenas o curriculum.

A perda é delas. Como suspeitam que talvez tenham renunciado à melhor parte, elas se vingam na babá. De raiva.

quinta-feira, 4 de abril de 2002

Ecos da guerra em Israel e na Palestina



1) Em Israel e na Palestina, é o horror da retribuição imediata: você mata três, eu mato cinco, você mata 15, eu tento matar 20. É improvável que a conta dos mortos intimide uns e confira a vitória (qual vitória?) aos outros. Para que, então, os atentados nos bares de Haifa ou de Tel Aviv? Para que a invasão de Ramallah?

Como não parece haver perspectivas estratégicas, o conflito assemelha-se a uma briga em que apenas importa falar mais alto do que o outro. E os gritos, aqui, levantam e espalham sangue e cadáveres.

Os palestinos gritam que, para matar israelenses, eles estão imediatamente dispostos a morrer. Mostram que o prazer de destroçar os inimigos é absoluto: não é preciso sobreviver para aproveitar a carnificina. Esta é sua força proclamada: loucos de jihad ou de independência desprezam sua própria vida. Portanto, os israelenses (e os ocidentais, em geral) não teriam como lhes resistir. Ou seja, se a gente não se importa em morrer, quem ganhará de nós? Novidade no racismo, um líder do Hamas declarou ao "The Washington Post" que "os judeus gostam da vida mais do que os outros povos" como se fosse um estigma.

Os israelenses gritam que eles não hesitarão (e não hesitam) em revidar e matar. Eles não têm candidatos ansiosos por explodir num mercado de Gaza. Mas eles declaram: cuidado, não somos tão diferentes, podemos matar tanto quanto vocês. Quem já esteve numa briga de rua sabe disso: é crucial não ter medo de bater e dar mostras disso.

Reconhecer o outro como inimigo e odiá-lo é uma coisa difícil. Estamos acostumados a pensar que a humanidade não seja restrita aos que falam nossa língua ou praticam nossa religião. Odiar o semelhante por ele ser outro pede um esforço. Talvez israelenses e palestinos estejam conseguindo.

2) Segundo David Long ("The Anatomy of Terrorism", 1990), os terroristas são sujeitos que sofrem de baixa auto-estima e de uma falta de sentido para as suas vidas. É possível que esse seja o pano de fundo, mas o gesto terrorista é uma patologia do excesso de sentido, não da falta.
Estive na faixa de Gaza em 1994. Ter uma Kalashnikov era um sinal de status, como dirigir um Mercedes ou ter viajado para a França. No caso dos palestinos, não vale a idéia de um arcaísmo pelo qual eles obedeceriam aos princípios de uma sociedade tradicional e, portanto, não atribuiriam importância a suas vidas individuais. Mesmo servindo a uma causa coletiva, eles são sujeitos modernos, preocupados com sua imagem: fico bem de mártir? Os pretensos "martírios" são, provavelmente, paroxismos narcisistas, gestos desesperados para agradar e entrar no clube.

Na frente de uma loja, uma dondoca fala de sapatos: "Esse aí é de morrer". Pois é, o martírio também é de morrer. Os que tecem os elogios dos "mártires" são responsáveis pelos suicídios no mesmo sentido fútil em que as vitrinas da Quinta Avenida são responsáveis pelo estouro do cartão de crédito de nossas classes médias. O mecanismo psíquico é o mesmo.

3) Arafat na Reuters (em árabe): "Juntos marcharemos até que uma de nossas crianças levante a bandeira palestina sobre as igrejas e as mesquitas de Jerusalém". Proponho que os arquitetos da Disney sejam encarregados de desmanchar Jerusalém e de misturar os materiais originais com cópias perfeitas, de forma a reconstituir três Jerusaléns completas e idênticas. Os ditos arquitetos desaparecerão num programa de proteção às testemunhas. Ninguém saberá quem tem qual original e qual cópia. Talvez a Jerusalém de Israel fique com a verdadeira pedra que o profeta pisou, e os palestinos, com o autêntico sepulcro de Cristo. Todos brincaremos de peregrinos, sorrindo para as câmaras.

4) No "New York Times", Thomas Friedman relata esta frase de um cientista político israelense: "O conflito israelo-palestino de hoje será a Guerra Civil espanhola do século 21", ou seja, o ensaio geral de uma guerra mundial. Se estamos no prelúdio de um grande conflito, é um bom momento para perguntar por que e para que morreremos e/ou mataremos. Os palestinos e os israelenses já experimentam uma resposta: por ódio do inimigo.

Nestes dias, Hollywood propõe uma outra moral para tempos de combate. Três filmes, desiguais e concebidos antes dos atentados de setembro: "Atrás das Linhas Inimigas" (melhor deixar para ver no avião), "We Were Soldiers" (Mel Gibson chora um pouco demais) e o extraordinário "Falcão Negro em Perigo", de Ridley Scott. Em vez de criticar fácil e abstratamente o belicismo hollywoodiano, é melhor constatar que são três histórias em que a ação militar -mais ou menos desastrada e custosa em vidas- é imposta por uma regra só: ninguém dos nossos deve ser deixado para trás, morto ou vivo.

Que essa seja a única regra da guerra e, nos três casos, o motivo da batalha, eis que constitui uma proposta ética interessante. Afinal, se é para combater, prefiro que seja por solidariedade com quem compartilha comigo uma comunidade de destino. E não por ódio do inimigo ou por exaltação narcisista.