quinta-feira, 10 de abril de 2003

As identificações e a possibilidade de pensar

"Carandiru", de Hector Babenco, estréia amanhã. O filme tem a mesma notável qualidade moral do livro de Drauzio Varella ("Estação Carandiru"), no qual se inspira.

Claro, ambos (o livro e o filme) devolvem aos presidiários sua humanidade: são todos nossos semelhantes. Mas isso é fácil, quase automático, pois temos uma verdadeira disposição para reconhecer que o outro é gente. Assista a um filme sobre a vida de Jack, o Estripador ou do "maníaco do parque". Inevitavelmente, eles parecerão humanos, demasiado humanos. Olhe só, o Jack era tão querido quando criança, o padrasto o tratava mal, a mãe não lhe dava carinho. E o "maníaco" era pobre, triste, não tinha brinquedos.

Paradoxalmente, apesar dessa franca benevolência, também nos resulta fácil excluir. Basta escolher outros filmes. Esqueça os dois bandidos e considere a história de suas vítimas. Pense no futuro que foi negado às mulheres esquartejadas e estupradas, imagine a dor dos que as amavam: Jack e o "maníaco" aparecerão como membros de uma outra espécie, bactérias repugnantes que pedem a intervenção de uma justiça antibiótica.

Nenhuma contradição entre essas duas atitudes. Ambas funcionam do mesmo jeito: por identificação.

A grande idéia ocidental e moderna, segundo a qual pertencemos todos à mesma tribo, alimenta-se de uma empatia espontânea: nos colocamos no lugar dos outros. Essa propensão para a identificação responde a uma urgência psicológica. Somos sempre convidados a inventar livremente nossas vidas: é uma missão incômoda e dolorosa. Portanto estamos dispostos a acolher calorosamente qualquer um com quem possamos nos identificar. Quem sabe consigamos, assim, definir um pouco quem somos nós.

Em suma, por sermos órfãos de identidades estabelecidas, acabamos sedentos de identificações.

Bem mais difícil é reconhecer a humanidade dos outros sem confundir-se com eles, ou seja, aceitar que o outro é nosso semelhante sem vestir sua pele como se fosse um casaco.

Esta é a qualidade moral de "Carandiru": os detentos do infausto estabelecimento paulista são familiares, próximos, mas nem por isso eles se tornam invejáveis ou mesmo aceitáveis.

Quase sempre a possibilidade de um juízo ou de um gesto moral exige esta condição: reconheço que o outro é meu semelhante, aprendo a não excluí-lo, mas a empatia não se transforma em justificação ou em apologia, porque não se resolve numa identificação.

É óbvio: com a exceção de Deus (que, aliás, está de férias), ninguém contempla o mundo de cima. Vejo a criminalidade no Rio e no Brasil a partir do lugar em que estou: branco, negro ou cafuzo, descendente de europeus ou de índios, desempregado ou empresário, favelado ou condômino, morador de uma grande ou de uma pequena cidade etc.

Do mesmo jeito, vejo a guerra no Iraque por minha janela. Sou norte-vietnamita e minha família sumiu nos bombardeios de Hanói ou nasci em Saigon e passei pelos campos de reeducação depois da Guerra do Vietnã; sou camponês ex-sandinista na Nicarágua ou polonês ex-dissidente; palestino, conto os mortos da Intifada ao redor de mim ou, americano, vejo os laços amarelos nas janelas de meus vizinhos que rezam pelos filhos que combatem em Bagdá.

Sempre entendo o mundo a partir do lugar que ocupo. Mas não é obrigatório que a diferença de lugares nos force ao silêncio ou ao simples enfrentamento. Habermas, talvez o último grande pensador que acredita na eficácia da razão, também reconhece que o conhecimento se origina numa posição específica ou, usando seu termo, num "interesse". Contudo a disparidade desses interesses não deveria impedir que fosse possível pensar e mesmo dialogar com equanimidade.

Não sei se compartilho o otimismo de Habermas. O centro de onde cada um de nós organiza o mundo é uma rede complexa de relações, lembranças, histórias e crenças singulares (que nem conhecemos inteiramente). Ora, constato que a chance de dialogar e de pensar acaba quando esse centro nos aparece como a plenitude exultante de uma identificação. Não tenho como refletir sobre a criminalidade que nos assola se sou morador-dos-Jardins-ou-da-zona-sul do mesmo jeito que posso ser torcedor corintiano. Não tenho como refletir sobre a guerra no Iraque se sou latino-americano-de-veias-abertas-pelo-FMI do mesmo jeito que visto a camiseta do Brasil quando entra em campo a seleção.

O triunfo das identificações produz oposições estéreis: alguém olha para os avanços do sétimo regimento de cavalaria sonhando em ser John Wayne, e outro se alegra com as imagens de um marine morto, tomado pelo devaneio de ser o chefe dos índios na batalha de Little Big Horn.

Da mesma forma, enquanto os ônibus queimam no Rio, alguém torce pelo Comando Vermelho: ele é Pancho Villa liderando o partido dos injustiçados. Outro é Clint Eastwood, o inspetor Harry, convencido de que só um revólver Magnum 44 acabará com o problema do crime.

Uma consolação. Não é complicado reconhecer o pensamento que se alimenta de identificações: é a ladainha das certezas.

quinta-feira, 3 de abril de 2003

"Dois Perdidos numa Noite Suja"

Estréia amanhã, no Rio e em São Paulo, "Dois Perdidos numa Noite Suja", o filme de José Joffily que se inspira numa famosa peça de Plínio Marcos.

Paco e Tonho, que, na peça, eram marginais da periferia paulista, são, no roteiro de Paulo Halm, dois imigrantes brasileiros na Nova York de hoje. Tonho (Roberto Bomtempo) vem de Governador Valadares, vive miseravelmente de bicos e subemprego e é prisioneiro de uma ficção de sucesso americano, inventada nas cartas destinadas à mãe. Ele encontra Paco (Débora Falabella), uma jovem andrógina que se prostitui e se droga esperando o dia em que será descoberta e, enfim, brilhará como uma estrela pop.

Não perca. Os diálogos são fulminantes, os atores são inesquecíveis. Mas não é só isso. O filme é crucial também por outra razão: ele desnuda a presença violenta e parasita, em cada um de nós, de um monstro de nossa cultura, o dito "sonho americano".

Vamos com ordem. Desde o começo dos anos 80, 1 milhão (ou mais) de brasileiros emigraram para os EUA, ficando, voltando ou tornando-se pendulares para sempre. A grandíssima maioria trabalha duro e se insere, bem ou mal, na sociedade americana. Como me disse um policial de Boston, "os brasileiros são ordeiros". Em suma, o caso de Tonho e Paco é fora do comum. Mas as histórias excepcionais são reveladoras.

Em São Paulo, algumas semanas atrás, uma conhecida, dona de pequena empresa, com formação universitária, me contava das cartas entusiasmadas que ela recebe de uma amiga que emigrou e que está agora em Nova Jersey, contente (segundo as cartas) e bem de vida. A amiga encontrou um emprego ótimo: stripteaser de clube. Minha conhecida, brincando, dizia-se tentada pela aventura: afinal, não seria mal sair do Brasil e ganhar um dinheiro mais sério. Voltando a Nova York, poucos dias depois, esbarrei numa notícia, no "New York Post": uma stripteaser brasileira fora assassinada em seu apartamento. Claro, não era a mesma; há várias.

Ora, as stripteasers de Nova Jersey, Tonho e Paco revelam algo que vale também para os imigrantes "ordeiros": quase todos se despojam das qualidades que, no Brasil, determinavam seu lugar na comunidade. Não penso só em amores, amizades e laços, mas nas competências que tornam cada um de nós reconhecível e socialmente significativo. Tonho mexia com computadores, Paco sabia cantar, a jovem mulher que foi para Nova Jersey talvez fosse psicóloga, outro era torneiro mecânico, outro ainda, sem diploma nenhum, era camelô e convencia a freguesia como ninguém. Pois bem, ao emigrarem, são todos reduzidos a um denominador comum: seu corpo. Não falam a língua direito. Por não terem documentos, só têm acesso aos empregos reservados a quem pode vender apenas sua força ou seus encantos.

Ironia da história: os brasileiros emigrados de hoje revivem o drama da escravatura. Os africanos, ao ser arrancados de sua terra, perderam tudo o que fazia sua significação social. Deste lado do Atlântico, o xamã, o guerreiro, o pastor, o pescador e a princesa eram apenas corpos nus e mudos. Valiam pelos braços e, eventualmente, pelo desejo que suscitavam nos compradores.

O tráfico de escravos não existe mais. Que força rapta os emigrantes brasileiros de hoje? Que fúria os leva a aceitar serem reduzidos a seus corpos? Não é só a miséria. Uma boa maioria é de pequena classe média; chegam de avião, como turistas: impossível para os menos favorecidos. O que empurra esses emigrantes é o mesmo sonho que tiraniza a vida de todos nós.

Paco e Tonho nos lembram de que um devaneio pode ser tão brutal quanto as amarras dos navios negreiros ou quanto os roncos dos ventres vazios. Tonho não consegue decidir-se a voltar para casa: paga o preço de uma solidão desesperada, não para ajudar a mãe (ele não tem dinheiro para mandar), mas para alimentar a imagem de sua própria felicidade americana na mente da mãe. Paco acha que, na América, ela tem tudo o que quer: está feliz (repete, talvez para convencer-se) de ficar com nada e de descer ao horror, à condição de poder sonhar que, um dia, ela subirá na ribalta. Ambos são as vítimas do narcisismo que é o lote comum; sacrificamos muito, se não tudo, para seguir acreditando numa imagem maravilhosa que conhecemos bem: é a criança bem-fadada que nossas mães queriam que fôssemos, é a fábula de nossos triunfos.

Novidade moderna: somos livres para mudar (de status, de ofício, de país). Mas essa liberdade impõe uma dupla condição: a insatisfação constante com nosso quinhão e a convicção de que somos definidos não por nossas habilidades, por nossas relações ou mesmo por nossa cara, mas pelas miragens atrás das quais corremos.

Útil nestes dias: os EUA (onde Tonho quer "fazer a América" e onde Paco se sente em casa) não são apenas um país real. Por razões e mal-entendidos históricos, passaram a encarnar as sinas de nossa cultura: uma miragem de futuro e um anseio raivoso de sucesso que estão dentro de todos nós e que, de lá, de dentro, paradoxalmente, nos libertam e nos perseguem.

quarta-feira, 2 de abril de 2003

A masturbação está fora de moda

Em quase 30 anos de prática clínica, nunca aconteceu que um pai ou uma mãe me consultassem por estarem preocupados com a "excessiva" atividade masturbatória de filhos e filhas. E nunca um adolescente destinou algum tempo de sua terapia a discutir os méritos e as culpas dos prazeres solitários.

Mas encontrei, isso sim, homens e mulheres de meia-idade (50 ou 60 anos) que se queixavam ocasionalmente de suas próprias "fraquezas" masturbatórias. Manifestavam uma certa insatisfação moral, uma sensação de infantilidade, às vezes até um medo (que sabiam ser irracional e injustificado) de alguma vingança do corpo (tuberculose, astenia). Todos consideravam que as culpas e os receios relativos à masturbação eram restos de ameaças recebidas durante suas infâncias, nos anos 40 ou 50.

Ao que parece, há uma distância significativa entre os sujeitos maduros, em que ressoam palavras de condenação ouvidas quando crianças, e os jovens para quem a masturbação sumiu do catálogo das inquietações. Como se produziu essa mudança? E, antes disso, quando e por que a masturbação se tornou uma patologia, física ou moral?

Thomas Laqueur é um historiador americano, conhecido por uma excelente história cultural da diferença sexual: "Inventando o Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud" (Relume-Dumará). Ele acaba de publicar outro livro notável: "Solitary Sex, a Cultural History of Masturbation" (sexo solitário, uma história cultural da masturbação).

Laqueur lembra que a masturbação é uma prática comum, mas irrelevante, até a modernidade. A partir do século 18, de repente, ela tornou-se um grande tema cultural. A coisa começou com um tratado anônimo, de 1712, que descrevia as terríveis consequências da masturbação e prometia remédios milagrosos. Desde então, a medicina se apoderou do caso. Durante dois séculos, a masturbação foi estigmatizada, cresceu a lista de seus efeitos nefastos, e foram propostos recursos para contrariá-la: desde a idéia, benigna, de prender as mãos de meninos e meninas até a prática de cauterizar o clitóris das meninas com ferro quente (sem anestesia, claro).

Ao redor de 1900, ninguém consegue mais acreditar nos efeitos danosos, tanto físicos como mentais, da masturbação. Aos poucos, a prática é criticada sobretudo por razões morais. Freud, crucial nessa mudança, ainda supõe que a masturbação esteja na origem de uma patologia (a neurastenia), mas também concebe a prática como um momento infantil da sexualidade; na vida adulta, ela seria apenas um (vergonhoso) sinal de escassa maturidade.

Nos anos 60, a masturbação é promovida pela contracultura à condição de atividade libertadora e contestatária; torna-se tema de uma das canções de "Hair" (o musical que, durante décadas, ocupa os palcos do mundo) e acaba sendo apresentada por muitos sexólogos como uma terapia das inibições sexuais.

Essa história, reconstruída por Laqueur, é mais que uma curiosidade cultural. Ela é reveladora de uma contradição ainda fundamental para nós. Por que o livro de 1712 teve sucesso? Por que, na aurora da modernidade, a masturbação preocupa tanto? A resposta transcende o campo da sexualidade.

A modernidade nos encoraja a querer mais do que já temos e a sonhar em vir a ser mais do que somos. Ela aposta na nossa capacidade infindável de fantasiar. Conta com os excessos do desejo, pois propõe um sistema econômico fundado na contínua renovação dos apetites e um sistema social alimentado pelo anseio de mudar de status e de subir na vida.

Por isso mesmo, nossa cultura não sabe inventar uma ética ou mesmo uma etiqueta do desejo enaltecido. Somos, portanto, ameaçados constantemente pela liberdade de fantasiar e desejar que nos é indispensável e que nos define. Pois, como nota Laqueur, a autodeterminação beira a falta de lei, o individualismo beira o solipsismo.

A masturbação é uma metáfora desse paradoxo. Nela, o desejo e a fantasia triunfam, mas dispensam o encontro com o parceiro, satisfazem-se sem os limites impostos pela realidade. Descobre-se, assim, que nossas faculdades prediletas arriscam desagregar o laço social mínimo: a célula da vida amorosa. A masturbação lembra, em suma, que a exaltação moderna do indivíduo ameaça comprometer qualquer projeto de sociedade.

Não por acaso o sexo solitário foi inocentado nos anos 60, logo no momento em que a modernidade reafirmou seu credo na proliferação de desejos e fantasias.

Desde então, a masturbação não é mais um problema, está fora de moda. Mas a dificuldade para inventar uma ética do desejo continua na ordem do dia. Aparecem novas maneiras de preocupar-se com a contradição entre a apologia do desejar e a necessidade de regrar o desejo para que a vida seja tolerável e a convivência social seja possível.

Os pais de hoje queixam-se das drogas que entregam seus rebentos a um mundo separado de fantasias, em que a realidade e a sociabilidade se perdem. E questionam o exercício solitário do devaneio induzido pela avalanche hollywoodiana.

Mudou apenas a forma das preocupações. O paradoxo moderno do querer permanece irresolvido.

quinta-feira, 27 de março de 2003

Notas à margem dos primeiros dias de guerra

1) Na véspera da guerra, Michael Moore, o diretor de "Tiros em Columbine" (Oscar de melhor documentário), escreveu numa carta a George Bush: "Dos 535 membros do Congresso apenas um tem um filho ou uma filha recruta nas Forças Armadas. Se você quer defender a América, mande imediatamente, por favor, suas filhas gêmeas para o Kuait e deixe que elas vistam os macacões de proteção contra as armas químicas. E oxalá cada membro do Congresso com um filho em idade idônea também ofereça suas crianças para o esforço bélico de hoje. O que você está dizendo? Você acha que não vai dar? Pois é, olhe que surpresa, nós também achamos que não vai dar!".

Michael Moore é um ativista de esquerda, que se opõe à guerra. Mas ele não pertence aos salões acadêmicos e progressistas da Califórnia e da Costa Leste dos EUA. Fala com a voz dos que têm filhos no Exército: os trabalhadores manuais, os pequenos comerciantes e fazendeiros da América profunda.

No segundo dia das hostilidades, escuto Michael Savage, um radialista de extrema direita, apaixonadamente favorável à guerra. Savage, quase lírico, comenta que os rapazes que estão a caminho de Bagdá aprenderam a atirar com seu pai ou seu avô, caçando nos bosques e nas planícies do país. Acrescenta: "Eles estão acostumados a calçar botas, enquanto, nas areias do Iraque, não vejo muitos mocassins elegantes...".

A discórdia entre os pacifistas e os que são favoráveis à guerra agita as ruas dos EUA. Mas existem outras divisões na sociedade americana, talvez mais cruciais.

2) A festa da Bolsa, nos anos 90, foi um desastre para a nação: a farra do capital financeiro zombava das pequenas classes médias, o dinheiro fácil para os poucos que especulavam transformava os humildes em otários. Durante um tempo, instaurou-se no país a Lei de Gerson. Sabemos como ela abala os alicerces de uma sociedade.

O ataque de 11 de setembro de 2001 reconstituiu a nação periclitante. Um mês depois, havia desempregados do Michigan ou fazendeiros expropriados do Nebraska que vinham de ônibus para Nova York: comovidos e orgulhosos, visitavam a mesma Wall Street que, um ano antes, tinha acabado com suas pensões e, às vezes, com seu trabalho.

A guerra prolonga aquele momento: todos são de novo americanos por combater um inimigo comum ou, simplesmente, por combater. Os anos de Clinton aparecem, na lembrança, como um tempo em que a América se perdeu numa futilidade yuppie.

3) Um conhecido europeu comenta as sondagens de opinião (nos EUA, 70% a favor da guerra): "O que há com os americanos? Eles gostam de uma luta?". Respondo: os EUA são a última nação ocidental que se define pela guerra. Concebidos numa revolução, consolidados pela guerra civil e pela conquista do território arrancado aos índios, vitoriosos nos dois conflitos mundiais, eles vivem uma épica nacional essencialmente militar: ser americano implica comprar brigas. Com esse espírito, Hollywood diverte e seduz o mundo, mas, na realidade, é um espírito que não sai barato para ninguém.

Há mais: o país continua sendo uma nação de imigrantes. A cada dia, uma extravagante variedade de povos e etnias chega para inventar uma nova vida. O sonho de bem-estar não basta para cimentar a nação. Talvez o país precise periodicamente de uma guerra para consolidar essa massa versicolor. É a hora do combate: vejam se vocês se tornaram americanos.

4) CNN, NBC e Fox, com 24 horas de noticiário, batem recordes de audiência noite adentro. Por que é tão difícil desligar a TV?

Nas noites de Carnaval, voltando do sambódromo, ligamos a televisão e, embora exaustos, queremos mais Sapucaí. É que o desfile é um ícone de brasilidade. Contemplá-lo é um prazer narcisista: "Lá vou eu".

Pois bem. As imagens desta guerra, para os americanos, são um conforto narcisista, uma música que diz: "Com nossa potência, com nossa falta de jeito que transforma as boas intenções em "danos colaterais", com nossos mortos e feridos, lá vamos nós".

5) Sábado, em Chicago, duas manifestações se enfrentam: contra e a favor da guerra. Um repórter, plantado entre as duas, entusiasma-se: "Dois grupos opostos manifestando idéias opostas, essa é a América". A própria divisão da nação é chamada a enaltecer sua existência: "De novo, mesmo divididos, lá vamos nós".

6) Madrugada de domingo. Desligo a televisão e fico em silêncio na escuridão. Cortei quando um apresentador perguntava a um repórter que acompanhava as tropas: "What is happening now?", o que está acontecendo agora?

Pois é, logo agora, mil Josés e mil Marias estão esperando que chegue o dia para saber o resultado de uma biópsia ou de um exame de sangue. Agora, estão nascendo crianças. Alguém diz adeus a um amado que morre, e alguém, acordado pela vontade de urinar, está olhando para sua própria cara amassada, no espelho, perguntando-se se tolerará envelhecer. Agora, há casais abraçados na cama, e outros que estão transando em carros, elevadores e cantos escuros. Essas são as informações. A guerra deveria vir no fim do noticiário.

quinta-feira, 20 de março de 2003

Outsider

Tempos atrás, um de nossos filhos pediu que o aniversário de seus dez anos fosse celebrado com uma festa dançante. Os meninos ficaram num canto batendo papo, e as meninas, no canto oposto, dançando, às vezes, mas entre si. No entanto, no fim da tarde, os dois grupos se aproximaram. Formaram-se alguns pares que se aventuraram nos agitos do rock e, logo, seríssimos, se enlaçaram nas lentas. Tudo isso com uma certa vergonha e muita distância recíproca.

Nem todo mundo entrou no baile. Outros convidados ficaram brincando de esconde-esconde. Alguns meninos subiram até uma sacada que dominava o espaço onde se dançava e começaram a cuspir. A graça era acertar na cabeça dos dançarinos. Claro, eram jovens demais para deixar o conforto do clube do Bolinha e sentiam-se excluídos: imaginavam que, se eles pedissem para dançar, as meninas ririam de suas caras. A humilhação prevista era compensada pelo exercício da gozação: são ridículos, cuspa neles.

Acalmei os jovens dissidentes e cuspidores. Mas sentia uma certa simpatia por eles: afinal, eles eram a instância crítica do momento. Manifestavam que, de fato, a festa em curso era uma farsa.
Outra cena: um grupo de adolescentes entra num clube. Alguns vão direto para a pista, empolgam-se e dançam sem saber com quem. Outros aproximam-se do bar e entram em conversas animadas. Mas sempre há alguém que não se encaixa: fica afastado, observa e pensa.

Excluído por sua incapacidade de enturmar-se, eventualmente ressentido, ele procura conforto no esforço de sua jovem inteligência. Despreza a facilidade com a qual os outros se entregam à frivolidade. Tenta se lembrar da seriedade trágica da vida: morte, doença, separações, covardias, miséria, conflitos, falsa consciência. A crítica é, para ele, uma maneira de conquistar um lugar no mundo: não consegue dançar na pista e resolve sua solidão assumindo a função de cassandra.
No melhor dos casos, esse jovem reconhece também que seu exercício crítico é apenas uma compensação narcisista: não sei brincar, mas -olhem para mim- contemplo de cima a fatuidade do mundo.

Outra cena ainda: um balneário italiano, no começo dos anos 70. Deito na areia, deixando que o sol seque a umidade do inverno. Aproveitando a coincidência pela qual passávamos as férias no mesmo lugar, devia encontrar, na praia, um editor de "Rinascita", a revista semanal do PCI. A redação tinha aceitado que resenhasse a tradução italiana dos "Escritos" de Lacan, e tratava-se de decidir o ângulo do texto. O editor era reconhecível de longe: saído de um filme de Fellini, estava sentado embaixo de um guarda-sol, de terno escuro, camisa branca, gravata preta, paletó abotoado, meias e sapatos de couro na areia. Ele parecia cultivar sua própria exclusão da praia e do mundo, como se essa fosse a condição necessária de seu olhar crítico. Na hora, me perguntei: ele pensa porque é excluído ou é excluído porque pensa?

Estou lendo "Harvard and the Unabomber, the Education of an American Terrorist" (Harvard e o Unabomber, a educação de um terrorista americano), de Alston Chase. É uma excelente reconstrução da formação e da época que produziram o Unabomber, o ex-professor universitário de matemática que traduziu sua revolta (banal) contra a tecnologia numa série de assassinatos. Chase define o clima cultural do drama a partir de um livro que, no momento de sua publicação, em 1956, foi um best-seller: "O Outsider" de Colin Wilson. Wilson escrevia: "Será que ele é um "outsider" porque é frustrado e neurótico?" ou, então, será que ele é neurótico porque "enxerga mais fundo"?

Não há propriamente contradição entre essas perguntas. Na modernidade, pertencer a um grupo torna-se um esforço. A comunidade nacional não é uma fatalidade, pois podemos viajar e migrar. A família originária, da qual somos filhos, longe de ser o grupo ao qual pertencemos com certeza, é o grupo contra o qual afirmamos nossa independência. A família que, eventualmente, inventamos é fruto de difíceis encontros amorosos. A classe social depende de nosso sucesso. Em suma, encontrar uma turma é laborioso e incerto. O destino do "outsider", estranho e estrangeiro, é, para nós todos, quase natural.

Por isso mesmo, talvez, a modernidade seja a época da mais viva inteligência contestatária. Quem não se entrosa justifica sua presença no mundo pela crítica. Entrar na dança é duvidoso, resta-nos cuspir na cabeça dos que se mexem segundo um ritmo comum.

Escrevo esta coluna na segunda-feira, dia 17, à noite, em Nova York. Bush acaba de anunciar o ultimato de 48 horas. Ontem, desfilaram os pacifistas. Hoje, na televisão, desfilam os guerreadores. É também o dia de Saint Patrick, patrono dos irlandeses. Pelas ruas da cidade, erram músicos das bandas de gaita de foles que marcharam na Quinta Avenida. De vez em quando, tocam "Danny Boy": réquiem e hino. Sentado numa praça, olho para o céu atravessado por um helicóptero da defesa civil. Sinto-me como o adolescente que, no clube, não conseguia enturmar-se com ninguém.

quinta-feira, 13 de março de 2003

Por favor, não atirem no pianista

Assisti a "O Pianista" de Roman Polanski algum tempo atrás, nos EUA. Planejava comentar o filme na semana passada, aproveitando sua estréia no Brasil. Mas, durante o Carnaval carioca, a violência do Comando Vermelho pareceu mais relevante.

Hoje, volta a mesma hesitação. Comentar "O Pianista" ou refletir sobre a guerra que nos espreita? Afinal, "O Pianista" é apenas um filme: um prazer de algumas horas e a ocasião de pensar um pouco. Enquanto a guerra, se acontecer, transformará a cara do mundo a golpes de bisturi ou de martelo.

O engraçado é que essa desproporção é o tema mesmo do filme. O protagonista, judeu, concertista na Polônia antes da invasão alemã, vive o martírio do gueto de Varsóvia. No desamparo de uma existência de morto vivo, escondido na espera de que a tragédia acabe, faminto e sozinho, a música é o único conforto.

Num dos momentos mais comovedores, o pianista, obrigado ao silêncio em seu esconderijo, toca mentalmente, agitando os dedos no vazio, acima das teclas. Teceremos o elogio da música civilizadora que triunfa contra a cacofonia da guerra?

Nem o filme nem a realidade permitem essa consolação. Durante a conquista do Oeste americano, nos bares onde aventureiros, bandidos, jogadores e mulheres da vida afogavam no álcool as penas do dia, dizem que havia um cartaz ao lado do piano: "Por favor, não atirem no pianista". Ou seja, matem-se com gosto, não se preocupem se uma dançarina ou um barman ficam na linha de tiro, mas poupem o músico. Os pianistas eram raros e, em Abelene ou Dodge City, com a exceção da Bíblia, havia poucos livros; mal deviam chegar os "dime novels", romances de bangue-bangue vendidos por dez centavos. Tampouco havia museus ou exposições.

A música, por mais que fosse representada por marchinhas de cabaré, era a principal, se não a única experiência estética. O vaqueiro bêbado, a prostituta saudosa da Costa Leste, o assassino sedento de sangue ou cansado de matar, o jovem decidido a descobrir sua mina de ouro, todos deviam encontrar, nos acordes estridentes do piano, o prazer do sonho, da nostalgia, do luto, da esperança. Era preciso salvar o pianista.

Do mesmo jeito, no filme de Polanski, a música é a razão de viver do protagonista, mas é também o conforto de um oficial alemão no meio da Varsóvia destruída pela raiva nazista. Depois da guerra, Chopin acariciará a alma dos sobreviventes do genocídio e dos poloneses que reinventam a vida nos escombros. E também consolará as viúvas dos SS.

Essa constatação leva a consequências opostas. Ela afirma a grandiosa universalidade da experiência estética, apêndice da universalidade da razão. Ou seja, a arte confirma que somos todos humanos: vítimas ou carrascos, compartilhamos uma sensibilidade que nos faz sonhar, rir e chorar diante da mesma mágica.

Mas essa universalidade consoladora também nos diz que a arte é incapaz de lutar contra a feiúra do mundo. Se Chopin acalenta tanto o pianista judeu, órfão de sua família e de sua cidade, como o nazista que assolou sua vida, para que serve Chopin?

Os nazistas saquearam os museus da Europa. Muitos se apoderavam de quadros e de estátuas por seu prazer pessoal. Se Goehring apreciava as mesmas obras que me comovem, devo supor que uma obra de arte toca a sensibilidade de todos, mas também constato que há um divórcio entre o belo e o justo e que o belo sofre de uma certa inutilidade.

Entende-se por que, sobretudo desde a Segunda Guerra, a produção artística é atormentada por uma desconfiança moral. Será que quero produzir uma obra que pode entusiasmar um canalha? Como pintar, escrever música, poesia ou ficção depois de Auschwitz?

No fim dos anos 60, numa galeria de Milão, visitei a instalação de um artista americano, cujo nome esqueci. Cobria o chão uma camada de terra marcada pela passagem de um carro blindado. Uma gravação ensurdecedora enchia os ouvidos: o motor de um tanque, explosões, gritos. Tudo isso não pareceu suficiente ao artista, que plantou, no meio da instalação, um cartaz explicando que ele queria criticar a guerra do Vietnã.

Nos mesmos anos, atrás da cortina de ferro, florescia o realismo socialista: as artes plásticas propunham ilustrações didáticas para a constituição da sociedade ideal.

Em ambos os casos, tratava-se sobretudo de inculcar idéias. Afinal, se Goehring se emocionava contemplando quadros (de Giotto a Paul Klee), talvez impor um pensamento fosse mais urgente do que pintar.

O problema, obviamente, é que as idéias também fracassaram e fracassam na tarefa de melhorar o mundo.

O pianista do filme de Polanski toca uma sinfonia melancólica, espécie de réquiem para nossa civilização. Acreditamos na universalidade da razão e constatamos a universalidade de nossas emoções estéticas: reconhecemos, portanto, que todos somos parte da mesma tribo humana. Mas isso não garante nada.

Pensamos segundo lógicas comuns e compartilhamos prazeres comuns ao escutar Chopin. Mas nem por isso conseguimos inventar juntos um mundo justo e pacífico.

quinta-feira, 6 de março de 2003

O Carnaval e a guerra do Rio

Os turistas não se deixaram intimidar pelo noticiário e vieram para o Carnaval do Rio em número recorde. Tiveram razão. Mas, até o domingo, eu receava que o único bloco em consonância com o ar do momento fosse o "Que M... É Essa?", com o enredo: "M... de Guerra ou Guerra de M...?".

Eu não pensava na guerra entre os EUA e o Iraque, mas na guerra do Rio: dezenas de ônibus incendiados, depredados ou metralhados, cidadãos executados, queimados, aterrorizados.

Alguém dirá: não vamos exagerar, o Comando Vermelho é uma organização criminosa, por que falar em guerra? Guerra é a luta entre facções do narcotráfico, em que se enfrentam exércitos de entidades equivalentes, morro contra morro. Mas, em relação ao resto da sociedade, o narcotráfico quer realizar ganhos: pratica crimes, não guerra.

Acontece que as coisas mudaram radicalmente na semana passada. Não se tratou de assaltar cidadãos ou de conquistar bocas-de-fumo. Tratou-se de chantagear o Estado e a federação. E a chantagem foi política, não financeira.

Explico. Uma organização criminosa pode anunciar que, se o governo não pagar uma soma de dinheiro, um ônibus será incendiado com todos os seus passageiros. O cinema nos mostrou situações desse tipo. "Mandem alguns milhões para minha conta ou detonarei uma bomba nuclear no meio da cidade." Faz parte da lógica do crime.

Ora, os novos ataques do Comando Vermelho foram de outra ordem. Pediam que o Estado e a federação não atrapalhassem o conforto e a capacidade operacional de Fernandinho Beira-Mar na prisão.

Sutileza: não foi pedido que ele fosse solto por decreto. O narcotráfico não quer destituir o poder público a esse ponto: a bagunça de um país sem governo talvez não seja boa para os negócios. O narcotráfico ambiciona ser o poder real atrás de um governo fantoche. Até uma eventual evasão, Beira-Mar aceita ficar preso, pois assim serão mantidas as aparências do poder público. Mas, a partir de sua cela, ele quer estabelecer os limites da autoridade do próprio Estado que o encarcera.

O ataque da semana passada é um ato de guerra, porque seu alvo não é o bolso das pessoas, mas a própria legitimidade do poder que emana da convivência dos brasileiros.

Escutei mil considerações sobre as razões que podem tornar os cariocas (e o país inteiro) reféns do Comando Vermelho. Todas valem e são corretas. A história nos ofereceu elites corruptas e exploradoras. Nossa cultura não honra a função pública, logo entrega as forças da ordem à corrupção. As diferenças sociais forçam um exército de excluídos a tomar as armas contra a comunidade nacional como se fosse uma outra tribo. Uma cegueira política leva alguns a imaginar que as Farc colombianas, aliadas de Beira-Mar, sejam portadoras de uma esperança social. A corrupção endêmica na esfera do poder público alimenta o cinismo: por que não o Comando Vermelho, uma vez que tantos governantes saquearam o país impunemente? E por aí vai.

Mas consideremos uma hipótese um pouco antiquada: se o país fosse invadido por um exército estrangeiro, qual seria a urgência? Refletir sobre as fraquezas que encorajam a invasão? Ou achar o ânimo para enfrentá-la?

Diante das agressões, os Estados democráticos são fracos, sempre lerdos e constrangidos pelo respeito das regras constitucionais. Além disso, há traços culturais da modernidade que pioram as coisas.

Por exemplo, somos levados a procurar em nós mesmos a razão ou mesmo a culpa do que nos acontece: "Minha namorada me deixou, não posso obrigá-la a voltar, mas posso (ou, melhor, devo) me perguntar como e por que não fui capaz de amá-la o suficiente para que permanecesse comigo". Equivalente, no caso que nos interessa: o Comando Vermelho quer dominar o Estado, a culpa é também nossa, pois toleramos elites corruptas e exploradoras etc. (segue a lista esboçada antes).

Outro traço: os outros nos aparecem, antes de mais nada, como nossos semelhantes. Consequência: enquanto fulano me massacra, enterneço-me pensando na infância sofrida que o levou para o caminho errado. Com isso, temos uma dificuldade crônica em reconhecer nossos inimigos ou mesmo em admitir que temos verdadeiros inimigos.

Essas fraquezas da democracia e da subjetividade moderna deveriam ser corrigidas por uma força: o sentimento de um patrimônio compartilhado para defender. Claro, o recurso a esse sentimento é difícil quando a sociedade é dividida por desigualdades extremas.

A hora não é banal: talvez se decida nestes dias se a Colômbia de hoje será ou não o Brasil de amanhã. Sou moderadamente otimista, e não só pela presença (apropriada, tratando-se de uma guerra) do Exército nas ruas do Rio.

Conto com os enredos do desfile de terça-feira. O "Samba da Paz" da Mangueira foi um elogio à luta de Moisés, que, na hora da briga, não hesitou em mandar pragas como balas. E a Beija-Flor lembrou que, para chegar até a paz, é necessário, às vezes, lutar, usando "a mão que faz a guerra".

Desejos de paz, em suma, mas dispostos a pagar o preço necessário.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2003

Solidões inúteis

Há homens e mulheres que não aguentam conviver. Apaixonam-se, às vezes casam ou se juntam, mas logo se sentem sufocados. Alegam que falta liberdade, privacidade, silêncio. Algo, que não é apenas a variedade da vida sexual, estaria sendo impedido pelo parceiro (ou pela parceira).

Outros conseguem conviver durante anos ou para sempre, mas com a sensação constante de que estão sendo limitados, constrangidos. Ou seja, com a idéia ressentida de que, se o consorte não estivesse junto, a vida vingaria como nunca.

Essa atitude, entre lamento e reivindicação, é quase sempre presente quando um dos parceiros tem (ou imagina ter) uma vocação artística.

O diabo é que isso acontece hoje com frequência crescente. Não me estranha: numa cultura que valoriza o indivíduo, espera-se de cada um que se faça ouvir e reconhecer pelo que tem de mais singular. Um dos grandes imperativos da época diz que é preciso expressar-se. E acreditamos automaticamente que, se pudéssemos procurar fundo nas nossas tripas, encontraríamos pérolas.

Eu sou advogada, mas, lá no fundo, sou poeta ou romancista. Eu sou engenheiro, mas, lá no fundo, sou viajante como Amyr Klink. Eu sou bancário, mas, no fundo, sou músico e cantor. Eu sou médica, mas, no fundo, sou dançarina. O vínculo social tenta nos definir, mas a criatividade nos resgatará.

Valorizamos o indivíduo em suas expressões mais singulares. Portanto as relações sociais nos parecem sempre suspeitas: será que elas não ameaçam a expressão de nossa subjetividade, única e original? É apesar dos outros, imaginamos, que é possível ser "nós mesmos" e produzir algo de valor.

Muitos acabam pensando que, se eles não seguem sua vocação, é por causa do parceiro ou do casal. "Não posso deixar de trabalhar e, à noite, quando volto para casa, não dá. Precisaria de solidão para tocar, escrever, pensar, treinar. Estou cansado, as crianças pedem atenção e não há como não conversar." Em suma, as necessidades da vida em família seriam responsáveis por nossas falências expressivas.

Às vezes, o parceiro que se considera inibido pelo casal impõe uma condição: "Quero tempo, quero um espaço que seja só meu". E o outro (ou outra), generosamente, aceita e encoraja: "Claro, vamos alugar um pequeno escritório para você tocar, escrever, pensar e ficar tranquilo (tranquila) à noite e nos fins de semana. Ou, então, vamos usar a poupança, e você fica um ano sem trabalhar, mas não aqui; na casa de praia dos tios, lá, sem ninguém".

Surpresa e mistério: quando a reivindicação é satisfeita, em regra, ocorre um imprevisto. Na maioria dos casos, o sujeito, aliviado dos deveres da conjugalidade e das responsabilidades sociais, sozinho no lugar e com o tempo que pediu a Deus, livre e desembaraçado, não faz nada. Salvo, talvez, lamentar a época em que, para dedicar-se a sua paixão, ele roubava horas ao sono, aos filhos e às obrigações familiares do fim de semana.

O tempo e o espaço reservados transformam-se na caricatura do pior vácuo da adolescência: televisão, chat de computador, navegações a esmo na internet, infindáveis jogos de paciência. Em suma, uma preguiça que beira e anuncia a depressão.

"Agora que poderia, não sei o que acontece, não saio da cama." Resumindo: achava que o outro me impedia de realizar meus sonhos. Mas, uma vez livre de sua presença, constato que, sem ele (ou ela), mal consigo me mexer, perco a vontade. Descubro assim que: 1) o outro não era minha distração, mas talvez fosse minha motivação, 2) o tempo e o espaço que eu exigia, longe dele ou dela, eram, de fato, tempo e espaço para não fazer nada.

Em suma, quando um parceiro pede para ficar sozinho e, assim, dar livre curso a suas veias criativas, expressivas ou meditativas, seu pedido, embora sincero, alveja quase sempre um ócio avacalhado. Na maioria dos casos, o outro que queremos eliminar não é o carrasco de nossas aspirações, mas o penoso lembrete dessas aspirações. Como assim?

É simples e banal. Um casal serve (também) para isto: o outro é encarregado de encarnar nossas próprias exigências, sobretudo as mais frustrantes. Por exemplo, José se queixa da obsessão de Maria com a ordem nos armários. Qual importância? Só dá briga porque José, de fato, adora ordem e sonha com fileiras perfeitas de meias, cuecas, sapatos e camisas, mas sua vontade morre na praia. Maria torna-se assim a representante do desejo frustrado de José, ou seja, o lembrete de um encargo (fazer ordem nos armários) que é o próprio desejo dele, mas que ele não consegue cumprir -irritante, não é? O mesmo mecanismo vale para obrigações maiores e mais cansativas: se Maria ama e, portanto, idealiza um pouco José, ela certamente quer que ele siga seus anseios artísticos.

Consequência: quando José procura a solidão "para perseguir melhor sua vocação", muitas vezes, ele não tenta evitar a diversão do barulho das crianças, do papo e da transa compulsória com Maria. Ao contrário, ele pode estar fugindo de um amor que é incômodo porque lhe lembra seu próprio desejo.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2003

Pacifistas e guerreadores

Segunda -feira dia 17, em Nova York, neva sem parar: a cidade está quase deserta. Nas avenidas, circula, de vez em quando, um esquiador.

Os nova-iorquinos, na semana passada, fizeram estoque de água, de enlatados e de fitas adesivas para fechar hermeticamente portas e janelas. Preparavam-se para ataques químicos e biológicos. Hoje, há uma sensação de trégua, como se fôssemos protegidos e isolados, cada um em sua casa, por uma embalagem de algodão.

Melhor assim, pois, nos bares e ao redor das mesas, não é fácil encontrar alguém com quem conversar sobre a complexidade do momento. Os interlocutores deslizam no pacifismo radical ou na belicosidade entusiasta. E eu não me identifico com nenhuma das duas posições. Aliás, suspeito que elas tenham algo em comum.

À vista das faixas e dos cartazes, os 250 mil manifestantes que, no sábado passado, encheram as ruas da cidade eram, em sua maioria, pacifistas radicais: opostos não só a esta guerra agora mas a qualquer guerra. Invocavam um argumento moral que parece decisivo: a vida é o valor supremo, não arriscaremos nem ameaçaremos vidas por conflito nenhum. É simpático. Certo, leva a algumas contradições insolúveis. Então não era para intervir em Kosovo? E tivemos razão ao não levantar um dedo em Ruanda? Mas isso é o de menos.

Um problema maior é que o pacifismo radical talvez seja um apêndice da ética narcisista das últimas décadas, segundo a qual é moral o que contribui ao bem-estar. Assim como a vida certa é a saudável, as escolhas políticas justas devem ser as que preservam a vida, a começar pela nossa.
Tradicionalmente, os valores morais se situam acima de nosso interesse e de nossa vontade de sobreviver. Claro, ninguém é de ferro: na Roma antiga, diante dos leões do Coliseu, provavelmente eu renegaria Deus e veneraria o imperador. Mas admitiria que não agi de maneira exemplar. Não tentaria me justificar afirmando que preservar a vida é moralmente mais importante do que professar minha fé.

No começo dos anos 80, a União Soviética parecia ameaçar uma espécie de coice do cavalo moribundo. Os EUA decidiram instalar baterias de mísseis de médio alcance na Europa. Os governos locais deixaram que os americanos pagassem essa última prestação da Guerra Fria. Houve manifestações pacifistas na Europa inteira. O slogan era: "Melhor vermelho do que morto". Leia-se: a vida é mais importante que as "baboseiras" políticas.

Alguns amigos tchecoslovacos, exilados em Paris, contemplavam as passeatas estupefatos. Teriam preferido que os manifestantes gritassem: "Queremos ser vermelhos, que a URSS nos invada". Contra isso eles saberiam lutar; afinal, já tinham lutado contra os tanques soviéticos no fim da Primavera de Praga. Mas eles não conseguiam entender estes filhos do privilégio (democrático e econômico) que, simplesmente, decretavam que não colocariam suas vidas em perigo por nenhuma causa.

Ironicamente, os pacifistas, que gostariam de mitigar as inimizades, são o protótipo do que os terroristas desprezam em nossa cultura. Os homens-bomba sentem-se seguros de encarnar uma moral antiocidental e anti-capitalista justamente porque não são guiados pela moral do bem-estar e da preservação da vida. Para eles, o suicídio confirma a moralidade de sua causa: sou moral porque me sacrifico (inversamente, quem não quer se sacrificar é exemplo de imoralidade).

Opostos aos pacifistas radicais, há os guerreadores, convencidos de que a intervenção no Iraque levará as luzes ao mundo muçulmano. Uma vez suprimido o tirano Saddam Hussein, os outros cairão por contaminação, as maternidades produzirão Montesquieus e Jeffersons em série, e logo surgirão parlamentos e partidos políticos laicos. Essa mesma visão animava os europeus na hora de deixar suas colônias. Receavam que as novas elites fossem progressistas demais. Ninguém previa que os povos "liberados" fossem escolher o fundamentalismo.

Pacifistas e guerreadores são filhos de um mesmo sonho desvairado da razão ocidental. Para os guerreadores, não há diferenças culturais que possam resistir ao poder e à sedução das luzes, as quais, mesmo impostas com as armas, conquistarão os espíritos pelo mundo afora. E os pacifistas acreditam que encontraram um valor racionalmente universal por ser biológico: a vida. Ao redor disso, imaginam que produzirão a unidade de todos. Para ambos, em suma, a pretensa universalidade da razão deve garantir a paz futura entre os homens.

Os dois grupos alegam em seu favor uma faculdade subjetiva: a razão. Não estranha, portanto, que cada grupo entenda a posição do outro como um desatino subjetivo. Para os guerreadores, os pacifistas são apenas covardes. Para os pacifistas, os guerreadores são apenas cobiçosos. Ou seja, ninguém pode querer guerra para promover um sistema de governo: é apetite de lucro disfarçado. Reciprocamente, ninguém pode querer paz a não ser para proteger seu conforto e sua pele.

Resultado: nenhum diálogo, apenas o clamor dos gritos, hoje abrandado pela neve.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2003

Casamentos sem sexo

Observei o encontro entre quatro homens de meia-idade que tinham cursado a mesma universidade e não se viam desde então. Eles lembravam nostalgicamente as bebedeiras, as conversas jogadas fora, a vida de estudante.

Alguém evocou os pôsteres que decoravam as paredes dos quartos: as páginas centrais da "Playboy" e uma gigantesca imagem pornográfica que ainda estava na memória de todos. De repente, um dos quatro perguntou para os outros: "E daí, há quanto tempo vocês não se masturbam?". Desencadeou-se uma crise de riso que quase jogou os quatro no chão.

Quis entender a hilaridade e fui colocando perguntas. Aprendi que eles eram todos casados, pais orgulhosos, maridos amorosos e quase CASTOS. Foi uma surpresa para todos eles, pois cada um achava que, nesse departamento, seu caso fosse único: de fato, a vida sexual do mais ativo consistia numa transa mensal, os outros não tocavam nos corpos de suas companheiras havia meses e, num dos casos, havia anos.

Gostavam de suas parceiras, não sonhavam com aventuras ou amantes, mas o desejo sexual se fora. Quando? Depois do nascimento dos filhos? Numa crise do escritório que multiplicou a carga de trabalho? Durante uma longa permanência dos sogros no quarto de hóspedes? Sei lá. Aos próprios ouvidos deles, as explicações indicavam apenas ocasiões, valiam como desculpas.
A descoberta os deixou envergonhados. Nossa cultura aceita com facilidade que as mulheres não estejam a fim. Uma dor de cabeça, uma indisposição (quem sabe, anunciando a menstruação) ou mesmo uma recrudescência de pudor condizem com a feminilidade.

Para os homens, é o contrário: não estar a fim é uma falha da virilidade. Eles preferem, eventualmente, camuflar sua pouca disposição com esporros e exasperação. Se a companheira estiver indisposta, em vez de insistir amorosamente, é a ocasião de indignar-se e afastar-se, evitando assim encarar sua própria ausência de desejo.

Já foi uma figura clássica de casal: a mulher procura ostensivamente duas aspirinas na hora de ir para a cama, enquanto o marido se irrita e encontra, em sua irritação, uma desculpa para virar as costas e apagar a luz.

Hoje, aparece uma figura um pouco diferente. Cada vez mais, escuto mulheres que se queixam abertamente do pouco interesse de seus parceiros pelas "brincadeiras". Parece que elas se cansaram de inventar mal-estares para fornecer álibis a seus companheiros. A famosa dor de cabeça estaria se tornando masculina?

Certo, muitos homens continuam contando vantagens para os amigos da esquina, deixam pairar subentendidos nas conversas sociais, compartilham comentários salazes quando cruzam com um decote generoso ou com uma saia curta e lançam olhares oblíquos e marotos ao passar por uma sex shop. Mas esses sinais aparentes de virilidade servem para levantar poeira e esconder pudicamente o desinteresse que os aflige.

Não sou o único a verificar essa recente "preguiça" dos homens. Por exemplo, num livro recente ("The Sex-Starved Marriage", o casamento faminto de sexo), Michele Weiner Davis, terapeuta de casais americana, faz constatações parecidas, embora administre conselhos um pouco primários, desde o Viagra até passar mais tempo juntos, fazer o parceiro sentir-se importante etc. Se quisesse procurar na vida dos casais os fatores que abalam o desejo masculino, eu começaria pela infantilização: as férias em Orlando, os domingos no parque aquático e as graças de nenê em lugar de conversa (o pichuchu ainda gosta da pichachá?).

Mas a novidade é um desinteresse sexual que se situa aquém dos percalços da vida de casal. Voltemos à conversa de bar dos quatro ex-colegas de faculdade. Eles riam, perturbados, porque a pergunta sobre a masturbação juvenil lhes revelava o fato seguinte: havia tempos, eles não pensavam mais em sexo.

Ora, únicos entre os mamíferos, nós não transamos graças a estímulos simples do tipo: a fêmea está no cio e fecunda, portanto chegou a hora do desejo. Nada disso: nossa excitação depende de representações, idéias, fantasias. E as fantasias não surgem naturalmente; elas pedem um trabalho psíquico, uma dedicação, um esforço.

Talvez falte lazer para isso, mas é também possível que os homens se sintam dispensados dessa antiga tarefa por viverem, hoje, num bazar de fantasias sexuais prêt-à-porter. A cultura de massa já é nossa enciclopédia das condutas desejáveis: nela encontramos os modelos para amar, odiar, ter sucesso ou fracassar, ser heróico ou modesto. Por que não recorrer a ela para nossas necessidades sexuais?

Caricaturando apenas, a vida sexual consistiria, nesse caso, em ir para um motel cada sábado às 17h e lá, antes do "quid", procurar inspiração no vídeo pornô do dia. Certamente economizaríamos assim o tempo (exorbitante) exigido pela elaboração e manutenção de fantasias sexuais próprias. Por que não?

Há apenas um problema: liberados do dever de fantasiar durante a semana, começaríamos a achar estranho e pesado o dever do sábado. Ir para o motel por quê? Só de pensar, já dá uma dor de cabeça...

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2003

Deus é brasileiro

Domingo assisti a "Deus É Brasileiro", de Cacá Diegues. Na porta do cinema, por telefone, um amigo tentava me dissuadir de entrar, por princípio. Seu preconceito contra filmes brasileiros deve ser parecido com o sentimento que, na minha adolescência, em Milão, me fazia detestar o cinema italiano, sobretudo as comédias. A maioria dos filmes me apresentava uma imagem da Itália que não tinha nada a ver com minha vida e meus problemas de jovem de classe média urbana. E essa imagem me cobria de uma espécie de vergonha. Parecia-me que a cultura nacional transformava nossos atrasos em risadas e em falsa glória. Um pouco como se resistíssemos à modernização recorrendo ao grotesco de nossa miséria e apresentando-o ao mundo para que achasse graça.

Em suma, entendo o preconceito do meu amigo, mas espero que, graças a esta coluna, ele veja o filme de Cacá Diegues. Eis a história: Deus procura um santo para quem ele possa entregar as rédeas durante suas férias. Ele viaja por Pernambuco, Alagoas e Tocantins com a ajuda de um jovem borracheiro endividado e de uma moça que quer ir embora para São Paulo. Homenagem aos atores: Antônio Fagundes voltará à minha memória a cada vez que, no futuro, me endereçar a Deus, Wagner Moura tem uma carga de simpatia despachada, e Paloma Duarte é o próprio enigma feminino, entre a amorosa, a santa e a possível prostituta.

À vista do resumo, meu amigo resistirá, pretextando que não quer descobrir o Brasil num passeio pelo Nordeste. Acrescentará que tem pouca simpatia pelo ufanismo: não tolera a junção da idéia de que Deus seria brasileiro com imagens de pobreza. Deve recear a mesma coisa que eu detestava no cinema italiano da época: a transformação da miséria num pitoresco exótico que definiria o país.

Mas o filme de Cacá Diegues não é nada disso. Saí do cinema comovido e alegre, não por ter descoberto sei lá qual Brasil, mas por ter encontrado o deus certo: vi o filme como uma obra de teologia (claro, sem as aporrinhações do gênero).

O Deus brasileiro é narcisista, capaz de ternura, irascível e, sobretudo, perdido e impotente diante da complexidade do mundo. Anota num caderno as coisas tortas que ele gostaria de endireitar, mas é óbvio que são apenas detalhes: o emaranhado de dor, santidade, feiúra e bondade não deixa espaço para uma reforma total. Aliás, talvez esse emaranhado constitua, em sua complexidade, a graça do mundo.

Aparece assim uma divindade para os dias de hoje, o Deus do qual precisamos, não como recurso, mas como modelo. Pois, embora seja cheio de si, ele encarna uma qualidade da razão que está fazendo falta: a humildade.

Nos últimos tempos, somos agredidos pelas prepotências assertivas. Os debates nacionais e internacionais tornaram-se vulgares pela simplificação, que é efeito da soberba.

Exemplifico. Ouço os que dizem que o programa Fome Zero resolverá os problemas da miséria no país e no mundo, como se não fosse um gesto generoso entre outros. Também ouço os que, nos desacertos do programa e em seu valor de propaganda, encontram o argumento decisivo contra o espírito do novo governo. Ouço os que levantam o punho declarando que Lula mudará a estrutura social e econômica do país. Ouço também os que apontam para a alta dos juros e declaram que não mudará nada. Ouço os pacifistas que acreditam cegamente no poder da razão diplomática e não pegariam as armas contra monstro nenhum. Ouço também os que pedem guerra para resolver logo um conflito que, de qualquer forma, nos espreita. Ouço os que são convencidos a agir só por razões sublimes e acusam Bush de agir por interesse. Também ouço os que acreditam que os EUA sejam o porta-estandarte do Iluminismo. E não há diálogo.

Ora, quem não tem um conhecido que vocifera sua opinião antes de saber qual é o tema da conversa? Podemos generosamente reconhecer que o tal conhecido é frágil a ponto de gritar para convencer-se de que ele existe.

Mas admitimos dificilmente que esse conhecido é nossa caricatura. Opinar sem escutar nem os interlocutores nem a complexidade do mundo é esporte de massa. Narcisistas, cronicamente dependentes do olhar dos outros, somos todos frágeis. E escondemos nossa fragilidade atrás de convicções cortantes. Somos as vítimas perfeitas das sondagens de opinião: você é contra ou a favor? A resposta certa seria, quase sempre, "Não sei". Mas pouco importa a questão em pauta, a urgência é afirmar que somos alguma coisa: pertencemos aos "contra" ou aos "a favor".

Talvez o Deus de Cacá Diegues tenha descido à Terra para lembrar à gente que ele mesmo não entende quase nada de como anda o mundo e, sobretudo, não faz milagres. Nisso ele é como a gente. Mas, à diferença de nós, consegue ser narcisista e inseguro a ponto de pagar quem o elogia, sem por isso se consolar com certezas fictícias. Nisso ele merece ser Deus.

PS: Falando em milagres, houve, na segunda-feira, a entrevista de Paul Singer na Folha. Se todos conseguíssemos adotar seu estilo, o mundo seria um bocado melhor.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2003

Eclipse da razão política

Em outubro passado, foi publicado nos EUA "The Emerging Democratic Majority" (a maioria democrata emergente), de J. Judis, R. Teixeira e R. A. Teixeira.

Os autores prometem que, a curto prazo, os EUA serão um país progressista: nas próximas décadas, o Partido Democrata governará incontestado. Para chegar a essa conclusão, eles recortaram o país em "ideópoles", grupos definidos pelas idéias que neles prevalecem. Logo, mostram que os grupos em que dominam as idéias próprias aos eleitores democratas crescem demograficamente mais que as "ideópoles" republicanas. Por exemplo, cresce a população hispânica, aumentam as mulheres que trabalham, assim como cresce o número de cidadãos que passam por uma universidade. E esses grupos tendem a pensar como democratas. Rapidamente, eles constituirão uma maioria esmagadora.

Gosto da previsão, mas as idéias que supostamente definem os eleitores como democratas me inspiram um vago mal-estar. Identifico-me com muitas delas, compartilho-as, acho-as importantes, mas elas não definem exatamente uma escolha política.

Para explicar minha perplexidade, recorro a uma história que foi evocada várias vezes no debate ao redor do livro. Em 1996, a campanha pela reeleição de Bill Clinton se serviu de uma sondagem peculiar. Para saber como os eleitores votariam, eram colocadas cinco perguntas: 1) Você pensa que a homossexualidade seja moralmente errada? 2) Você faz uso pessoal de pornografia? 3) Você consideraria com desprezo alguém que tivesse uma relação extraconjugal? 4) Você acredita que o sexo antes do casamento seja moralmente errado? 5) A religião é importante na sua vida? Quem respondia "não" a todas as perguntas, exceto a segunda, era um eleitor de Clinton. Quem respondia "sim" a todas e "não" à segunda era um eleitor de Bob Dole.

As respostas eram um indicador de voto mais confiável do que a posição econômica e social do eleitor. Conclusão possível: o que domina a vida política americana, hoje, não seriam nem as diferenças de posses e lucros nem os projetos contrapostos de organização política, mas as opções morais.

Cuidado: não se trata de uma anomalia dos eleitores americanos. Estamos um pouco no mesmo barco. Por exemplo, eu sou favorável à liberalização do aborto; no mínimo, não quero que a prática seja acessível apenas a quem pode pagar por baixo da mesa. Ora, se pudesse escolher entre um partido progressista que não se preocupasse com isso e um partido centrista que defendesse a liberalização, em quem votaria? Situação parecida para um católico progressista: se seu partido de esquerda preferido promovesse a liberalização, ele, oposto ao aborto, talvez votasse com os conservadores.

Se essa não for uma aposta significativa para você, substitua a liberalização do aborto por qualquer coisa que seja central na sua vida privada: o acesso à pornografia, a existência de bares gay ou de clubes de swing, a prática de suas fantasias sexuais preferidas etc. E veja se isso não seria, para você, uma razão de decidir seu voto.

Em suma, Judis, os Teixeiras e os conselheiros de Clinton se serviram de um fato cultural que é, hoje, comum: nossas escolhas políticas dependem bastante de opções morais na esfera da vida privada. Votamos e militamos por motivações, em grande parte, íntimas e subjetivas: a generosidade, a vontade de gozar do jeito que gostamos e por aí vai.

Durante as últimas quatro décadas, essa mudança apareceu como uma conquista. E foi mesmo. Desde os anos 60, as escolhas da vida privada invadiram os debates de política pública; não é mais possível fazer política sem levar em conta as exigências da intimidade. Aliás, pode-se argumentar que o último grande projeto político (o socialista) dançou porque, onde se realizou, não quis escutar essas exigências.

Sem nenhuma ironia, eu consideraria politicamente progressista um governo que transformasse o Ibirapuera numa cópia (melhorada) do Bois de Boulogne, com cantos reservados para os prazeres noturnos ao ar livre de cada gosto. Mas seria estranho que essa consideração resumisse minha orientação política. Cadê as idéias sobre, sei lá, a organização do trabalho, a propriedade, as decisões coletivas, as responsabilidades e as recompensas sociais?

O que aconteceu com nossa capacidade de inventar projetos propriamente políticos?

A resposta habitual é, de fato, uma constatação do triunfo do liberalismo: o modelo dominante funciona, não há outro projeto. Portanto, vamos aprimorá-lo com enfeites de sentimentos e tripas.

Poderia concordar. Mas sobra uma dúvida: talvez a explosão das exigências subjetivas seja responsável por nossa crescente incapacidade de pensar propostas propriamente políticas.

Talvez ela nos obrigue a conceber a coletividade só a partir do indivíduo. Talvez, em suma, o triunfo contemporâneo da subjetividade tenha produzido um eclipse da razão política.
P.S.: Michel Foucault dizia que os discursos da liberação certamente libertam, mas também renovam (e aprimoram) a máquina do poder.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2003

Nostalgia dos tubarões

No último número da revista "Science" (vol. 299, nº 5.605), Julia K. Baum e outros pesquisadores da Universidade Dalhousie (Nova Escócia, Canadá) apresentam uma pesquisa sobre "Colapso e Conservação das Populações de Tubarões no Atlântico Noroeste".

Entre 1986 e 2000, os tubarões, da Terra Nova a Recife, declinaram brutalmente. Os números são diferentes segundo as espécies, mas, com raras exceções, sempre significativos. O tubarão-martelo quase sumiu (diminuição de 89%), e o tubarão-branco (comedor de banhistas e protagonista do filme "Tubarão") perdeu 79% de seus efetivos.

Chegou-se a esses resultados acompanhando as variações no número de tubarões capturados acidentalmente pelos pescadores de atum e de peixe-espada. Nesse tipo de pesca, as linhas carregam centenas de iscas que qualquer peixe morde com apetite. Ora, essas linhas trazem de volta cada vez menos tubarões.

O próprio caráter não seletivo da pesca deve ser responsável pelo declínio dos tubarões. A isso se adiciona, hoje, a captura intencional: nos EUA, a pesca do tubarão é regulamentada, mas os pescadores europeus trabalham livremente, encorajados pela popularidade da carne de tubarão nos restaurantes da Europa.

Os pesquisadores manifestam sua preocupação. Afinal, os tubarões levam de 12 a 18 anos para atingir a maturidade reprodutiva, e as fêmeas, no decorrer de sua vida, criam, no máximo, dois tubarõezinhos. Será difícil inverter a tendência, mesmo com fortes políticas de proteção.

O tom preocupado do artigo desperta uma certa vontade de zombar. Afinal, danem-se os tubarões. Se querem sobreviver, é fácil: tornem-se vegetarianos. Evitarão as iscas e, assim, pararão de encher (ou morder) o saco da gente. Os pesquisadores canadenses, consternados, nos lembrariam que o fenômeno compromete o equilíbrio ecológico. Sem tubarões, seremos invadidos pelas focas, que ninguém comeria mais, e, na pança de tantas focas, sumiriam as sardinhas. Ora, sem sardinhas, como almoçar no porto de Lisboa? Pois bem, responderão os zombadores, que volte a moda dos casacos de pele, reabra-se a caça aos "bebês" de foca e, pronto, as sardinhas estarão salvas.

O declínio dos tubarões produzirá uma certa alegria entre banhistas e surfistas. Embora os ataques sejam raros, não duvido que, logo em janeiro, muitos achem ótimo que haja menos bichos dentuços nadando no fundo do mar. Comentarão que, para preocupar-se com o declínio dos tubarões, só os canadenses mesmo, que não entram na água do mar nem no verão.

Mas estou também convencido de que, entre os próprios surfistas que expõem assiduamente suas pernas apetitosas aos tubarões, muitos vão se manifestar contra a pesca industrial e seus estragos nas fileiras dos predadores do Atlântico.

É uma contradição constante. Acreditamos em nossa capacidade de transformar o mundo. Mas essa fé convive sempre com a nostalgia do cosmo imutável, ordenado pela bondade divina ou pela sabedoria da própria natureza.

Ora, os dinossauros não sumiram por culpa nossa, e uma enorme parte da evolução se fez em nossa ausência. Além disso, as formigas, ao construir colônias de formigueiros, não se preocupam com o plano da natureza. Idem para os castores quando constroem seus diques. Sem falar nos tubarões, que não se preocupam nem um pouco com a extinção dos surfistas e dos turistas em nossas praias. Ou seja, em princípio, as espécies "normais" modificam o hábitat e tentam impor suas necessidades sem grandes tormentos de consciência.

Essa era também a posição dos homens até, mais ou menos, dois séculos atrás. Paradoxalmente, a modernidade levou ao paroxismo a vontade de adaptar o mundo ao nosso capricho e, ao mesmo tempo, as lágrimas (de crocodilo) que choram os encantos perdidos de um mundo preservado. A história se acelerou, mas foram inventados os museus, a preservação dos monumentos históricos e os parques naturais. Com novas armas e armadilhas, exterminamos os lobos que ameaçavam nossos rebanhos; logo, criamos lobos em cativeiro e tentamos reintroduzi-los em nossas montanhas. O Ocidente colonizou (ou pós-colonizou) quase o mundo inteiro e agora lamenta a variedade perdida das culturas. Só falta recriar e reintroduzir os sioux nas planícies do oeste americano e os tupis-guaranis na mata atlântica.

Admiro o heroísmo preservacionista, mas desconfio um pouco dele. Há o sublime sacrifício: em nome da ordem cósmica, amo os tubarões, embora me mordam. Há a aparente abnegação: queria que o mundo não fosse sujo pela minha própria presença.

E há, atrás desses nobres sentimentos, um extremo narcisismo. Pois a abnegação afirma que somos completamente diferentes das outras espécies: seríamos os únicos que podem colocar o bem do ecossistema acima de nossos interesses imediatos.

Alguém responderá: nada disso, cuidamos da ordem do mundo apenas para garantir nossa sobrevivência. Pois é, lobos e tubarões agem diferente: não estão preocupados com sua morte a ponto de querer se consolar planejando a eternidade do planeta.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2003

A guerra que vem

Não sei se a segunda guerra do Iraque acontecerá ou não. Soldados, aviões e navios saem para o Oriente Médio, e fala-se, aqui nos EUA, na possibilidade de instituir o alistamento obrigatório.

Embora o entusiasmo da população vacile um pouco, a oposição à guerra é fraca. O clima dominante é: "Pouco importa o que dirão os inspetores da ONU, agora é tarde para recuar. Depois pegaremos a Coréia do Norte".

Claro, os regimes do Iraque e da Coréia do Norte são odiosos. Mas duvido que o governo americano queira transformar os EUA em polícia do iluminismo político. Duvido ainda mais que essa seja a vontade do americano médio.

Claro, o petróleo iraquiano é uma isca apetitosa, mas a invasão produziria, no Oriente Médio, uma onda de ódio mais nociva do que a perda do dito petróleo. Além disso, os americanos achariam imoral, hoje, uma guerra justificada só por interesses econômicos.

No ideário americano, a democracia requer duas condições indissociáveis: autonomia e possibilidades ilimitadas de consumo. Só há democracia se vivemos num supermercado constantemente abastecido por uma infinidade de produtos e no qual circulamos, mercadorias entre as mercadorias, arriscadamente livres, vendendo nosso serviço ao melhor preço.

O anseio libertário repudia invasões e intromissões. Mas a necessidade de acesso infinito a bens de consumo pode exigir intervenções para que seja mantida a abundância, que é uma condição do ideal democrático. Ora, a penúria não é a situação do dia; o preço da gasolina continua igual.
Então por que a pouca resistência aos preparativos? Por que a guerra é popular?

A modernidade, no começo, era avara de identidades de grupo: a proposta era que cada um fosse simplesmente ele mesmo. A religião, o vilarejo, a classe social, em princípio, não contavam mais: você é mão-de-obra errante e vale por seu sucesso no supermercado da vida. Nessa nova imensidade, a referência nacional oferecia conforto.

Como se definiam as nações? Pela guerra. Quando sabemos quem odiamos e quem nos quer mal, pertencemos enfim a um grupo. As guerras nos fizeram franceses, ingleses, italianos etc., numa época em que as identificações coletivas perdiam sentido.

Queremos ser apenas membros da mesma espécie humana, e tanto faz que sejamos católicos ou muçulmanos, brancos ou morenos. Mas sentimos a nostalgia de um círculo mais restrito do que a humanidade. Para constituí-lo, nada melhor do que definir nosso grupo por seus inimigos.

Depois da Segunda Guerra Mundial e da catástrofe dos impérios coloniais, as nações começaram a definir-se por outros meios. Ainda existem coletividades reunidas pela guerra; a Bósnia e a Sérvia são exemplos recentes, e talvez o Iraque ou a Coréia do Norte sejam outros. Mas são fenômenos periféricos. As nações européias, em poucas décadas, perderam sua inspiração armipotente e encaminharam-se para uma identidade supranacional e pacífica. A União Soviética juntou a vocação guerreira às suas aspirações ideológicas; quando estas desmoronaram, sobrou uma Rússia decidida, aparentemente, a reinventar-se como nação animada por outra aspiração que não a guerra. A Austrália e o Canadá, há tempo, sustentam-se pelo projeto infinito de conquistar sua própria fronteira interna: o deserto ou o grande norte.

Das grandes nações modernas, só os EUA continuam sendo, propriamente, uma nação fascinada com sua própria belicosidade. Não é uma intenção expansionista, mas um traço identificador: ser americano é comprar brigas armadas, assim como ser brasileiro é desconfiar do Estado ou ser malandro.

Uma série de contingências históricas explicam essa particularidade: os EUA nasceram de uma revolução e se aperfeiçoaram numa série ininterrupta de conflitos. Em 1945, na hora em que derrotas ou vitórias demasiado custosas levavam outras nações a esquecer suas vocações combativas, os EUA festejaram uma vitória militar que coincidia com o triunfo mundial da liberdade.

Em suma, nos EUA, o apelo à guerra estimula diretamente um traço crucial do espírito nacional. Desculpe a irreverência: é como tocar axé num boteco de Salvador, todo mundo começa a se mexer.

É difícil que os americanos mudem, pois constatam que sua belicosidade alimenta os sonhos do mundo inteiro. Nas salas de cinema, a cultura guerreira dos EUA seduz as mesmas platéias que, eventualmente, descem às ruas protestando contra o militarismo "ianque". Os EUA são amados e odiados (ou seja, invejados) por serem a nação militar que muitos deixaram de ser e que outros querem e não conseguem constituir. Renunciar a definir-se pelo poder militar seria, para eles, abdicar de sua própria força de sedução.

Uma mudança na identidade americana talvez acontecesse se a nação se diluísse, um dia, num conjunto supranacional, como foi o caso dos países europeus. Ora, a Alca é apenas um acordo comercial. Mas talvez estivesse na hora de enxergar, entre as linhas das contas alfandegárias, a possibilidade de um sonho político. Afinal, a União Européia começou assim.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2003

Made in Brazil

O economista Alfredo Behrens, de São Paulo, planeja uma interessante pesquisa sobre "a competitividade das exportações de tecnologia e o medo de concorrer". Ele constata que várias empresas brasileiras concebem softwares valiosos, mas, na hora de exportar, encontram resistências que não são só de ordem econômica ou administrativa.

Existem, no Brasil, muitas razões que dificultam a exportação. Na segunda metade do século 20, o protecionismo comercial foi acompanhado pelo fim da imigração. Prevaleceu o modelo patrimonialista da riqueza. Ou seja, ganhou a idéia do bolo que seria melhor dividir entre poucos, e foi derrotada a idéia de que a riqueza é o fruto do trabalho de cérebros e braços (idéia que orientou a política de imigração aberta do Canadá, dos EUA e da Austrália). Consequência: em média, explica Behrens, no Brasil dos anos 40, era preciso conhecer apenas 30 pessoas para que uma fosse um estrangeiro; "já na última década do milênio, era necessário conhecer 200 pessoas antes de esbarrar em um estrangeiro residente no Brasil". Também, coletivamente, os brasileiros telefonam para o exterior menos que outros povos cujo Produto Interno Bruto é igual ou inferior ao do Brasil. Lidar com o estrangeiro é, no Brasil, uma prática pouco familiar.

No caso da alta tecnologia, parece haver mais um problema: quase "uma sensação de inferioridade quanto ao trabalho intelectual". Às vezes, os brasileiros desistiriam ou fracassariam, apesar da qualidade de sua produção, por serem atrapalhados pela sensação de que os produtos da inteligência não são coisa de brasileiro.

Questão de baixa auto-estima, dirão alguns, culpando-se. Questão de imagem, dirão outros, responsabilizando a caricatura exótica do Brasil, na qual o país é ótimo para matérias-primas, biquínis e parangolés, mas certamente não para tecnologia.

Na verdade, não há diferença entre a auto-estima e a imagem que os outros têm de nós. O que encontramos no espelho é o que os outros apreciam ou desprezam em nós. Isso vale para cada sujeito, assim como para as identidades coletivas.

Portanto, para melhorar a pretensa auto-estima, não adianta sobrepor ao espelho um retrato mais avantajado. Podemos, a longo prazo, tentar modificar nossas relações com os outros e influenciar assim seus olhares. Mas, antes disso, é urgente aceitar a imagem que é a nossa e descobrir ou desenvolver seus charmes possíveis.

A missão da Apex (Agência de Promoção de Exportações) é promover as exportações e a imagem do Brasil. A equipe da Apex acaba de publicar um pequeno livro ("A Primeira Exportação a Gente Nunca Esquece", ed. Qualitymark) em que um capítulo é dedicado à necessidade de propor uma imagem do país que motive os compradores de produtos brasileiros e que não iniba os brasileiros vendedores. Aprende-se que, no ano passado, a pedido do Ministério do Desenvolvimento, a agência McCann Erickson fez um "levantamento de como as pessoas, especialmente os importadores e empresários (estrangeiros), "percebem" o Brasil". Foi efetuada uma pesquisa nos dez países prioritários para as exportações brasileiras. As respostas foram cinco "S": soccer (futebol), sound (música), sand (praia), sexiness (sensualidade) e sun (sol, trópicos).

Muitos devem achar esse resultado previsível e desanimador. Prefeririam que o Brasil fosse conhecido pela precisão alemã (a Engesa seria a BMW do futuro) ou pelo requinte culinário francês (nas delicatessens do mundo, o feijão tropeiro enlatado seria substituído pelo "foie gras" mineiro).

Entendo, mas discordo. Já disse que a arte de melhorar a auto-estima, ou seja, de modificar a opinião que os outros têm da gente não passa por uma mudança radical e veleidosa. Como se verifica em qualquer psicoterapia, não adianta recusar nossas caretas. Mesmo que elas nos pareçam grotescas, é melhor aceitá-las, assumi-las, examiná-las com carinho e enxergar nelas as razões possíveis de um apreço. Ou seja, em vez de querer ser outro, é mais interessante inventar o que podemos fazer com o que somos.

Nos anos 80, viajei à Itália para apresentar minha mulher, brasileira, à minha família. Ao conhecê-la, meu irmão, que não sabia nada do Brasil e procurava algo cativante para dizer, comentou: "Ah, o Brasil! Aqui em Milão está cheio de travestis brasileiros competindo com as prostitutas". Minha mulher, gaúcha e afiada, não deixou por menos e respondeu: "Se vêm aqui, é que há freguesia; os milaneses devem gostar". Ou seja, os travestis eram, para meu irmão, a imagem do Brasil; então, que sua complexa sensualidade e suas vidas corajosas valessem não como fonte de vergonha, mas pelo desejo suscitado (que sempre se esconde atrás do escárnio).

Na semana passada, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, propôs que os brasileiros reconhecidos internacionalmente, por exemplo os jogadores de futebol e as modelos, promovessem o país e seus produtos. Alguns podem torcer o nariz, mas, sem ironia, o ministro está certo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2003

Comilanças, bebedeiras e outros excessos

A comida tradicional das festas de Natal não é arrebatadora: o peru assado é quase sempre seco, e o presunto, por caramelizado que seja, continua sendo um presunto. Apesar disso, no dia seguinte, ressoa uma litania: comi demais, extrapolei, a partir de amanhã meus nomes são esteira e regime.

Alguns festejam duas vezes: na véspera é o jantar da família e, no dia de Natal, é o almoço na casa dos sogros ou dos pais. A 12 horas de distância, encaram os mesmos pratos; a repetição deveria sugerir moderação. Nada disso, os excessos se repetem.

Para quem sofre de distúrbios alimentares, é um momento trágico. Uma bulimia que parecia curada pode despertar na camaradagem da mesa: "Todos comiam, eu também comi até não poder mais. Depois, fui para o banheiro e forcei o vômito. Voltei para a mesa, comi de novo... fazia anos que isso não me acontecia".

Às vezes, a mesa é puxada por um irmão ou um primo comilões que lideram o abarrotamento. Outras vezes, é a solicitude de uma mãe para quem o apetite dos comensais é a prova certeira do amor.

Mas os casos que me interessam hoje são aqueles em que nenhum comensal, quando senta na mesa, quer comer demais. Ninguém é um glutão, e nenhuma mãe abusiva enche os pratos. Apesar disso, todos acabam amaldiçoando seus próprios excessos e sonhando com a mágica do bicarbonato.

Histórias parecidas acontecerão de novo no fim do ano. Apesar de a bebida ser eventualmente péssima, muitos beberão mais do que queriam e começarão o ano praguejando contra a noite anterior.

Em suma, regularmente escuto sujeitos que se perguntam por quais forças misteriosas foram possuídos naquela infausta mesa em que ninguém queria comer e beber tanto. A cada vez, lembro-me das experiências que David Myers, um psicólogo social americano, realizou no final dos anos 70. Myers quis entender os mecanismos pelos quais pequenos grupos de pessoas chegam a decisões e condutas comuns.

Ele descobriu o seguinte. Quando, num pequeno grupo, existem opiniões diferentes, o grupo pode, é claro, quebrar. Você quer comer carne, eu sou vegetariano e Fulano está de jejum: desistiremos de almoçar juntos, cada um volte para sua casa. Mas, se o grupo não quebrar, se conseguir estabelecer um projeto comum, é bem provável que um acordo seja encontrado ao redor de uma posição MAIS extrema do que a posição de qualquer membro do grupo.
Ou seja, você quer comer uma picanha inteira, eu quero comer uma fatia transparente de lombinho, ele mal aguenta o cheiro da comida, e acabaremos todos comendo um boi inteiro. A tendência é que a unanimidade se faça graças a uma escolha radical que nem existia antes de o grupo concordar.

Para quem acredita no poder da razão discursiva para resolver conflitos, as pesquisas de Myers são uma pedra no sapato (ou no estômago).

Elas se aplicam a casos menos engraçados do que comilanças e bebedeiras. Imagine (é só um exemplo) três jovens que, de noite, passeiam pelas ruas de Brasília. Eles encontram um índio que dorme debaixo de um abrigo de ônibus. Um dos jovens acha que é melhor deixar o homem tranquilo e seguir em frente, outro acharia graça em dar um susto no índio gritando no seu ouvido de repente e o terceiro gostaria de dar-lhe uma ducha com um balde de água gelada. Seria razoável que os três negociassem uma espécie de média, ao redor da posição do segundo, não é? Pois é, as experiências de Myers mostram que eles tenderão a concordar em dar um banho não de água gelada, mas de gasolina, e em tocar fogo no homem. Como é possível? Por que o grupo não é um lugar de debate racional ou razoável?

Em qualquer grupo, grande ou pequeno, a coesão e, portanto, a sensação de pertencer ao conjunto são as coisas mais gratificantes para os membros. No caso, uma escolha extrema oferece uma grande consistência de grupo. Encontraremos nossa unidade por sermos os empanturrados, os doentes de amanhã de manhã ou, mais radicalmente, os cúmplices de um assassinato.

Além disso, num grupo pequeno, a corrida para a liderança é, por assim dizer, inflacionária. Imaginemos "A", "B" e "C" querendo festejar. "A" propõe que se coma peixe e carne; se "B" concordar, "C" não vai contentar-se com a posição de terceiro aderente. Ele proporá que se coma peixe, carne e ovos fritos. "A", para manter a liderança, aceitará com entusiasmo, mas agregará a salada de batatas. Como "B" resistiria à tentação de propor um antepasto? Não é uma discussão: é um pôquer em que todos seguem aumentando as apostas até a catástrofe final, gastrodigestiva ou outra.

A idéia de que agiríamos como sujeitos racionais está em baixa. Em 2002, um psicólogo, Daniel Kahneman, ganhou o Prêmio Nobel de Economia por mostrar que nosso comportamento econômico não é racional.

Também, fora as comilanças, há suficientes mortos e feridos pelo mundo afora para lembrar que os mecanismos de nossa vida de grupo são imperiosos, exigentes e pouco razoáveis.
Para o Ano Novo, talvez seja prudente contar menos com a razão e mais com a boa vontade dos indivíduos.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2002

Natal com John Rawls



Um exercício filosófico para manter o espírito natalino.
Depois de um século de enfrentamentos, nas ruas, nos matagais e dentro de cada cabeça, ficamos numa espécie de empate entre o sonho socialista e o sonho liberal.

Se nos dermos o tempo de pensar, chegaremos provavelmente a estas constatações: não sabemos renunciar aos anseios da liberdade individual, mas recusamos as desigualdades excessivas de poderes e haveres. Essas desigualdades, de fato, constrangem a liberdade de todos, o que constitui uma boa razão para combatê-las. Mas como aboli-las sem comprometer a liberdade quase absoluta que queremos preservar para todos?

Ainda existem liberais segundo os quais qualquer um tem direito a tudo que puder arrancar de seu semelhante. Acham que a aspiração igualitária nos torna reféns das exigências dos outros, ameaçando nossa liberdade. Também ainda existem socialistas que vêem na liberdade individual uma traição dos ideais comunitários, que, para eles, deveriam ser os únicos. Mas trata-se de minorias.

Grosso modo, concordamos. Todos, ou quase, queremos o melhor dos dois sonhos, liberal e socialista, sem concessões: justiça e liberdade.

A discórdia começa na hora de decidir quais regras realizariam uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa. John Rawls é o filósofo dessa hora. Morreu quase um mês atrás, deixando um vazio discreto, como acontece quando vão embora os melhores, ou seja, os que falam em voz baixa e nos pedem o esforço de pensar.

Sua obra mais importante, "Teoria da Justiça", foi publicada em 1971. Talvez um dia, alguém, procurando datar períodos no século 20, escolha essa data para marcar o fim da modernidade e o começo da pós-modernidade. Pois o livro é um último esforço da razão moderna para resolver o conflito entre seus dois maiores sonhos.

Rawls acredita que seja possível estabelecer regras universais para uma sociedade justa e livre. Como? Recorrendo a uma experiência racional que nos levaria a conclusões unânimes em matéria de justiça.

Imagine-se num limbo, antes de nascer, ou seja, antes de saber quais prêmios ou quais desgraças lhe serão atribuídos pela loteria da vida. Você não sabe se nascerá miserável ou rico, na Somália ou em Beverley Hills, rebento de uma família uspiana ou analfabeta. Cuidado: não basta imaginar-se (fantasia de Woody Allen) como espermatozóide na espera preocupada da ejaculação paterna, nem como óvulo materno antes da invasão. Na loteria da vida, é preciso incluir o patrimônio genético. Você também não sabe se será homem ou mulher, branco ou negro, alto ou baixo e, sobretudo, não sabe se terá fragilidades genéticas para malformações e deficiências. Ou se terá ou não predisposições para algum talento.

Claro que essa "posição original" não existe. Mas somos todos capazes de viajar, por um instante, até esse lugar fictício. De lá, poderíamos escrever, de um comum acordo, as regras de uma sociedade justa.

À primeira vista, o apelo à "posição original" se parece com a empatia, ou seja, com a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de sentir suas dores. A diferença é que Rawls não propõe um sentimento acidental e caritativo, mas uma experiência universal da razão, que orientaria nossas decisões políticas e morais. Nisso, a "Teoria da Justiça" poderia ser o último grande texto moderno.

A pós-modernidade não acredita na universalidade da razão. E, por exemplo, critica Rawls da maneira seguinte: a experiência da "posição original" é possível só para nossa cultura. Nós acreditamos que nossa família seja a espécie humana. Podemos, portanto, nos imaginar em qualquer lugar na loteria da vida. Mas essa é apenas a crença da tribo ocidental moderna.

Outras culturas acreditam que os vizinhos, os pobres ou as outras raças sejam bichos diferentes. Elas escutariam a proposta de Rawls com a indiferença que seria a nossa se ele nos convidasse a imaginar que poderíamos nascer bactéria, inseto ou truta. Conclusão: a pretensa universalidade da razão justa seria uma crença histórica e culturalmente limitada.

Essa crítica procede, mas é sem consequência. Pois nossa cultura nos constitui: seus pressupostos (por exemplo, a convicção de sermos todos membros da mesma família humana) têm para nós valor universal, são partes integrantes de nossa razão.

Mas há uma outra crítica, que a prática da psicanálise leva a formular. Não estou certo de que, na "posição original", por não conhecer os resultados da loteria da vida, todos escolheríamos regras justas. Suspeito que muitos prefeririam planejar uma sociedade iníqua e correr o risco de tirar um número ruim, à condição de preservar ao menos uma pequena chance de ganhar e, portanto, de gozar de privilégios inauditos.

Não sei o que Rawls responderia. Lamento que encontrá-lo não seja mais possível. Não tanto para solucionar a questão, mas porque sua voz é uma das mais decentes desse último meio século.

Feliz Natal (um pouco atrasado) a todos, sobretudo aos que gostam de pensar e de falar em voz baixa.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

A estrela na lapela

Quarta-feira da semana passada, em São Paulo. Tomo meu café contemplando a imagem de capa da Folha: o aperto de mão entre o presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e George W. Bush, presidente dos Estados Unidos.

Uma assimetria: Bush traz, na lapela, uma bandeira dos EUA, e Lula arvora a estrela vermelha do PT. Toca o telefone, e começa uma ciranda de comentários que duram o dia inteiro. "Elegemos o presidente do Brasil ou o do PT?" "O que é, voltou o Komintern?"

Na quinta-feira, aparecem as fotografias do encontro com Vicente Fox, presidente do México: na lapela de Lula, nenhum distintivo. Parece que Lula vestiu a estrela especificamente para o encontro com Bush.

Imagino que ele tenha usado o distintivo para declarar sua fidelidade às aspirações e ao percurso que o levaram até o encontro no Salão Oval da Casa Branca. Lembrete: serei cordial, engolirei os sapos necessários, mas não renegarei a estrela que representa meu sonho de um mundo solidário e generoso. Ora, do lado americano, como foi recebido o gesto?

As vicissitudes da estrela vermelha tornam seu valor simbólico problemático. A estrela no chapéu de um chinês durante a longa marcha era o símbolo de uma grande esperança. Décadas depois, em Pequim, a mesma estrela no chapéu de um policial ou de um burocrata era o símbolo do terror. Soviéticos, chineses, castristas, coreanos do norte e vietnamitas do norte fizeram do bem comum sonhado por todos um pretexto para moer os indivíduos, e, repetidamente, a estrela vermelha virou emblema da repressão. Mas pouco importa: na Casa Branca, certamente, ninguém confundiu o presidente do Brasil, democraticamente eleito, com um burocrata chinês.

No entanto o uso do distintivo deve ter sido entendido como uma provocação e, portanto, como uma fraqueza: em suma, como uma molecagem. Pense no que acontece quando um adolescente insiste em usar seu piercing no nariz logo no dia em que veste terno e gravata para enfrentar uma entrevista de seleção. O jovem acha que ele está, assim, reivindicando sua autonomia: preciso de emprego e você me intimida, mas, cuidado, não pense que deixarei de usar meu piercing, viu? O detalhe incôngruo é, de fato, a prova de sua fragilidade. Pela necessidade de conclamar sua independência na hora de apresentar-se e de pedir, ele revela que está se sentindo ameaçado por sua própria inferioridade. Em boa psicologia de recursos humanos, é por isso que o dito jovem não conseguiria o estágio ou o emprego. Ele sairia esbravejando: fui discriminado por causa de meus anseios de liberdade! Na verdade, seu piercing revelou não um excesso de independência (essa seria uma qualidade prezada), mas uma falta de segurança.

E o americano médio? Quem se interessa por política internacional (uma minoria, sem dúvida) sabe que o presidente eleito do Brasil pertence a um partido de esquerda. Mas a foto do encontro com Bush mal apareceu na imprensa. Segunda-feira de manhã, em Nova York, pergunto a Marshall Blonsky (professor de semiologia na Tisch School of the Arts e autor de "American Mythologies") como reagiria, a seu ver, o americano médio se os jornais tivessem mostrado em primeira página a foto colorida que nós vimos no Brasil, com a estrela vermelha na lapela de Lula.

Responde: "Ficariam exasperados. Pensariam: esse cara está procurando nas ruínas sinistras do passado uma maneira para mostrar a língua a Bush e à gente. Nós estamos em guerra, ele vem pedir crédito e abana com as mãos ao lado das orelhas cantarolando: olhem para a minha estreeela... nana nanana. É tudo o que tem para nos dizer?".

Mas há uma boa chance, acrescenta Blonsky, de que, para os mais jovens, a estrela vermelha evoque sobretudo uma propaganda da Heineken, a cerveja da estrela. De fato, se o retrato do Che pode estar em cada quarto de estudante e embelezar um famoso biquíni apresentado por Gisele Bündchen, por que a lapela de um presidente não seria alugada como espaço para a promoção de logomarcas?

Difícil não ouvir, no cinismo divertido de Blonsky, um fundo de ressentimento. Decididamente, não é o melhor momento para fazer molecagens com os americanos.

Segunda-feira à tarde, por volta das 15h, passam na minha rua, em Manhattan, as coortes dos estudantes que saem da Park West High School, uma escola pública. Enquanto me dirijo a um bar para terminar de escrever esta coluna, cruzo com um adolescente negro que veste o tradicional casaco preto de náilon da North Face, um moletom com capuz cinza e um gorro de lã com, bem no meio da testa, uma estrela vermelha. Para verificar a previsão de Blonsky, aponto para a estrela e comento: "Cool" (legal). Martin F., 17, pára, e conversamos no frio. Mostro-lhe a capa da Folha de quarta-feira. Quando enxerga a estrela, exclama: "Cooool" (leeegal). Imagina que Lula seja um cara da Rússia. Faço-lhe notar que os russos não têm mais nada a ver com as estrelas vermelhas. "Como não? São as lojas dos russos que vendem essas estrelas em qualquer canto do Brooklyn."

quinta-feira, 12 de dezembro de 2002

Vida divertida ou vida interessante?

Uma reportagem do "New York Times" (3 de dezembro) descrevia uma nova moda nos colégios americanos, graças à qual o ensino de ciência está se tornando curiosamente popular.

Nos EUA, os requisitos mínimos para o diploma secundário são bastante livres. Há tempos, para quem não gosta de estudar química, física ou biologia, existem matérias alternativas, como a "ciência da terra" ou a ecologia. Agora é a vez da "ciência forense", idealizadíssima pelos seriados televisivos, pelo cinema e pelos romances policiais. Assim, em vez de estudar leis e fórmulas, os alunos aprendem como determinar a hora da morte considerando o estado de um cadáver (aulas práticas no necrotério). Familiarizam-se com o microscópio examinando pêlos de possíveis estupradores encontrados no corpo da vítima. Entendem o que são o esperma ou o sangue investigando uma hipotética cena do crime.

Nas escolas em que os cursos são oferecidos, os jovens são entusiastas. Por que bancar o estraga-prazeres?

O fato é que a reportagem me deixou um mal-estar. Fiquei com a impressão de que a química, a física e a biologia estivessem desistindo de ter qualquer apelo próprio. As formas estabelecidas da diversão (sobretudo a televisão e o cinema) decidiriam como e o que podemos aprender. Filosofia, história e inglês (português, no nosso caso) seriam vítimas do mesmo processo.

Lembrei-me de conversas recentes com um jovem estudante universitário que (com grande angústia dele e dos pais) quer largar os estudos ao menos temporariamente. Ele queixava-se de que todos os cursos seriam chatos. "Como assim, chatos?", perguntei. "Não são divertidos", respondeu. Estranhei: quem disse que um curso deve divertir?

Existem ao menos duas antíteses de chato: interessante ou divertido. E elas não se equivalem. O divertido nos afasta e nos distrai. O interessante nos envolve e nos engaja. Enquanto os alunos olham para um passarinho que os diverte, posso lhes enfiar uma colherada de ciência na boca. Mas preferiria interessá-los na própria ciência.

Cuidado: não defendo o valor do trabalho duro. Aliás, suspeito que o ideal do "homo faber" seja uma versão laica do moto monacal "reza e labora". E, se não tiver para quem rezar, contente-se em laborar. Deve ter sido promovido, no começo do capitalismo, pelo dono de uma tecelagem inglesa que queria justificar a "nobreza" da semana de 80 horas e do trabalho infantil.

Mas fui adolescente nos anos 60, a década do triunfo da intimidade e da idéia de que a verdade que importa é sempre subjetiva. Consequência: para mim (como para muitos de minha geração), o mundo é sempre interessante com a condição de que a gente se engaje nele. É alienado quem, vítima de poderes escusos ou de fraquezas morais, foge desse engajamento.

A partir dos anos 90, encontro adolescentes para quem o mundo parece tolerável apenas se puderem distrair-se dele. E os vizinhos são frequentáveis à condição de não se comprometer com eles. O que era alienação nos anos 60 tornou-se escolha de vida nos 90.

O próprio uso das drogas mudou. Nos anos 60, a maconha e os alucinógenos eram concebidos como auxílios para descer "mais fundo" no autoconhecimento ou numa pretensa comunhão mística com o mundo. Imaginávamos que drogar-se fosse uma viagem iniciática, interior ou para a Índia. O ecstasy dos anos 90, ao contrário, promete um paroxismo de distração. Serve para clube e música tecno: não fale nada e sacuda-se forte.

Ora, criticar os jovens é quase sempre uma hipocrisia. Pois, em regra, o que eles "aprontam" é apenas a realização de um desejo dos pais. Melhor, eles realizam o que conseguem entender ou imaginar das aspirações inconscientes dos adultos.

Portanto, se a escolha da distração é deles, o desejo de distração deve ser um pouco nosso. Posso achar surpreendente que meu jovem interlocutor exija cursos divertidos. Mas devo reconhecer que ele vive num mundo em que há pedagogos que acham certo vestir-se de Sherlock Holmes para ensinar química. Em suma, foram os adultos que, do ideal da vida interessada e engajada, passaram para o ideal da vida divertida. Os jovens perceberam.

Na sala de espera de meu dentista, folheio a "Caras". Entendo que muitos gostem de contemplar os ricos e famosos em suas mansões e festas. Os cínicos dizem que é saudável: a inveja estimularia a mobilidade social. Não vou discutir agora. Mas constato e lamento que, inelutavelmente, os retratados sejam deformados por um sorriso idiota. A imagem da felicidade proposta se confunde com um ricto que não é justificado pelas circunstâncias, mas vale como uma declaração: olhem para nós, estamos alhures, esquecidos do mundo e de nós mesmos, nos divertindo.

Em 1938, Huizinga publicou "Homo Ludens", o homem que joga, para mostrar que o jogar é uma dimensão essencial da atividade humana. Estranha premonição, ele previa que, no futuro, uma cultura da puerilidade impediria adultos e crianças de continuar jogando do único jeito interessante, ou seja, com seriedade.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2002

Na passarela de Miss Mundo, lá vamos nós

A Nigéria é um país dividido entre cristãos modernizadores e muçulmanos que têm pouca simpatia pelos charmes da modernidade ocidental. Os dois grupos se odeiam.

Em 2001, a nigeriana Agbani Darego, estudante de computação, foi eleita Miss Mundo, graças à elegância de seu porte e às suas qualidades intelectuais. Com isso, a Nigéria ganhou o direito de hospedar o concurso. O governo nigeriano (o atual presidente é cristão) decidiu promover o evento de 2002 para mostrar ao mundo que a Nigéria se moderniza. A comunidade muçulmana não gostou. Primeiro, várias candidatas protestaram contra a aplicação da lei islâmica na Nigéria e pediram que fosse abolida a pena de apedrejamento para mulheres acusadas de adultério.

Também a data escolhida (7 de dezembro, no começo do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos) pareceu uma provocação. Enfim, como aceitar uma competição baseada em qualidades que o Islã mais conservador não preza nas mulheres, como a sedução, a independência e a formação intelectual e profissional?

Gota que fez transbordar o vaso, uma jovem jornalista nigeriana (de novo, uma mulher, mas onde já se viu?), ao comentar a chegada das moças, na semana retrasada, perguntou: "O que o profeta Muhammad pensaria do concurso?", e brincou: "Quem sabe ele escolhesse uma mulher entre as jovens pretendentes".


Blasfêmia! As autoridades religiosas do Estado de Zamfara decretaram uma "fatwa" contra a jovem, que já está em fuga pelo mundo, alvo designado de assassinato por qualquer fiel muçulmano que goste da idéia. E a rua pegou fogo. Balanço: mais de 215 mortos, 1.100 feridos, 22 igrejas e oito mesquitas destruídas.

O páreo mudou-se para a Inglaterra. Aqui, surpresa, as concorrentes foram acolhidas por outros protestos. Germaine Greer, feminista veterana, fez eco às autoridades islâmicas de Zamfara, declarando que era horrível que o concurso ocorresse em Londres.

Mesmo sem aventurar-se em críticas ideológicas, é fácil zombar de Miss Mundo: os concursos de beleza parecem puras futilidades. Os organizadores deveriam ter desistido na hora do primeiro bofetão na rua, não é?

O problema é que, pensando bem, não estou tão certo da futilidade do concurso de Miss Mundo. Há traços e manifestações de nossa cultura que podem nos incutir uma espécie de vergonha. Com isso, não reconhecemos que são parte integrante e necessária de nossa maneira de ser.
Um exemplo. A liberdade de expressão é crucial na nossa cultura: acreditamos no indivíduo como valor, portanto defendemos a liberdade de cada um se expressar livremente.

Essa atitude é fácil quando se trata de proteger uma revista militante ou mesmo (espero) o colunista de um diário. Mas hesitamos quando se trata de defender palavras e imagens que não têm, aparentemente, funções nobres ou superiores. Pelo jornal da CUT desceremos nas ruas e enfrentaremos polícia a cavalo e bombas de gás lacrimogêneo. Será que faríamos o mesmo pelos anúncios eróticos da "Private" ou pelos cinemas pornográficos do centro? Na hora de proteger a expressão das fantasias eróticas, achamos que essa é nossa parte acessória, envergonhada. No melhor dos casos, nós a defendemos só para evitar que a repressão estabeleça um precedente do tipo: amanhã será a vez da Folha. Dificilmente reconhecemos que a liberdade das fantasias eróticas é um traço irrenunciável de nosso jeito de ser.

Ora, nossa subjetividade não é possível sem a liberdade de fantasiar sexualmente. Montesquieu, Locke e Rousseau não existem sem Sade. Cultuamos a liberdade política e prezamos a autonomia também porque nossa fantasia erótica se arrisca a enlouquecer, imaginando e desejando coisas impossíveis ou proibidas. É com a liberdade de fantasiar que nasce a culpa moderna: paramos de ser culpados por não respeitar proibições e normas e passamos a sentir culpa sobretudo por deixar de perseguir o que desejamos.

Outro exemplo, mais próximo de Miss Mundo. A sedução é a modalidade geral de se afirmar e de se relacionar em nossa cultura. Mas dificilmente reconhecemos nela um traço decisivo de nossa subjetividade. Querer seduzir não é o triunfo das aparências e da futilidade? Por que defender concursos que parecem premiar a sedução?

Ora, a sedução generalizada, que nos envergonha um pouco, é o corolário da revolução que aboliu os privilégios do berço. Se cada um deve valer por si só (não pelo lugar ou pelos pais de quem nasceu), então, nosso valor é decidido pelo olhar dos outros, ou seja, por nossa capacidade de seduzi-los.

Resumo: se nos orgulhamos da liberdade de expressão, devemos defender também os cinemas do centro. Se nos orgulhamos do fim dos privilégios na organização social, devemos defender a sedução que organiza nossas relações sociais.

Em suma, podemos não gostar, mas não podemos renunciar aos "sex shops" e aos clubes de swing. Como não podemos renunciar ao desfile de Carnaval, ao concurso de Miss Mundo ou à semana da moda de São Paulo. Pois os cantos escuros do sexo e as passarelas da sedução não são as escórias, mas os caminhos de nossa liberdade.