quinta-feira, 6 de março de 2003

O Carnaval e a guerra do Rio

Os turistas não se deixaram intimidar pelo noticiário e vieram para o Carnaval do Rio em número recorde. Tiveram razão. Mas, até o domingo, eu receava que o único bloco em consonância com o ar do momento fosse o "Que M... É Essa?", com o enredo: "M... de Guerra ou Guerra de M...?".

Eu não pensava na guerra entre os EUA e o Iraque, mas na guerra do Rio: dezenas de ônibus incendiados, depredados ou metralhados, cidadãos executados, queimados, aterrorizados.

Alguém dirá: não vamos exagerar, o Comando Vermelho é uma organização criminosa, por que falar em guerra? Guerra é a luta entre facções do narcotráfico, em que se enfrentam exércitos de entidades equivalentes, morro contra morro. Mas, em relação ao resto da sociedade, o narcotráfico quer realizar ganhos: pratica crimes, não guerra.

Acontece que as coisas mudaram radicalmente na semana passada. Não se tratou de assaltar cidadãos ou de conquistar bocas-de-fumo. Tratou-se de chantagear o Estado e a federação. E a chantagem foi política, não financeira.

Explico. Uma organização criminosa pode anunciar que, se o governo não pagar uma soma de dinheiro, um ônibus será incendiado com todos os seus passageiros. O cinema nos mostrou situações desse tipo. "Mandem alguns milhões para minha conta ou detonarei uma bomba nuclear no meio da cidade." Faz parte da lógica do crime.

Ora, os novos ataques do Comando Vermelho foram de outra ordem. Pediam que o Estado e a federação não atrapalhassem o conforto e a capacidade operacional de Fernandinho Beira-Mar na prisão.

Sutileza: não foi pedido que ele fosse solto por decreto. O narcotráfico não quer destituir o poder público a esse ponto: a bagunça de um país sem governo talvez não seja boa para os negócios. O narcotráfico ambiciona ser o poder real atrás de um governo fantoche. Até uma eventual evasão, Beira-Mar aceita ficar preso, pois assim serão mantidas as aparências do poder público. Mas, a partir de sua cela, ele quer estabelecer os limites da autoridade do próprio Estado que o encarcera.

O ataque da semana passada é um ato de guerra, porque seu alvo não é o bolso das pessoas, mas a própria legitimidade do poder que emana da convivência dos brasileiros.

Escutei mil considerações sobre as razões que podem tornar os cariocas (e o país inteiro) reféns do Comando Vermelho. Todas valem e são corretas. A história nos ofereceu elites corruptas e exploradoras. Nossa cultura não honra a função pública, logo entrega as forças da ordem à corrupção. As diferenças sociais forçam um exército de excluídos a tomar as armas contra a comunidade nacional como se fosse uma outra tribo. Uma cegueira política leva alguns a imaginar que as Farc colombianas, aliadas de Beira-Mar, sejam portadoras de uma esperança social. A corrupção endêmica na esfera do poder público alimenta o cinismo: por que não o Comando Vermelho, uma vez que tantos governantes saquearam o país impunemente? E por aí vai.

Mas consideremos uma hipótese um pouco antiquada: se o país fosse invadido por um exército estrangeiro, qual seria a urgência? Refletir sobre as fraquezas que encorajam a invasão? Ou achar o ânimo para enfrentá-la?

Diante das agressões, os Estados democráticos são fracos, sempre lerdos e constrangidos pelo respeito das regras constitucionais. Além disso, há traços culturais da modernidade que pioram as coisas.

Por exemplo, somos levados a procurar em nós mesmos a razão ou mesmo a culpa do que nos acontece: "Minha namorada me deixou, não posso obrigá-la a voltar, mas posso (ou, melhor, devo) me perguntar como e por que não fui capaz de amá-la o suficiente para que permanecesse comigo". Equivalente, no caso que nos interessa: o Comando Vermelho quer dominar o Estado, a culpa é também nossa, pois toleramos elites corruptas e exploradoras etc. (segue a lista esboçada antes).

Outro traço: os outros nos aparecem, antes de mais nada, como nossos semelhantes. Consequência: enquanto fulano me massacra, enterneço-me pensando na infância sofrida que o levou para o caminho errado. Com isso, temos uma dificuldade crônica em reconhecer nossos inimigos ou mesmo em admitir que temos verdadeiros inimigos.

Essas fraquezas da democracia e da subjetividade moderna deveriam ser corrigidas por uma força: o sentimento de um patrimônio compartilhado para defender. Claro, o recurso a esse sentimento é difícil quando a sociedade é dividida por desigualdades extremas.

A hora não é banal: talvez se decida nestes dias se a Colômbia de hoje será ou não o Brasil de amanhã. Sou moderadamente otimista, e não só pela presença (apropriada, tratando-se de uma guerra) do Exército nas ruas do Rio.

Conto com os enredos do desfile de terça-feira. O "Samba da Paz" da Mangueira foi um elogio à luta de Moisés, que, na hora da briga, não hesitou em mandar pragas como balas. E a Beija-Flor lembrou que, para chegar até a paz, é necessário, às vezes, lutar, usando "a mão que faz a guerra".

Desejos de paz, em suma, mas dispostos a pagar o preço necessário.

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