quinta-feira, 13 de março de 2003

Por favor, não atirem no pianista

Assisti a "O Pianista" de Roman Polanski algum tempo atrás, nos EUA. Planejava comentar o filme na semana passada, aproveitando sua estréia no Brasil. Mas, durante o Carnaval carioca, a violência do Comando Vermelho pareceu mais relevante.

Hoje, volta a mesma hesitação. Comentar "O Pianista" ou refletir sobre a guerra que nos espreita? Afinal, "O Pianista" é apenas um filme: um prazer de algumas horas e a ocasião de pensar um pouco. Enquanto a guerra, se acontecer, transformará a cara do mundo a golpes de bisturi ou de martelo.

O engraçado é que essa desproporção é o tema mesmo do filme. O protagonista, judeu, concertista na Polônia antes da invasão alemã, vive o martírio do gueto de Varsóvia. No desamparo de uma existência de morto vivo, escondido na espera de que a tragédia acabe, faminto e sozinho, a música é o único conforto.

Num dos momentos mais comovedores, o pianista, obrigado ao silêncio em seu esconderijo, toca mentalmente, agitando os dedos no vazio, acima das teclas. Teceremos o elogio da música civilizadora que triunfa contra a cacofonia da guerra?

Nem o filme nem a realidade permitem essa consolação. Durante a conquista do Oeste americano, nos bares onde aventureiros, bandidos, jogadores e mulheres da vida afogavam no álcool as penas do dia, dizem que havia um cartaz ao lado do piano: "Por favor, não atirem no pianista". Ou seja, matem-se com gosto, não se preocupem se uma dançarina ou um barman ficam na linha de tiro, mas poupem o músico. Os pianistas eram raros e, em Abelene ou Dodge City, com a exceção da Bíblia, havia poucos livros; mal deviam chegar os "dime novels", romances de bangue-bangue vendidos por dez centavos. Tampouco havia museus ou exposições.

A música, por mais que fosse representada por marchinhas de cabaré, era a principal, se não a única experiência estética. O vaqueiro bêbado, a prostituta saudosa da Costa Leste, o assassino sedento de sangue ou cansado de matar, o jovem decidido a descobrir sua mina de ouro, todos deviam encontrar, nos acordes estridentes do piano, o prazer do sonho, da nostalgia, do luto, da esperança. Era preciso salvar o pianista.

Do mesmo jeito, no filme de Polanski, a música é a razão de viver do protagonista, mas é também o conforto de um oficial alemão no meio da Varsóvia destruída pela raiva nazista. Depois da guerra, Chopin acariciará a alma dos sobreviventes do genocídio e dos poloneses que reinventam a vida nos escombros. E também consolará as viúvas dos SS.

Essa constatação leva a consequências opostas. Ela afirma a grandiosa universalidade da experiência estética, apêndice da universalidade da razão. Ou seja, a arte confirma que somos todos humanos: vítimas ou carrascos, compartilhamos uma sensibilidade que nos faz sonhar, rir e chorar diante da mesma mágica.

Mas essa universalidade consoladora também nos diz que a arte é incapaz de lutar contra a feiúra do mundo. Se Chopin acalenta tanto o pianista judeu, órfão de sua família e de sua cidade, como o nazista que assolou sua vida, para que serve Chopin?

Os nazistas saquearam os museus da Europa. Muitos se apoderavam de quadros e de estátuas por seu prazer pessoal. Se Goehring apreciava as mesmas obras que me comovem, devo supor que uma obra de arte toca a sensibilidade de todos, mas também constato que há um divórcio entre o belo e o justo e que o belo sofre de uma certa inutilidade.

Entende-se por que, sobretudo desde a Segunda Guerra, a produção artística é atormentada por uma desconfiança moral. Será que quero produzir uma obra que pode entusiasmar um canalha? Como pintar, escrever música, poesia ou ficção depois de Auschwitz?

No fim dos anos 60, numa galeria de Milão, visitei a instalação de um artista americano, cujo nome esqueci. Cobria o chão uma camada de terra marcada pela passagem de um carro blindado. Uma gravação ensurdecedora enchia os ouvidos: o motor de um tanque, explosões, gritos. Tudo isso não pareceu suficiente ao artista, que plantou, no meio da instalação, um cartaz explicando que ele queria criticar a guerra do Vietnã.

Nos mesmos anos, atrás da cortina de ferro, florescia o realismo socialista: as artes plásticas propunham ilustrações didáticas para a constituição da sociedade ideal.

Em ambos os casos, tratava-se sobretudo de inculcar idéias. Afinal, se Goehring se emocionava contemplando quadros (de Giotto a Paul Klee), talvez impor um pensamento fosse mais urgente do que pintar.

O problema, obviamente, é que as idéias também fracassaram e fracassam na tarefa de melhorar o mundo.

O pianista do filme de Polanski toca uma sinfonia melancólica, espécie de réquiem para nossa civilização. Acreditamos na universalidade da razão e constatamos a universalidade de nossas emoções estéticas: reconhecemos, portanto, que todos somos parte da mesma tribo humana. Mas isso não garante nada.

Pensamos segundo lógicas comuns e compartilhamos prazeres comuns ao escutar Chopin. Mas nem por isso conseguimos inventar juntos um mundo justo e pacífico.

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