quinta-feira, 29 de agosto de 2002
Por que não gosto de eleições
Recentemente (15/8), a revista "The Economist" promoveu e publicou uma pesquisa para saber se os latino-americanos, nestes tempos difíceis, continuam acreditando na democracia. Pergunta: "A democracia é preferível a qualquer outra forma de governo?".
O Brasil foi um dos países em que os entrevistados mais mudaram de opinião nos últimos anos. Em 1996, 50% dos brasileiros pensavam que a democracia fosse a melhor forma de governo. Em 2002, só 37% continuam pensando da mesma maneira. Os que abandonaram suas convicções democráticas (13%) querem o quê? Será que são nostálgicos das rédeas curtas da ditadura?
A pesquisa colocava uma segunda pergunta: "Em determinadas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um governo democrático?". Seria lógico pensar assim: os sujeitos que não acreditam mais nas virtudes exclusivas da democracia devem ser tentados por uma intervenção autoritária. É o que acontece, por exemplo, com os paraguaios, que também mudaram de opinião em matéria de democracia. Em 96, 59% acreditavam na democracia; em 2002, apenas 45% continuam pensando assim. No mesmo período, a porcentagem de paraguaios dispostos a aceitar um governo autoritário cresceu substancialmente. Ou seja, quem não acredita mais na democracia sonha com a volta de um regime militar. Faz sentido.
Pois é, os brasileiros deram uma resposta para atrapalhar o sono dos pesquisadores. Entre 1996 e hoje, como já disse, 13% deixaram de acreditar na democracia como melhor sistema de governo. Ora, o número dos que aceitariam uma ditadura no lugar da democracia não aumentou de maneira parecida, mas -surpresa- diminuiu 9%. Ou seja, no Brasil, há menos gente para acreditar na democracia, mas também menos gente para esperar que os militares resolvam a situação.
Aplausos para os brasileiros, que não se deixaram capturar por uma alternativa forçada. Entendo assim a posição dos entrevistados: a democracia não respondeu a nossas esperanças básicas, mas nem por isso entregaríamos o país ao despotismo. Sobretudo, não aceitamos uma alternativa excludente, do tipo: "De um lado, há stalinistas, fascistas ou militares e, do outro, a democracia. Olhe, escolhe e pule". Os brasileiros pareceram responder: não pulo coisa nenhuma, a escolha não é essa.
Minha leitura (otimista) da pesquisa do "Economist" é a seguinte: estamos cansados de ver o mundo em preto-e-branco, com contraste máximo.
É o mesmo cansaço que sinto durante as eleições. Com raríssimas exceções, os processos eleitorais que presenciei (na Itália, na Suíça, na França, no Brasil e nos EUA) sempre foram momentos tristes da vida democrática.
Gosto da democracia em seu exercício cotidiano e concreto. Prezo a discussão numa associação de moradores de vila para decidir se é melhor pedir mais postes de luz ou o asfalto na rua central. Aprecio uma reunião de condomínio em que uma senhora idosa e sozinha defende seu cachorrinho contra a mãe de uma criança asmática e alérgica aos pêlos de animais. Em ambos os casos, sinto carinho pelo esforço de inventar formas possíveis de convivência.
Ultrapassamos o tamanho das comunas medievais e hoje um governo democrático só pode ser representativo: as eleições são inevitáveis. Mas não me digam que elas são a melhor expressão da democracia.
A retórica eleitoral parece implicar inelutavelmente duas formas de desrespeito, paradoxais por serem ambas inimigas da invenção democrática.
Há o desrespeito aos eleitores, que é implícito na simplificação sistemática da realidade. Tanto as promessas quanto a crítica às promessas dos adversários se alimentam numa insultante infantilização dos votantes: "Nós temos razão, o outro está errado; solucionaremos tudo, não há dúvidas nem complexidade; entusiasmem-se".
E há o desrespeito recíproco entre os candidatos. As reuniões de moradores de vila ou de condomínio não poderiam funcionar se os participantes se tratassem como candidatos a um mesmo cargo eleitoral. Paradoxo: o processo eleitoral parece ser o contra-exemplo da humildade necessária para o exercício da democracia que importa e que deveria regrar as relações básicas entre cidadãos: a democracia concreta.
Em 1974, na França, Mitterrand, socialista, concorria à Presidência com Giscard d'Estaing, centrista. Num debate decisivo, Mitterrand falava como se ele fosse o único a enternecer-se ante o destino de pobres e deserdados. Giscard retrucou: "Senhor Mitterrand, você não detém o monopólio do coração". Cansado de simplificações, o eleitorado gostou, e Mitterrand perdeu.
Em 1981, a confrontação repetiu-se. Dessa vez, era Giscard que não parava de apontar em Mitterrand o homem da aventura, do risco: caso ele ganhasse, a Revolução de Outubro estaria às portas de Paris. Cansado de simplificações, o eleitorado não gostou, e Giscard perdeu.
Quem sabe os eleitores do mundo inteiro estejam, há tempos, cansados da retórica eleitoral e a fim de ouvir a verdade sobre como é difícil governar, ou seja, a fim de serem tratados como adultos.
quinta-feira, 22 de agosto de 2002
As eleições e a famosa falta de debate de fundo
Cada vez que, numa roda de amigos, se fala das eleições, alguém deplora que a campanha não seja uma disputa entre idéias e programas.
A reclamação pela falta de debate de fundo não é a manha de um amigo chato. Todos, em um momento ou outro, desempenhamos esse papel inevitavelmente. Parece uma regra: nas campanhas eleitorais, lamentamos a ausência de um enfrentamento construtivo entre os projetos de governo e desprezamos a preponderância da atenção dada às pessoas dos candidatos.
Ora, os projetos de política pública dos principais pretendentes podem não ser causa de grandes entusiasmos, mas são conhecidos e publicados em livros e jornais. Aparentemente, poucos os lêem.
Quando um de seus amigos se queixar da falta de debate de fundo, lance uma discussão sobre os projetos de governo. Na maioria dos casos, você constatará que o amigo reclamante tem uma idéia muito vaga dos ditos projetos. E verá sua proposta de discussão ser aprovada por unanimidade, mas imediatamente esquecida. O papo voltará para o que todos adoram repetir: Ciro é irritado, Serra é antipático, Lula é grosso e Garotinho se faz de seráfico. Ou, então: Ciro é enérgico, Serra é uma pessoa séria, Lula é dos nossos e Garotinho é boa-pinta.
Em suma, esbravejamos contra o esvaziamento do debate político, mas estamos a fim de falar só dos candidatos.
Não é um efeito da cordialidade nacional, pela qual as pessoas contam mais que as idéias. Nas últimas eleições americanas, qualquer um que comparasse as propostas políticas de Al Gore com as de George W. Bush constataria que o primeiro defendia os interesses da classe média, e o segundo, os interesses da grande indústria. Mas Gore perdeu por ser "elitista" e Bush ganhou (mais ou menos) por ser "popular". Enfrentaram-se duas figuras, não dois planos de governo. E, no dizer de muitos, Bush foi favorecido por seus erros e suas trapalhadas - sinais de autenticidade.
Então, como perdemos o interesse pela política pública? "O Declínio do Homem Público", que Richard Sennett publicou em 1974, nos serve de guia para explicar a sensibilidade política contemporânea. Os anos 60 promoveram a idéia de que as verdadeiras revoluções devem acontecer dentro de nós. Para mudar o mundo, mude a si mesmo e não conte com o Congresso ou a Esplanada dos Ministérios. Tampouco conte com o partido, com a conquista do poder etc.
A intimidade foi valorizada como lugar onde era preciso resolver os conflitos mais urgentes e verdadeiros. Isso produziu um descrédito da política pública. Surgiram as perguntas: "Revolucionário, como trata sua companheira e suas crianças? O que sabe de si e de sua sexualidade?".
Hoje, escreve Sennett, "entendemos muito bem que o poder é uma questão de interesses nacionais e internacionais, entendemos o jogo entre as classes e entre os grupos étnicos, entendemos o conflito entre regiões e religiões. Mas não agimos segundo esse entendimento". Na hora de votar, por exemplo, não escolhemos planos de governo, mas personalidades. Como as escolhemos?
A importância atribuída à intimidade faz com que a autenticidade se torne um parâmetro. Gostamos de candidatos "autênticos", que mostram suas tripas. E isso vale seja qual for a qualidade das tripas, pois a autenticidade é um critério abstrato, que não garante nada. Um candidato descreve veridicamente as condições e as possibilidades do país: nós o acharemos sincero. No entanto preferiremos outro que se atrapalha na apresentação dos fatos, mas que nos revela sua intimidade e, portanto, parece mais autêntico.
Muitos homens políticos devem ter-se dado conta dessa mudança: desistem de dar prova de autocontrole, soltam as emoções e choram como crianças.
Para Sennett, é suicida o líder que declara: "Esqueçam minha vida privada, tudo o que precisam saber de mim é quais ações tomarei uma vez eleito". Desde os anos 60, a credibilidade de qualquer sujeito é função de sua capacidade de parecer autêntico. Não é diferente para um candidato: sua "credibilidade" não tem a ver com seu projeto político (veridicidade dos pressupostos, razoabilidade das propostas), mas com a capacidade de mostrar sua intimidade. Pois, para nos conquistar, ele deve mostrar-se autêntico.
De fato, na corrida em curso, até agora, os que parecem mais "autênticos" encabeçam as pesquisas. Dos olhos de Lula marejam as lágrimas na hora de evocar sua infância e as misérias do povo e, provavelmente, isso vale mais que o projeto de governo do PT. Ciro se irrita que nem a gente e é carinhoso com a Patrícia, e isso vale mais que os livros escritos com Mangabeira.
Enquanto isso, a campanha de Serra parece insistir na qualidade de sua atuação como ministro e na sua competência, como se as eleições fossem decididas apenas num debate em que os diferentes planos de governo seriam comparados e discutidos. Quanto a Garotinho, sua fé poderia valer como sinal de autenticidade, mas, para isso, deveria ser, no mínimo, mais atormentada.
A reclamação pela falta de debate de fundo não é a manha de um amigo chato. Todos, em um momento ou outro, desempenhamos esse papel inevitavelmente. Parece uma regra: nas campanhas eleitorais, lamentamos a ausência de um enfrentamento construtivo entre os projetos de governo e desprezamos a preponderância da atenção dada às pessoas dos candidatos.
Ora, os projetos de política pública dos principais pretendentes podem não ser causa de grandes entusiasmos, mas são conhecidos e publicados em livros e jornais. Aparentemente, poucos os lêem.
Quando um de seus amigos se queixar da falta de debate de fundo, lance uma discussão sobre os projetos de governo. Na maioria dos casos, você constatará que o amigo reclamante tem uma idéia muito vaga dos ditos projetos. E verá sua proposta de discussão ser aprovada por unanimidade, mas imediatamente esquecida. O papo voltará para o que todos adoram repetir: Ciro é irritado, Serra é antipático, Lula é grosso e Garotinho se faz de seráfico. Ou, então: Ciro é enérgico, Serra é uma pessoa séria, Lula é dos nossos e Garotinho é boa-pinta.
Em suma, esbravejamos contra o esvaziamento do debate político, mas estamos a fim de falar só dos candidatos.
Não é um efeito da cordialidade nacional, pela qual as pessoas contam mais que as idéias. Nas últimas eleições americanas, qualquer um que comparasse as propostas políticas de Al Gore com as de George W. Bush constataria que o primeiro defendia os interesses da classe média, e o segundo, os interesses da grande indústria. Mas Gore perdeu por ser "elitista" e Bush ganhou (mais ou menos) por ser "popular". Enfrentaram-se duas figuras, não dois planos de governo. E, no dizer de muitos, Bush foi favorecido por seus erros e suas trapalhadas - sinais de autenticidade.
Então, como perdemos o interesse pela política pública? "O Declínio do Homem Público", que Richard Sennett publicou em 1974, nos serve de guia para explicar a sensibilidade política contemporânea. Os anos 60 promoveram a idéia de que as verdadeiras revoluções devem acontecer dentro de nós. Para mudar o mundo, mude a si mesmo e não conte com o Congresso ou a Esplanada dos Ministérios. Tampouco conte com o partido, com a conquista do poder etc.
A intimidade foi valorizada como lugar onde era preciso resolver os conflitos mais urgentes e verdadeiros. Isso produziu um descrédito da política pública. Surgiram as perguntas: "Revolucionário, como trata sua companheira e suas crianças? O que sabe de si e de sua sexualidade?".
Hoje, escreve Sennett, "entendemos muito bem que o poder é uma questão de interesses nacionais e internacionais, entendemos o jogo entre as classes e entre os grupos étnicos, entendemos o conflito entre regiões e religiões. Mas não agimos segundo esse entendimento". Na hora de votar, por exemplo, não escolhemos planos de governo, mas personalidades. Como as escolhemos?
A importância atribuída à intimidade faz com que a autenticidade se torne um parâmetro. Gostamos de candidatos "autênticos", que mostram suas tripas. E isso vale seja qual for a qualidade das tripas, pois a autenticidade é um critério abstrato, que não garante nada. Um candidato descreve veridicamente as condições e as possibilidades do país: nós o acharemos sincero. No entanto preferiremos outro que se atrapalha na apresentação dos fatos, mas que nos revela sua intimidade e, portanto, parece mais autêntico.
Muitos homens políticos devem ter-se dado conta dessa mudança: desistem de dar prova de autocontrole, soltam as emoções e choram como crianças.
Para Sennett, é suicida o líder que declara: "Esqueçam minha vida privada, tudo o que precisam saber de mim é quais ações tomarei uma vez eleito". Desde os anos 60, a credibilidade de qualquer sujeito é função de sua capacidade de parecer autêntico. Não é diferente para um candidato: sua "credibilidade" não tem a ver com seu projeto político (veridicidade dos pressupostos, razoabilidade das propostas), mas com a capacidade de mostrar sua intimidade. Pois, para nos conquistar, ele deve mostrar-se autêntico.
De fato, na corrida em curso, até agora, os que parecem mais "autênticos" encabeçam as pesquisas. Dos olhos de Lula marejam as lágrimas na hora de evocar sua infância e as misérias do povo e, provavelmente, isso vale mais que o projeto de governo do PT. Ciro se irrita que nem a gente e é carinhoso com a Patrícia, e isso vale mais que os livros escritos com Mangabeira.
Enquanto isso, a campanha de Serra parece insistir na qualidade de sua atuação como ministro e na sua competência, como se as eleições fossem decididas apenas num debate em que os diferentes planos de governo seriam comparados e discutidos. Quanto a Garotinho, sua fé poderia valer como sinal de autenticidade, mas, para isso, deveria ser, no mínimo, mais atormentada.
quinta-feira, 15 de agosto de 2002
A psicologia forense, a origem do mal e a culpa dos outros
Desde o começo dos anos 90, nos EUA, há uma proliferação de romances cujos heróis são psicólogos ou psiquiatras forenses. Os leitores de histórias policiais conhecem os protagonistas clássicos: o detetive que leva e dá pauladas até que as coisas se esclareçam (estilo Mickey Spillane), o advogado de defesa à Perry Mason e o investigador que pensa e computa (uma tradição que vai dos contos de Edgar Poe até Nero Wolfe, passando por Sherlock Holmes). A eles acrescenta-se, hoje, uma nova figura: o "profiler", o clínico que lê no crime a dinâmica exclusiva de uma mente criminosa.
Graças a esses psicólogos forenses, na última década, a psicologia clínica tornou-se depositária da questão da origem do mal: é muita honra. Mas é também uma armadilha que funciona assim. Acho que entendo a angústia e a depressão porque já estive ansioso e triste alguma vez. Agora, o que é esquartejar e comer um pedaço de minha vítima? Isso não consigo vislumbrar. E gostaria que a psicologia me explicasse -não tanto para entender quanto para me exonerar. Os heróis da nova onda de romances policiais me dirão as razões pelas quais os monstros torturam, amputam, sangram e estupram. Com isso, confirmarão que eu não tenho nada a ver com isso.
Estamos no ápice da confiança concedida à psicologia clínica, que deve nos dizer de onde vem a maldade. Mas estamos também no ápice da negação do aporte mais inquietante da mesma psicologia, pelo qual, em princípio, não há loucura que seja completamente estrangeira ao homem normal. Ou seja, a psicologia diz que compartilhamos os mesmos monstros com o criminoso e o maluco, apenas somos mais hábeis no manuseio das rédeas. Mas, nos romances "psicopoliciais", o psicólogo forense, revelando a verdade oculta dos assassinos, proclama nossa inocência.
Há exceções a essa regra. Um psiquiatra forense (de verdade), Keith Ablow, escreveu três romances -"Compulsion", "Projection", "Denial", infelizmente ainda indisponíveis em português-, que poderiam servir de livros de texto de psicologia clínica. O herói é Frank Clevenger, um psiquiatra forense dramaticamente perturbado pelo vai-e-vem entre sua própria análise, as lembranças de sua infância e a interpretação das palavras e dos atos de suspeitos e criminosos. Clevenger, atormentado cocainômano e alcoólatra em recuperação, sabe que o mal é compreendido só por quem não hesita em olhar dentro de si.
Lembra o "Silêncio dos Inocentes"? É por ele mesmo ser canibal que o dr. Lecter, psiquiatra, pôde adivinhar quem era o monstro que Clarice estava procurando. Como todo verdadeiro clínico (forense ou não), ele se servia de sua loucura (que, no caso, era conspícua) para entender e interpretar.
Essa diferença entre os romances de Ablow e os outros não impede que todos promovam uma mesma idéia, que é hoje recorrente nas imagens populares do trabalho psicoterápico: trata-se da idéia de que o mal é reciclado. Ou seja, tanto o sofrimento neurótico quanto a violência desinibida e criminosa seriam os efeitos diretos de algum mal que nos foi feito.
Viva o "transtorno pós-traumático": seja qual for nosso jeito, ficamos assim por causa de um trauma. A mente é um livro-caixa, com entradas e saídas: atrás de cada sofrimento, estranheza ou malvadez, deve haver alguma ofensa passada. Nossos sintomas e nossas aberrações seriam compensações ou retribuições: os que foram pouco ofendidos sofrem da reminiscência da injúria passada e os que passaram por abusos violentos atuam com a crueldade da qual já foram vítimas. Fomos maltratados quando crianças. Por isso temos medo do escuro ou então cortamos a garganta da vizinha.
Ora, de tudo que aprendi em minha formação clínica, há uma regra que se verifica a cada vez: nossos males são efeitos de nossas interpretações (mais ou menos capengas) do que os outros fizeram conosco ou quiseram de nós. Não são consequências diretas das ações dos outros.
Por isso é possível mudar. Por isso o passado não constitui propriamente um destino: porque nunca somos apenas o efeito dos abusos sofridos. Em alguma medida, sempre decidimos o sentido e o alcance que atribuímos à violência da qual fomos vítimas. Somos, portanto, os artesãos de nossas reações: escolhemos a vingança violenta contra o mundo ou uma vida consagrada a lamber nossas feridas. Ou, ainda, a coragem de ir em frente.
Em matéria de psicologia clínica, vale um ditado que escutei pouco tempo atrás, no norte rural do Estado de Nova York. Diz assim: "Não há como arregaçar as mangas se você continua apontando seus dedos aos outros para culpá-los".
P.S.: Muitos "psicopoliciais" são acessíveis em português. Há os livros de James Patterson, cujo Alex Cross, doutor em psicologia, foi levado para o cinema por Morgan Freeman, em "Beijos que Matam" e em "Na Teia da Aranha". Há as histórias do psicólogo Alex Delaware, por Jonathan Kellerman, as de Alan Gregory, por Stephen White, e as de Lincoln Rhymes, por Jeffery Deaver. Boa leitura.
Graças a esses psicólogos forenses, na última década, a psicologia clínica tornou-se depositária da questão da origem do mal: é muita honra. Mas é também uma armadilha que funciona assim. Acho que entendo a angústia e a depressão porque já estive ansioso e triste alguma vez. Agora, o que é esquartejar e comer um pedaço de minha vítima? Isso não consigo vislumbrar. E gostaria que a psicologia me explicasse -não tanto para entender quanto para me exonerar. Os heróis da nova onda de romances policiais me dirão as razões pelas quais os monstros torturam, amputam, sangram e estupram. Com isso, confirmarão que eu não tenho nada a ver com isso.
Estamos no ápice da confiança concedida à psicologia clínica, que deve nos dizer de onde vem a maldade. Mas estamos também no ápice da negação do aporte mais inquietante da mesma psicologia, pelo qual, em princípio, não há loucura que seja completamente estrangeira ao homem normal. Ou seja, a psicologia diz que compartilhamos os mesmos monstros com o criminoso e o maluco, apenas somos mais hábeis no manuseio das rédeas. Mas, nos romances "psicopoliciais", o psicólogo forense, revelando a verdade oculta dos assassinos, proclama nossa inocência.
Há exceções a essa regra. Um psiquiatra forense (de verdade), Keith Ablow, escreveu três romances -"Compulsion", "Projection", "Denial", infelizmente ainda indisponíveis em português-, que poderiam servir de livros de texto de psicologia clínica. O herói é Frank Clevenger, um psiquiatra forense dramaticamente perturbado pelo vai-e-vem entre sua própria análise, as lembranças de sua infância e a interpretação das palavras e dos atos de suspeitos e criminosos. Clevenger, atormentado cocainômano e alcoólatra em recuperação, sabe que o mal é compreendido só por quem não hesita em olhar dentro de si.
Lembra o "Silêncio dos Inocentes"? É por ele mesmo ser canibal que o dr. Lecter, psiquiatra, pôde adivinhar quem era o monstro que Clarice estava procurando. Como todo verdadeiro clínico (forense ou não), ele se servia de sua loucura (que, no caso, era conspícua) para entender e interpretar.
Essa diferença entre os romances de Ablow e os outros não impede que todos promovam uma mesma idéia, que é hoje recorrente nas imagens populares do trabalho psicoterápico: trata-se da idéia de que o mal é reciclado. Ou seja, tanto o sofrimento neurótico quanto a violência desinibida e criminosa seriam os efeitos diretos de algum mal que nos foi feito.
Viva o "transtorno pós-traumático": seja qual for nosso jeito, ficamos assim por causa de um trauma. A mente é um livro-caixa, com entradas e saídas: atrás de cada sofrimento, estranheza ou malvadez, deve haver alguma ofensa passada. Nossos sintomas e nossas aberrações seriam compensações ou retribuições: os que foram pouco ofendidos sofrem da reminiscência da injúria passada e os que passaram por abusos violentos atuam com a crueldade da qual já foram vítimas. Fomos maltratados quando crianças. Por isso temos medo do escuro ou então cortamos a garganta da vizinha.
Ora, de tudo que aprendi em minha formação clínica, há uma regra que se verifica a cada vez: nossos males são efeitos de nossas interpretações (mais ou menos capengas) do que os outros fizeram conosco ou quiseram de nós. Não são consequências diretas das ações dos outros.
Por isso é possível mudar. Por isso o passado não constitui propriamente um destino: porque nunca somos apenas o efeito dos abusos sofridos. Em alguma medida, sempre decidimos o sentido e o alcance que atribuímos à violência da qual fomos vítimas. Somos, portanto, os artesãos de nossas reações: escolhemos a vingança violenta contra o mundo ou uma vida consagrada a lamber nossas feridas. Ou, ainda, a coragem de ir em frente.
Em matéria de psicologia clínica, vale um ditado que escutei pouco tempo atrás, no norte rural do Estado de Nova York. Diz assim: "Não há como arregaçar as mangas se você continua apontando seus dedos aos outros para culpá-los".
P.S.: Muitos "psicopoliciais" são acessíveis em português. Há os livros de James Patterson, cujo Alex Cross, doutor em psicologia, foi levado para o cinema por Morgan Freeman, em "Beijos que Matam" e em "Na Teia da Aranha". Há as histórias do psicólogo Alex Delaware, por Jonathan Kellerman, as de Alan Gregory, por Stephen White, e as de Lincoln Rhymes, por Jeffery Deaver. Boa leitura.
quinta-feira, 8 de agosto de 2002
Crise do mercado ou crise do sujeito?
Muitos dizem que a crise de Wall Street em 2001 e 2002 é um efeito da ganância. A Bolsa estaria caindo porque a conduta dos dirigentes de várias empresas (Enron, Worldcom, Tyco etc.) feriu a confiança do investidor. Se for assim, a dificuldade será resolvida logo: os desonestos irão para a cadeia, as auditorias futuras serão de verdade, e a classe média reinvestirá suas economias. Tudo voltará a ser como antes.
Minha previsão é um pouco diferente.
Desde o início do século 19, deixamos de calcular o valor social de cada um com base no lugar, na classe e na família em que nasceu. Para definir o valor de uma pessoa, suas riquezas começaram a contar mais que sua origem. Passamos de uma época que venerava o "ser" (nobre, burguês ou escravo) para uma época que venerava o "ter". A mudança foi democrática: afinal, era difícil escapar do destino que nos reservavam as diferenças de nascença (só à força de casamentos), mas, no breve espaço de uma vida, por ventura ou pelo trabalho, um indivíduo podia transformar seu status, se esse dependesse apenas de sua riqueza.
Uma sociedade organizada pelas diferenças de posses e bens não é necessariamente espalhafatosa. "Eu sou mais rico, mas me visto, moro e vou para a igreja como você, que trabalha em minha fábrica." O capitalismo começou desse jeito: com uma moral calvinista, sem simpatia por pompas e luxos. Não podia durar assim: para produzir mais bens e riquezas (e, portanto, um pouco de bem-estar para todos), era preciso crescer. E, se os abastados não consumirem de uma maneira vistosamente diferente, quem absorverá os frutos do trabalho? No fim do século 19, as riquezas tornaram-se conspícuas: diferenças de consumo, e não só de carteira.
Essa nova ostentação era o primórdio de uma mudança da subjetividade que seria exigida poucas décadas mais tarde, quando a época do "ter" entrou em crise, em 1929. Até então, numa exuberância parecida com a nossa nos anos 90, acreditava-se numa expansão ilimitada. Os ricos se tornariam mais ricos e mais numerosos. Graças a isso, todos trabalharíamos e produziríamos cada vez mais. Mas a coisa encalhou.
O esbanjamento dos endinheirados não era suficiente para motivar a máquina produtiva. A saída da crise, depois da imediata intervenção dos governos e da guerra, veio por uma transformação que se impôs nos anos 60 e deu seus frutos nos anos 80 e 90.
Dessa vez, passamos de uma sociedade organizada pelas diferenças de bens e posses para uma sociedade comandada pela aparência. Não se trata mais da necessidade de o rico mostrar sua riqueza. Parecer rico torna-se mais importante do que ser rico. Vale mais um pobretão chique do que um ricaço maltrapilho. Essa nova hierarquia, fundada nos sinais exteriores de "invejabilidade" mais do que de riqueza, abre possibilidades insuspeitadas de consumo e de crescimento. Pois, de repente, os pobres são instigados a consumir tão conspicuamente quanto os ricos. Por um instante, qualquer um de nós pode parecer-se com os ricos, usando um sabonete de R$ 10. Vale a pena comprar uma bolsa que nos custa uma semana de trabalho. É normal gastar em estilo mais do que em aluguel e comida.
Para a subjetividade da época do parecer, não devemos o que somos nem ao berço nem às posses, mas ao olhar dos outros. Outro avanço democrático, não é? A calça certa, um lenço, um corpo malhado ou siliconado permitem o acesso ao clube dos que parecem privilegiados, que é o que importa.
Estávamos nessa "festa" desde os anos 80. Aconteceu o previsível: a subjetividade dominante impôs seu feitio à sociedade inteira, inclusive à economia. Na época do "ter" (conspícuo ou não), valiam as empresas que produziam, acumulavam e trocavam riquezas reais. Na época do parecer, a economia também preferiu o parecer: valiam as empresas que "pareciam" ricas, ou seja, que produziam sobretudo sua própria imagem. Ser "cool" tornou-se uma estratégia empresarial. "O pessoal aqui trabalha de calça de brim, tem academia no escritório, e toma-se chá orgânico à vontade. Somos "cool", e isso prova o valor de nossa empresa, mesmo que a gente só perca dinheiro." Obviamente, num mundo em que parecer é mais importante do que ser, as ações da empresa fazem parte da fachada. Valorizá-las (mesmo por um embuste contábil) é mais importante do que aumentar a produtividade ou equilibrar balanços.
Essa bolha estourou. Talvez estoure também o tipo de subjetividade que foi a alma da bolha. Assim como 1929 anunciou o fim da época do "ter", 2001 e 2002 anunciariam o fim da época do "parecer".
Nesse caso, poderíamos esperar que a crise de hoje prometesse figuras novas da subjetividade. Em vez do yuppie de Wall Street, os jovens que se engajam no Peace Corps. Em vez dos elegantes e dos malhadíssimos que povoam nossos shopping centers, membros de ONGs. Depois da subjetividade do "ser", do "ter" e do "parecer", quem sabe, seja a hora de uma subjetividade do fazer e do fazer, se possível, as coisas certas.
Mas, provavelmente, estou sonhando.
quinta-feira, 1 de agosto de 2002
Sofrendo de doenças futuras o custo da detecção precoce
Uma empresa da Flórida chamada CATscan 2000 manda pelos EUA afora seus caminhões transformados em laboratórios: oferece tomografias computadorizadas do corpo inteiro por menos de US$ 600. É possível parcelar -não a conta, mas o corpo, que é divisível em três zonas.
Chamo o número da empresa: 1-87-RU-AT-RISK (1-87-será que você está em perigo?). Confirmam que não é necessária nenhuma prescrição médica. Só o dinheiro. Infelizmente, no momento, nenhum dos laboratórios está próximo de meu domicílio. Em geral, eles param nos estacionamentos das igrejas de pequenas aglomerações. Segundo uma reportagem do "New York Times" de 27 de maio, uma tomografia grátis é oferecida em troca ao pároco ou ao pastor. Os caminhões lembram os vendedores ambulantes do elixir de longa vida, que, no passado, iam de feira em feira. O letreiro diz: "Faça sua tomografia. A detecção precoce do câncer e da doença cardíaca pode significar a cura!". Em cada caminhão, há um técnico e um recepcionista que marca horário e cobra. Os resultados são interpretados mais tarde por um radiologista e chegam pelo correio. Claro, nenhum seguro de saúde reembolsa o custo da tomografia, mas, se um problema for detectado, o paciente levará o exame a seu médico, que agirá em consequência.
Nas grandes cidades há laboratórios menos espetaculares que os caminhões, mas que também efetuam tomografias computadorizadas a pedido do cliente, sem uma indicação e uma razão médica específicas.
Essas práticas duvidosas são apenas sintomas das expectativas do paciente de hoje. Ninguém acredita mais no silêncio dos órgãos como prova de seu bom funcionamento. Não vale a idéia de que a doença começaria com o desconforto, com a dor e com as queixas. Nossa relação com o corpo é paranóica: ele nos esconde coisas, faz-se de saudável, mas, no meio disso, é capaz de alimentar cânceres e outras porcarias.
Essa atitude corresponde ao espírito da época: o futuro é nosso tempo preferido. Nossa capacidade de mudar, de progredir e de crescer importa mais do que o peso do passado. Nossas potencialidades nos definem muito mais do que nosso estado presente. Do mesmo jeito, a experiência atual do corpo não basta para definir a saúde, como seria o caso numa cultura que privilegiasse o presente. A saúde que nos importa é a futura.
A medicina, portanto, deve sobretudo prevenir (ou seja, prescrever condutas que favoreçam a saúde) e detectar precocemente (ou seja, espreitar os primeiríssimos sinais das doenças, para esmagá-las na hora). A partir dos 40 anos, pessoas que se sentem perfeitamente saudáveis esperam a verdade sobre o estado de seu corpo de investigações clínicas que são hoje, paradoxalmente, a rotina da vida saudável: mamografias, papanicolaous, toques variados, exames de PSA ou, no caso, tomografias computadorizadas do corpo inteiro.
Graças a isso, muitas vidas são salvas (no mínimo, prolongadas). Mas há um custo. Qual?
Quem leva suas economias para o caminhão da CATscan 2000 sonha com um check-up no estilo "Star Trek". Infelizmente, nossa realidade é menos hollywoodiana: talvez tenhamos um raio parecido com o da nave espacial Enterprise, mas não temos a mesma habilidade diagnóstica nem a mesma medicina.
Para cada vida salva, há casos em que aparecem lesões milimétricas que ninguém consegue interpretar com segurança ou nódulos tão ínfimos que seu sentido é incerto. A vontade de pegar as coisas a tempo não se traduz só em curas mais eficientes. Às vezes, a detecção precoce descobre anomalias que não autorizam a certeza de um plano de cura. É possível que essas anomalias não sejam prelúdio de nada ou, então, que anunciem o pior. Em geral, nesses casos, a medicina é honesta: confessa os limites de sua competência, descreve as perdas e os riscos acarretados pelo tratamento de lesões que poderiam ser inócuas e deixa os pacientes livres para decidir se tais microcalcificações do seio anunciam ou não um tumor ou se tal tecido suspeito da próstata crescerá ou seguirá dormindo. É uma escolha impossível: entre intervenções invalidantes que talvez sejam desnecessárias e uma abstenção pela qual o paciente talvez decrete sua morte. Milhões de pessoas circulam pelo mundo perguntando-se, como Sigourney Weaver depois do encontro com o monstro, se carregam ou não um "alien" no corpo.
Na tentativa de definir pelo futuro não só nossa vida, mas também nossa saúde, descobre-se o óbvio: para quem venera o futuro e vive na antecipação, o presente se banha facilmente na angústia.
P.S.: Estréia amanhã, no Brasil, "Minority Report - A Nova Lei", de Steven Spielberg. O filme (inspirado por um conto de Philip K. Dick) imagina um sistema policial capaz de reduzir a zero a criminalidade: basta que sejam punidos não os crimes passados, mas os crimes futuros.
Em matéria de saúde, parece que corremos atrás de um sonho parecido: o de sermos curados das doenças que teremos. Para muitos, o sonho vira pesadelo.
Chamo o número da empresa: 1-87-RU-AT-RISK (1-87-será que você está em perigo?). Confirmam que não é necessária nenhuma prescrição médica. Só o dinheiro. Infelizmente, no momento, nenhum dos laboratórios está próximo de meu domicílio. Em geral, eles param nos estacionamentos das igrejas de pequenas aglomerações. Segundo uma reportagem do "New York Times" de 27 de maio, uma tomografia grátis é oferecida em troca ao pároco ou ao pastor. Os caminhões lembram os vendedores ambulantes do elixir de longa vida, que, no passado, iam de feira em feira. O letreiro diz: "Faça sua tomografia. A detecção precoce do câncer e da doença cardíaca pode significar a cura!". Em cada caminhão, há um técnico e um recepcionista que marca horário e cobra. Os resultados são interpretados mais tarde por um radiologista e chegam pelo correio. Claro, nenhum seguro de saúde reembolsa o custo da tomografia, mas, se um problema for detectado, o paciente levará o exame a seu médico, que agirá em consequência.
Nas grandes cidades há laboratórios menos espetaculares que os caminhões, mas que também efetuam tomografias computadorizadas a pedido do cliente, sem uma indicação e uma razão médica específicas.
Essas práticas duvidosas são apenas sintomas das expectativas do paciente de hoje. Ninguém acredita mais no silêncio dos órgãos como prova de seu bom funcionamento. Não vale a idéia de que a doença começaria com o desconforto, com a dor e com as queixas. Nossa relação com o corpo é paranóica: ele nos esconde coisas, faz-se de saudável, mas, no meio disso, é capaz de alimentar cânceres e outras porcarias.
Essa atitude corresponde ao espírito da época: o futuro é nosso tempo preferido. Nossa capacidade de mudar, de progredir e de crescer importa mais do que o peso do passado. Nossas potencialidades nos definem muito mais do que nosso estado presente. Do mesmo jeito, a experiência atual do corpo não basta para definir a saúde, como seria o caso numa cultura que privilegiasse o presente. A saúde que nos importa é a futura.
A medicina, portanto, deve sobretudo prevenir (ou seja, prescrever condutas que favoreçam a saúde) e detectar precocemente (ou seja, espreitar os primeiríssimos sinais das doenças, para esmagá-las na hora). A partir dos 40 anos, pessoas que se sentem perfeitamente saudáveis esperam a verdade sobre o estado de seu corpo de investigações clínicas que são hoje, paradoxalmente, a rotina da vida saudável: mamografias, papanicolaous, toques variados, exames de PSA ou, no caso, tomografias computadorizadas do corpo inteiro.
Graças a isso, muitas vidas são salvas (no mínimo, prolongadas). Mas há um custo. Qual?
Quem leva suas economias para o caminhão da CATscan 2000 sonha com um check-up no estilo "Star Trek". Infelizmente, nossa realidade é menos hollywoodiana: talvez tenhamos um raio parecido com o da nave espacial Enterprise, mas não temos a mesma habilidade diagnóstica nem a mesma medicina.
Para cada vida salva, há casos em que aparecem lesões milimétricas que ninguém consegue interpretar com segurança ou nódulos tão ínfimos que seu sentido é incerto. A vontade de pegar as coisas a tempo não se traduz só em curas mais eficientes. Às vezes, a detecção precoce descobre anomalias que não autorizam a certeza de um plano de cura. É possível que essas anomalias não sejam prelúdio de nada ou, então, que anunciem o pior. Em geral, nesses casos, a medicina é honesta: confessa os limites de sua competência, descreve as perdas e os riscos acarretados pelo tratamento de lesões que poderiam ser inócuas e deixa os pacientes livres para decidir se tais microcalcificações do seio anunciam ou não um tumor ou se tal tecido suspeito da próstata crescerá ou seguirá dormindo. É uma escolha impossível: entre intervenções invalidantes que talvez sejam desnecessárias e uma abstenção pela qual o paciente talvez decrete sua morte. Milhões de pessoas circulam pelo mundo perguntando-se, como Sigourney Weaver depois do encontro com o monstro, se carregam ou não um "alien" no corpo.
Na tentativa de definir pelo futuro não só nossa vida, mas também nossa saúde, descobre-se o óbvio: para quem venera o futuro e vive na antecipação, o presente se banha facilmente na angústia.
P.S.: Estréia amanhã, no Brasil, "Minority Report - A Nova Lei", de Steven Spielberg. O filme (inspirado por um conto de Philip K. Dick) imagina um sistema policial capaz de reduzir a zero a criminalidade: basta que sejam punidos não os crimes passados, mas os crimes futuros.
Em matéria de saúde, parece que corremos atrás de um sonho parecido: o de sermos curados das doenças que teremos. Para muitos, o sonho vira pesadelo.
quinta-feira, 25 de julho de 2002
A feira dos remédios, em que uma certa psiquiatria vende sua alma
Algumas contas do Estado de Massachusetts, EUA, publicadas no "Boston Globe" de 12/7, são indicativas de uma tendência que não é só americana: na assistência médica oferecida aos necessitados, o custo anual dos remédios é de US$ 890 milhões, dos quais -surpresa-US$ 470 milhões (53%) são gastos em medicação psiquiátrica.
Certo, na população carente e marginalizada, a porcentagem de pessoas com sério sofrimento psíquico está sempre acima da média. Mas, nas contas, aparece uma outra anomalia: a multiplicação dos remédios psiquiátricos prescritos a um mesmo paciente. Por exemplo, 5.000 pacientes tomam regularmente dois antidepressivos ou mais. Por que dois ou mais? E como explicar que 1.100 pacientes estejam tomando simultaneamente mais de seis psicotrópicos?
Recentemente atendi um sujeito que tomava, há muito tempo, 11 remédios de quatro categorias: antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos e antipsicóticos. Para efetuar um exame clínico, ou seja, para descobrir quem estava atrás de uma tal panóplia de drogas que alteram humores e pensamentos, teria sido necessário um processo de desintoxicação, com meses de internação.
Como se chegou a essa desordem da medicação psiquiátrica?
1) A necessidade (ideológica e econômica) de diminuir o tempo das internações forçou os psiquiatras a inventar coquetéis para substituir os muros do asilo: dois antipsicóticos, um hipnótico, um neuroléptico, um regulador do humor, que mais?
2) Os remédios inventados nas últimas décadas têm efeitos químicos definidos, mas seus efeitos terapêuticos são variáveis: misteriosamente, eles funcionam com algumas pessoas e não com outras, e cada paciente é sensível a doses diferentes. A escolha dos remédios e a posologia são decisões empíricas: "Prove este e vamos ver se funciona, eventualmente a gente aumenta a dose". "Diminua este e experimente o outro". Quando muda a prescrição, acrescentar é mais fácil que substituir: "Como fica, se eu tirar, e a coisa piorar?".
3) Os médicos são informados sobre os remédios pelos propagandistas das empresas, as quais tentam estender o campo de ação de seus produtos. "Doutor, nosso antidepressivo não foi aprovado para isso, mas parece que funciona também com crianças com déficit de atenção. Por que não prescrevê-lo em associação com a receita tradicional?"
4) Os remédios são promovidos como produtos quaisquer: leio numa revista que uma pílula poderia resolver minha fobia social, ligo para meu médico e peço. Mas não quero parar meu ansiolítico. Se o resultado for positivo, como saberei qual dos dois está funcionando? Continuarei com ambos.
Aquém dessa lista, há uma causa fundamental da proliferação das prescrições. Até os anos 70, a psiquiatria, tanto européia quanto americana, tentava entender os sintomas psíquicos no quadro da personalidade do paciente. Esperava-se que medos, pavores, obsessões, compulsões e mesmo francas loucuras revelassem seu sentido como partes do conjunto composto por um destino, um ambiente e um sujeito. Curar significava, idealmente, reorganizar tudo isso, de maneira que o resultado exigisse menos sofrimento - tarefa frustrante por sua duração e dificuldade.
A partir dos anos 60, a indústria farmacêutica começou a oferecer remédios que podiam suprimir quimicamente alguns sintomas dolorosos. À primeira vista, excelente notícia: era possível acalmar medos e angústias, soltar obsessões e inibir delírios, ganhando tempo para que o paciente melhorasse o equilíbrio desfavorável de sua vida e de seu mundo.
Mas uma parte da psiquiatria não escolheu esse uso dos fármacos. Vendeu a alma: trocou a tradição clínica pela esperança de fazer milagres. Essa psiquiatria convenceu-se de que somos definidos pelos sintomas que os remédios curam. Para ela, não há mais, por exemplo, neuróticos ou psicóticos que podem se deprimir, pois, se assim fosse, curar a depressão seria ótimo, mas deixaria inteira a questão da personalidade de cada paciente. Para essa psiquiatria, haveria, no caso, apenas deprimidos, ou seja, sujeitos definidos pela depressão: de repente, a pílula que melhora o sintoma é tudo o que é preciso. O resultado é a bagunça indicada pelas contas de Massachusetts. Por quê?
Imaginemos que, quando me debruço na janela, eu me sinta irresistivelmente chamado por braços abertos que me esperam lá embaixo, por amor ou por ódio, não sei. Se uma pílula sortuda curasse meu medo das alturas, é provável que passaria noites em claro, de sentinela. Pois quem me diz que os braços que antes me esperavam na calçada não são parentes dos braços de Morfeu? Posso acrescentar uma pílula. Dormirei. Mas o que é, agora, a estranha sensação de sufoco que me encerra a garganta quando acordo, como uma espécie de gravata? Acrescentarei uma terceira pílula? Talvez. Mas seria sábio, no entanto, tentar descobrir quem, desde sempre, me espera naquele canto escuro, entre as floreiras e o asfalto, embaixo de minha janela.
Certo, na população carente e marginalizada, a porcentagem de pessoas com sério sofrimento psíquico está sempre acima da média. Mas, nas contas, aparece uma outra anomalia: a multiplicação dos remédios psiquiátricos prescritos a um mesmo paciente. Por exemplo, 5.000 pacientes tomam regularmente dois antidepressivos ou mais. Por que dois ou mais? E como explicar que 1.100 pacientes estejam tomando simultaneamente mais de seis psicotrópicos?
Recentemente atendi um sujeito que tomava, há muito tempo, 11 remédios de quatro categorias: antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos e antipsicóticos. Para efetuar um exame clínico, ou seja, para descobrir quem estava atrás de uma tal panóplia de drogas que alteram humores e pensamentos, teria sido necessário um processo de desintoxicação, com meses de internação.
Como se chegou a essa desordem da medicação psiquiátrica?
1) A necessidade (ideológica e econômica) de diminuir o tempo das internações forçou os psiquiatras a inventar coquetéis para substituir os muros do asilo: dois antipsicóticos, um hipnótico, um neuroléptico, um regulador do humor, que mais?
2) Os remédios inventados nas últimas décadas têm efeitos químicos definidos, mas seus efeitos terapêuticos são variáveis: misteriosamente, eles funcionam com algumas pessoas e não com outras, e cada paciente é sensível a doses diferentes. A escolha dos remédios e a posologia são decisões empíricas: "Prove este e vamos ver se funciona, eventualmente a gente aumenta a dose". "Diminua este e experimente o outro". Quando muda a prescrição, acrescentar é mais fácil que substituir: "Como fica, se eu tirar, e a coisa piorar?".
3) Os médicos são informados sobre os remédios pelos propagandistas das empresas, as quais tentam estender o campo de ação de seus produtos. "Doutor, nosso antidepressivo não foi aprovado para isso, mas parece que funciona também com crianças com déficit de atenção. Por que não prescrevê-lo em associação com a receita tradicional?"
4) Os remédios são promovidos como produtos quaisquer: leio numa revista que uma pílula poderia resolver minha fobia social, ligo para meu médico e peço. Mas não quero parar meu ansiolítico. Se o resultado for positivo, como saberei qual dos dois está funcionando? Continuarei com ambos.
Aquém dessa lista, há uma causa fundamental da proliferação das prescrições. Até os anos 70, a psiquiatria, tanto européia quanto americana, tentava entender os sintomas psíquicos no quadro da personalidade do paciente. Esperava-se que medos, pavores, obsessões, compulsões e mesmo francas loucuras revelassem seu sentido como partes do conjunto composto por um destino, um ambiente e um sujeito. Curar significava, idealmente, reorganizar tudo isso, de maneira que o resultado exigisse menos sofrimento - tarefa frustrante por sua duração e dificuldade.
A partir dos anos 60, a indústria farmacêutica começou a oferecer remédios que podiam suprimir quimicamente alguns sintomas dolorosos. À primeira vista, excelente notícia: era possível acalmar medos e angústias, soltar obsessões e inibir delírios, ganhando tempo para que o paciente melhorasse o equilíbrio desfavorável de sua vida e de seu mundo.
Mas uma parte da psiquiatria não escolheu esse uso dos fármacos. Vendeu a alma: trocou a tradição clínica pela esperança de fazer milagres. Essa psiquiatria convenceu-se de que somos definidos pelos sintomas que os remédios curam. Para ela, não há mais, por exemplo, neuróticos ou psicóticos que podem se deprimir, pois, se assim fosse, curar a depressão seria ótimo, mas deixaria inteira a questão da personalidade de cada paciente. Para essa psiquiatria, haveria, no caso, apenas deprimidos, ou seja, sujeitos definidos pela depressão: de repente, a pílula que melhora o sintoma é tudo o que é preciso. O resultado é a bagunça indicada pelas contas de Massachusetts. Por quê?
Imaginemos que, quando me debruço na janela, eu me sinta irresistivelmente chamado por braços abertos que me esperam lá embaixo, por amor ou por ódio, não sei. Se uma pílula sortuda curasse meu medo das alturas, é provável que passaria noites em claro, de sentinela. Pois quem me diz que os braços que antes me esperavam na calçada não são parentes dos braços de Morfeu? Posso acrescentar uma pílula. Dormirei. Mas o que é, agora, a estranha sensação de sufoco que me encerra a garganta quando acordo, como uma espécie de gravata? Acrescentarei uma terceira pílula? Talvez. Mas seria sábio, no entanto, tentar descobrir quem, desde sempre, me espera naquele canto escuro, entre as floreiras e o asfalto, embaixo de minha janela.
quinta-feira, 18 de julho de 2002
A educação sexual e o uso do prazer
Em setembro, a versão sul-africana de "Vila Sésamo" terá uma nova personagem: uma menina portadora do vírus da Aids. O programa não dirá como a menina se contaminou, mas colocará material pedagógico à disposição de pais e educadores para que abordem a questão com as crianças. Hoje, 1 sul-africano em cada 10 é portador do vírus da Aids: é necessário promover uma prevenção precoce.
Por que não exportar a nova personagem para outros países em que "Vila Sésamo" é programado regularmente? A pergunta foi colocada aos internautas americanos: muitos declararam que talvez não seja o caso de encher a cabeça de crianças entre três e sete anos (o público-alvo do programa) com histórias que as levariam a ouvir falar de sexo e de drogas injetáveis.
Não é um drama que as crianças ouçam falar de sexo tão cedo. De qualquer forma, os colegas, a rua, os irmãos e as irmãs se encarregam disso. Acho mais preocupante que, logo na primeira vez em que as crianças ouvem falar de sexo, o tema seja o perigo da contaminação.
Alguns meses atrás, saiu, nos EUA, "Harmful to Minors - The Perils of Protecting Children from Sex" (danoso aos menores - os perigos de proteger as crianças do sexo), de Judith Levine. Chegando às livrarias no meio da revelação dos casos de abuso sexual na Igreja Católica americana, o livro foi recebido como um panfleto de circunstância (que não é).
Levine examina os programas de educação sexual propostos aos jovens americanos. Desde 1997, por decisão do Congresso, os cursos de educação sexual que receberam fundos do governo devem promover a abstinência sexual, não a contracepção ou o sexo protegido. Assim, escreve Levine, "num país em que 90% dos adultos têm relações sexuais antes do casamento e por volta de 10% são gays ou lésbicas", os educadores devem dizer às crianças que o sexo fora do casamento "tem provavelmente efeitos danosos psicológica e fisicamente" (palavras do regulamento de 1997).
Desencorajar o sexo fora do casamento é uma escolha moral legítima. Mas não deixa de parecer estranho que essa seja a mensagem oficial destinada às crianças, quando a prática da grande maioria dos adultos é outra. A contradição da lei americana evoca uma verdade mais geral: em matéria de sexo, com poucas exceções, só conseguimos transmitir aos jovens ora proibições, ora precauções e deterrências.
Num guia para os professores de educação sexual, Levine encontra uma lista que deveria ser discutida em aula. São as razões pelas quais os jovens têm relações sexuais precoces: "Para comunicar sentimentos de afeto e amor numa relação; para evitar ficar sozinho(a); para ser amado(a); para mostrar independência revoltando-se contra os pais, os professores ou outras figuras de autoridade; para manter uma relação; para mostrar que eles são "grandes'; para tornar-se pai ou mãe; para satisfazer a curiosidade". Há uma extraordinária omissão: que tal se os jovens transassem por prazer?
Nossa racionalidade é instrumental e nossas justificações estão sempre no futuro. Para nos sentirmos autorizados a agir, preferimos que nossos atos pareçam perseguir algum fim ou preparar algum momento ulterior. O que escapa a essa lógica é doentio. Assim, fumamos porque estamos nervosos, comemos porque somos estressados, nos masturbamos por angústia, olhamos porcarias na televisão por preguiça ou para conseguir dormir, dormimos por depressão, procuramos amigos por solidão, transamos por dever ou para relaxar, e por aí vai.
Aparentemente, nunca confessamos que agimos por prazer. Entende-se por quê: o prazer não serve para nada (não é instrumental) e não tem futuro (a fruição é imediata).
Será que aqui deveríamos invocar com orgulho a exceção brasileira? Afinal, não é verdade que, do lado de baixo do Equador, o prazer estaria em casa, autorizado e reconhecido (até demais)?
Certo, no Brasil, praticamos uma assídua retórica do prazer: queremos cervejinha gelada, caipirinha na praia e bunda gostosa. Mas é por que sabemos aproveitar a vida ou para confirmar a identidade nacional? O prazer é nossa experiência ou é um estereótipo que carregamos a tiracolo, como um mexicano passearia de sombreiro ou um francês de baguete?
Proliferam, hoje, saberes que tentam nos ensinar o prazer: como apreciar vinhos e comidas, como descobrir a sensualidade, como se comunicar com a natureza, como escutar música e olhar quadros. O resultado é que aprendemos sobretudo cacoetes de estilo: o que importa é que eu sou o cara que entende de vinhos, você entende de comida e ele, de música. A dita exceção brasileira talvez funcione um pouco do mesmo jeito: não é uma capacidade especial de fruir a vida, apenas o conforto de um clichê que confirma nossa identidade.
Brasileiros ou não, vivemos entre os abusos desregrados do prazer (desprazerosos, como bebedeiras, comilanças, overdoses e esfoladuras genitais), mil códigos de fruição que se tornam poses sociais e a incapacidade de justificar a experiência cotidiana pelos prazeres discretos que ela pode proporcionar.
Por que não exportar a nova personagem para outros países em que "Vila Sésamo" é programado regularmente? A pergunta foi colocada aos internautas americanos: muitos declararam que talvez não seja o caso de encher a cabeça de crianças entre três e sete anos (o público-alvo do programa) com histórias que as levariam a ouvir falar de sexo e de drogas injetáveis.
Não é um drama que as crianças ouçam falar de sexo tão cedo. De qualquer forma, os colegas, a rua, os irmãos e as irmãs se encarregam disso. Acho mais preocupante que, logo na primeira vez em que as crianças ouvem falar de sexo, o tema seja o perigo da contaminação.
Alguns meses atrás, saiu, nos EUA, "Harmful to Minors - The Perils of Protecting Children from Sex" (danoso aos menores - os perigos de proteger as crianças do sexo), de Judith Levine. Chegando às livrarias no meio da revelação dos casos de abuso sexual na Igreja Católica americana, o livro foi recebido como um panfleto de circunstância (que não é).
Levine examina os programas de educação sexual propostos aos jovens americanos. Desde 1997, por decisão do Congresso, os cursos de educação sexual que receberam fundos do governo devem promover a abstinência sexual, não a contracepção ou o sexo protegido. Assim, escreve Levine, "num país em que 90% dos adultos têm relações sexuais antes do casamento e por volta de 10% são gays ou lésbicas", os educadores devem dizer às crianças que o sexo fora do casamento "tem provavelmente efeitos danosos psicológica e fisicamente" (palavras do regulamento de 1997).
Desencorajar o sexo fora do casamento é uma escolha moral legítima. Mas não deixa de parecer estranho que essa seja a mensagem oficial destinada às crianças, quando a prática da grande maioria dos adultos é outra. A contradição da lei americana evoca uma verdade mais geral: em matéria de sexo, com poucas exceções, só conseguimos transmitir aos jovens ora proibições, ora precauções e deterrências.
Num guia para os professores de educação sexual, Levine encontra uma lista que deveria ser discutida em aula. São as razões pelas quais os jovens têm relações sexuais precoces: "Para comunicar sentimentos de afeto e amor numa relação; para evitar ficar sozinho(a); para ser amado(a); para mostrar independência revoltando-se contra os pais, os professores ou outras figuras de autoridade; para manter uma relação; para mostrar que eles são "grandes'; para tornar-se pai ou mãe; para satisfazer a curiosidade". Há uma extraordinária omissão: que tal se os jovens transassem por prazer?
Nossa racionalidade é instrumental e nossas justificações estão sempre no futuro. Para nos sentirmos autorizados a agir, preferimos que nossos atos pareçam perseguir algum fim ou preparar algum momento ulterior. O que escapa a essa lógica é doentio. Assim, fumamos porque estamos nervosos, comemos porque somos estressados, nos masturbamos por angústia, olhamos porcarias na televisão por preguiça ou para conseguir dormir, dormimos por depressão, procuramos amigos por solidão, transamos por dever ou para relaxar, e por aí vai.
Aparentemente, nunca confessamos que agimos por prazer. Entende-se por quê: o prazer não serve para nada (não é instrumental) e não tem futuro (a fruição é imediata).
Será que aqui deveríamos invocar com orgulho a exceção brasileira? Afinal, não é verdade que, do lado de baixo do Equador, o prazer estaria em casa, autorizado e reconhecido (até demais)?
Certo, no Brasil, praticamos uma assídua retórica do prazer: queremos cervejinha gelada, caipirinha na praia e bunda gostosa. Mas é por que sabemos aproveitar a vida ou para confirmar a identidade nacional? O prazer é nossa experiência ou é um estereótipo que carregamos a tiracolo, como um mexicano passearia de sombreiro ou um francês de baguete?
Proliferam, hoje, saberes que tentam nos ensinar o prazer: como apreciar vinhos e comidas, como descobrir a sensualidade, como se comunicar com a natureza, como escutar música e olhar quadros. O resultado é que aprendemos sobretudo cacoetes de estilo: o que importa é que eu sou o cara que entende de vinhos, você entende de comida e ele, de música. A dita exceção brasileira talvez funcione um pouco do mesmo jeito: não é uma capacidade especial de fruir a vida, apenas o conforto de um clichê que confirma nossa identidade.
Brasileiros ou não, vivemos entre os abusos desregrados do prazer (desprazerosos, como bebedeiras, comilanças, overdoses e esfoladuras genitais), mil códigos de fruição que se tornam poses sociais e a incapacidade de justificar a experiência cotidiana pelos prazeres discretos que ela pode proporcionar.
quinta-feira, 11 de julho de 2002
Realismo americano
Está aberta até 15 de setembro, no Metropolitan Museum de Nova York, uma notável retrospectiva de Thomas Eakins (1844-1916), o primeiro grande pintor realista americano.
Realista não quer dizer apenas figurativo. Há um quadro conhecido do realismo socialista ("Numa Escola para Meninas", de Ivan Alekseevic Vladimirov), em que professora e alunas (perfeitas) conversam debaixo de um retrato de Stálin e Lênin e de um cartaz com as palavras do líder: "Aprender, aprender e aprender". Será que é realista? Inversamente, as pingaradas de tinta num quadro de Jackson Pollock poderiam ser uma apresentação fidedigna dos transvios de nossos pensamentos -nesse sentido, uma obra realista.
Mas há um outro jeito de conceber o realismo, um jeito que talvez facilite nosso entendimento de Eakins. Posso considerar realistas as obras que ajudam o indivíduo a transformar a realidade de sua experiência numa história, ou seja, que fornecem elementos úteis para que ele atribua charme e valor a sua vida.
Faz tempo que não dispomos mais das grandes narrativas coletivas que justificavam quase tudo e todos. Ficamos com a tarefa de inventar, nós mesmos, uma razão individual para viver. Nessa altura, a literatura e a pintura "realistas" surgem como prontuários de pequenas fantasias. São catálogos de imagens e fragmentos de script graças aos quais aprendemos a contar nossa vida aos outros e, sobretudo, a nós mesmos, de maneira a não perder interesse em nossa história. Com isso, encontramos a força para levantar a cada manhã.
Ora, desde as primeiras décadas do século 20, uma parte conspícua das imagens e das histórias desses prontuários é americana. A cultura americana fornece os costumes, os diálogos, as músicas e os cenários da maioria dos roteiros com os quais sustentamos nossas vidas. Por quê? Parte da explicação está no "realismo" americano. E a coisa começou com Eakins.
Thomas Eakins (ao lado de seu contemporâneo, Winslow Homer) é o antepassado de dois pintores de espírito oposto, mas cuja combinação não pára de colorir os filmes de nossas vidas: Norman Rockwell, o pintor da América como sonho em cor-de-rosa, e Edward Hopper, o pintor da América como asperidade solitária. Eakins transmitiu a ambos uma lição de imanência: o valor da experiência humana é intrínseco. A felicidade de Rockwell parece um pouco babaca justamente porque é feita só do prazer de viver um cotidiano simples e pacificado. As paisagens urbanas de Hopper são tétricas justamente porque não aludem a nada, são assombradas sem assombrações. No realismo do cinema americano da época, aparece a mesma dualidade, com a mesma valorização intrínseca do bem e do mal. A Rockwell corresponde Frank Capra. A Hopper corresponde Howard Hawks dirigindo Bogart e Bacall em "À Beira do Abismo".
Eakins começou concentrando-se na experiência nacional: "Se a América deve produzir grandes pintores (...), o primeiro desejo deles deverá ser ficar na América para olhar mais fundo no coração da vida americana". Foi assim que ele trouxe para a pintura o cotidiano dos EUA: o beisebol, o boxe, o remo.
Ao mesmo tempo, seus retratos eram tão pouco complacentes que muitos clientes os esqueciam discretamente no sótão. O poeta Walt Whitman escreveu: "Só conheço um artista, Tom Eakins, que resistiu à tentação de ver o que ele pensava que devesse ser visto e preferiu ver o que é".
Em suma, a pintura de Eakins valorizou a experiência comum, sem recorrer a transcendências ideais ou divinas. Com ele, fragmentos da banalidade americana começaram a constituir um repertório de imagens dotadas de dignidade estética. Qualquer um poderia reclamar a mesma dignidade para sua vida, adotando algum fragmento desse repertório. Por isso inimigos jurados dos EUA podem desfilar, a cada dia, com camisetas dos Lakers ou dos New York Yankees.
O dólar declina. Aumenta o desemprego. Altera-se o equilíbrio étnico do país. Wall Street perde a confiança dos investidores. Os terroristas ameaçam a segurança nacional. Muitos, preocupados ou felizes, antevêem a decadência. Mas o poderio dos EUA talvez não provenha das Forças Armadas, da política (frequentemente medíocre) ou de Wall Street (que já despencou outras vezes). Talvez o âmago desse poderio seja cultural: um efeito do realismo americano, que permeia as narrativas com as quais qualquer indivíduo (americano ou não) tenta dar à sua vida a dignidade de um pequeno romance ou de um pequeno filme.
A retrospectiva de Eakins no Metropolitan não é um fato isolado. Entre 2000 e março passado, uma exposição itinerante de Norman Rockwell entusiasmou o público e, fato inédito para Rockwell, a crítica. Hollywood nunca esteve tão presente no imaginário ocidental. E, nos últimos anos, a literatura americana produziu uma safra extraordinária de romances realistas (sugiro: "Cold Mountain", de Charles Frazier, "Empire Falls", de Richard Russo, "The Corrections", de Jonathan Franzen etc.).
Os EUA talvez estejam em crise, mas não o realismo americano.
Realista não quer dizer apenas figurativo. Há um quadro conhecido do realismo socialista ("Numa Escola para Meninas", de Ivan Alekseevic Vladimirov), em que professora e alunas (perfeitas) conversam debaixo de um retrato de Stálin e Lênin e de um cartaz com as palavras do líder: "Aprender, aprender e aprender". Será que é realista? Inversamente, as pingaradas de tinta num quadro de Jackson Pollock poderiam ser uma apresentação fidedigna dos transvios de nossos pensamentos -nesse sentido, uma obra realista.
Mas há um outro jeito de conceber o realismo, um jeito que talvez facilite nosso entendimento de Eakins. Posso considerar realistas as obras que ajudam o indivíduo a transformar a realidade de sua experiência numa história, ou seja, que fornecem elementos úteis para que ele atribua charme e valor a sua vida.
Faz tempo que não dispomos mais das grandes narrativas coletivas que justificavam quase tudo e todos. Ficamos com a tarefa de inventar, nós mesmos, uma razão individual para viver. Nessa altura, a literatura e a pintura "realistas" surgem como prontuários de pequenas fantasias. São catálogos de imagens e fragmentos de script graças aos quais aprendemos a contar nossa vida aos outros e, sobretudo, a nós mesmos, de maneira a não perder interesse em nossa história. Com isso, encontramos a força para levantar a cada manhã.
Ora, desde as primeiras décadas do século 20, uma parte conspícua das imagens e das histórias desses prontuários é americana. A cultura americana fornece os costumes, os diálogos, as músicas e os cenários da maioria dos roteiros com os quais sustentamos nossas vidas. Por quê? Parte da explicação está no "realismo" americano. E a coisa começou com Eakins.
Thomas Eakins (ao lado de seu contemporâneo, Winslow Homer) é o antepassado de dois pintores de espírito oposto, mas cuja combinação não pára de colorir os filmes de nossas vidas: Norman Rockwell, o pintor da América como sonho em cor-de-rosa, e Edward Hopper, o pintor da América como asperidade solitária. Eakins transmitiu a ambos uma lição de imanência: o valor da experiência humana é intrínseco. A felicidade de Rockwell parece um pouco babaca justamente porque é feita só do prazer de viver um cotidiano simples e pacificado. As paisagens urbanas de Hopper são tétricas justamente porque não aludem a nada, são assombradas sem assombrações. No realismo do cinema americano da época, aparece a mesma dualidade, com a mesma valorização intrínseca do bem e do mal. A Rockwell corresponde Frank Capra. A Hopper corresponde Howard Hawks dirigindo Bogart e Bacall em "À Beira do Abismo".
Eakins começou concentrando-se na experiência nacional: "Se a América deve produzir grandes pintores (...), o primeiro desejo deles deverá ser ficar na América para olhar mais fundo no coração da vida americana". Foi assim que ele trouxe para a pintura o cotidiano dos EUA: o beisebol, o boxe, o remo.
Ao mesmo tempo, seus retratos eram tão pouco complacentes que muitos clientes os esqueciam discretamente no sótão. O poeta Walt Whitman escreveu: "Só conheço um artista, Tom Eakins, que resistiu à tentação de ver o que ele pensava que devesse ser visto e preferiu ver o que é".
Em suma, a pintura de Eakins valorizou a experiência comum, sem recorrer a transcendências ideais ou divinas. Com ele, fragmentos da banalidade americana começaram a constituir um repertório de imagens dotadas de dignidade estética. Qualquer um poderia reclamar a mesma dignidade para sua vida, adotando algum fragmento desse repertório. Por isso inimigos jurados dos EUA podem desfilar, a cada dia, com camisetas dos Lakers ou dos New York Yankees.
O dólar declina. Aumenta o desemprego. Altera-se o equilíbrio étnico do país. Wall Street perde a confiança dos investidores. Os terroristas ameaçam a segurança nacional. Muitos, preocupados ou felizes, antevêem a decadência. Mas o poderio dos EUA talvez não provenha das Forças Armadas, da política (frequentemente medíocre) ou de Wall Street (que já despencou outras vezes). Talvez o âmago desse poderio seja cultural: um efeito do realismo americano, que permeia as narrativas com as quais qualquer indivíduo (americano ou não) tenta dar à sua vida a dignidade de um pequeno romance ou de um pequeno filme.
A retrospectiva de Eakins no Metropolitan não é um fato isolado. Entre 2000 e março passado, uma exposição itinerante de Norman Rockwell entusiasmou o público e, fato inédito para Rockwell, a crítica. Hollywood nunca esteve tão presente no imaginário ocidental. E, nos últimos anos, a literatura americana produziu uma safra extraordinária de romances realistas (sugiro: "Cold Mountain", de Charles Frazier, "Empire Falls", de Richard Russo, "The Corrections", de Jonathan Franzen etc.).
Os EUA talvez estejam em crise, mas não o realismo americano.
quinta-feira, 4 de julho de 2002
A festa da final, entre São Paulo e Nova York
Há anos, a cada mês, viajo entre São Paulo e Nova York. Volta e meia, antes de enfiar a cara num livro, converso com meus vizinhos de assento, que, naturalmente, me perguntam se estou indo ou voltando. Querem saber onde moro.
Inevitavelmente, a conversa encaminha-se para uma comparação, com a lista dos encantos e dos defeitos respectivos de São Paulo e de Nova York. Mas, no discurso da maioria de meus companheiros de viagem, não reconheço nem São Paulo, nem Nova York. A razão que me prende às duas cidades não está em nenhuma das listas propostas.
Na verdade, gosto de São Paulo e de Nova York por algo que elas têm em comum, e não se trata das coisas desejáveis que nelas é possível encontrar e, eventualmente, conseguir. De que se trata, então?
No domingo passado, de manhã bem cedo, nas ruas desertas e já quentes de Manhattan, só circulavam camisas amarelas: brasileiros a caminho do lugar onde assistiriam à final. Alguns procuravam os restaurantes que abriam às 6h, oferecendo telão e café completo (até US$ 50, um roubo). Outros iam para a casa de amigos a fim de torcer em boa companhia.
Depois das 10h, na seção da rua 46 conhecida como "Little Brazil", começou a festa: batucada, crianças, apitos, pulos e trenzinhos de Carnaval. A maioria era de imigrantes: brasileiros de todos os Estados, de todas as idades e de todas as camadas da classe média, que vieram tentar fortuna, na esperança de que fazer a América do Norte fosse mais fácil do que fazer a América do Sul.
A festa era parecida com qualquer festa de uma das diferentes comunidades que compõem o mosaico americano -pelo clima e pelas decorações, poderia ter sido um baile na "Little Italy" de Boston. A alegria era ora contida e quase melancólica, ora exasperada e quase raivosa -em ambos os casos, misteriosamente comovedora.
Os brasileiros, vestindo as cores nacionais, embrulhados em bandeiras de vário feitio, dançavam por nostalgia da terra deixada: celebravam, assim, o vilarejo, o calor das famílias extensas, a clara definição das tarefas da vida e do que se precisa para cumpri-las, o conforto de uma comunidade em que os lugares são poucos, mas, em compensação, mais bem definidos. Eles também dançavam embaixo das bandeiras americanas que, nos adornos da rua, se alternavam com as brasileiras. Aliás, alguns agitavam as duas bandeiras, uma em cada mão. O imigrante é um protótipo da subjetividade moderna: nele a nostalgia convive e luta com o sonho de ir embora, de inventar uma vida nova, de surpreender aos outros e a si mesmo.
As grandes cidades são os lugares que mais seduzem o imigrante -seja ele brasileiro em Nova York ou nordestino em São Paulo. É preciso muita gente em pouco espaço para inventar uma sociedade em que o lugar de cada um não dependa mais de origem e tradição, mas da consideração dos outros. Essas cidades assumem a aparência de gigantescas vitrinas: elas prezam e expõem uma infinidade de objetos, prometendo que os cidadãos serão reconhecidos e valorizados pelas posses que conquistarão. Em geral, são objetos que faziam falta no lugar natal e que alimentam os devaneios dos que lá ficaram.
Paradoxo: na fantasia do imigrante, ser feliz significa poder voltar (se possível, rico às mãos-cheias) para onde ele não conseguiu ficar. A salvaguarda contra a nostalgia é a suposição de que os outros, no vilarejo, sintam inveja dele. O imigrante, mesmo fracassando no novo lugar, é consolado pela idéia de que, em sua comunidade de origem, ele se tornou "alguém" in absentia, graças à inveja dos que permaneceram.
Hoje, a seleção é campeã: como escreveu José Roberto Torero na Folha de segunda, o Jardim Irene é a capital do mundo. Para o imigrante, é, ao mesmo tempo, uma jubilação e um drama. Por isso, talvez, a alegria da festa parecesse contida ou exasperada. O orgulho do país nativo compromete a humildade que é necessária para integrar-se e, quando o vilarejo triunfa, o imigrante pode duvidar da inveja de quem ficou na terra: vacilam as forças que permitem continuar a aventura.
O orgulho coloca o imigrante numa terra de ninguém: impede que ele se integre, quando já é tarde demais para voltar. Parêntese: é essa derrelição que subleva os imigrantes norte-africanos na Europa. Os orgulhosos sonhos pan-arabistas impediram que eles se moldassem à sociedade para onde viajaram. E, aos olhos de quem permaneceu em casa, eles são mais desertores do que objetos de inveja.
O encanto de Nova York e de São Paulo não está nas vitrinas e nos objetos enumerados por meus companheiros de viagem. Não está nas lojas de charutos, nas limusines e nos restaurantes de luxo. Ele está nos povos imigrantes. Sinto-me em casa, em Nova York como em São Paulo, pelos milhões de esperançosos que vieram buscar liberdades e que ficam, como baleias encalhadas na praia, ofegando entre o sonho e a nostalgia. São eles que conferem aos ares paulistano e nova-iorquino a densidade, inconfundível e extraordinária, do desejo humano.
Inevitavelmente, a conversa encaminha-se para uma comparação, com a lista dos encantos e dos defeitos respectivos de São Paulo e de Nova York. Mas, no discurso da maioria de meus companheiros de viagem, não reconheço nem São Paulo, nem Nova York. A razão que me prende às duas cidades não está em nenhuma das listas propostas.
Na verdade, gosto de São Paulo e de Nova York por algo que elas têm em comum, e não se trata das coisas desejáveis que nelas é possível encontrar e, eventualmente, conseguir. De que se trata, então?
No domingo passado, de manhã bem cedo, nas ruas desertas e já quentes de Manhattan, só circulavam camisas amarelas: brasileiros a caminho do lugar onde assistiriam à final. Alguns procuravam os restaurantes que abriam às 6h, oferecendo telão e café completo (até US$ 50, um roubo). Outros iam para a casa de amigos a fim de torcer em boa companhia.
Depois das 10h, na seção da rua 46 conhecida como "Little Brazil", começou a festa: batucada, crianças, apitos, pulos e trenzinhos de Carnaval. A maioria era de imigrantes: brasileiros de todos os Estados, de todas as idades e de todas as camadas da classe média, que vieram tentar fortuna, na esperança de que fazer a América do Norte fosse mais fácil do que fazer a América do Sul.
A festa era parecida com qualquer festa de uma das diferentes comunidades que compõem o mosaico americano -pelo clima e pelas decorações, poderia ter sido um baile na "Little Italy" de Boston. A alegria era ora contida e quase melancólica, ora exasperada e quase raivosa -em ambos os casos, misteriosamente comovedora.
Os brasileiros, vestindo as cores nacionais, embrulhados em bandeiras de vário feitio, dançavam por nostalgia da terra deixada: celebravam, assim, o vilarejo, o calor das famílias extensas, a clara definição das tarefas da vida e do que se precisa para cumpri-las, o conforto de uma comunidade em que os lugares são poucos, mas, em compensação, mais bem definidos. Eles também dançavam embaixo das bandeiras americanas que, nos adornos da rua, se alternavam com as brasileiras. Aliás, alguns agitavam as duas bandeiras, uma em cada mão. O imigrante é um protótipo da subjetividade moderna: nele a nostalgia convive e luta com o sonho de ir embora, de inventar uma vida nova, de surpreender aos outros e a si mesmo.
As grandes cidades são os lugares que mais seduzem o imigrante -seja ele brasileiro em Nova York ou nordestino em São Paulo. É preciso muita gente em pouco espaço para inventar uma sociedade em que o lugar de cada um não dependa mais de origem e tradição, mas da consideração dos outros. Essas cidades assumem a aparência de gigantescas vitrinas: elas prezam e expõem uma infinidade de objetos, prometendo que os cidadãos serão reconhecidos e valorizados pelas posses que conquistarão. Em geral, são objetos que faziam falta no lugar natal e que alimentam os devaneios dos que lá ficaram.
Paradoxo: na fantasia do imigrante, ser feliz significa poder voltar (se possível, rico às mãos-cheias) para onde ele não conseguiu ficar. A salvaguarda contra a nostalgia é a suposição de que os outros, no vilarejo, sintam inveja dele. O imigrante, mesmo fracassando no novo lugar, é consolado pela idéia de que, em sua comunidade de origem, ele se tornou "alguém" in absentia, graças à inveja dos que permaneceram.
Hoje, a seleção é campeã: como escreveu José Roberto Torero na Folha de segunda, o Jardim Irene é a capital do mundo. Para o imigrante, é, ao mesmo tempo, uma jubilação e um drama. Por isso, talvez, a alegria da festa parecesse contida ou exasperada. O orgulho do país nativo compromete a humildade que é necessária para integrar-se e, quando o vilarejo triunfa, o imigrante pode duvidar da inveja de quem ficou na terra: vacilam as forças que permitem continuar a aventura.
O orgulho coloca o imigrante numa terra de ninguém: impede que ele se integre, quando já é tarde demais para voltar. Parêntese: é essa derrelição que subleva os imigrantes norte-africanos na Europa. Os orgulhosos sonhos pan-arabistas impediram que eles se moldassem à sociedade para onde viajaram. E, aos olhos de quem permaneceu em casa, eles são mais desertores do que objetos de inveja.
O encanto de Nova York e de São Paulo não está nas vitrinas e nos objetos enumerados por meus companheiros de viagem. Não está nas lojas de charutos, nas limusines e nos restaurantes de luxo. Ele está nos povos imigrantes. Sinto-me em casa, em Nova York como em São Paulo, pelos milhões de esperançosos que vieram buscar liberdades e que ficam, como baleias encalhadas na praia, ofegando entre o sonho e a nostalgia. São eles que conferem aos ares paulistano e nova-iorquino a densidade, inconfundível e extraordinária, do desejo humano.
quinta-feira, 27 de junho de 2002
O pato, a nostalgia e a indústria do aconchego
Frequentemente, ao entrar numa casa de classe média, surpreendo-me. O sofá foi transformado numa barcaça destinada ao transporte de almofadas, cobertorezinhos ou mantas para as noites de inverno. De tanto querer ser confortável, ele se tornou impraticável: não há mais espaço onde sentar.
Ao redor do sofá, em cima de estantes e mesinhas, acumulam-se os bibelôs: tinteiros art déco, com canetas pretensamente de âmbar, Budas e outras chinesices, cerâmicas de Capodimonte ou quase, pequenos bronzes que evocam Isadora Duncan, os dias do charleston ou o discóbolo e caixinhas de prata, ébano ou madrepérola. Não faltam os patos de madeira, engodos para caça, que nunca flutuarão nas águas de um lago para convocar seus semelhantes.
Essas casas nascem do conúbio de briques e feiras de antiguidades com o catálogo dos objetos necessários para viver o estilo "conforto na fazenda" (toalhas de mesa xadrez, panos de prato bordados com veados e búfalos, saladeiras de madeira maciça etc.).
Várias revistas de decoração elogiam nossas habitações quando o sofá é um mostruário de almofadas e as estantes expõem os restos de um museu falido, ao lado de símbolos campestres. Dizem que, assim, as casas são aconchegantes.
Isso não significa que nelas a gente fique à vontade, pois não dá para sentar no sofá e não dá para pousar um livro nas mesinhas. Em compensação, essas habitações proclamam seu próprio aconchego. Nossas casas ideais não oferecem conforto, mas tentam convencer hóspedes, moradores e convidados de que elas são lares gostosos.
Em suma, queremos casas que signifiquem que temos mesmo uma casa. Os achados nos briques do domingo, acumulados, dão-nos a ilusão de estar numa habitação que teria passado de pai a filhos desde sempre. Lidamos assim com a nostalgia de um tempo em que três ou quatro gerações viviam juntas e a casa expressava a permanência da família. Instalamos na sala, como elemento de decoração, a mesma máquina de costurar que a avó trouxe da Alemanha e que ficou na colônia. Ou as luvas bordadas que substituem aquelas que a mãe mandou vir da Espanha e que se perderam quando a sua casa foi desfeita por uma vizinha, pois a gente não teve tempo de ficar depois do funeral. Quanto às almofadas que jogamos no chão para sentar no sofá, elas servem para evocar um estilo de vida rural que confirmaria a tranquila estabilidade de nossos lares.
Com a exceção das casas de modernistas militantes, a habitação de classe média, desde o século 19, é um grito de nostalgia. No começo, ela expressava a nostalgia das hierarquias contestadas pela mobilidade social moderna. A mistura dos estilos Biedermeier com Louis-Philippe, que ainda era a regra nos apartamentos milaneses de minha infância, infligia-nos, por exemplo, uma exposição permanente de bomboneiras de prata, todas gravadas com os nomes e as datas dos casamentos de amigos e parentes. Geralmente, essa exposição acompanhava o desfile dos porta-retratos. Era uma maneira de mostrar que a casa e seus habitantes tinham história e continuidade, um jeito de afirmar a existência de um clã, de salientar a relevância das origens e a extensão da esfera de influência da família. O século promovia a mobilidade social e queria sacrificar hierarquias e privilégios? A casa burguesa, com bomboneiras e retratos, reinventava nada menos que o altar dos lares, os deuses domésticos da casa romana.
No século 20, a mobilidade, além de social, tornou-se física. O nômade contemporâneo tem óbvias dificuldades em constituir um lar. Logo as "antiguidades" e o estilo de decoração "country" vieram ninar nossa nostalgia, proporcionando-nos mais uma chance de viver numa paródia do passado. Decoramos apartamentos alugados por seis meses como o tipo de habitação que, tradicionalmente, fica na família para sempre: a fazenda.
Mas há um problema. Os objetos que deveriam exibir nossas antigas raízes locais são estranhamente universais: o aconchego é uma indústria recente e, portanto, globalizada. A mesma decoração tenta nos convencer de que temos um lar "local" num apartamento de Paris, numa casa do Morumbi, numa "brownstone" do Brooklyn e num flat de Coral Gables. As propagandas de "Country Living" (vida no campo) prometem que os objetos escolhidos provarão a unicidade aconchegante de nosso lar. Mentira e irrisão: eles confirmam a perda inevitável de nossas raízes. Tentamos nos convencer de que estamos no aconchego de casa graças a uma manta de lã igual à da avó, mas a manta é fabricada em Taiwan. O pano de prato foi bordado num abafado galpão de Jacarta. E o pato de madeira é chinês.
Quando pararemos com a nostalgia e inventaremos uma estética doméstica para os nossos tempos?
P.S.: A nostalgia de uma ordem e de um lar perdidos explicam também o surto de paixão pela vida suburbana (imitação da vida rural) nos anos 60-80 e a proliferação em nossas casas de peças de artesanato "local". O mesmo vale para o kitsch das lembranças de viagem, mas deixo isso para outra vez.
quinta-feira, 20 de junho de 2002
Mata, mas não estripa
"Estupra, mas não mata!" Tempos atrás, essas palavras de Paulo Maluf foram objeto de zombaria. Era fácil interpretá-las como coisa de machista, para quem o estupro não seria grande coisa.
Mas é claro que a idéia de Maluf não era essa. Simplesmente ele pedia que os criminosos se limitassem ao estrito necessário. Ou seja, ele os exortava a serem racionais: "Você gosta de estuprar? Então, contente-se em estuprar. Para seu crime, matar a vítima é desnecessário, sem utilidade. Matar não é o que você quer e, se a coisa azedar, agravará sua pena".
Por razões análogas, hoje, dá vontade de pedir: "Mata, mas não estupra", ou melhor, "mata, mas não estripa". É o inverso das palavras de Maluf só em aparência, pois as duas frases nascem do mesmo estranhamento.
Elias Maluco e seus homens quiseram eliminar Tim Lopes porque o repórter tinha exposto os negócios do narcotráfico numa reportagem. A decisão de vingar-se e de impedir que o repórter continuasse suas investigações corresponde a um cálculo racional dos traficantes: "Calem esse cara". Mas por que ele foi espancado, torturado, mutilado? O requinte de horror seria de alguma utilidade para o narcotráfico? Ao contrário, a crueldade dos assassinos produziu um zelo policial que atrapalha o tráfico mais do que atrapalhariam as reportagens de Tim Lopes. Em suma, a eliminação do repórter poderia responder a um interesse do crime organizado. Mas isso não vale para o requinte.
A crueldade é uma fraqueza do criminoso, um momento em que ele não consegue se conformar com os interesses de seu próprio empreendimento: seu gozo passa à frente das necessidades do crime. É o estuprador que mata, arriscando-se a pegar mais cadeia do que deveria. É Elias Maluco, que aproveita uma execução para torturar e, com isso, mobiliza como nunca a opinião pública e as polícias contra seus negócios.
Seria cômodo atribuir esses excessos a um traço psicológico dos criminosos. Justamente, Elias não é chamado de maluco?
Ora, a criminalidade nacional é quase sempre gratuitamente cruenta. Ela não é regida pelo cálculo entre o que o crime pode render, o risco de ser preso e a importância da punição. Em vez de perseguir o lucro máximo e o risco mínimo, nossos criminosos perdem-se nos meandros da violência desnecessária. Como já foi observado muitas vezes, em regra, muitos preferem roubar a furtar, e não é por incompetência. Eles sabem se apoderar de um carro estacionado ou arrombar a porta de uma casa vazia, mas preferem encarar os donos: não renunciam ao "prazer" de arrebentar um corpo ou, no mínimo, de impor uma ameaça física. A escolha do sequestro como forma privilegiada de assalto confirma essa regra.
De onde vem essa propensão a deixar que a vontade de gozar passe à frente das exigências racionais do empreendimento? O exemplo vem de cima. As classes privilegiadas nacionais adotaram, obviamente, o exercício moderno do poder: contratual, mercantil, limitado e, sobretudo, rentável. Mas há um modelo atávico que resistiu à modernização. Ele aparece com o grande número de trabalhadores cuja função não responde à racionalidade produtiva moderna. Sua tarefa é assistir à vida cotidiana dos privilegiados. São manobristas para que nos esquivemos do esforço de estacionar, office-boys para que evitemos as filas de banco, personal trainers cotidianos para que dispensemos o esforço de ler uma tabela de exercícios, babás para mães que não trabalham, passadeiras, faxineiras e por aí vai.
Esse exército de serviçais é um arcaísmo, uma brecha na racionalidade produtiva. Ele não corresponde a nenhum imperativo do projeto moderno. Sua única necessidade está no prazer proporcionado aos privilegiados.
Cuidado: não acredito nem um pouco que Elias Maluco ou Fernandinho Beira-Mar estejam vingando os serviçais das classes privilegiadas. Essa idéia talvez seja do gosto do Comando Vermelho, mas é uma idiotice. A relação entre o gozo dos criminosos irracionalmente cruentos e o gozo dos privilegiados irracionalmente mimados por um exército de serviçais é outra.
Acontece que, com a modernidade, os desfavorecidos ganham o direito (e, infelizmente, o dever) de invejar. Quando olham para a classe dominante, a imagem que surge não é a de Antônio Ermírio passando suas manhãs na Beneficência Portuguesa, assim como não é a imagem corajosa do empreendedor. Essas figuras talvez prevaleçam numericamente. Mas, para o olhar da inveja, o que define as elites é a forma mais sensível de seu privilégio. No caso, é o gozo que se destaca por passar à frente da racionalidade produtiva, o gozo que reside em dispor de um exército de serviçais -resto dos prazeres da escravatura.
Talvez os criminosos cruentos realizem, de um jeito sangrento e caricatural, um ideal nostálgico das elites. Talvez, deixando seu gozo interferir na racionalidade dos empreendimentos criminosos, eles estejam apenas imitando as elites invejadas.
Mas esse é apenas um aspecto do que faz o requinte da crueldade criminosa. Voltarei ao assunto.
quinta-feira, 13 de junho de 2002
Crise de confiança (para David Riesman)
Na terça-feira, 4 de junho, em Nova York, estive no jantar de primavera da Sociedade das Américas. Paul Volcker, duas vezes presidente do Fed (o banco central dos EUA) entre 1979 e 1987, apresentou um quadro atual da economia americana.
Os números recentes indicam uma saída da crise: melhora a confiança do consumidor e aparecem novos empregos. Mas a Bolsa de Valores permanece em baixa. É que ninguém acredita mais na contabilidade das empresas. Os escândalos sucedem-se desde o desastre da Enron, e os investidores, assustados, parecem redescobrir o charme das moedas guardadas debaixo do colchão.
Sobretudo nas últimas décadas do século 20, o americano de classe média (mesmo baixa) foi instigado a comprar ações para multiplicar as reservas destinadas à sua aposentadoria. A fim de encorajá-lo, o capitalismo americano, disse Volcker, promoveu rigorosas auditorias de contas: o investidor seria sempre informado sobre o estado das empresas nas quais decidiria apostar. A mágica funcionou: nas últimas décadas, não só o consumo mas também a poupança contribuiu para o crescimento econômico.
Na visão de Volcker, a atual crise de confiança seria motivada pela conduta duvidosa de alguns (ou de muitos) dirigentes. Com uma boa reforma do sistema de auditoria, o investidor recuperará seu bom humor e tudo continuará como antes.
Por que tantos dirigentes seriam tentados, de repente, pela malandragem? Uma explicação banal acusa o tipo de remuneração que veio a ser dominante: além de pagarem um salário, muitas empresas prometem vender a seus dirigentes uma quantia de ações, numa data futura, ao preço de hoje (ou de ontem). Graças a essa opção de compra, o dirigente terá um lucro proporcional ao aumento do valor das ações da companhia durante sua gestão. Há um risco: os dirigentes podem ser motivados a inventar falcatruas para inflar artificialmente o valor das ações da companhia. Antes que a verdade apareça, eles embolsam seus lucros -e os pequenos investidores que se ralem. Talvez fosse prudente voltar às maneiras tradicionais de retribuir.
De qualquer forma, não acredito que a origem da crise de hoje seja a epidemia de dirigentes pilantras. E duvido de que a falta de confiança do investidor seja um acidente transitório.
No 10 de maio passado, morreu um grandíssimo sociólogo americano: David Riesman, autor de "A Multidão Solitária" (1950) -uma obra ainda profética.
Riesman descrevia três tempos de nossa cultura: 1) um passado, em que a vida era regrada por tradições e costumes instituídos, 2) a modernidade, animada pelo projeto interior do indivíduo, sua vontade de mudar a si próprio e ao mundo, 3) os dias de hoje, em que (pressentimento milagroso) não somos definidos pela tradição ou pela certeza de nossos projetos: o critério que nos orienta é o que os outros pensam de nós. Somos sociais como nunca, pois só existimos na (e pela) multidão. Somos solitários como nunca, pois, na hora de dialogar, é difícil encontrar sujeitos que sejam gente: esbarramos nos reflexos das identidades que a multidão reconhece e festeja.
Riesman constatou, por exemplo, que, na formação dos jovens, o grupo de pares (que aprova ou desaprova) se tornava tão importante quanto a hierarquia familiar. Numa época ainda sem televisão, ele previu que, nas escolhas políticas, triunfaria o marketing: não votaríamos para defender uma idéia, mas em quem nos seduzisse (ou, eu preferiria, em quem nos parecesse suscetível de ser seduzido por nós). Nesse mundo, o valor das mercadorias é cada vez menos decidido pelo custo ou pelo valor de uso: as mercadorias valem pela aprovação que encontram na opinião da multidão.
Por que teria sido diferente quando se tratou de convencer o cidadão contemporâneo a investir sua poupança em ações? O valor intrínseco das empresas (critério dos investidores do passado) cedeu o passo ao mesmo tipo de argumentos que influenciam o consumidor.
Em particular nos anos 90, a propaganda americana passou a incentivar subliminarmente não só o consumo mas também o investimento. Tomar café Starbucks deve ser melhor ainda para quem é acionista da Starbucks. E a Microsoft: você quer ser apenas usuário ou fazer parte do mito? Muitos pequenos investidores compraram ações para se aproximarem de empreendimentos ou de mercadorias aprovados pela opinião da multidão.
Ao mesmo tempo, a valorização abstrata das ações tornou-se a missão prioritária dos dirigentes (em vez dos fundamentos: produtividade, crescimento etc.) simplesmente porque essa valorização atrairia investidores cada vez mais tratados como fregueses.
Um belo dia, o divórcio entre o valor fictício produzido pelo poder de sedução de uma marca e o valor efetivo da empresa acabou assustando muitos.
A crise, na verdade, era previsível desde que o cidadão comum foi chamado a fazer-se de investidor. Para que não desse em desastre, teria sido necessário dispor de cidadãos que não se definissem como consumidores -ou seja, que não fossem solitários na multidão.
Os números recentes indicam uma saída da crise: melhora a confiança do consumidor e aparecem novos empregos. Mas a Bolsa de Valores permanece em baixa. É que ninguém acredita mais na contabilidade das empresas. Os escândalos sucedem-se desde o desastre da Enron, e os investidores, assustados, parecem redescobrir o charme das moedas guardadas debaixo do colchão.
Sobretudo nas últimas décadas do século 20, o americano de classe média (mesmo baixa) foi instigado a comprar ações para multiplicar as reservas destinadas à sua aposentadoria. A fim de encorajá-lo, o capitalismo americano, disse Volcker, promoveu rigorosas auditorias de contas: o investidor seria sempre informado sobre o estado das empresas nas quais decidiria apostar. A mágica funcionou: nas últimas décadas, não só o consumo mas também a poupança contribuiu para o crescimento econômico.
Na visão de Volcker, a atual crise de confiança seria motivada pela conduta duvidosa de alguns (ou de muitos) dirigentes. Com uma boa reforma do sistema de auditoria, o investidor recuperará seu bom humor e tudo continuará como antes.
Por que tantos dirigentes seriam tentados, de repente, pela malandragem? Uma explicação banal acusa o tipo de remuneração que veio a ser dominante: além de pagarem um salário, muitas empresas prometem vender a seus dirigentes uma quantia de ações, numa data futura, ao preço de hoje (ou de ontem). Graças a essa opção de compra, o dirigente terá um lucro proporcional ao aumento do valor das ações da companhia durante sua gestão. Há um risco: os dirigentes podem ser motivados a inventar falcatruas para inflar artificialmente o valor das ações da companhia. Antes que a verdade apareça, eles embolsam seus lucros -e os pequenos investidores que se ralem. Talvez fosse prudente voltar às maneiras tradicionais de retribuir.
De qualquer forma, não acredito que a origem da crise de hoje seja a epidemia de dirigentes pilantras. E duvido de que a falta de confiança do investidor seja um acidente transitório.
No 10 de maio passado, morreu um grandíssimo sociólogo americano: David Riesman, autor de "A Multidão Solitária" (1950) -uma obra ainda profética.
Riesman descrevia três tempos de nossa cultura: 1) um passado, em que a vida era regrada por tradições e costumes instituídos, 2) a modernidade, animada pelo projeto interior do indivíduo, sua vontade de mudar a si próprio e ao mundo, 3) os dias de hoje, em que (pressentimento milagroso) não somos definidos pela tradição ou pela certeza de nossos projetos: o critério que nos orienta é o que os outros pensam de nós. Somos sociais como nunca, pois só existimos na (e pela) multidão. Somos solitários como nunca, pois, na hora de dialogar, é difícil encontrar sujeitos que sejam gente: esbarramos nos reflexos das identidades que a multidão reconhece e festeja.
Riesman constatou, por exemplo, que, na formação dos jovens, o grupo de pares (que aprova ou desaprova) se tornava tão importante quanto a hierarquia familiar. Numa época ainda sem televisão, ele previu que, nas escolhas políticas, triunfaria o marketing: não votaríamos para defender uma idéia, mas em quem nos seduzisse (ou, eu preferiria, em quem nos parecesse suscetível de ser seduzido por nós). Nesse mundo, o valor das mercadorias é cada vez menos decidido pelo custo ou pelo valor de uso: as mercadorias valem pela aprovação que encontram na opinião da multidão.
Por que teria sido diferente quando se tratou de convencer o cidadão contemporâneo a investir sua poupança em ações? O valor intrínseco das empresas (critério dos investidores do passado) cedeu o passo ao mesmo tipo de argumentos que influenciam o consumidor.
Em particular nos anos 90, a propaganda americana passou a incentivar subliminarmente não só o consumo mas também o investimento. Tomar café Starbucks deve ser melhor ainda para quem é acionista da Starbucks. E a Microsoft: você quer ser apenas usuário ou fazer parte do mito? Muitos pequenos investidores compraram ações para se aproximarem de empreendimentos ou de mercadorias aprovados pela opinião da multidão.
Ao mesmo tempo, a valorização abstrata das ações tornou-se a missão prioritária dos dirigentes (em vez dos fundamentos: produtividade, crescimento etc.) simplesmente porque essa valorização atrairia investidores cada vez mais tratados como fregueses.
Um belo dia, o divórcio entre o valor fictício produzido pelo poder de sedução de uma marca e o valor efetivo da empresa acabou assustando muitos.
A crise, na verdade, era previsível desde que o cidadão comum foi chamado a fazer-se de investidor. Para que não desse em desastre, teria sido necessário dispor de cidadãos que não se definissem como consumidores -ou seja, que não fossem solitários na multidão.
quinta-feira, 6 de junho de 2002
Seja utopista, peça o possível
Três semanas atrás, Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA, visitou Cuba. Fidel Castro deixou que ele se endereçasse aos cubanos em espanhol e ao vivo, sem censura. Carter criticou o regime castrista pelo desrespeito aos diretos fundamentais. Fidel aplaudiu e, numa espécie de réplica, enumerou as conquistas sociais da Revolução Cubana.
Essa contraposição sem diálogo jogou-me de volta à minha adolescência, nos anos 60, na Itália. Bastava esticar as pernas além da Cortina de Ferro (ao alcance de um carro de estudante) para verificar o horror totalitário do socialismo real. Por outro lado, o "milagre" capitalista do pós-guerra italiano não tratava cada cidadão com a mesma generosidade -longe disso. Embora ambas essas verdades fossem óbvias para todos, entre direita e esquerda só havia um diálogo de surdos, como entre Carter e Castro.
Os liberais diziam: "Nos países socialistas, falta qualquer liberdade". No bate-boca, a esquerda respondia: "A liberdade da qual vocês estão falando é a liberdade de morrer de fome e de não ter emprego".
De um lado, um apelo aos direitos e às liberdades fundamentais; do outro, a proclamação de um sistema justo e participativo. Como entre essas posições não havia mediação, era lógico supor que elas se excluíssem reciprocamente. Os liberais, para proteger as liberdades, deixariam as crianças pobres morrerem de fome. Os comunistas aceitariam a existência do gulag à condição de que houvesse leite, sopa e pão na mesa de todos. Parecia valer um axioma pelo qual não haveria liberdade sem injustiça e não haveria justiça sem sacrificar as liberdades.
Como entender essa idiotice que atravessa o debate político desde o pós-guerra até o encontro cubano de Castro e Carter?
Em época de eleições, as obras de Michael Oakeshott (filósofo inglês, morto em 1990) deveriam ser leitura obrigatória, começando com "O Racionalismo na Política", de 1947. Oakeshott é um conservador: suas obras são disponíveis a preço camarada no "Liberty Fund", que é o equivalente liberal das antigas edições de Moscou. De fato, ele é conservador por ser crítico das armadilhas da razão moderna (aparte para os filósofos: Oakeshott é mais lúcido que Isaiah Berlin, porque sua desconfiança da razão não o leva a se entusiasmar bestamente com a tradição romântica e irracionalista).
A idéia central de "O Racionalismo na Política" é a seguinte: desde o começo da modernidade, a autoridade do costume estabelecido e da tradição deixa de orientar a vida política. Essa tarefa é entregue à nossa razão. Ótimo, mas a razão tende a ser abstrata: ela é capaz de pensar planos e de instituir princípios. Também ela sabe inventar técnicas para dobrar o mundo na direção que lhe parece certa. Mas ela não sabe nem quer lidar com a complexidade da vida concreta.
Para Oakeshott, tanto a afirmação dos direitos humanos feita por Carter quanto o plano de justiça social promovido por Castro seriam exemplos de puras abstrações racionalistas. A vida concreta é feita, por exemplo, de liberdades que devem ser desrespeitadas porque ferem a moral comum ou porque seriam fatais para a coesão da comunidade. A vida concreta é também feita de injustiças inevitáveis, pois repugna à modernidade uma excessiva igualdade entre indivíduos, e não há luta possível contra os privilégios tradicionais sem incentivar os méritos e as competências. Enfim, na vida concreta, uma justiça social sem liberdade não vale nada. Como não vale nada a liberdade sem justiça.
Em suma, o discurso político, entregue à razão, torna-se abstrato e, por isso, ineficaz. Corolário trágico: quanto mais o debate politico é tomado por retóricas abstratas, tanto mais a política concreta acaba nas mãos dos canalhas.
Com um pouco de sorte, retrospectivamente, o século 20 aparecerá como o século que serviu para inspirar desconfiança nos radicalismos, por eles serem sempre racionalistas, abstratos e, portanto, incapazes de propor algo que preste para a vida concreta.
Em maio de 68, nos muros de Paris, apareceu uma frase arrebatadora, que me seduziu: "Seja realista, peça o impossível". Ora, pensando bem, pedir o impossível é o que sempre faz o racionalismo em política: é fácil e não serve para nada.
Pierre Barouh, um amigo, músico, poeta e tradutor de Vinicius para o francês, escolheu, como lema, uma correção da frase de maio de 68. A "seja realista, peça o impossível", ele preferiu: "Seja utopista, peça o possível".
Isso aconteceu antes que o governo FHC promovesse a "utopia do possível". Clovis Rossi, na Folha de terça-feira, critica essa expressão, que lhe parece elogiar uma mediocridade resignada. Entendo esse risco, mas o outro risco, para o qual alerta Oakeshott, é que, à força de pedir o impossível, o possível nunca aconteça. Nisso, o filósofo conservador torna-se próximo da nova esquerda: difícil não é conclamar princípios, difícil é mexer com a vida concreta, respeitando sua complexidade e correndo o risco de querer coisas que podem acontecer de verdade.
Essa contraposição sem diálogo jogou-me de volta à minha adolescência, nos anos 60, na Itália. Bastava esticar as pernas além da Cortina de Ferro (ao alcance de um carro de estudante) para verificar o horror totalitário do socialismo real. Por outro lado, o "milagre" capitalista do pós-guerra italiano não tratava cada cidadão com a mesma generosidade -longe disso. Embora ambas essas verdades fossem óbvias para todos, entre direita e esquerda só havia um diálogo de surdos, como entre Carter e Castro.
Os liberais diziam: "Nos países socialistas, falta qualquer liberdade". No bate-boca, a esquerda respondia: "A liberdade da qual vocês estão falando é a liberdade de morrer de fome e de não ter emprego".
De um lado, um apelo aos direitos e às liberdades fundamentais; do outro, a proclamação de um sistema justo e participativo. Como entre essas posições não havia mediação, era lógico supor que elas se excluíssem reciprocamente. Os liberais, para proteger as liberdades, deixariam as crianças pobres morrerem de fome. Os comunistas aceitariam a existência do gulag à condição de que houvesse leite, sopa e pão na mesa de todos. Parecia valer um axioma pelo qual não haveria liberdade sem injustiça e não haveria justiça sem sacrificar as liberdades.
Como entender essa idiotice que atravessa o debate político desde o pós-guerra até o encontro cubano de Castro e Carter?
Em época de eleições, as obras de Michael Oakeshott (filósofo inglês, morto em 1990) deveriam ser leitura obrigatória, começando com "O Racionalismo na Política", de 1947. Oakeshott é um conservador: suas obras são disponíveis a preço camarada no "Liberty Fund", que é o equivalente liberal das antigas edições de Moscou. De fato, ele é conservador por ser crítico das armadilhas da razão moderna (aparte para os filósofos: Oakeshott é mais lúcido que Isaiah Berlin, porque sua desconfiança da razão não o leva a se entusiasmar bestamente com a tradição romântica e irracionalista).
A idéia central de "O Racionalismo na Política" é a seguinte: desde o começo da modernidade, a autoridade do costume estabelecido e da tradição deixa de orientar a vida política. Essa tarefa é entregue à nossa razão. Ótimo, mas a razão tende a ser abstrata: ela é capaz de pensar planos e de instituir princípios. Também ela sabe inventar técnicas para dobrar o mundo na direção que lhe parece certa. Mas ela não sabe nem quer lidar com a complexidade da vida concreta.
Para Oakeshott, tanto a afirmação dos direitos humanos feita por Carter quanto o plano de justiça social promovido por Castro seriam exemplos de puras abstrações racionalistas. A vida concreta é feita, por exemplo, de liberdades que devem ser desrespeitadas porque ferem a moral comum ou porque seriam fatais para a coesão da comunidade. A vida concreta é também feita de injustiças inevitáveis, pois repugna à modernidade uma excessiva igualdade entre indivíduos, e não há luta possível contra os privilégios tradicionais sem incentivar os méritos e as competências. Enfim, na vida concreta, uma justiça social sem liberdade não vale nada. Como não vale nada a liberdade sem justiça.
Em suma, o discurso político, entregue à razão, torna-se abstrato e, por isso, ineficaz. Corolário trágico: quanto mais o debate politico é tomado por retóricas abstratas, tanto mais a política concreta acaba nas mãos dos canalhas.
Com um pouco de sorte, retrospectivamente, o século 20 aparecerá como o século que serviu para inspirar desconfiança nos radicalismos, por eles serem sempre racionalistas, abstratos e, portanto, incapazes de propor algo que preste para a vida concreta.
Em maio de 68, nos muros de Paris, apareceu uma frase arrebatadora, que me seduziu: "Seja realista, peça o impossível". Ora, pensando bem, pedir o impossível é o que sempre faz o racionalismo em política: é fácil e não serve para nada.
Pierre Barouh, um amigo, músico, poeta e tradutor de Vinicius para o francês, escolheu, como lema, uma correção da frase de maio de 68. A "seja realista, peça o impossível", ele preferiu: "Seja utopista, peça o possível".
Isso aconteceu antes que o governo FHC promovesse a "utopia do possível". Clovis Rossi, na Folha de terça-feira, critica essa expressão, que lhe parece elogiar uma mediocridade resignada. Entendo esse risco, mas o outro risco, para o qual alerta Oakeshott, é que, à força de pedir o impossível, o possível nunca aconteça. Nisso, o filósofo conservador torna-se próximo da nova esquerda: difícil não é conclamar princípios, difícil é mexer com a vida concreta, respeitando sua complexidade e correndo o risco de querer coisas que podem acontecer de verdade.
quinta-feira, 30 de maio de 2002
Populismo americano
Estréia hoje, no Brasil, "Um Ato de Coragem". Nos EUA, o grande público adorou, e muitos críticos não gostaram.
O filme conta a história de John Q. (Denzel Washington), cujo filho precisa de um transplante de coração. Infelizmente, John situa-se numa zona cinzenta da sociedade americana: ele não é miserável (portanto não tem direito à assistência médica gratuita), mas seu emprego precário garante apenas um seguro de saúde limitado. Conclusão: ninguém quer pagar a operação que salvaria a vida do menino. Quem não recorreria a atos extremos? Garanto que os espectadores torcerão por John.
É difícil que a situação do filme aconteça nos EUA: alguma entidade filantrópica pagaria a conta. Mas isso não impediu o sucesso de "Um Ato de Coragem". Pois, há tempo, sobretudo entre os menos favorecidos, vinga um protesto indignado contra as seguradoras que gerenciam o sistema de saúde, apitando mais do que os próprios médicos.
Ao comentar o sucesso do filme, alguns críticos arrebitaram o nariz e salientaram a importância, no cinema americano, de um filão populista: filmes feitos para confirmar e bajular as idéias e os sentimentos populares estabelecidos. Nessa ocasião, D. Denby, na "New Yorker" (4/3/02), propôs uma distinção entre dois populismos: de esquerda e de direita.
O populismo americano de esquerda exaltaria o pequeno indivíduo contra a prepotência dos grandes complexos administrativos, industriais e políticos. Por exemplo, "Um Ato de Coragem" apresenta a luta do trabalhador americano contra o sistema de saúde. "Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento" (Oscar para Julia Roberts) era o grito de justiça dos humildes envenenados pela indústria química. Mais recentemente, "Uma Lição de Amor" apresentou uma dinâmica parecida: para manter a guarda da filha, um pai com uma deficiência mental média (Sean Penn) enfrenta o poderoso Departamento de Serviços Sociais, que sempre sabe qual é o "melhor interesse" das crianças (sobretudo quando os pais da dita criança são pobres e não são assistidos por um advogado competente).
O populismo de direita seria exemplificado pelas histórias de cidadãos vigilantes, que fazem justiça com suas mãos. O último (e fracassado) filme com Schwarzenegger, "Efeito Colateral", é um exemplo: um bombeiro, sozinho, vinga filho e mulher assassinados num atentado terrorista. O esquema é clássico: pense em todos os filmes em que Charles Bronson sai matando criminosos porque a polícia tem o rabo preso. Ou pense nas aventuras do inspetor Harry Callahan (Clint Eastwood), que se ergue contra a corrupção de seus colegas.
Em suma, o populismo de "Um Ato de Coragem" sonharia com o indivíduo opondo-se aos poderosos (revolta de esquerda). O populismo dos vigilantes sonharia com o indivíduo assumindo as funções do Estado (atitude autoritária e, portanto, de direita).
Mas a fronteira entre as duas categorias é tênue. Abundam os filmes difíceis de situar com clareza. Veja, por exemplo, "Rambo Programado para Matar" (o primeiro da série e o único que vale a pena): é populista de esquerda ou de direita?
É banal que intelectuais bem pensantes tentem aplicar à cultura americana categorias interpretativas que fazem sentido na Europa ou na América do Sul, mas que são pouco pertinentes nos EUA. A diferença entre populismo de direita e populismo de esquerda talvez seja uma dessas tentativas, pois, no mínimo, é necessário reconhecer que, nos EUA, esses dois populismos, pretensamente opostos, alegram o mesmo povo.
Há uma maneira simples de conhecer o público de um filme. Em regra, nos EUA, na estréia, os filmes são exibidos num grande número de salas. Quando a receita do dia fica abaixo de um valor determinado, as salas interrompem a programação. Para conhecer aproximadamente a composição do público que gosta de um filme, observa-se quais são (e onde são localizadas) as salas que continuam programando o filme em fim de carreira.
"Um Ato de Coragem", depois do ímpeto inicial, sobreviveu um bom tempo nos bairros periféricos de pequena classe média. Mesma coisa para "Uma Lição de Amor". Ora, as salas desses bairros são aquelas onde também sobrevivem os filmes populistas supostamente de direita. O vigilante "Efeito Colateral" durou pouco nas salas centrais, mas fez sua carreira nas mesmas salas de periferia onde mais viveram "Um Ato de Coragem" e "Uma Lição de Amor", filmes populistas ditos de esquerda.
Em suma, os pretensos dois populismos, de esquerda e de direita, encontram as graças de um público só. Não deve surpreender que os mesmos espectadores se deleitem com Schwarzenegger vigilante ou com John Q. e Erin Brockovich, pois esses filmes têm algo em comum: são epopéias do indivíduo.
À condição de esquecer categorias culturais importadas, é fácil reconhecer que há um denominador comum em todos os sonhos americanos: a luta do homem sozinho, seja ela contra quem for. Lisonjear a ideologia popular, ser populista, nos EUA, significa exaltar a autoconfiança do indivíduo. Em qualquer circunstância.
O filme conta a história de John Q. (Denzel Washington), cujo filho precisa de um transplante de coração. Infelizmente, John situa-se numa zona cinzenta da sociedade americana: ele não é miserável (portanto não tem direito à assistência médica gratuita), mas seu emprego precário garante apenas um seguro de saúde limitado. Conclusão: ninguém quer pagar a operação que salvaria a vida do menino. Quem não recorreria a atos extremos? Garanto que os espectadores torcerão por John.
É difícil que a situação do filme aconteça nos EUA: alguma entidade filantrópica pagaria a conta. Mas isso não impediu o sucesso de "Um Ato de Coragem". Pois, há tempo, sobretudo entre os menos favorecidos, vinga um protesto indignado contra as seguradoras que gerenciam o sistema de saúde, apitando mais do que os próprios médicos.
Ao comentar o sucesso do filme, alguns críticos arrebitaram o nariz e salientaram a importância, no cinema americano, de um filão populista: filmes feitos para confirmar e bajular as idéias e os sentimentos populares estabelecidos. Nessa ocasião, D. Denby, na "New Yorker" (4/3/02), propôs uma distinção entre dois populismos: de esquerda e de direita.
O populismo americano de esquerda exaltaria o pequeno indivíduo contra a prepotência dos grandes complexos administrativos, industriais e políticos. Por exemplo, "Um Ato de Coragem" apresenta a luta do trabalhador americano contra o sistema de saúde. "Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento" (Oscar para Julia Roberts) era o grito de justiça dos humildes envenenados pela indústria química. Mais recentemente, "Uma Lição de Amor" apresentou uma dinâmica parecida: para manter a guarda da filha, um pai com uma deficiência mental média (Sean Penn) enfrenta o poderoso Departamento de Serviços Sociais, que sempre sabe qual é o "melhor interesse" das crianças (sobretudo quando os pais da dita criança são pobres e não são assistidos por um advogado competente).
O populismo de direita seria exemplificado pelas histórias de cidadãos vigilantes, que fazem justiça com suas mãos. O último (e fracassado) filme com Schwarzenegger, "Efeito Colateral", é um exemplo: um bombeiro, sozinho, vinga filho e mulher assassinados num atentado terrorista. O esquema é clássico: pense em todos os filmes em que Charles Bronson sai matando criminosos porque a polícia tem o rabo preso. Ou pense nas aventuras do inspetor Harry Callahan (Clint Eastwood), que se ergue contra a corrupção de seus colegas.
Em suma, o populismo de "Um Ato de Coragem" sonharia com o indivíduo opondo-se aos poderosos (revolta de esquerda). O populismo dos vigilantes sonharia com o indivíduo assumindo as funções do Estado (atitude autoritária e, portanto, de direita).
Mas a fronteira entre as duas categorias é tênue. Abundam os filmes difíceis de situar com clareza. Veja, por exemplo, "Rambo Programado para Matar" (o primeiro da série e o único que vale a pena): é populista de esquerda ou de direita?
É banal que intelectuais bem pensantes tentem aplicar à cultura americana categorias interpretativas que fazem sentido na Europa ou na América do Sul, mas que são pouco pertinentes nos EUA. A diferença entre populismo de direita e populismo de esquerda talvez seja uma dessas tentativas, pois, no mínimo, é necessário reconhecer que, nos EUA, esses dois populismos, pretensamente opostos, alegram o mesmo povo.
Há uma maneira simples de conhecer o público de um filme. Em regra, nos EUA, na estréia, os filmes são exibidos num grande número de salas. Quando a receita do dia fica abaixo de um valor determinado, as salas interrompem a programação. Para conhecer aproximadamente a composição do público que gosta de um filme, observa-se quais são (e onde são localizadas) as salas que continuam programando o filme em fim de carreira.
"Um Ato de Coragem", depois do ímpeto inicial, sobreviveu um bom tempo nos bairros periféricos de pequena classe média. Mesma coisa para "Uma Lição de Amor". Ora, as salas desses bairros são aquelas onde também sobrevivem os filmes populistas supostamente de direita. O vigilante "Efeito Colateral" durou pouco nas salas centrais, mas fez sua carreira nas mesmas salas de periferia onde mais viveram "Um Ato de Coragem" e "Uma Lição de Amor", filmes populistas ditos de esquerda.
Em suma, os pretensos dois populismos, de esquerda e de direita, encontram as graças de um público só. Não deve surpreender que os mesmos espectadores se deleitem com Schwarzenegger vigilante ou com John Q. e Erin Brockovich, pois esses filmes têm algo em comum: são epopéias do indivíduo.
À condição de esquecer categorias culturais importadas, é fácil reconhecer que há um denominador comum em todos os sonhos americanos: a luta do homem sozinho, seja ela contra quem for. Lisonjear a ideologia popular, ser populista, nos EUA, significa exaltar a autoconfiança do indivíduo. Em qualquer circunstância.
quinta-feira, 23 de maio de 2002
Maluf na cabeça
Na quinta-feira passada, a Folha publicou uma pesquisa das intenções de voto para governador de São Paulo. Nas várias simulações, Paulo Maluf, tecnicamente empatado com outro candidato ou não, situava-se em primeiro lugar - entre 33 e 37% das intenções de voto.
Parece um sucesso da legalidade democrática: até que a Justiça chegue a um veredicto, as acusações não devem desqualificar ninguém. Por mais que as suspeitas de enriquecimento indevido sejam fortes, nós não somos nem júri nem juiz.
Mas fico perplexo: em regra, essas precauções são apenas nominais. Quase sempre, antes que o processo comece, a opinião pública condena e lincha. Em caso de absolvição, ela fica desconfiada, repetindo que não há fumaça sem fogo. Como entender, então, que mais de um paulista em cada três planeje votar em Maluf? À primeira vista, só haveria duas explicações.
Primeira explicação. Quem quer votar em Maluf é uma exceção: ele não se deixa influenciar por jornalistas e procuradores da República. Só acreditará em corrupção no dia em que a Justiça confirmar as acusações.
Segunda explicação, mais triste: o dito paulista-em-cada-três seria completamente desinformado. Alérgico ao noticiário, ele não saberia nada das acusações recentes e passadas contra Paulo Maluf.
Ora, nos últimos dias, conversei com vários futuros eleitores de Maluf em restaurantes de comida por quilo, pontos de táxi, botecos, cafés, bancos e no terraço comum do prédio onde moro. As duas explicações mencionadas desmoronaram. Pois todos me pareceram bem informados: conheciam até a geografia dos indícios mais recentes, da Suíça à ilha de Jersey. Será, então, que duvidavam das acusações? Ou, melhor, que conseguiam suspender seu juízo na espera da decisão da Justiça? Nada disso. Todos acreditavam explicitamente que seu candidato preferido fosse culpado das acusações levantadas contra ele. Mais: eles pareciam supor, jocosamente, que as acusações em questão fossem apenas a ponta de um iceberg.
Se essa atitude vale para um terço dos eleitores, estamos em maus lençóis. Mas não porque Paulo Maluf seria culpado ou não, eleito ou não. Isso pouco importa. Que haja políticos corruptos ou não torna-se irrelevante diante da constatação seguinte: há eleitores escolhendo um candidato que, segundo eles mesmos, seria um corrupto de marca maior. Em outras palavras, a eventual corrupção dos políticos é um fato benigno. O verdadeiro escândalo é o possível amor dos eleitores pelos corruptos.
Uma racionalização foi-me oferecida regularmente pelos simpatizantes de Maluf: ele "faz". Para demonstrar essa eficiência, seus eleitores mencionaram algumas obras. E logo declararam que, nessas obras, devia ter havido superfaturamento e roubo. Fiquei sem saber se o candidato conquistava a admiração desses eleitores pelas obras executadas ou pelo saque das finanças públicas que, na própria opinião deles, as ditas obras teriam proporcionado.
Aqui, nenhum paradoxo ou contradição: os eleitores que escolhem um candidato que eles mesmos julgam corrupto não votam apesar das acusações que pesam sobre o candidato, mas por causa delas.
Eis, então, o fato político mais inquietante do que a possível corrupção dos candidatos: há eleitores que parecem reconhecer na corrupção a marca autêntica do poder e que votam em consequência. A corrupção (hipotética ou comprovada, tanto faz) é, para esses eleitores, um traço ideal dos candidatos. Como pode?
Quem escolhe representantes para administrar uma comunidade da qual ele é (e se sente) membro não vota em corrupto. Ele não gosta de deixar a coisa pública em mãos duvidosas, pois protege a coisa pública como um bem que seria de todos - portanto, também dele.
Mas suponha que estejamos juntos neste território como os colonizadores que o desbravaram. Não compartilharíamos comunidade alguma. Cada um de nós alimentaria o sonho de acumular o máximo de riquezas e levá-las para seu barco. Danem-se os outros. Nesse caso, se tivéssemos que eleger um chefe, em quem votaríamos? O mais corrupto e mais desrespeitoso da legalidade seria o melhor para nos conduzir no saque da terra que estamos explorando.
Na escolha eleitoral do candidato corrupto, o cinismo contemporâneo parece coincidir com os piores restos culturais da exploração colonial.
Em suma, a pesquisa de quinta-feira revela que um candidato acusado de corrupção está na cabeça das pesquisas. Nenhum problema: ele é inocente até decisão judicial. Mas é extraordinário que, para alguns de seus eleitores, ele pareça ser preferido justamente por ser (presumivelmente) corrupto. Na cabeça desses cidadãos, não pode estar o sonho de uma comunidade, mas a esperança de encontrar um líder para suas próprias ambições predatórias.
Detalhe engraçado: alguns desses eleitores prometem que seu candidato devolverá a segurança às nossas ruas. Vai ser complicado. Pois a criminalidade é uma versão armada do espírito de saque o mesmo espírito que fomenta a escolha eleitoral de quem deseja ser governado por um corrupto.
Parece um sucesso da legalidade democrática: até que a Justiça chegue a um veredicto, as acusações não devem desqualificar ninguém. Por mais que as suspeitas de enriquecimento indevido sejam fortes, nós não somos nem júri nem juiz.
Mas fico perplexo: em regra, essas precauções são apenas nominais. Quase sempre, antes que o processo comece, a opinião pública condena e lincha. Em caso de absolvição, ela fica desconfiada, repetindo que não há fumaça sem fogo. Como entender, então, que mais de um paulista em cada três planeje votar em Maluf? À primeira vista, só haveria duas explicações.
Primeira explicação. Quem quer votar em Maluf é uma exceção: ele não se deixa influenciar por jornalistas e procuradores da República. Só acreditará em corrupção no dia em que a Justiça confirmar as acusações.
Segunda explicação, mais triste: o dito paulista-em-cada-três seria completamente desinformado. Alérgico ao noticiário, ele não saberia nada das acusações recentes e passadas contra Paulo Maluf.
Ora, nos últimos dias, conversei com vários futuros eleitores de Maluf em restaurantes de comida por quilo, pontos de táxi, botecos, cafés, bancos e no terraço comum do prédio onde moro. As duas explicações mencionadas desmoronaram. Pois todos me pareceram bem informados: conheciam até a geografia dos indícios mais recentes, da Suíça à ilha de Jersey. Será, então, que duvidavam das acusações? Ou, melhor, que conseguiam suspender seu juízo na espera da decisão da Justiça? Nada disso. Todos acreditavam explicitamente que seu candidato preferido fosse culpado das acusações levantadas contra ele. Mais: eles pareciam supor, jocosamente, que as acusações em questão fossem apenas a ponta de um iceberg.
Se essa atitude vale para um terço dos eleitores, estamos em maus lençóis. Mas não porque Paulo Maluf seria culpado ou não, eleito ou não. Isso pouco importa. Que haja políticos corruptos ou não torna-se irrelevante diante da constatação seguinte: há eleitores escolhendo um candidato que, segundo eles mesmos, seria um corrupto de marca maior. Em outras palavras, a eventual corrupção dos políticos é um fato benigno. O verdadeiro escândalo é o possível amor dos eleitores pelos corruptos.
Uma racionalização foi-me oferecida regularmente pelos simpatizantes de Maluf: ele "faz". Para demonstrar essa eficiência, seus eleitores mencionaram algumas obras. E logo declararam que, nessas obras, devia ter havido superfaturamento e roubo. Fiquei sem saber se o candidato conquistava a admiração desses eleitores pelas obras executadas ou pelo saque das finanças públicas que, na própria opinião deles, as ditas obras teriam proporcionado.
Aqui, nenhum paradoxo ou contradição: os eleitores que escolhem um candidato que eles mesmos julgam corrupto não votam apesar das acusações que pesam sobre o candidato, mas por causa delas.
Eis, então, o fato político mais inquietante do que a possível corrupção dos candidatos: há eleitores que parecem reconhecer na corrupção a marca autêntica do poder e que votam em consequência. A corrupção (hipotética ou comprovada, tanto faz) é, para esses eleitores, um traço ideal dos candidatos. Como pode?
Quem escolhe representantes para administrar uma comunidade da qual ele é (e se sente) membro não vota em corrupto. Ele não gosta de deixar a coisa pública em mãos duvidosas, pois protege a coisa pública como um bem que seria de todos - portanto, também dele.
Mas suponha que estejamos juntos neste território como os colonizadores que o desbravaram. Não compartilharíamos comunidade alguma. Cada um de nós alimentaria o sonho de acumular o máximo de riquezas e levá-las para seu barco. Danem-se os outros. Nesse caso, se tivéssemos que eleger um chefe, em quem votaríamos? O mais corrupto e mais desrespeitoso da legalidade seria o melhor para nos conduzir no saque da terra que estamos explorando.
Na escolha eleitoral do candidato corrupto, o cinismo contemporâneo parece coincidir com os piores restos culturais da exploração colonial.
Em suma, a pesquisa de quinta-feira revela que um candidato acusado de corrupção está na cabeça das pesquisas. Nenhum problema: ele é inocente até decisão judicial. Mas é extraordinário que, para alguns de seus eleitores, ele pareça ser preferido justamente por ser (presumivelmente) corrupto. Na cabeça desses cidadãos, não pode estar o sonho de uma comunidade, mas a esperança de encontrar um líder para suas próprias ambições predatórias.
Detalhe engraçado: alguns desses eleitores prometem que seu candidato devolverá a segurança às nossas ruas. Vai ser complicado. Pois a criminalidade é uma versão armada do espírito de saque o mesmo espírito que fomenta a escolha eleitoral de quem deseja ser governado por um corrupto.
quinta-feira, 16 de maio de 2002
O Homem-Aranha e o "american way"
"Homem-Aranha" pré-estréia hoje no Brasil. Nos EUA, o filme estabeleceu dois recordes: arrecadou US$ 114,8 milhões no primeiro fim de semana e mais US$ 72 milhões no segundo.
Muitos comentam que isso era previsível: no 11 de setembro, fez falta um super-herói que parasse os aviões, salvasse os passageiros e desse umas boas chapoletadas nos terroristas. O Homem-Aranha, sendo nova-iorquino, seria perfeito.
É possível que o sucesso do lançamento americano tenha a ver com o ataque do 11 de setembro. Mas o filme não é apenas um sonho infantil, em que aparece o objeto de nossos anseios do tipo: "Quer um super-herói? Lá vai ele".
Certo, é impossível viver nos EUA, hoje, sem levantar os olhos, com apreensão, quando um avião voa baixo. No entanto o desejo de ver super-heróis patrulhando o céu e, quem sabe, participando da guerra é menos importante do que a pergunta aberta pelo novo conflito: "Além da vingança, qual é nossa razão para lutar?". Um ataque e uma guerra só podem criar a necessidade de redefinir o sentido da comunidade nacional.
O Super-Homem dizia que ele lutava pela justiça, pela liberdade e pelo "american way". Mas o que é, hoje, o "american way"? Ironicamente, alguém sugerirá: é a bolha da Bolsa de Valores dos anos 90? É a gestão da Enron? A prudência de Greenspan? O yuppismo dos anos 80? A contracultura dos 60? A raiva de Timothy McVeigh?
Provavelmente, o futuro do dito império americano depende da capacidade de o país descobrir mais uma vez sua razão de ser. É uma missão não para os marines, mas para a cultura popular. "Homem-Aranha", embora tenha sido realizado antes do 11 de setembro, responde a esse chamado.
Como quase todos os super-heróis, Peter Parker, um adolescente da pequena classe média, tímido e estudioso, é órfão. Lembrete: o sujeito americano é aquele que, para fazer a América, sepulta seus antepassados e decide afirmar-se por seus esforços próprios.
Por acidente, Peter é picado por uma aranha geneticamente turbinada e ganha força, resistência, premonição e agilidade sobre-humanas. O que deve fazer com isso?
Ele poderia facilmente conquistar a moça amada e pagar as contas do fim do mês brincando de luta livre. Em contraponto, o caminho do super-herói é austero: para evitar vinganças contra seus próximos, ele deve esconder sua identidade e renunciar a paixões e amores. Por que escolher essa vida solitária?
Uma resposta vem do tio de Peter: com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Há uma idéia crucial no "american way": o dever do "self-fulfillment", erroneamente traduzido, às vezes, como auto-satisfação. Ora, "fulfill" não designa a gratificação, mas o cumprimento, no sentido em que são cumpridas profecias e obrigações. O dever de "self-fulfillment" é a tarefa de auto-realizar-se, a obrigação de fazer o máximo de que somos capazes. O sumo pecado é o desperdício de capacidades.
Cuidado: Peter adquire seus poderes por acaso. Ele tem o dever de ser plenamente o que os acidentes da vida fizeram dele. A regra lembrada pelo filme não é: "Seja você mesmo", em que o "você" seria uma entidade profunda (mote de família ou patrimônio genético) à qual deveríamos fidelidade. A regra diz, ao contrário: "Realize-se segundo os acidentes que definem sua vida".
É possível entender muitos dilemas políticos americanos, à condição de levar em conta a força cultural dessa obrigação. Por exemplo, as hesitações dos programas assistenciais nos EUA provêm não de uma falta de generosidade, mas desta dúvida: será que, ajudando-os, não vamos impedi-los de dar o máximo de si?
Outro exemplo são as hesitações entre intervir e não intervir no mundo (Somália e Bósnia, sim, mas demorou. Ruanda, não, mas a culpa ainda dura. E o Oriente Médio?). A prudência estratégica entra em conflito com a regra da auto-realização. O fato de os EUA serem, hoje, a única superpotência produz a obrigação de intervir, exatamente como os poderes adquiridos obrigam Peter a tornar-se o Homem-Aranha. E, às vezes, esse imperativo moral é mais importante do que os próprios interesses econômicos e políticos.
Há mais. Peter, ao descobrir seus novos poderes, tenta ganhar um dinheiro numa luta. O organizador, que se recusa a pagar-lhe o devido, é vítima de um assalto. Peter deixa o assaltante fugir: por que socorrer um safado? Acontece que o criminoso que ele deixa escapar cometerá um ato que tocará Peter dolorosamente. Ou seja, pegue o criminoso -não porque ele é ruim, mas porque amanhã pode ser sua vez. É a versão ética de Adam Smith: não precisa evocar grandes princípios, basta pensar em si mesmo, pois o bem da comunidade coincide com os interesses de seus membros.
Em suma, os filósofos encontrarão no "Homem-Aranha" um resumo pop de Alan Gewirth ("Self-Fulfillment") e de John Rawls ("Teoria da Justiça").
Para o público dos EUA, o filme lembra e celebra traços do "american way", que, numa hora grave e densa de interrogações, ajudam a redescobrir a vocação nacional americana. Para que mais pode servir a cultura popular?
Muitos comentam que isso era previsível: no 11 de setembro, fez falta um super-herói que parasse os aviões, salvasse os passageiros e desse umas boas chapoletadas nos terroristas. O Homem-Aranha, sendo nova-iorquino, seria perfeito.
É possível que o sucesso do lançamento americano tenha a ver com o ataque do 11 de setembro. Mas o filme não é apenas um sonho infantil, em que aparece o objeto de nossos anseios do tipo: "Quer um super-herói? Lá vai ele".
Certo, é impossível viver nos EUA, hoje, sem levantar os olhos, com apreensão, quando um avião voa baixo. No entanto o desejo de ver super-heróis patrulhando o céu e, quem sabe, participando da guerra é menos importante do que a pergunta aberta pelo novo conflito: "Além da vingança, qual é nossa razão para lutar?". Um ataque e uma guerra só podem criar a necessidade de redefinir o sentido da comunidade nacional.
O Super-Homem dizia que ele lutava pela justiça, pela liberdade e pelo "american way". Mas o que é, hoje, o "american way"? Ironicamente, alguém sugerirá: é a bolha da Bolsa de Valores dos anos 90? É a gestão da Enron? A prudência de Greenspan? O yuppismo dos anos 80? A contracultura dos 60? A raiva de Timothy McVeigh?
Provavelmente, o futuro do dito império americano depende da capacidade de o país descobrir mais uma vez sua razão de ser. É uma missão não para os marines, mas para a cultura popular. "Homem-Aranha", embora tenha sido realizado antes do 11 de setembro, responde a esse chamado.
Como quase todos os super-heróis, Peter Parker, um adolescente da pequena classe média, tímido e estudioso, é órfão. Lembrete: o sujeito americano é aquele que, para fazer a América, sepulta seus antepassados e decide afirmar-se por seus esforços próprios.
Por acidente, Peter é picado por uma aranha geneticamente turbinada e ganha força, resistência, premonição e agilidade sobre-humanas. O que deve fazer com isso?
Ele poderia facilmente conquistar a moça amada e pagar as contas do fim do mês brincando de luta livre. Em contraponto, o caminho do super-herói é austero: para evitar vinganças contra seus próximos, ele deve esconder sua identidade e renunciar a paixões e amores. Por que escolher essa vida solitária?
Uma resposta vem do tio de Peter: com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Há uma idéia crucial no "american way": o dever do "self-fulfillment", erroneamente traduzido, às vezes, como auto-satisfação. Ora, "fulfill" não designa a gratificação, mas o cumprimento, no sentido em que são cumpridas profecias e obrigações. O dever de "self-fulfillment" é a tarefa de auto-realizar-se, a obrigação de fazer o máximo de que somos capazes. O sumo pecado é o desperdício de capacidades.
Cuidado: Peter adquire seus poderes por acaso. Ele tem o dever de ser plenamente o que os acidentes da vida fizeram dele. A regra lembrada pelo filme não é: "Seja você mesmo", em que o "você" seria uma entidade profunda (mote de família ou patrimônio genético) à qual deveríamos fidelidade. A regra diz, ao contrário: "Realize-se segundo os acidentes que definem sua vida".
É possível entender muitos dilemas políticos americanos, à condição de levar em conta a força cultural dessa obrigação. Por exemplo, as hesitações dos programas assistenciais nos EUA provêm não de uma falta de generosidade, mas desta dúvida: será que, ajudando-os, não vamos impedi-los de dar o máximo de si?
Outro exemplo são as hesitações entre intervir e não intervir no mundo (Somália e Bósnia, sim, mas demorou. Ruanda, não, mas a culpa ainda dura. E o Oriente Médio?). A prudência estratégica entra em conflito com a regra da auto-realização. O fato de os EUA serem, hoje, a única superpotência produz a obrigação de intervir, exatamente como os poderes adquiridos obrigam Peter a tornar-se o Homem-Aranha. E, às vezes, esse imperativo moral é mais importante do que os próprios interesses econômicos e políticos.
Há mais. Peter, ao descobrir seus novos poderes, tenta ganhar um dinheiro numa luta. O organizador, que se recusa a pagar-lhe o devido, é vítima de um assalto. Peter deixa o assaltante fugir: por que socorrer um safado? Acontece que o criminoso que ele deixa escapar cometerá um ato que tocará Peter dolorosamente. Ou seja, pegue o criminoso -não porque ele é ruim, mas porque amanhã pode ser sua vez. É a versão ética de Adam Smith: não precisa evocar grandes princípios, basta pensar em si mesmo, pois o bem da comunidade coincide com os interesses de seus membros.
Em suma, os filósofos encontrarão no "Homem-Aranha" um resumo pop de Alan Gewirth ("Self-Fulfillment") e de John Rawls ("Teoria da Justiça").
Para o público dos EUA, o filme lembra e celebra traços do "american way", que, numa hora grave e densa de interrogações, ajudam a redescobrir a vocação nacional americana. Para que mais pode servir a cultura popular?
quinta-feira, 9 de maio de 2002
Quem vota em Jean-Marie le Pen?
Alguns meses atrás, num apartamento de Nova York, esbarrei numa coleção de suvenires. Entre a ponta de uma lança dos massais do Quênia e uma marionete tailandesa, havia uma estatueta de cerâmica representando "o" francês. Era um homem de boina azul, bigode, macacão e baguete em baixo do braço. O homenzinho de cerâmica reapareceu na semana passada. Eis como.
Quase um francês em cada cinco votou em Jean-Marie le Pen para presidente: um candidato declaradamente xenófobo, racista e neofascista. Nenhuma novidade: a força de seu eleitorado já era 15% há anos. Desta vez, pela dispersão das esquerdas e pela mediocridade das escolhas possíveis, Le Pen cresceu um pouco e chegou ao segundo turno.
De repente, a imprensa mundial perguntou: quem vota nessa figura? Os repórteres saíram à caça de bruxas e voltaram perplexos. Certo, existem, no eleitorado de Le Pen, neonazistas extravagantes, mas a grande maioria dos que votaram nele têm um rosto banal como o nosso. (A conclusão foi igual para os eleitores de candidatos neofascistas em outros países europeus: Áustria, Bélgica, Dinamarca etc.).
Numa manifestação, em Paris, a repórter da CNN procurava descobrir a cara do racismo, da vontade de sair da Europa unida, de "limpar" etnicamente o país, de deportar os estrangeiros.
Perguntava: "Por que você sustenta Le Pen?". Resposta: "Porque sou francês". No meio duma dessas entrevistas, na tela da TV, apareceram várias cópias do homenzinho de cerâmica: um grupo de manifestantes desfilava de macacão, boina e baguete para declarar sua "francesice". Afinal, disfarçar-se de si mesmo é um bom jeito de defender uma identidade ameaçada. E uma das razões do voto de quem desfilou para Le Pen é o medo de perder-se, de não ser mais si mesmo, o risco de não ser mais nada.
Não é um medo incomum. Há um sentimento tipicamente moderno que ultrapassa em muito os limites do eleitorado dos vários Le Pen do mundo. Ele joga pontes insuspeitadas entre sujeitos que parecem distantes, política e socialmente, reunindo:
1) os racistas e os patriotas,
2) os insatisfeitos com a algaravia nas ruas de seus bairros, com os odores de estranhos cozidos nas escadas do prédio ou com a música alta no andar de cima,
3) os trabalhadores cujos empregos são ameaçados por imigrantes ou pela fuga das empresas em busca de mão-de-obra barata,
4) os pequenos comerciantes arruinados pelos shoppings onde triunfam as franquias internacionais,
5) os que entregam suas casas às instituições financeiras que lhes emprestaram dinheiro,
6) os pequenos agricultores esmagados pelo latifúndio da indústria alimentar internacional,
7) os excluídos da tecnologia eletrônica e digital,
8) em geral, todas as vítimas e os inimigos de um mundo em que as comunicações são imediatas, as viagens são rápidas e as migrações (assim como as misturas), frequentes e, aparentemente, fáceis.
Quem vota em Le Pen não é propriamente de direita, pois abomina o capital internacional e financeiro. E muitos dos que militam na esquerda vivem, de fato, as mesmas indignações que o lepenistas.
O denominador comum é uma espécie de nostalgia de casa à qual todos somos sensíveis: a nostalgia de um tempo em que o mundo talvez fosse menor, mais estável, mais seguro, mais igual a si mesmo.
Vivo entre dois países, se não três: quem me lê, mesmo que não se desloque, participa das viagens. A presença dessa diversidade nas nossas vidas é um traço banal da modernidade. É graças a ela que nos reconhecemos cada vez mais como membros da espécie humana, e não só de uma tribo. Mas há um custo: numa tribo, seria muito mais fácil saber quem somos e para que viemos ao mundo.
Como os homenzinhos de cerâmica que desfilaram com Le Pen, eu também sinto falta dum vilarejo onde todos falem a mesma língua e todos saibam a função de cada um na comunidade, mesmo que seja a do louco ou a do vadio. Se todos soubessem para que sirvo, eu mesmo saberia-o com certeza. Seria um grande alívio.
A globalização expande nossa tribo até incluir a humanidade inteira (o que nos parece simpático e desejável), mas, ao mesmo tempo, ela permite a livre circulação pelo mundo de interesses descomprometidos com o destino concreto das comunidades e das pessoas (o que é devastador).
De forma análoga, a resistência à globalização expressa a vontade de não abdicar a direção de nossas vidas concretas (o que é desejável), mas expressa também a nostalgia de uma casa tranquila e perdida (o que é inevitável) e, nessa nostalgia, o ódio do estrangeiro que atrapalhou a paz do vilarejo (o que é assustador e compromete o que há de melhor na globalização).
Os homens de cerâmica que votam em Le Pen lembram que, no coração de nossa nostalgia, está o risco de um tribalismo alimentado por caricaturas de nós mesmos.
Resta falar da estatueta de cerâmica no apartamento de Nova York. Pois a tal nostalgia de casa é também a força atrás da estética kitsch que nos é proposta, hoje, como imagem do conforto no qual seria bom viver. Mas isso fica para outra vez.
Quase um francês em cada cinco votou em Jean-Marie le Pen para presidente: um candidato declaradamente xenófobo, racista e neofascista. Nenhuma novidade: a força de seu eleitorado já era 15% há anos. Desta vez, pela dispersão das esquerdas e pela mediocridade das escolhas possíveis, Le Pen cresceu um pouco e chegou ao segundo turno.
De repente, a imprensa mundial perguntou: quem vota nessa figura? Os repórteres saíram à caça de bruxas e voltaram perplexos. Certo, existem, no eleitorado de Le Pen, neonazistas extravagantes, mas a grande maioria dos que votaram nele têm um rosto banal como o nosso. (A conclusão foi igual para os eleitores de candidatos neofascistas em outros países europeus: Áustria, Bélgica, Dinamarca etc.).
Numa manifestação, em Paris, a repórter da CNN procurava descobrir a cara do racismo, da vontade de sair da Europa unida, de "limpar" etnicamente o país, de deportar os estrangeiros.
Perguntava: "Por que você sustenta Le Pen?". Resposta: "Porque sou francês". No meio duma dessas entrevistas, na tela da TV, apareceram várias cópias do homenzinho de cerâmica: um grupo de manifestantes desfilava de macacão, boina e baguete para declarar sua "francesice". Afinal, disfarçar-se de si mesmo é um bom jeito de defender uma identidade ameaçada. E uma das razões do voto de quem desfilou para Le Pen é o medo de perder-se, de não ser mais si mesmo, o risco de não ser mais nada.
Não é um medo incomum. Há um sentimento tipicamente moderno que ultrapassa em muito os limites do eleitorado dos vários Le Pen do mundo. Ele joga pontes insuspeitadas entre sujeitos que parecem distantes, política e socialmente, reunindo:
1) os racistas e os patriotas,
2) os insatisfeitos com a algaravia nas ruas de seus bairros, com os odores de estranhos cozidos nas escadas do prédio ou com a música alta no andar de cima,
3) os trabalhadores cujos empregos são ameaçados por imigrantes ou pela fuga das empresas em busca de mão-de-obra barata,
4) os pequenos comerciantes arruinados pelos shoppings onde triunfam as franquias internacionais,
5) os que entregam suas casas às instituições financeiras que lhes emprestaram dinheiro,
6) os pequenos agricultores esmagados pelo latifúndio da indústria alimentar internacional,
7) os excluídos da tecnologia eletrônica e digital,
8) em geral, todas as vítimas e os inimigos de um mundo em que as comunicações são imediatas, as viagens são rápidas e as migrações (assim como as misturas), frequentes e, aparentemente, fáceis.
Quem vota em Le Pen não é propriamente de direita, pois abomina o capital internacional e financeiro. E muitos dos que militam na esquerda vivem, de fato, as mesmas indignações que o lepenistas.
O denominador comum é uma espécie de nostalgia de casa à qual todos somos sensíveis: a nostalgia de um tempo em que o mundo talvez fosse menor, mais estável, mais seguro, mais igual a si mesmo.
Vivo entre dois países, se não três: quem me lê, mesmo que não se desloque, participa das viagens. A presença dessa diversidade nas nossas vidas é um traço banal da modernidade. É graças a ela que nos reconhecemos cada vez mais como membros da espécie humana, e não só de uma tribo. Mas há um custo: numa tribo, seria muito mais fácil saber quem somos e para que viemos ao mundo.
Como os homenzinhos de cerâmica que desfilaram com Le Pen, eu também sinto falta dum vilarejo onde todos falem a mesma língua e todos saibam a função de cada um na comunidade, mesmo que seja a do louco ou a do vadio. Se todos soubessem para que sirvo, eu mesmo saberia-o com certeza. Seria um grande alívio.
A globalização expande nossa tribo até incluir a humanidade inteira (o que nos parece simpático e desejável), mas, ao mesmo tempo, ela permite a livre circulação pelo mundo de interesses descomprometidos com o destino concreto das comunidades e das pessoas (o que é devastador).
De forma análoga, a resistência à globalização expressa a vontade de não abdicar a direção de nossas vidas concretas (o que é desejável), mas expressa também a nostalgia de uma casa tranquila e perdida (o que é inevitável) e, nessa nostalgia, o ódio do estrangeiro que atrapalhou a paz do vilarejo (o que é assustador e compromete o que há de melhor na globalização).
Os homens de cerâmica que votam em Le Pen lembram que, no coração de nossa nostalgia, está o risco de um tribalismo alimentado por caricaturas de nós mesmos.
Resta falar da estatueta de cerâmica no apartamento de Nova York. Pois a tal nostalgia de casa é também a força atrás da estética kitsch que nos é proposta, hoje, como imagem do conforto no qual seria bom viver. Mas isso fica para outra vez.
quinta-feira, 2 de maio de 2002
Pornografia virtual e moralismos perigosos
Nestas semanas, em que se fala tanto em pedofilia, a Suprema Corte dos Estados Unidos pronunciou-se em matéria de pornografia infantil.
Eis um resumo do caso. Há décadas, a lei federal americana proíbe a produção, a distribuição e a posse de pornografia infantil, definida como "a apresentação visual de menores engajados em atos sexuais". A existência dessas imagens comprova que houve abuso sexual dos jovens atores: proibi-las é uma maneira de proteger os menores.
Em 1996, uma nova lei estendeu a definição de pornografia infantil para incluir qualquer imagem "criada, adaptada ou modificada de tal forma que alguém, identificado como menor, pareça ser engajado num ato sexual". Desde então, os atores de um filme pornô podem ser maiores de idade, mas, se um comentário durante o filme sugere que eles têm 15 anos, eles são "identificados como menores" e a obra torna-se pornografia infantil.
Imagine que um sujeito receba por e-mail um convite para acessar um site de "adolescentes lascivas". Ele clica e transfere uma imagem para seu disco rígido. Seja qual for a idade efetiva dos atores, segundo a lei de 1996, o sujeito poderá ser preso por uso de pornografia infantil, pois a propaganda inicial identificava as atrizes como "adolescentes".
Além disso, o texto de 1996, colocando o acento sobre "parecer" (e não "ser") menor, decretava a equivalência perante a lei de obras filmadas com atores reais e obras produzidas por tecnologia digital, sem ator nenhum. Quem viu o filme "Final Fantasy" sabe que, logo, será possível gerar imagens digitais de qualidade igual à das imagens filmadas. Num dia próximo, serão produzidos filmes pornográficos sem atores -espécie de desenhos animados imitando perfeitamente a realidade. Não haverá como saber se um DVD de pornografia infantil é a reprodução de uma cena real ou é fruto de escrituras eletrônicas. Para a lei de 1996, a pornografia infantil digital (portanto sem atores) é tão culpada quanto a antiga. À primeira vista, por que não? Qual a relevância, uma vez que reprovamos ambas?
Ora, a Free Speech Coalition (coalizão para a liberdade de expressão, uma associação de produtores de material erótico) recorreu à Justiça contra a lei de 1996, alegando que essa nova definição da pornografia infantil impunha uma restrição à liberdade de expressão, garantida pela Constituição americana. Incriminando representações visuais cuja produção não envolve (e, portanto, não corrompe) crianças reais, a lei não estaria reprimindo crimes efetivos contra os menores, mas perseguindo gostos ou desejos.
No dia 16 último, a Suprema Corte decidiu a favor da Free Speech Coalition, por seis votos contra três. No relatório da decisão, o juiz Anthony Kennedy chegou a notar que a lei de 1996 era suficientemente vaga para justificar que alguém quisesse proibir "Romeu e Julieta" (que eram dois adolescentes). Sem medo de tomar uma atitude que hoje é pouco popular, a Suprema Corte lembrou que a pornografia infantil é proibida com o propósito de proteger o menor contra abusos efetivos. Mas a lei não se propõe a controlar e perseguir sujeitos que teriam fantasias pedofílicas. A lei pode reprimir atos, não idéias ou imagens.
A leitura das petições e da decisão da Suprema Corte me surpreendeu. Revelou-me a facilidade com a qual podemos aceitar a perda de distinções que são cruciais para nossas liberdades -como a distinção entre a (legítima, necessária) repressão dos atos e a (problemática) perseguição de fantasias e imagens.
Sofremos de um perigoso moralismo reativo: quando uma série de fatos de crônica nos indignam, logo sonhamos com leis que regrem não só os atos, mas também os desejos e as intenções. E com uma Justiça que se encarregue de punir, com o mesmo zelo, tanto os crimes de fato quanto os pecados da alma.
Os pornógrafos estão entre as vítimas ideais desses sobressaltos morais. A censura ataca aqueles que todos gostaríamos de silenciar. No caso, quem estará a fim de defender a imagem um pouco sinistra do pedófilo que produz, distribui ou procura pornografia infantil na internet? E é fácil condescender à idéia de que essa procura pode alimentar, mais cedo, mais tarde, uma atividade predatória. Então por que não prevenir o crime policiando as fantasias e os desejos malsãos?
Pois é. Está anunciada para agosto (junho nos EUA) a estréia brasileira do novo filme de Steven Spielberg, "Minority Report - A Nova Lei", com Tom Cruise. É a adaptação de um conto de Phillip K. Dick, que nos leva para um mundo em que a biotecnologia permite antever os atos. Portanto é possível acusar e prender as pessoas por crimes que cometeriam amanhã. De uma certa forma, é o que aconteceria se a lei policiasse as intenções e os desejos, sob o pretexto de que eles podem levar aos atos.
O mundo que Spielberg trará para a tela -assim como o mundo que fosse regido pela lei de 1996- não precisa, para existir, ser a obra de nenhum censor maluco. Bastamos nós.
Eis um resumo do caso. Há décadas, a lei federal americana proíbe a produção, a distribuição e a posse de pornografia infantil, definida como "a apresentação visual de menores engajados em atos sexuais". A existência dessas imagens comprova que houve abuso sexual dos jovens atores: proibi-las é uma maneira de proteger os menores.
Em 1996, uma nova lei estendeu a definição de pornografia infantil para incluir qualquer imagem "criada, adaptada ou modificada de tal forma que alguém, identificado como menor, pareça ser engajado num ato sexual". Desde então, os atores de um filme pornô podem ser maiores de idade, mas, se um comentário durante o filme sugere que eles têm 15 anos, eles são "identificados como menores" e a obra torna-se pornografia infantil.
Imagine que um sujeito receba por e-mail um convite para acessar um site de "adolescentes lascivas". Ele clica e transfere uma imagem para seu disco rígido. Seja qual for a idade efetiva dos atores, segundo a lei de 1996, o sujeito poderá ser preso por uso de pornografia infantil, pois a propaganda inicial identificava as atrizes como "adolescentes".
Além disso, o texto de 1996, colocando o acento sobre "parecer" (e não "ser") menor, decretava a equivalência perante a lei de obras filmadas com atores reais e obras produzidas por tecnologia digital, sem ator nenhum. Quem viu o filme "Final Fantasy" sabe que, logo, será possível gerar imagens digitais de qualidade igual à das imagens filmadas. Num dia próximo, serão produzidos filmes pornográficos sem atores -espécie de desenhos animados imitando perfeitamente a realidade. Não haverá como saber se um DVD de pornografia infantil é a reprodução de uma cena real ou é fruto de escrituras eletrônicas. Para a lei de 1996, a pornografia infantil digital (portanto sem atores) é tão culpada quanto a antiga. À primeira vista, por que não? Qual a relevância, uma vez que reprovamos ambas?
Ora, a Free Speech Coalition (coalizão para a liberdade de expressão, uma associação de produtores de material erótico) recorreu à Justiça contra a lei de 1996, alegando que essa nova definição da pornografia infantil impunha uma restrição à liberdade de expressão, garantida pela Constituição americana. Incriminando representações visuais cuja produção não envolve (e, portanto, não corrompe) crianças reais, a lei não estaria reprimindo crimes efetivos contra os menores, mas perseguindo gostos ou desejos.
No dia 16 último, a Suprema Corte decidiu a favor da Free Speech Coalition, por seis votos contra três. No relatório da decisão, o juiz Anthony Kennedy chegou a notar que a lei de 1996 era suficientemente vaga para justificar que alguém quisesse proibir "Romeu e Julieta" (que eram dois adolescentes). Sem medo de tomar uma atitude que hoje é pouco popular, a Suprema Corte lembrou que a pornografia infantil é proibida com o propósito de proteger o menor contra abusos efetivos. Mas a lei não se propõe a controlar e perseguir sujeitos que teriam fantasias pedofílicas. A lei pode reprimir atos, não idéias ou imagens.
A leitura das petições e da decisão da Suprema Corte me surpreendeu. Revelou-me a facilidade com a qual podemos aceitar a perda de distinções que são cruciais para nossas liberdades -como a distinção entre a (legítima, necessária) repressão dos atos e a (problemática) perseguição de fantasias e imagens.
Sofremos de um perigoso moralismo reativo: quando uma série de fatos de crônica nos indignam, logo sonhamos com leis que regrem não só os atos, mas também os desejos e as intenções. E com uma Justiça que se encarregue de punir, com o mesmo zelo, tanto os crimes de fato quanto os pecados da alma.
Os pornógrafos estão entre as vítimas ideais desses sobressaltos morais. A censura ataca aqueles que todos gostaríamos de silenciar. No caso, quem estará a fim de defender a imagem um pouco sinistra do pedófilo que produz, distribui ou procura pornografia infantil na internet? E é fácil condescender à idéia de que essa procura pode alimentar, mais cedo, mais tarde, uma atividade predatória. Então por que não prevenir o crime policiando as fantasias e os desejos malsãos?
Pois é. Está anunciada para agosto (junho nos EUA) a estréia brasileira do novo filme de Steven Spielberg, "Minority Report - A Nova Lei", com Tom Cruise. É a adaptação de um conto de Phillip K. Dick, que nos leva para um mundo em que a biotecnologia permite antever os atos. Portanto é possível acusar e prender as pessoas por crimes que cometeriam amanhã. De uma certa forma, é o que aconteceria se a lei policiasse as intenções e os desejos, sob o pretexto de que eles podem levar aos atos.
O mundo que Spielberg trará para a tela -assim como o mundo que fosse regido pela lei de 1996- não precisa, para existir, ser a obra de nenhum censor maluco. Bastamos nós.
quinta-feira, 25 de abril de 2002
A fantasia do pedófilo
Em São Paulo, o pediatra Eugênio Chipkevitch é acusado de sedar dezenas de jovens pacientes para abusar sexualmente de seus corpos e gravar esses atos em vídeo. Nos EUA, descobre-se que, nos últimos anos, centenas de jovens sofreram abusos de padres católicos. E já aparecem outras denúncias no mundo inteiro.
1) A idéia de um padre ou de um pediatra pedófilos nos indigna. Ao abuso sexual soma-se a traição da confiança que os pais e os próprios jovens depositam nessas figuras. A indignação é justificada, mas a surpresa não. Os pedófilos preferem profissões que os coloquem em contato com crianças e numa posição de autoridade sobre elas: padres, pediatras, professores etc. Cuidado: a posição de autoridade não é apenas um jeito de facilitar a sedução, ela é uma parte integrante da fantasia pedofílica. Explico.
2) Uma psicologia clínica (que não seja grosseira) constata que a pedofilia não consiste apenas em gostar de crianças e adolescentes. O traço decisivo da fantasia pedofílica é a vontade de aproveitar-se da inocência ou da ignorância da vítima. O homem maduro que escolhe uma prostituta de 13 anos ou o jovem apaixonado que foge com uma menina de 14 (também apaixonada) talvez sejam pedófilos no sentido corriqueiro, mas não do ponto de vista clínico.
Quem é pedófilo clinicamente? A "Time", na semana de Páscoa, expunha o caso seguinte: anos atrás, padre Brett, de Stamford, Connecticut, convenceu o jovem Frank Martinelli a satisfazê-lo oralmente, explicando ao menino que era assim cumprida uma forma da santa comunhão. Essa é uma fantasia pedofílica: o gozo sexual confunde-se com o prazer de dominar o outro graças à sua ignara inocência. Do mesmo jeito, para o pediatra paulista, adormecer as vítimas não devia ser apenas uma facilitação ou uma maneira de garantir a impunidade. O fato de os jovens não saberem o que estava sendo feito com eles devia ser uma parte da fantasia. Aposto que o pediatra acharia pouca graça numa situação em que os jovens aceitassem transar com ele conscientes e de olhos abertos.
A idéia que excita o pedófilo é desta ordem: "Ele ou ela não sabem, não entendem o que lhes estou fazendo". A fantasia pedofílica não é tanto uma vontade de carne firme quanto o devaneio de um poder que conta com a infância ou a infantilidade de suas vítimas.
3) As reações da Igreja Católica são patéticas. Há a decisão de que não haja mais padres homossexuais. Ora, a escolha do sexo de nossos parceiros (que seja o mesmo que o nosso ou não) é independente das fantasias sexuais que nos excitam. É possível ser pedófilo, exibicionista, voyeur, coprófilo etc. sendo heterossexual ou homossexual.
Imaginemos que queiramos evitar empregar sadomasoquistas como, sei lá, enfermeiros. Sabemos que muitos heterossexuais se excitam com fantasias sadomasoquistas. Então, proibiremos a dita profissão aos heterossexuais?
4) Levanta-se, nesta ocasião, a questão do celibato: parece que, se os padres pudessem casar-se, não haveria pedófilos entre eles. Para defender o celibato facultativo, há ótimas razões, mas não essa. Mesmo uma mulher dedicada a produzir duas ou três ejaculações por dia em seu marido pedófilo, no melhor dos casos, conseguiria distraí-lo, eventualmente cansá-lo, mas não transformá-lo.
5) Calcula-se que, nas duas últimas décadas, a igreja americana tenha pago US$ 1 bilhão (sic) para silenciar as vítimas e evitar a propaganda negativa. Confrontada com os crimes de seus ministros, ela colocou sistematicamente seus interesses institucionais na frente do bem de seus fiéis. Não suspendeu os padres culpados, apenas os mudou de paróquia para evitar o escândalo. Preservou-se, em vez de preservar as crianças.
Com isso, a igreja perdeu sua autoridade moral. Será que o papa, quando se opõe ao uso da camisinha, quer minha salvação ou se lixa para a possibilidade de eu pegar Aids, com a condição de afirmar assim sua autoridade? Quando ele manda acreditar em sua infalibilidade, quer meu bem ou protege seu trono?
6) Mais uma observação destinada à hierarquia católica que resiste ao espírito do Concílio Vaticano 2º.
Talvez o tipo de relação infantilizante que a igreja ainda mantém com os católicos encoraje e autorize as fantasias pedofílicas de alguns de seus ministros. Afinal, o núcleo da fantasia do pedófilo se enquadra na tutela que a igreja se obstina a impor aos fiéis. A própria idéia de ela ser a depositária infalível de mistérios que só ela entende e administra evoca aquele "eles não sabem o que lhes estou fazendo" que está no centro da fantasia pedofílica.
Para lutar contra a pedofilia em suas fileiras, a igreja poderia começar por questionar-se. Por exemplo, ao abafar durante décadas a questão dos padres pedófilos, a hierarquia realizou ela mesma uma fantasia pedofílica com seus fiéis, pois, repito, a pedofilia não é só uma preferência por carne fresca. Ela é uma fantasia de poder sobre a inocência e a ingenuidade, um prazer de aproveitar-se de outros que se entregam e confiam, como crianças ignaras. Ou como fiéis.
1) A idéia de um padre ou de um pediatra pedófilos nos indigna. Ao abuso sexual soma-se a traição da confiança que os pais e os próprios jovens depositam nessas figuras. A indignação é justificada, mas a surpresa não. Os pedófilos preferem profissões que os coloquem em contato com crianças e numa posição de autoridade sobre elas: padres, pediatras, professores etc. Cuidado: a posição de autoridade não é apenas um jeito de facilitar a sedução, ela é uma parte integrante da fantasia pedofílica. Explico.
2) Uma psicologia clínica (que não seja grosseira) constata que a pedofilia não consiste apenas em gostar de crianças e adolescentes. O traço decisivo da fantasia pedofílica é a vontade de aproveitar-se da inocência ou da ignorância da vítima. O homem maduro que escolhe uma prostituta de 13 anos ou o jovem apaixonado que foge com uma menina de 14 (também apaixonada) talvez sejam pedófilos no sentido corriqueiro, mas não do ponto de vista clínico.
Quem é pedófilo clinicamente? A "Time", na semana de Páscoa, expunha o caso seguinte: anos atrás, padre Brett, de Stamford, Connecticut, convenceu o jovem Frank Martinelli a satisfazê-lo oralmente, explicando ao menino que era assim cumprida uma forma da santa comunhão. Essa é uma fantasia pedofílica: o gozo sexual confunde-se com o prazer de dominar o outro graças à sua ignara inocência. Do mesmo jeito, para o pediatra paulista, adormecer as vítimas não devia ser apenas uma facilitação ou uma maneira de garantir a impunidade. O fato de os jovens não saberem o que estava sendo feito com eles devia ser uma parte da fantasia. Aposto que o pediatra acharia pouca graça numa situação em que os jovens aceitassem transar com ele conscientes e de olhos abertos.
A idéia que excita o pedófilo é desta ordem: "Ele ou ela não sabem, não entendem o que lhes estou fazendo". A fantasia pedofílica não é tanto uma vontade de carne firme quanto o devaneio de um poder que conta com a infância ou a infantilidade de suas vítimas.
3) As reações da Igreja Católica são patéticas. Há a decisão de que não haja mais padres homossexuais. Ora, a escolha do sexo de nossos parceiros (que seja o mesmo que o nosso ou não) é independente das fantasias sexuais que nos excitam. É possível ser pedófilo, exibicionista, voyeur, coprófilo etc. sendo heterossexual ou homossexual.
Imaginemos que queiramos evitar empregar sadomasoquistas como, sei lá, enfermeiros. Sabemos que muitos heterossexuais se excitam com fantasias sadomasoquistas. Então, proibiremos a dita profissão aos heterossexuais?
4) Levanta-se, nesta ocasião, a questão do celibato: parece que, se os padres pudessem casar-se, não haveria pedófilos entre eles. Para defender o celibato facultativo, há ótimas razões, mas não essa. Mesmo uma mulher dedicada a produzir duas ou três ejaculações por dia em seu marido pedófilo, no melhor dos casos, conseguiria distraí-lo, eventualmente cansá-lo, mas não transformá-lo.
5) Calcula-se que, nas duas últimas décadas, a igreja americana tenha pago US$ 1 bilhão (sic) para silenciar as vítimas e evitar a propaganda negativa. Confrontada com os crimes de seus ministros, ela colocou sistematicamente seus interesses institucionais na frente do bem de seus fiéis. Não suspendeu os padres culpados, apenas os mudou de paróquia para evitar o escândalo. Preservou-se, em vez de preservar as crianças.
Com isso, a igreja perdeu sua autoridade moral. Será que o papa, quando se opõe ao uso da camisinha, quer minha salvação ou se lixa para a possibilidade de eu pegar Aids, com a condição de afirmar assim sua autoridade? Quando ele manda acreditar em sua infalibilidade, quer meu bem ou protege seu trono?
6) Mais uma observação destinada à hierarquia católica que resiste ao espírito do Concílio Vaticano 2º.
Talvez o tipo de relação infantilizante que a igreja ainda mantém com os católicos encoraje e autorize as fantasias pedofílicas de alguns de seus ministros. Afinal, o núcleo da fantasia do pedófilo se enquadra na tutela que a igreja se obstina a impor aos fiéis. A própria idéia de ela ser a depositária infalível de mistérios que só ela entende e administra evoca aquele "eles não sabem o que lhes estou fazendo" que está no centro da fantasia pedofílica.
Para lutar contra a pedofilia em suas fileiras, a igreja poderia começar por questionar-se. Por exemplo, ao abafar durante décadas a questão dos padres pedófilos, a hierarquia realizou ela mesma uma fantasia pedofílica com seus fiéis, pois, repito, a pedofilia não é só uma preferência por carne fresca. Ela é uma fantasia de poder sobre a inocência e a ingenuidade, um prazer de aproveitar-se de outros que se entregam e confiam, como crianças ignaras. Ou como fiéis.
quinta-feira, 18 de abril de 2002
Cuidado: o uso desse aparelho pode produzir violência
Na semana retrasada, a revista "Science" (n. 5.564, de 29/3) publicou o relatório de uma pesquisa coordenada por Jeffrey Johnson, da Universidade Columbia, em Nova York. O estudo mostra uma relação significativa entre o comportamento violento e o número de horas que um sujeito (adolescente ou jovem adulto) passa assistindo à TV. A pesquisa foi muito bem apresentada por Reinaldo José Lopes na Folha do dia 29/3, mas ela é suficientemente surpreendente para justificar mais uma reflexão.
No mesmo número de "Science", C. Anderson e B. Bushman, da Universidade de Iowa, assinam um artigo sobre os efeitos sociais da violência na mídia, constatando que todas as pesquisas consagradas ao tema confirmam a existência de uma relação entre violência real e violência midiática. Eles sublinham a relevância da nova pesquisa de Johnson, que demonstra os efeitos da televisão nos adolescentes e nos jovens adultos enquanto, em geral, as consequências da violência televisual são investigadas apenas nas crianças.
Também a pesquisa de Johnson, graças a sua duração, pôde contabilizar violências efetivas, e não só vagas agressividades. O tempo que os sujeitos passavam diante da TV aos 14 anos foi anotado e relacionado com violências físicas e criminosas cometidas aos 16 e aos 22. E o tempo que outros sujeitos passavam diante da TV aos 22 anos foi comparado com o número de atos violentos cometidos aos 30. Em ambos os casos, os resultados foram significativos. Tomemos o caso dos sujeitos que, aos 14 anos, não chegavam a assistir a uma hora por dia de televisão: poucos (menos de 6%) cometeram um ato violento contra outra pessoa aos 16 ou aos 22 anos. Mas esse percentual sobe para 22,5% entre os sujeitos que, aos 14 anos, ficavam na frente do televisor entre uma e três horas por dia.
Além disso, o relatório de Johnson afirma que variáveis como abuso infantil, renda familiar, nível de educação e patologia mental dos pais, violência no bairro etc. foram levadas em conta, mas não alteraram os resultados. Ou seja, a pesquisa estabelece uma causalidade própria da imagem televisual.
Anderson e Bushman, como disse, festejam a nova pesquisa. Mas há uma dificuldade: Johnson não leva em conta os diferentes programas aos quais assistiam os sujeitos investigados. Para quase todas as pesquisas da área, não é a televisão em si, mas a violência na televisão que produz violência na vida. Ora, a nova pesquisa afirma que o tempo passado assistindo à TV -SEJA QUAL FOR O PROGRAMA- aumenta as chances de ocorrerem comportamentos violentos. Como pode ser?
O próprio Johnson, entrevistado pela Folha, foi conciliatório e comentou que 60% dos programas da televisão contêm violência. Portanto as horas passadas na frente da TV seriam horas passadas assistindo à violência televisual. É uma extrapolação. De fato, os resultados da pesquisa dizem só que, até na adolescência e na idade adulta, assistir à TV é um indicador de violência futura, independentemente do programa. Um espectador pode curtir só a Xuxa, a Eliana e a "Casa dos Artistas", outro será fiel a Boris Casoy, Marília Gabriela e CNN, outro ainda escolherá os seriados mais violentos e qualquer coisa no estilo de "Aqui Agora". É intuitivo que essa última escolha possa tornar o espectador mais violento. Mas a pesquisa afirma que, além dessas diferenças, a simples quantidade de tempo passado diante da TV produz violência.
Do mesmo jeito, posso assistir à televisão porque não tenho amigos com quem sair ou então ver TV deitado entre irmãos e irmãs, enquanto toda a família brinca e comenta. No segundo caso, eu estarei mais sorridente, mas a pesquisa de Johnson sugere que, além dessa diferença, se mantém uma relação entre o comportamento violento e a quantidade de tempo passado na frente da televisão.
Pela pesquisa de Johnson, os televisores deveriam ser comercializados com um aviso, como os maços de cigarros: cuidado, a exposição prolongada à tela desse aparelho pode produzir violência.
Estranho? Nem tanto. É bem provável que a fonte de muita violência moderna seja nossa insubordinação básica: ninguém quer ser ou continuar sendo quem é. Podemos proclamar nossa nostalgia de tempos mais resignados, mas duvido que queiramos ou possamos renunciar à divisão constante entre o que somos e o que gostaríamos de ser.
Para alimentar nossa insatisfação, inventamos a literatura e, mais tarde, o cinema. Mas a invenção mais astuciosa talvez tenha sido a televisão. Graças a ela, instalamos em nossas salas uma janela sobre o devaneio, que pode ser aberta a qualquer instante e sem esforço.
Pouco importa que fiquemos no zapping ou que paremos para sonhar em ser policiais,
gângsteres ou apenas nós mesmos (um pouco piores) no "Big Brother". A TV confirma uma idéia que está conosco sempre: existe uma outra dimensão, e nossas quatro paredes são uma jaula. A pesquisa de Johnson constata que, à força de olhar, podemos ficar a fim de sacudir as barras além do permitido. Faz sentido.
No mesmo número de "Science", C. Anderson e B. Bushman, da Universidade de Iowa, assinam um artigo sobre os efeitos sociais da violência na mídia, constatando que todas as pesquisas consagradas ao tema confirmam a existência de uma relação entre violência real e violência midiática. Eles sublinham a relevância da nova pesquisa de Johnson, que demonstra os efeitos da televisão nos adolescentes e nos jovens adultos enquanto, em geral, as consequências da violência televisual são investigadas apenas nas crianças.
Também a pesquisa de Johnson, graças a sua duração, pôde contabilizar violências efetivas, e não só vagas agressividades. O tempo que os sujeitos passavam diante da TV aos 14 anos foi anotado e relacionado com violências físicas e criminosas cometidas aos 16 e aos 22. E o tempo que outros sujeitos passavam diante da TV aos 22 anos foi comparado com o número de atos violentos cometidos aos 30. Em ambos os casos, os resultados foram significativos. Tomemos o caso dos sujeitos que, aos 14 anos, não chegavam a assistir a uma hora por dia de televisão: poucos (menos de 6%) cometeram um ato violento contra outra pessoa aos 16 ou aos 22 anos. Mas esse percentual sobe para 22,5% entre os sujeitos que, aos 14 anos, ficavam na frente do televisor entre uma e três horas por dia.
Além disso, o relatório de Johnson afirma que variáveis como abuso infantil, renda familiar, nível de educação e patologia mental dos pais, violência no bairro etc. foram levadas em conta, mas não alteraram os resultados. Ou seja, a pesquisa estabelece uma causalidade própria da imagem televisual.
Anderson e Bushman, como disse, festejam a nova pesquisa. Mas há uma dificuldade: Johnson não leva em conta os diferentes programas aos quais assistiam os sujeitos investigados. Para quase todas as pesquisas da área, não é a televisão em si, mas a violência na televisão que produz violência na vida. Ora, a nova pesquisa afirma que o tempo passado assistindo à TV -SEJA QUAL FOR O PROGRAMA- aumenta as chances de ocorrerem comportamentos violentos. Como pode ser?
O próprio Johnson, entrevistado pela Folha, foi conciliatório e comentou que 60% dos programas da televisão contêm violência. Portanto as horas passadas na frente da TV seriam horas passadas assistindo à violência televisual. É uma extrapolação. De fato, os resultados da pesquisa dizem só que, até na adolescência e na idade adulta, assistir à TV é um indicador de violência futura, independentemente do programa. Um espectador pode curtir só a Xuxa, a Eliana e a "Casa dos Artistas", outro será fiel a Boris Casoy, Marília Gabriela e CNN, outro ainda escolherá os seriados mais violentos e qualquer coisa no estilo de "Aqui Agora". É intuitivo que essa última escolha possa tornar o espectador mais violento. Mas a pesquisa afirma que, além dessas diferenças, a simples quantidade de tempo passado diante da TV produz violência.
Do mesmo jeito, posso assistir à televisão porque não tenho amigos com quem sair ou então ver TV deitado entre irmãos e irmãs, enquanto toda a família brinca e comenta. No segundo caso, eu estarei mais sorridente, mas a pesquisa de Johnson sugere que, além dessa diferença, se mantém uma relação entre o comportamento violento e a quantidade de tempo passado na frente da televisão.
Pela pesquisa de Johnson, os televisores deveriam ser comercializados com um aviso, como os maços de cigarros: cuidado, a exposição prolongada à tela desse aparelho pode produzir violência.
Estranho? Nem tanto. É bem provável que a fonte de muita violência moderna seja nossa insubordinação básica: ninguém quer ser ou continuar sendo quem é. Podemos proclamar nossa nostalgia de tempos mais resignados, mas duvido que queiramos ou possamos renunciar à divisão constante entre o que somos e o que gostaríamos de ser.
Para alimentar nossa insatisfação, inventamos a literatura e, mais tarde, o cinema. Mas a invenção mais astuciosa talvez tenha sido a televisão. Graças a ela, instalamos em nossas salas uma janela sobre o devaneio, que pode ser aberta a qualquer instante e sem esforço.
Pouco importa que fiquemos no zapping ou que paremos para sonhar em ser policiais,
gângsteres ou apenas nós mesmos (um pouco piores) no "Big Brother". A TV confirma uma idéia que está conosco sempre: existe uma outra dimensão, e nossas quatro paredes são uma jaula. A pesquisa de Johnson constata que, à força de olhar, podemos ficar a fim de sacudir as barras além do permitido. Faz sentido.
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