quinta-feira, 27 de junho de 2002

O pato, a nostalgia e a indústria do aconchego



Frequentemente, ao entrar numa casa de classe média, surpreendo-me. O sofá foi transformado numa barcaça destinada ao transporte de almofadas, cobertorezinhos ou mantas para as noites de inverno. De tanto querer ser confortável, ele se tornou impraticável: não há mais espaço onde sentar.

Ao redor do sofá, em cima de estantes e mesinhas, acumulam-se os bibelôs: tinteiros art déco, com canetas pretensamente de âmbar, Budas e outras chinesices, cerâmicas de Capodimonte ou quase, pequenos bronzes que evocam Isadora Duncan, os dias do charleston ou o discóbolo e caixinhas de prata, ébano ou madrepérola. Não faltam os patos de madeira, engodos para caça, que nunca flutuarão nas águas de um lago para convocar seus semelhantes.

Essas casas nascem do conúbio de briques e feiras de antiguidades com o catálogo dos objetos necessários para viver o estilo "conforto na fazenda" (toalhas de mesa xadrez, panos de prato bordados com veados e búfalos, saladeiras de madeira maciça etc.).

Várias revistas de decoração elogiam nossas habitações quando o sofá é um mostruário de almofadas e as estantes expõem os restos de um museu falido, ao lado de símbolos campestres. Dizem que, assim, as casas são aconchegantes.

Isso não significa que nelas a gente fique à vontade, pois não dá para sentar no sofá e não dá para pousar um livro nas mesinhas. Em compensação, essas habitações proclamam seu próprio aconchego. Nossas casas ideais não oferecem conforto, mas tentam convencer hóspedes, moradores e convidados de que elas são lares gostosos.

Em suma, queremos casas que signifiquem que temos mesmo uma casa. Os achados nos briques do domingo, acumulados, dão-nos a ilusão de estar numa habitação que teria passado de pai a filhos desde sempre. Lidamos assim com a nostalgia de um tempo em que três ou quatro gerações viviam juntas e a casa expressava a permanência da família. Instalamos na sala, como elemento de decoração, a mesma máquina de costurar que a avó trouxe da Alemanha e que ficou na colônia. Ou as luvas bordadas que substituem aquelas que a mãe mandou vir da Espanha e que se perderam quando a sua casa foi desfeita por uma vizinha, pois a gente não teve tempo de ficar depois do funeral. Quanto às almofadas que jogamos no chão para sentar no sofá, elas servem para evocar um estilo de vida rural que confirmaria a tranquila estabilidade de nossos lares.

Com a exceção das casas de modernistas militantes, a habitação de classe média, desde o século 19, é um grito de nostalgia. No começo, ela expressava a nostalgia das hierarquias contestadas pela mobilidade social moderna. A mistura dos estilos Biedermeier com Louis-Philippe, que ainda era a regra nos apartamentos milaneses de minha infância, infligia-nos, por exemplo, uma exposição permanente de bomboneiras de prata, todas gravadas com os nomes e as datas dos casamentos de amigos e parentes. Geralmente, essa exposição acompanhava o desfile dos porta-retratos. Era uma maneira de mostrar que a casa e seus habitantes tinham história e continuidade, um jeito de afirmar a existência de um clã, de salientar a relevância das origens e a extensão da esfera de influência da família. O século promovia a mobilidade social e queria sacrificar hierarquias e privilégios? A casa burguesa, com bomboneiras e retratos, reinventava nada menos que o altar dos lares, os deuses domésticos da casa romana.

No século 20, a mobilidade, além de social, tornou-se física. O nômade contemporâneo tem óbvias dificuldades em constituir um lar. Logo as "antiguidades" e o estilo de decoração "country" vieram ninar nossa nostalgia, proporcionando-nos mais uma chance de viver numa paródia do passado. Decoramos apartamentos alugados por seis meses como o tipo de habitação que, tradicionalmente, fica na família para sempre: a fazenda.

Mas há um problema. Os objetos que deveriam exibir nossas antigas raízes locais são estranhamente universais: o aconchego é uma indústria recente e, portanto, globalizada. A mesma decoração tenta nos convencer de que temos um lar "local" num apartamento de Paris, numa casa do Morumbi, numa "brownstone" do Brooklyn e num flat de Coral Gables. As propagandas de "Country Living" (vida no campo) prometem que os objetos escolhidos provarão a unicidade aconchegante de nosso lar. Mentira e irrisão: eles confirmam a perda inevitável de nossas raízes. Tentamos nos convencer de que estamos no aconchego de casa graças a uma manta de lã igual à da avó, mas a manta é fabricada em Taiwan. O pano de prato foi bordado num abafado galpão de Jacarta. E o pato de madeira é chinês.

Quando pararemos com a nostalgia e inventaremos uma estética doméstica para os nossos tempos?

P.S.: A nostalgia de uma ordem e de um lar perdidos explicam também o surto de paixão pela vida suburbana (imitação da vida rural) nos anos 60-80 e a proliferação em nossas casas de peças de artesanato "local". O mesmo vale para o kitsch das lembranças de viagem, mas deixo isso para outra vez.

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