quinta-feira, 4 de julho de 2002

A festa da final, entre São Paulo e Nova York

Há anos, a cada mês, viajo entre São Paulo e Nova York. Volta e meia, antes de enfiar a cara num livro, converso com meus vizinhos de assento, que, naturalmente, me perguntam se estou indo ou voltando. Querem saber onde moro.

Inevitavelmente, a conversa encaminha-se para uma comparação, com a lista dos encantos e dos defeitos respectivos de São Paulo e de Nova York. Mas, no discurso da maioria de meus companheiros de viagem, não reconheço nem São Paulo, nem Nova York. A razão que me prende às duas cidades não está em nenhuma das listas propostas.

Na verdade, gosto de São Paulo e de Nova York por algo que elas têm em comum, e não se trata das coisas desejáveis que nelas é possível encontrar e, eventualmente, conseguir. De que se trata, então?

No domingo passado, de manhã bem cedo, nas ruas desertas e já quentes de Manhattan, só circulavam camisas amarelas: brasileiros a caminho do lugar onde assistiriam à final. Alguns procuravam os restaurantes que abriam às 6h, oferecendo telão e café completo (até US$ 50, um roubo). Outros iam para a casa de amigos a fim de torcer em boa companhia.

Depois das 10h, na seção da rua 46 conhecida como "Little Brazil", começou a festa: batucada, crianças, apitos, pulos e trenzinhos de Carnaval. A maioria era de imigrantes: brasileiros de todos os Estados, de todas as idades e de todas as camadas da classe média, que vieram tentar fortuna, na esperança de que fazer a América do Norte fosse mais fácil do que fazer a América do Sul.

A festa era parecida com qualquer festa de uma das diferentes comunidades que compõem o mosaico americano -pelo clima e pelas decorações, poderia ter sido um baile na "Little Italy" de Boston. A alegria era ora contida e quase melancólica, ora exasperada e quase raivosa -em ambos os casos, misteriosamente comovedora.

Os brasileiros, vestindo as cores nacionais, embrulhados em bandeiras de vário feitio, dançavam por nostalgia da terra deixada: celebravam, assim, o vilarejo, o calor das famílias extensas, a clara definição das tarefas da vida e do que se precisa para cumpri-las, o conforto de uma comunidade em que os lugares são poucos, mas, em compensação, mais bem definidos. Eles também dançavam embaixo das bandeiras americanas que, nos adornos da rua, se alternavam com as brasileiras. Aliás, alguns agitavam as duas bandeiras, uma em cada mão. O imigrante é um protótipo da subjetividade moderna: nele a nostalgia convive e luta com o sonho de ir embora, de inventar uma vida nova, de surpreender aos outros e a si mesmo.

As grandes cidades são os lugares que mais seduzem o imigrante -seja ele brasileiro em Nova York ou nordestino em São Paulo. É preciso muita gente em pouco espaço para inventar uma sociedade em que o lugar de cada um não dependa mais de origem e tradição, mas da consideração dos outros. Essas cidades assumem a aparência de gigantescas vitrinas: elas prezam e expõem uma infinidade de objetos, prometendo que os cidadãos serão reconhecidos e valorizados pelas posses que conquistarão. Em geral, são objetos que faziam falta no lugar natal e que alimentam os devaneios dos que lá ficaram.

Paradoxo: na fantasia do imigrante, ser feliz significa poder voltar (se possível, rico às mãos-cheias) para onde ele não conseguiu ficar. A salvaguarda contra a nostalgia é a suposição de que os outros, no vilarejo, sintam inveja dele. O imigrante, mesmo fracassando no novo lugar, é consolado pela idéia de que, em sua comunidade de origem, ele se tornou "alguém" in absentia, graças à inveja dos que permaneceram.

Hoje, a seleção é campeã: como escreveu José Roberto Torero na Folha de segunda, o Jardim Irene é a capital do mundo. Para o imigrante, é, ao mesmo tempo, uma jubilação e um drama. Por isso, talvez, a alegria da festa parecesse contida ou exasperada. O orgulho do país nativo compromete a humildade que é necessária para integrar-se e, quando o vilarejo triunfa, o imigrante pode duvidar da inveja de quem ficou na terra: vacilam as forças que permitem continuar a aventura.

O orgulho coloca o imigrante numa terra de ninguém: impede que ele se integre, quando já é tarde demais para voltar. Parêntese: é essa derrelição que subleva os imigrantes norte-africanos na Europa. Os orgulhosos sonhos pan-arabistas impediram que eles se moldassem à sociedade para onde viajaram. E, aos olhos de quem permaneceu em casa, eles são mais desertores do que objetos de inveja.

O encanto de Nova York e de São Paulo não está nas vitrinas e nos objetos enumerados por meus companheiros de viagem. Não está nas lojas de charutos, nas limusines e nos restaurantes de luxo. Ele está nos povos imigrantes. Sinto-me em casa, em Nova York como em São Paulo, pelos milhões de esperançosos que vieram buscar liberdades e que ficam, como baleias encalhadas na praia, ofegando entre o sonho e a nostalgia. São eles que conferem aos ares paulistano e nova-iorquino a densidade, inconfundível e extraordinária, do desejo humano.

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